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Psicologia Clínica

Print version ISSN 0103-5665On-line version ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.30 no.1 Rio de Janeiro  2018

http://dx.doi.org/10.33208/PC1980-5438v0030n01A07 

ARTIGOS : TEMAS SOBRE PSICOLOGIA CLÍNICA

 

A melancolia em Lars Von Trier e a psicanálise

 

Melancholy in Lars Von Trier and the psychoanalysis

 

La melancolía de Lars Von Trier y el psicoanálisis

 

 

Thais KleinI; Regina HerzogII

IProfessora Associada do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, Universidade Federal do Rio de Janeiro, RJ, Brasil
IIDoutoranda do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, Universidade Federal do Rio de Janeiro, RJ, Brasil

 

 


RESUMO

O presente artigo aborda a melancolia na psicanálise a partir de considerações tecidas sobre o filme "Melancolia", de Lars Von Trier. O discurso melancólico, de acordo com Freud, está "mais próximo da verdade", isto porque denuncia a condição de desamparo. "Melancolia", o filme, toca justamente neste ponto, colocando em imagens, em uma ficção, a problemática do olhar que se lança diante da morte. Esse tipo de imagem comtempla a questão estética, psíquica e política de pensar frente ao terror do desamparo. Aproxima-se a solução melancólica apresentada no filme à tragédia. Recusando seguir pelo viés do déficit ou da patologia, aponta-se a potencialidade da saída trágica empreendida pela personagem principal, diferenciando-a da solução dramática e da recusa. Destaca-se, assim, a melancolia em sua vertente criadora, ressaltando sua contribuição para a prática psicanalítica.

Palavras-chave: melancolia; psicanálise; cinema.


ABSTRACT

The present article addresses melancholy in psychoanalysis proceeding from considerations about "Melancholia", a film by Lars Von Trier. The melancholic speech, according to Freud, is "closer to the truth", because it exposes the helplessness condition. "Melancholia", the film, touches on this very spot, placing through images, in fiction, the issue of facing death. This kind of image contemplates the aesthetic, psychic and political matter of thinking while facing the terror of helplessness. The melancholic solution presented in film is approached to tragedy. Refusing to go by the bias of deficit or pathology, the purpose is to point out the potentiality of the tragic output undertaken by the main character, differentiating it from dramatic solution and refusal. Therefore, the goal is to emphasize melancholy in its creative aspect, highlighting its contribution to the psychoanalytical practice.

Keywords: melancholy; psychoanalysis; cinema.


RESUMEN

El presente artículo aborda la melancolía en psicoanálisis partiendo de consideraciones sobre "Melancholia", una película de Lars Von Trier. El discurso de la melancolía, según Freud, es "más cerca de la verdad", ya que expone la condición de desamparo. "Melancholia", la película, toca en este mismo punto, mediante la colocación en imágenes, en ficción, el problema del mirar lanzado delante la muerte. Este tipo de imagen contempla la cuestión estética, psíquica y política de pensar mientras se enfrenta al terror de desamparo. Acercase la solución melancólica presentada en la película a la tragedia. Rechazando a ir por el sesgo de déficit o patología, el propósito es señalar la potencialidad de la salida trágica emprendida por el personaje principal, diferenciándolo de la solución dramática y denegación. Por lo tanto, el objetivo es hacer hincapié en la melancolía en su aspecto creativo, destacando su contribución a la práctica psicoanalítica.

Palabras-clave: melancolía; psicoanálisis; cinema.


 

 

A meu gosto da morte, diz Bousquet, que era falência da vontade, eu substituirei um desejo de morrer que seja a apoteose da vontade.

(Deleuze, 1982, p. 152)

A questão melancólica não é um assunto recente, inúmeros pensadores se debruçaram sobre ela ao longo dos anos. Todavia, a melancolia nem sempre foi abordada pela ótica da patologia. Isso porque sua ligação com a intelectualidade e com a inteligência foi discutida com uma espécie de reverência. Esse é o caso de Aristóteles, por exemplo, no famoso problema, atribuído por alguns a Teofrasto e por outros ao próprio Aristóteles (no ano de 305 a. C.), no qual se pergunta: "Por que razão todos os que foram homens de exceção, no que concerne à Filosofia, à Ciência do Estado, à Poesia ou às Artes são manifestamente melancólicos [...]?" (Aristóteles, 1998, p. 23). Robert Burton traz outro exemplo importante em sua obra seminal "Anatomia da melancolia" na qual se propõe apresentar um extenso compendio sobre o tema. Ele não esconde seu apaixonamento pela condição melancólica. Vale a pena citar alguns versos do seu "Resumo do autor sobre melancolia" (Burton, 1691/2011, p. 47):

Se a sós medito, ensimesmado,
Sobre a ciência e seu estado,
Se construo Castelos nos ares,
Sem ver temores ou pesares,
Tenho alegrias fantasmais,
Julgo o tempo veloz demais.
Todo meu gozo é só mania,
Que é a mais doce melancolia.

