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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.30 no.2 Rio de Janeiro maio/ago. 2018

http://dx.doi.org/10.33208/PC1980-5438v0030n02A04 

SEÇÃO TEMÁTICA: CLÍNICA DO SOCIAL

 

O Brasil e a lógica racial: do branqueamento à produção de subjetividade do racismo

 

Brazil and the racial logic: from whitening to the production of subjectivity of racism

 

El Brasil y la lógica racial: del blanqueamiento a la producción de subjetividad del racismo

 

 

Kenia Soares MaiaI; Maria Helena Navas ZamoraII

IDepartamento de Psicologia da UNESA (Universidade Estácio de Sá), Campos dos Goytacazes, RJ, Brasil
IIDepartamento de Psicologia da PUC-Rio, Rio de Janeiro, Brasil

 

 


RESUMO

Este trabalho pretende analisar teoricamente algumas ideias de Arthur de Gobineau, Nina Rodrigues e Oliveira Vianna sobre raça, a partir da abordagem histórica de Michel Foucault. Considerando a perspectiva da Análise Institucional, o foco é a formação de lógicas como produtoras de modos de ser e agir. O artigo analisa brevemente as ideias e instituições do final do século XIX e início do XX e sua produção de conhecimento baseada nos ideais racistas e cientificistas. Dá-se destaque à política de branqueamento, que formou parte da lógica racial, para ponderar seus efeitos na realidade subjetiva da população negra (e não negra) na contemporaneidade.

Palavras-chave: lógica racial; racismo; branqueamento; análise institucional.


ABSTRACT

This work intends to analyze theoretically some of the ideas about race by Arthur de Gobineau, Nina Rodrigues and Oliveira Vianna, employing Michel Foucault's historical approach. Considering also the perspective of institutional analysis, the focus is on the development of rationales that engender ways of being and acting. The article briefly analyzes the ideas and institutions of the late nineteenth and early twentieth centuries and their production of knowledge based on racist and seemingly scientific ideals. The politics of whitening, which was part of the racial logic, is emphasized in order to ponder its effects on the subjective reality of the black (and non-black) population in contemporary times.

Keywords: racial logic; racism; whitening; institutional analysis.


RESUMEN

Este trabajo pretende analizar teóricamente algunas ideas de Arthur de Gobineau, Nina Rodrigues y Oliveira Vianna sobre raza, a partir del enfoque histórico de Michel Foucault. Considerando la perspectiva del Análisis Institucional, el foco es la formación de lógicas como productoras de modos de ser y actuar. El artículo analiza brevemente las ideas e instituciones de finales del siglo XIX e inicio del XX y su producción de conocimiento basada en los ideales racistas y cientificistas. Se destaca la política de blanqueamiento, que formó parte de la lógica racial, para ponderar sus efectos en la realidad subjetiva de la población negra (y no negra) en la contemporaneidad.

Palabras clave: lógica racial; racismo; blanqueamiento; análisis institucional.


 

 

Introdução

O tema do racismo vem tomando espaço e dividindo paixões e opiniões no Brasil. É importante conhecer como se constituiu a lógica racial no país para poder compreender como as práticas e discursos formadores das relações de poder vigentes constituem a produção de subjetividade do racismo. Esse coengendramento de práticas e discursos produz não só uma subjetivação racista, mas principalmente sofrimento psíquico.

A partir de Foucault (2002, 2003), a história é vista como processo de constituição do sujeito do conhecimento. Tal sujeito é produzido a partir de paradigmas engendrados e recortados pelos apelos de seu tempo. Desse modo, tudo que tomamos como verdade pode ser considerado como produto de um processo em que conceitos, discursos e práticas foram aliançados, em determinado contexto, estabelecendo relações de poder. Porém, se não existe a verdade, dada e universal, não quer dizer que ela não seja determinada "pelo jogo rarefeito estabelecido nas práticas históricas" (Candiotto, 2006). Foucault identifica o Direito como o principal veículo de produção de verdade e talvez o de maior incidência, porém o que ele chama de Direito não se refere exclusivamente à lei, mas também aos aparelhos, instituições e regulamentos que o aplicam.