Apesar de não ter um pensamento sistematizado sobre a melancolia, Freud resgata este termo deixado de lado pela psiquiatria que lhe era contemporânea. O autor parece também apontar para um aspecto além da patologia presente nessa condição ao afirmar que o melancólico estaria mais próximo da verdade. Que verdade seria essa? Somente no final de sua obra este aspecto se esclarece: trata-se do desamparo da condição humana. A afinidade com essa espécie de verdade se torna uma característica importante do discurso melancólico, que se refere ao fato de o melancólico se vangloriar por desvelar a nossa finitude. Esse aspecto é bem ressaltado no filme intitulado "Melancolia" (2011) de Lars Von Trier. Embora, como se espera de uma obra de arte, o filme não trate do tema teoricamente, nele aponta-se para questões importantes que nos impelem a trabalhar conceitos psicanalíticos e pensar a melancolia no campo da psicanálise. Cabe destacar que outros artigos foram dedicados ao filme em sua articulação com a psicanálise (dentre eles destacamos Meyer, 2013). No entanto, além de não pretendermos realizar uma análise psicanalítica da obra cinematográfica, a especificidade e relevância deste escrito reside na intenção de enfatizar, a partir de certas provocações colocadas por Lars Von Trier, a importância da questão melancólica não apenas para a clínica psicanalítica, mas para o campo da psicanálise como um todo. Isso porque, ao mergulhar no roteiro do filme e principalmente no jogo de imagens que ele nos expõe, temos a sensação, inspirando-nos nas considerações de Didi-Huberman (2015) sobre a imagem cinematográfica, que o diretor traz à luz através de imagens algo tão obscuro como a problemática exposta em uma tragédia. Trata-se de uma imagem que se destaca do escuro, como um golpe, como um corte no visível que acaba por mostrar aquilo que não podia ser visto, apontando para uma discussão imprescindível no campo psicanalítico.

Esse tipo de imagem aborda a questão estética, psíquica e política de pensar diante de uma espécie de buraco negro, do terror do desamparo e da morte. Didi-Huberman (2015) nos coloca algumas questões nesse sentido: o que se deve fazer de fato diante desse vazio? Deixar esse buraco negro minar o nosso interior e nos emudecer absolutamente? Ou encará-lo e iluminá-lo, fazê-lo sair da escuridão?

"Melancolia", o filme, toca justamente nesse ponto, colocando em imagens, em uma ficção, a problemática do olhar que se lança diante da morte. Conforme ressalta Blanchot (1987), não há obra de ficção que não parta desse "espaço da morte", transformando-o. É justamente nessa direção que pretendemos aproximar a tragédia da questão melancólica desenvolvida no filme e, a partir daí, tecer alguns comentários sobre a questão da melancolia na psicanálise. Nossa proposta não é de abordar a questão pelo viés do déficit ou da patologia, mas apontar para a potencialidade da melancolia em sua vertente criadora, destacando sua contribuição para a prática psicanalítica.

 

A melancolia de Lars Von Trier

As primeiras cenas do filme consistem em uma espécie de prólogo no qual se anuncia o que está por vir: a colisão do planeta Terra com o planeta "Melancolia". Imagens de Justine, personagem principal interpretada por Kristen Dunst, entremeada pela natureza em tons coloridos e ao mesmo tempo desbotados. A vida esvaindo-se efemeramente ao som de "Tristão e Isolda" de Richard Wagner através de um tom poético e idílico mostram de saída a atmosfera que somos convidados a percorrer durante as próximas duas horas. O início da primeira parte - intitulada Justine - apresenta, no entanto, um cenário distinto. Um casal aparentemente apaixonado se dirige para o casamento. Tudo parece correr bem até que uma cena nos chama atenção: o carro, uma Limousine, é grande demais para a pequena estrada que leva até o local do evento. Após algumas tentativas, a cena é substituída por outra na qual Justine e Michael chegam ao casamento a pé; a ironia é evidente: o carro luxuoso não os pode levar até a cerimônia. A presença dos noivos é marcada por certa estranheza na medida em que a irmã e o cunhado da noiva (Claire e John) os repreendem pelo atraso. Percebemos então que a festa já começou há duas horas e os noivos apenas seguirão os compromissos programados pelo cerimonialista contratado pelo cunhado de Justine, o cerimonialista mais caro de que se tem notícia.

Quando todos estão se dirigindo para o salão, Justine olha para o céu com uma espécie de fascinação pela luminosidade de Antares que mais tarde será ocultada pelo planeta Melancolia. Mais uma vez, os dois casais tentam se encaminhar para o local da cerimônia, quando a noiva afirma que precisa antes de tudo cumprimentar os cavalos. Desde então sua estreita ligação com esses animais é ressaltada. Ao entrar no salão, uma cena aparentemente insignificante chama nossa atenção. Trata-se de uma espécie de competição que consiste na aposta sobre o número de grãos de feijão contidos em uma garrafa. Enquanto Justine parece ignorar o jogo, seu noivo faz uma aposta: dois milhões e seis feijões. Ao se sentarem à mesa de jantar, evidenciam-se as exigências sociais que perpassam a cerimônia, frente às quais os noivos são meros coadjuvantes: Justine se serve de comida e o garçom alerta que os pratos devem ser passados da esquerda para a direita. A festividade prossegue até o momento em que os convidados começam a discursar. Enquanto o discurso do chefe da noiva é marcado pela cobrança e exaltação no sentido da produtividade no campo da propaganda, no discurso do pai nota-se um vazio permeado por considerações de cunho comum até o momento em que se refere à ex-mulher e mãe da noiva como uma pessoa extremamente dominadora. Esta, por sua vez, apesar de ter dito anteriormente que não gostaria de discursar, resolve responder à provocação proferindo uma fala que funcionará como um divisor de águas. A partir de então, instaura-se uma mudança no enfoque da narrativa que passa a se deter na experiência subjetiva de Justine. O discurso da mãe é marcado por uma espécie de pessimismo em relação ao casamento: "nunca acreditei em casamentos" diz ela. Justine se ausenta da cerimônia e passeia pelo jardim contemplando as estrelas: Antares deixa de ser vermelha e torna-se azul.

De volta ao salão, é a vez do discurso do noivo que de forma insegura profere algumas palavras de cunho genérico. A feição de Justine se transforma e somos convidados a acompanhar sua sensação de cansaço e deslocamento em relação à cerimônia e, em última instância, à vida. Enquanto a festa prossegue, o chefe lhe cobra um slogan para uma campanha publicitária e seu pai se diverte roubando colheres da mesa; Justine sobe para o segundo andar acompanhada do sobrinho, única pessoa com a qual parece manter alguma espécie de vínculo afetivo, além dos cavalos. Ela se refugia então no segundo andar, longe dos convidados e adormece junto com o sobrinho. Ao acordar, a noiva diz para a irmã: "eu estou caminhando com dificuldade por um emaranhado de lã cinza. Ele está grudando nas minhas pernas". Claire, de certa forma, a acolhe, mas se paralisa diante de tal sofrimento. Uma série de fatos significativos acontece nesse ínterim, como a conversa com a sua mãe que, ao invés de acolhê-la, parece apontar novamente para o desamparo de Justine, "pare de sonhar, Justine", diz a mãe. A cena seguinte retrata um longo banho de banheira da noiva enquanto a cerimônia se desenrola no andar de baixo.

O cunhado, patrocinador do casamento, sobe em seguida preocupado com o cronograma: é a hora de cortar o bolo. Ao perceber que a noiva está completamente desinteressada da cerimônia John diz: "ela arruinou meu casamento", reafirmando a estrangeiridade dos próprios noivos em relação ao casamento. O diálogo se torna um pouco mais amigável e o cunhado prossegue dizendo que gostaria de fazer um acordo com Justine, este acordo consiste na insistência de que ela seja feliz, "apenas seja feliz". Quando a noiva volta ao salão, os convidados mantêm o mesmo discurso e perguntam com frequência sobre a felicidade da noiva. A impressão que temos é que o clima festivo e a exigência de felicidade por parte daqueles que participam da cerimônia destoam da sensação de despertencimento que a noiva nos passa.

O final da cerimônia é marcado pela dispersão dos convidados e de Justine se aproximando do pai, prestes a sair, dizendo que gostaria muito de falar com ele. O pai não se posiciona se vai aceder ou não ao pedido da filha e Justine praticamente impõe que pernoite no castelo, mandando arrumar um quarto com uma espécie de alegria pueril: "podemos tomar café da manhã juntos", diz. Em seguida, descobrimos, através de um bilhete, que ele foi embora. Nessa nota, o pai a chama de Betty, nome genérico com que denomina todas as mulheres do casamento. Todos se vão, inclusive seu chefe, pessoa para quem Justine profere um discurso que desvela a máscara do jogo imagético tão presente tanto no campo da publicidade quanto no campo das relações sociais. Todos definitivamente se vão, inclusive o próprio noivo.

No dia seguinte, as irmãs saem para cavalgar, atividade que apraz Justine. Durante o passeio, o cavalo da personagem principal se recusa a avançar, parando no caminho. O animal parece compartilhar com Justine uma espécie de sensibilidade na medida em que o motivo de sua recusa está relacionado provavelmente à aproximação do planeta Melancolia. Nesse momento, Justine também nota que Melancolia está se sobrepondo a Antares. Começa aí a segunda parte do filme intitulada: Claire.

A proximidade do planeta Melancolia se torna um evento cada vez mais evidente na segunda parte do filme. É interessante observar que, no início desse bloco, Justine, bastante debilitada, retorna à mansão sem conseguir andar, tomar banho ou comer sozinha, Claire ajuda a irmã na realização dessas tarefas. Paralelamente, a bem provável chegada do planeta Melancolia cria reações diversas nos personagens. John, cunhado de Justine, transforma o acontecimento, que pode levar a um suposto fim da Terra, em uma espécie de espetáculo. Compra telescópios, suprimento de comida e acredita piamente nos cálculos dos cientistas que afirmam que a Terra não será atingida. Claire, por sua vez, demonstra um pavor constante, chegando a comprar veneno para se matarem caso a colisão de fato aconteça. Para nossa surpresa, no entanto, é Justine que fica mais tranquila nesse contexto.

Sua condição parece melhorar na medida em que o planeta se aproxima, sua calma se distingue da agitação de Claire. Nesse momento a questão da aposta acerca dos caroços de feijão vem novamente à tona. Em um diálogo interessante, Justine afirma para Claire que sabe das coisas: "Eu sei das coisas, eu sei que estamos sós. 678, a brincadeira do feijão, ninguém acertou o número de feijões, mas eu sei. Eu sei coisas e quando eu digo que estamos sós, estamos sós". Com isso Justine aponta precisamente para o nosso desamparo, para a falácia de todo o progresso e esperança. É nesse sentido que ela se aproxima da verdade: enquanto seu noivo apostou alto no número de feijões, ela sabe a justa medida da realidade e faz questão de denunciá-la. Seu cunhado, que aparentemente era o mais crente na ciência e apoiado em seus objetos de valor financeiro, é o primeiro a não suportar a aproximação do planeta Melancolia: usando o veneno comprado por sua mulher, se mata. Restam apenas Justine, Claire e o filho desta. Embora haja inúmeros telescópios à volta, a melhor ferramenta para acompanhar a aproximação do planeta é uma engenhoca produzida pela criança. Através desse objeto, Claire observa que, embora Melancolia pareça ter se afastado em um primeiro momento, o planeta está retornando.

A personagem encontra seu marido morto no estábulo e, após perceber que de fato o planeta está se aproximando da Terra, tenta fugir de todas as maneiras com o seu filho. Justine se mantém calma e observa o movimento desesperado da irmã: não há para onde fugir. Após se acalmar um pouco, Claire pede à irmã que façam algo juntas durante a tragédia, como um vinho no terraço. Justine responde: "sabe o que eu acho do seu plano? Eu acho que é uma droga". E complementa que pouco importa onde estarão ou o que estarão fazendo, pouco importa o terraço ou o vinho, todos irão morrer, não faz sentido transformar aquele evento em um ritual nos moldes de seu casamento, isto é, em uma espécie de espetáculo. Justine entabula uma conversa com o seu sobrinho, em uma cena povoada apenas pela criança e um cavalo, e se permite fantasiar, falando para o sobrinho não se preocupar com a chegada do planeta, uma vez que eles poderiam construir a "caverna mágica". Somente ao conversar com a criança a personagem parece se emocionar, demonstrar algum afeto. Eles constroem, então, uma cabana feita de galhos e os três de mãos dadas, guiados por Justine, esperam a chegada do planeta ao som de Tristão e Isolda mais uma vez.

Feito esse resumo do filme, vamos a seguir, traçar certas articulações com a questão da melancolia na perspectiva psicanalítica.

 

A melancolia na psicanálise

A melancolia, marcada na psicanálise pela singularidade da clínica, traz diversas variantes principalmente no plano nosográfico. Por esse motivo, propomos pensar a melancolia não como correspondente a uma estrutura psíquica, mas como uma estratégia de formalização da fronteira entre eu e o outro. Isso se justifica pelo fato de encontrarmos, na obra de Freud, distintas formulações no modo de entender e situar a melancolia nas estruturas clínicas. A partir do texto "Sobre o narcisismo: uma introdução" de 1914 e "Luto e melancolia" de 1917, a paranoia, a mania e a melancolia são agrupadas como neuroses narcísicas em oposição às neuroses de transferência. O que difere a melancolia da paranoia diz respeito ao fato de que naquela, ao invés de um estranhamento da realidade, o que se pode observar é uma reverência à realidade. Mas que realidade é essa posto que o conceito de realidade em psicanálise é, senão difuso, extremamente complexo? A verdade ou realidade de que nos fala Freud diz respeito a nossa condição de desamparo.

O discurso melancólico, tal como Freud expõe em "Luto e melancolia" (1917/1976), está "mais próximo da verdade" pois não se deixa iludir pelas fantasias que amenizariam essa condição. De acordo com Freud: "ele nos parece igualmente ter razão e captar a verdade com mais agudeza que os outros, não melancólicos [...] talvez a nosso ver ele tenha se aproximado bastante do autoconhecimento e só nos perguntamos por que é preciso adoecer para chegar a uma verdade como esta" (Freud, 1917/1976, p. 255). Justine aponta justamente para essa questão ao desvelar para todos a falácia de uma cerimônia fantasiosa de casamento. Sua ligação afetiva parece se dar apenas com as crianças e com os animais, talvez porque estes não tenham estabelecido um pacto com a realidade social, não teriam sido "contaminados" pela falácia do jogo social. Esse fato nos faz lembrar de saída do episódio de Nietzsche no qual o filósofo se emociona ao observar um cavalo sendo açoitado. É essa espécie de desvinculação com o jogo social e uma denúncia da condição de desamparo que marcam o discurso melancólico, bem exemplificado por Justine. Nota-se uma fascinação por essa verdade da qual o melancólico faz questão de ser porta-voz. Não é à toa que no momento em que todos estão extremamente desamparados, uma vez que são colocados de frente para a morte, somente Justine se mantém calma. Não há nada o que perder, já perdemos tudo o que havia para ser perdido.

O tema da perda do objeto, central na questão da melancolia, diz respeito a uma perda de investimento libidinal na fantasia. Segundo Lambotte (2000), o melancólico não vive como se os objetos não existissem (não se trata de duvidar da existência dos objetos), ele vive como se o inexiste fosse o investimento que o ligaria aos objetos e os tornariam efetivos. É curioso notar que Justine mantém sim uma ligação afetiva com o mundo, mas aparentemente apenas com os animais e com as crianças.

Em 1917, Freud vai utilizar o modelo do luto para pensar a dinâmica psíquica da melancolia. Partindo da noção de perda de um objeto de investimento que se dá igualmente no luto e na melancolia, a especificidade dessa última é destacada. Nesta, a perda é acrescida de autorrecriminações, automartírio e tendência suicida. Com relação à perda, Freud afirma que o paciente pode até estar "cônscio da perda que deu origem à sua melancolia, mas apenas no sentido de que sabe quem ele perdeu, mas não o que perdeu nesse alguém" (Freud, 1917/1976, p. 251). Assim, por essa qualidade inconsciente, a perda vai ocasionar na melancolia uma inibição, que impossibilitará o sujeito de reinvestir a libido em outro objeto, voltando-a para o ego. No luto, o mundo se torna pobre e vazio e, após uma demorada e dolorosa retirada dos investimentos do objeto perdido, a libido se volta para o ego e então pode ser investida em outros objetos. Já na melancolia, o ego empobreceu, sendo inibido o percurso de volta da libido para o mundo externo. Há, portanto, uma espécie de interrupção desse percurso: ao retornar ao ego a libido permanece e, ao invés de investir em objetos externos, é utilizada no sentido de promover uma identificação com o objeto. O esquema da hemorragia de investimentos, apresentada no "Rascunho G" (Freud, 1950/1977), no qual Freud afirma que a dinâmica melancólica comporta uma espécie de buraco negro dos investimentos libidinais, se mantém importante ao longo da obra. Nas palavras do autor: "o complexo de melancolia se comporta como uma ferida aberta, atraindo a si as energias catexiais provenientes de todas as direções e esvaziando o ego até este ficar totalmente empobrecido" (Freud, 1917/1976, p. 258). A célebre frase de Freud (1917/1976, p. 254) - "deste modo, a sombra do objeto caiu sobre o ego, que então pôde ser julgado por uma determinada instância, como um objeto, como um objeto abandonado" - aponta para um modelo de identificação maciço diferente do modelo histérico. A partir dessa identificação, uma parte do ego é tomada como objeto. Desse modo, o objeto de amor perdido é mantido pela identificação narcísica. Há uma cisão no eu e o conflito com a pessoa amada torna-se um conflito entre o ego alterado por identificação e as instâncias. No discurso melancólico, o ego, identificado com o objeto, é alvo de acusações, denunciando a ambivalência inconsciente do vínculo de amor que é remetida à etapa do sadismo.

Já no modelo de identificação histérica, que caracteriza a primeira tópica, a identificação ganha o caráter de um modo de funcionamento do aparato psíquico, tendo como principal mecanismo o fantasiar. É no caso Dora (Freud, 1905/1976) que a articulação entre o mecanismo identificatório e o papel da fantasia na histeria se esclarece. A identificação surge como base dos sintomas de Dora: com a mãe, através das ameaças de suicídio e das exigências feitas ao pai e com a Senhora K, através da tosse. Assim, Dora se identifica com traços dessas mulheres que mantêm uma relação amorosa com o pai. Portanto, através desse sintoma, Dora pode realizar uma troca subjetiva com os objetos de amor do pai. Isto é, a identificação histérica se dá pela via do traço com base em um elemento comum, elemento esse que faz referência a um terceiro que é objeto de investimento da libido. Esse objeto de investimento da libido é o que vai possibilitar a fantasia, ou seja, a sustenta.

Com a introdução do conceito de narcisismo em 1914, outro modelo identificatório é traçado. No entanto, cabe lembrar que já em "Três ensaios sobre a sexualidade" (Freud, 1905/1976) e mais tarde em "Totem e tabu" (Freud, 1913/1976), vamos encontrar o conceito de incorporação, conceito de suma importância para a elaboração desse novo modelo de identificação. Em "Três ensaios sobre a sexualidade" (Freud, 1905/1976), a incorporação é apresentada como um mecanismo ligado à fase oral. Nesta, as pulsões parciais se assimilam em torno da mucosa da boca e a incorporação do objeto é prazerosa. O devorar se caracteriza também como uma identificação, com a força representada por este. Nesse caso, nos deparamos com um modelo de identificação que se apresenta de forma maciça, diferente da identificação por traços, mas que funciona como uma identificação estruturante, pela qual o sujeito assume características do objeto perdido, garantindo sua sobrevivência simbólica. A partir da segunda tópica, Freud fala de identificações primárias, de cunho narcísico, que assumem a pré-condição para a constituição do aparato psíquico. É preciso que primeiro haja uma identificação narcísica para podermos falar de identificação por traços. A libido se volta para o ego e, em um segundo momento, se direciona aos objetos externos. É o que Freud em 1914 chamou de narcisismo primário, concepção pouco distinta da noção de autoerotismo, no qual os investimentos estão concentrados no indivíduo e ainda não se pode falar de investimento libidinal.

A identificação melancólica se aproxima da identificação narcísica, na medida em que apresenta um caráter muito específico: trata-se da referência a uma totalidade. O ego melancólico, ao contrário do processo de luto ou do ego na histeria, é subjugado, sobreposto por outra imagem inteiriça. A identificação na melancolia se apresenta, antes de tudo, como um modo de garantir a permanência do vínculo amoroso apesar da perda do objeto. Nesse sentido, podemos nos questionar sobre o estatuto do objeto na melancolia. Na histeria há a possibilidade de abandonar o objeto e conservar seus traços, portanto o objeto se apresenta como parcial e substituível. Já na melancolia, o objeto parece ter uma função inteiramente distinta. Apresenta-se sem fendas ou falhas, como um ideal de completude. A perda é negada a despeito do teste de realidade, o objeto precisa ser mantido a qualquer preço, se instalando no ego como um posseiro. Essa identificação, que tem como base uma escolha narcísica, não está sujeita à transformação e à produção fantasmática; pelo contrário, refere-se a uma imagem eternizada sem possibilidade de interpretação e elaboração.

Neste âmbito, estabelece-se um mecanismo diferente daquele característico da histeria, mecanismo que podemos aproximar do que Ferenczi (1909/1977) denominou de introjeção. Este diz respeito a um modo de fazer investimento próprio do neurótico, um processo permanente de ligação com o mundo, no qual o neurótico investe e se apropria da própria pulsão através de traços do objeto de investimento: "É que, precisamente, a aspiração da introjeção não é da ordem da compensação, mas da ordem do crescimento: ela busca introduzir, alargando-a e enriquecendo-a, a libido inconsciente, anônima ou recalcada. Somente através da libido a fundação do edifício egoico parece ser possível" (Pinheiro, 1999, p. 31). Esse movimento de introjeção compõe as bases identificatórias que mais tarde formarão o aparato egoico como um todo: "construímos o edifício narcísico a fim de um dia aceitarmos a castração" (Pinheiro, 1999, p. 32). Portanto, a capacidade de se iludir, a montagem fantasmática, a capacidade de se identificar, de representar o futuro e um passado sem falhas são dispositivos para fazer frente ao desamparo. Na melancolia, esse arsenal imaginário parece não ter consistência, a polissemia de sentido e de investimentos franqueados pelo mecanismo de introjeção, ou seja, por uma constituição narcísica, não se faz/não tem lugar.

Diante desse quadro, poderíamos seguir procurando lançar mão de algumas teorias como, por exemplo, a de Lambotte (2000) sobre a moldura vazia para fazer uma espécie de etiologia da melancolia, apontando para a inconsistência narcísica dessa condição. Afirmaríamos assim que, no melancólico, a unidade corporal remete a uma casca, a uma moldura que não tem consistência, uma moldura vazia ocasionada pelo olhar da mãe, olhar que atravessou o bebê, que passou por ele sem se fixar, impossibilitando criar uma imagem narcísica consistente para fazer frente ao desamparo. Seria fácil fazer uma analogia desse pensamento com o discurso da mãe de Justine. Consideramos, no entanto, que esse caminho se faz na direção de buscar origens patológicas para explicar o que escutamos na clínica. É evidente que como psicanalistas precisamos de ancoragens teóricas que nos ajudem a traçar os quadros etiológicos com que nos deparamos, no entanto é importante não perdermos de vista a dimensão fenomenológica1 da escuta analítica. Nesse sentido, tanto um caso clínico como um filme podem nos ajudar nessa direção.

É evidente que a partir da obra cinematográfica de Lars Von Trier é possível articular questões importantes sobre a identificação melancólica e a temática da perda de objeto e investimentos afetivos com o mundo externo. No entanto, aquilo que mais chama nossa atenção é justamente o fato de que, diante da aproximação do planeta Melancolia, diante da morte, Justine é a única que permanece firme e não se desespera. O que isso nos aponta sobre o discurso melancólico? Podemos para além de uma dimensão destrutiva encontrar neste posicionamento algo que diz respeito a uma potência criadora? E, em última instância, quais seriam as consequências desta perspectiva para a prática analítica?

O discurso melancólico e o modelo de identificação a ele remetido parece se colocar justamente na tentativa de parar o tempo, de negar a transitoriedade: não, o objeto não se perdeu, não, o mundo não vale a pena ser vivido, pois tudo passa. Não seria o melancólico aquele que afirmaria que nada vale a pena na medida em que tudo é transitório? O ponto interessante que o filme nos coloca é justamente o fato de que, frente à morte, Justine não se paralisa, é capaz de elaborar uma saída criativa que lhe permite acalentar sua irmã e principalmente seu sobrinho. Nesse sentido, podemos vislumbrar a potência de outros tempos nessa temporalidade aparentemente paralisadora que a melancolia nos expõe. É inevitável a identificação, nos filmes de Lars Von Trier (lembremos sua grande obra "Dogville" ou "Dançando no escuro"), de elementos que nos remetem à tragédia. Poderíamos dizer que enquanto Claire vive uma espécie de drama, Justine é a personagem principal de uma tragédia. No drama, o inimigo é pensado como exterior, uma interferência externa que se coloca no sentido de modificar aquilo que antes era feliz e harmonioso (Gondar, 1995). É talvez como Claire encara a chegada do planeta: algo que vem perturbar a felicidade de sua família. Já na tragédia, o sujeito se defronta com um inimigo que está dentro de si próprio, o horror vem do que é mais familiar e estranho. Em última instância, o que caracteriza a tragédia é o defrontar-se com a morte. Justine parece ter uma espécie de fascinação e familiaridade com o planeta que destruirá a Terra. Esse aspecto é bem retratado, por exemplo, na cena em que a personagem se encontra desnuda na beira do rio em uma espécie de êxtase e fusão com a natureza sob a luz azul do planeta Melancolia. Conforme aponta Gondar (1995, p. 108), "na tragédia não é a perda de algo que está em jogo; ao contrário, é o herói quem está perdido, estilhaçado. Mais do que da perda, trata-se da perdição, e de uma perdição que tem no homem o seu próprio artífice".

Não seria justamente este tipo de perda, ou melhor perdição, que estaria em jogo também na melancolia? No entanto, nessa condição para-se nesse ponto, isto é, estanca-se essa perdição. O melancólico parece estar ao lado de Rilke no famoso diálogo com Freud exposto no texto "Sobre a transitoriedade" (Freud, 1916/1976). Rilke sofre porque tudo passa, sofre porque se depara com essa perda. Se os objetos passam, há uma falta, mas Freud aponta para algo além desta falta: há também, diz Freud, a suposição de algo que possa fazer frente a essa falta, ainda que momentaneamente.

Cabe ressaltar que não pretendemos exaltar uma postura melancólica, uma vez que esta, conforme o próprio filme retrata, tem como correlato um enorme distanciamento afetivo dos objetos. Nosso objetivo é tão somente afirmar que nessa mesma dinâmica, tão angustiante por vezes, pode-se encontrar também uma potência, posto que nessa condição o sujeito não se esquiva de se deparar com a morte de frente. Justine, diante da chegada do planeta Melancolia, parece justamente ultrapassar a paralisação do terror diante da morte e alcançar uma espécie de êxtase e entusiasmo que fazem da tragédia não uma afirmação da morte em vida, mas uma possibilidade para o novo.

É assim que, seguindo as indicações de Nietzsche (1872/1992), a tragédia, aqui apresentada em conjunção com a dinâmica melancólica, escancara uma visão extramoral do mundo afirmando-o como fenômeno estético. Se à visão aterradora do mundo se adiciona o êxtase e o entusiasmo, revela-se o aspecto dionisíaco do trágico. Nas palavras do autor: "se a esse terror acrescentarmos o delicioso êxtase que, à ruptura do principium individuationis, ascende do fundo mais íntimo do homem, sim, da natureza, ser-nos-á dado lançar um olhar à essência do dionisíaco, que é trazido a nós, o mais de perto possível, pela analogia da embriaguez" (Nietzsche, 1872/1992, § 1). Evoquemos a imagem que Nietzsche traz à tona, retirada de Heráclito, para retratar essa alegria e espécie de aceitação com a passagem do tempo e, em última instância, com a morte: uma criança que brinca com as esferas do universo. Inconsequente como a criança, o jogo do mundo não pode ser julgado nem condenado.

Não é precisamente na cena onde aparecem apenas a criança e o cavalo que Justine pode mostrar uma possibilidade de saída criativa diante da aproximação da morte, a "caverna mágica"? Embora a tragédia encene o momento no qual o homem é abandonado pelos deuses, no qual não resta em que se apoiar, é através dela que podemos encontrar uma saída criativa e extramoral que, seguindo as indicações de Nietzsche, afirma uma estilística de existência. Hölderin (1994), ao se debruçar sobre a questão da tragédia toca nesse mesmo ponto. A reflexão hölderliniana revela que a essência do trágico não jaz no desfecho inevitável, e sim na compreensão que tem o herói, dilacerado pelo abandono dos deuses, da natureza profunda do tempo. O filósofo nos diz que é no limite extremo da dor que o tempo é apreendido em sua pureza. No registro dessa dupla infidelidade, o antigo tempo homérico no qual os deuses ditavam o ritmo, um tempo dócil, circular, é substituído pela forma pura do tempo - a diferença em si mesma, que faz com que início e fim não rimem mais. Tal como na destruição da terra pelo planeta Melancolia, em tal "aflição" o herói trágico não pode mais obedecer à ordem cronológica e sucessiva do tempo, um acontecimento2 o coloca em uma dimensão temporal onde não há mais passado, nem futuro.

Quando o tempo sai dos eixos, referenciando-nos a tão famosa passagem de Hamlet3, o acontecimento pode vir alojar-se. "O acontecimento emerge nesse tempo amorfo, obedece à sua lógica não-dialética, habita essa virtualidade que não para de sobrevir - a pura reserva" (Pelbart, 1988, p. 186). É somente assim, quando o tempo se desprende das figuras excessivamente reconciliatórias que o subsumiam, que este se torna suficientemente esvaziado, liberando múltiplas imagens de tempo (Pelbart, 1998). Esse tempo, o tempo do fora, permite que o pensamento se coloque como força, indo ao seu limite, saindo da circularidade da repetição do mesmo ou da moralidade do mundo mundano. O pensamento, assim, deixa de ser aquele que rearticula representações, mas permite pensar o impensado. Diante dessas considerações depreendidas do filme resta-nos indagar em que medida podemos, a partir daí, lançar um olhar sobre a questão da melancolia no âmbito da clínica psicanalítica.

 

Considerações finais

Ao longo deste artigo procuramos, através de considerações levantadas pelo filme "Melancolia" de Lars Von Trier, discutir a questão da melancolia não a partir de uma etiologia traumática, mas buscando ver sua sintomatologia como uma potencialidade. A encenação imagética que constitui essa obra de ficção, nos aproximando das indicações de Didi-Huberman (2015), faz colocar em imagem aquilo que estava no escuro, isto é, faz pensar o impensável que, em última instância, tangencia a problemática do desamparo da condição humana. Nesse sentido, o mérito do filme é, além de trazer com bastante minúcia a condição melancólica, encenar aquilo que muitas vezes não pode ser encenado, é trazer em imagens de maneira poética a problemática do olhar diretamente para a morte. O que o filme toca, conforme ressaltamos com considerações sobre a tragédia e o seu tempo, é precisamente o inescapável da condição humana: o seu desamparo. O psicanalista não pode se esquivar de tocar nessa questão; nesse sentido, ele mesmo deve ter algo de Justine, ou de criador, de modo a trabalhar com aquilo que está no escuro. A esse propósito Didi-Huberman (2015) se pergunta o que fazer diante desse vazio a que certas imagens nos remetem: nós, como psicanalistas poderíamos responder que nossa tarefa deve ser justamente encará-lo e colocá-lo em luminosidade, assim como foi feito em "Melancolia".

A condição melancólica bem como sua possibilidade de saída criativa encenada por Justine nos ajudam nesse ponto. Diante das considerações levantadas pelo filme, observamos que Justine, embora traga o semblante de um profundo sofrimento, é a única que se mantém inteira e capaz de fornecer uma saída criativa diante da morte. Poderíamos dizer que ela é a única capaz de olhar de frente para o desamparo e extrair daí uma alternativa. Diferente de seu cunhado, que escolhe a morte, que escolhe, para usar a expressão de Blanchot (1987), o "fato da morte", Justine se aproxima do "acontecimento de morrer". O "fato da morte" consiste em uma intimidade voluntária, um excesso de desejo de morrer que acaba por encobrir o próprio excesso da morte. Conforme nos aponta Pelbart (1998, p. 101), "matar-se é querer que o futuro seja sem segredo, para torná-lo claro e legível, torná-lo sem espessura, sem perigo" (p. 101). Diferente dessa morte pessoal, individualizada, escolhida por John, Justine aceita o "acontecimento de morrer", isto é, o acontecimento no qual a morte não se subordina ao tempo da vontade, mas ao estranhamento do longínquo. Trata-se mais de um morrer daquilo que mata e desapossa pelo estranhamento do que de uma morte. O que Justine ensina aos psicanalistas é olhar para a morte e para o desamparo de frente e assim poder encarar o acontecimento de morrer.

"Melancolia", embora aclamado por críticos, foi o centro de inúmeras controvérsias. Em entrevista coletiva para o festival de Cannes, Lars Von Trier afirma: eu entendo Hitler. Essa asserção dividiu opiniões e resultou no banimento do diretor no festival de cinema, sendo considerado persona non grata a partir de então. Não nos parece à toa que tal questão seja discutida no contexto desse filme. É evidente que não estamos defendendo a fala do diretor, muito menos posturas fascistas tomadas ao longo da história. O que queremos destacar diz respeito ao que o filme e essa declaração procuram indicar para o analista. Não teríamos nós que nos aproximar de elementos da tragédia para, conforme aponta Nietzsche, tocar numa dimensão extramoral? Não teríamos nós também que escutar e procurar entender os sofrimentos sem nunca nos esquecermos da dimensão trágica e do aspecto extra moral que esta revela do mundo? Nesse sentido, de que nos adianta o jogo social, as brigas egoicas entre escolas, as falas pomposas nos congressos? Talvez fosse importante aprendermos mais com os sintomas que escutamos, não na direção de nos tornarmos melancólicos e abdicarmos de todo o jogo social intrínseco ao estar vivo, mas no sentido de reconhecer a potência de olhar diretamente para a morte e para o desamparo. Quiçá com uma pitada de melancolia os analistas possam se ater a questões mais relevantes e, assim como Justine, forjar uma "caverna mágica" diante do desamparo, mesmo sabendo que ele é inevitável.

 

Referências

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Recebido em 05 de junho de 2016
Aceito para publicação em 14 de novembro de 2017

 

 

1 Designamos como "dimensão fenomenológica" as experiências do sofrimento em primeira pessoa que se manifestam na transferência. Deparar-se com essa dimensão na clínica consiste em uma postura defendida por Freud que muitas vezes é esquecida pelos psicanalistas. Trata-se de procurar deixar em suspenso as considerações teóricas para se deparar com aquilo que emerge da prática clínica e por fim acabar por confrontar nossas convicções teóricas erigidas até então.
2 Quando nos referimos a "acontecimento" marcamos uma afinidade com essa noção na filosofia deleuziana. O acontecimento, nesse sentido, é bem delineado pelo escritor polonês Bruno Schulz, conforme aponta Pelbart (1998): "Os fatos comuns são ordenados no tempo em sua sequência como uma fila. Ali eles têm seus antecedentes e suas consequências que se agrupam apertados, pisam os calcanhares uns dos outros, sem parar, e sem qualquer lacuna. Isso tem a sua importância para qualquer narrativa cuja alma seja continuidade e sucessão. Mas o que fazer com os acontecimentos, que não têm seu próprio lugar no tempo, os acontecimentos que chegam tarde demais, quando todo tempo já foi distribuído, dividido, desmontado e que agora ficaram numa fria, não alinhados, suspensos no ar, sem lar, errantes?" (Schulz, 1994, p. 32).
3 "O tempo está fora dos eixos" (Shakespeare, 2003/1601, p. 89).

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