As lógicas seriam pensamentos, abstrações que norteiam os meios de normatização da sociedade, definindo suas regras de comportamento; são "corpos discriminativos", que a norteiam. Baremblitt (2002, p. 25) define a sociedade como uma rede de instituições, as quais são: "[] lógicas, são árvores de composições lógicas que, segundo a forma e o grau de formalização que adotem, podem ser leis, podem ser normas"

Ao abordar teóricos como Arthur de Gobineau, Oliveira Vianna e Nina Rodrigues, importa analisar como tais autores participaram da construção de lógicas que formaram o tecido social brasileiro. Trata-se de investigar como eles contribuíram para a produção de verdades que, de forma direta ou indireta, definiram hierarquias sociais, códigos legais, políticas públicas, estabelecimentos de ensino, instituições como prisões, manicômios e hospitais, endereçadas a um grupo específico da sociedade. Dão-se então, em uma tessitura de poder e verdade, formas subjetivas que vigoraram em um determinado período histórico, mas cujos efeitos ainda são sentidos.

O Brasil foi um país colonizado por Portugal e usou legalmente a mão de obra escrava entre 1530 e 1888. Durante esse período, o escravo foi a maior força de trabalho, tendo sido responsável pela labuta em todos as atividades de exploração, cultivo agrícola, pecuária e nas tarefas domésticas. É no fim do século XIX, com o início do período industrial, que sua força de trabalho deixa de ser interessante. Sérgio Buarque de Holanda (2015) aponta para o fato de as elites serem constituídas por um sistema familialista tradicionalista, que, na passagem do Império para a República, continua se perpetuando dessa mesma forma. As elites agrárias migram para as cidades e fundam nos centros urbanos suas representações políticas hegemônicas.

O foco deste trabalho é o surgimento das Teorias Raciais, que fundamentam políticas públicas na construção do Estado, na passagem para o século XX. Entre a abolição da escravatura (1888) e a institucionalização da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) por Vargas em 1943, ocorre um processo complexo, em que ideias importadas da Europa, de cunho cientificista, iniciam uma vasta produção de subjetividade racista que podemos reconhecer na atualidade. A escravidão já era um exemplo desta lógica; porém, foi no fim do século XIX que se produziram os primeiros trabalhos escritos sobre a teoria das raças e suas diferenciações. A lógica racial está no cerne da busca pela identidade nacional, na fundação do Estado Republicano. Ela "garante" a superioridade da raça branca sobre a negra e a indígena, além de condenar à infertilidade e à inferioridade intelectual os mestiços. Ela instaura princípios norteadores para políticas públicas, normas de comportamento religioso, familiar, de trabalho e educação no Brasil. São preceitos que indicam a necessidade do Brasil buscar soluções para a sua mestiçagem ou correr o risco de se extinguir.

 

Gobineau e sua triste "verdade"

Arthur de Gobineau e sua obra L'Essai sur l'Inégalité des Races Humaines (Ensaio sobre as Desigualdades entre as Raças Humanas, 1853-1855) foi referência preponderante na expansão do pensamento racial e do positivismo racial, chegando a influenciar o processo republicano brasileiro. Tanto o negro quanto o índio foram afetados diretamente por essas ideias, porém o foco neste artigo é a condição do negro.

Mesmo depois da institucionalização da CLT em 1943, a situação do negro não se modificou consistentemente, devido ao processo de desqualificação de sua mão de obra para a indústria (Fernandes, 1964/2013). A CLT atende em princípio à pressão imposta pelos movimentos operários de cunho anarquista, trazidos pelos italianos, a maioria dos imigrantes europeus neste período. Segundo Fernandes, os italianos formavam mais de 82% da população trabalhadora de São Paulo em 1893.

Embora não se disponha de dados diretos, essas indicações são suficientes para fundamentar a conclusão de que o antigo agente do trabalho escravo, nas condições em que se formou e se consolidou, inicialmente, a ordem social competitiva na cidade de São Paulo, para as ocupações marginais ou acessórias do sistema de produção capitalista. (Fernandes, 1964/2013, p. 34)

Inicia-se então, para o negro, uma história de criminalização e miséria que, por mais que algumas políticas recentes tenham tentado reverter, persiste.

Encontramos em muitos textos sobre as teorias do racismo científico o nome de Joseph Arthur de Gobineau. Citado como grande influência na produção científica do século XIX, filho da união de um francês e uma "créole", foi levado aos sete anos para a Suíça por sua mãe, que deixara seu marido para seguir seu amante. Somente em 1834 retornou à França para ficar com seu pai e em 1855 publica o Ensaio. Gobineau colocava um problema crucial: como lidar com a miscigenação e os ideais de igualdade que o pensamento democrático impunha após a Revolução Francesa? Como manter privilégios se a forma de organização social em ordens familiares e descendências reais não era mais uma forma de governo sustentável? Seu esforço aplicava-se em determinar novas formas de distinção entre os homens, de modo a estabelecer novas hierarquias, agora com base científica (Gahyva, 2015).

Torna-se interessante pensar como as ideias de Gobineau podem ser compreendidas a partir do que Foucault (1996) chama de "guerra das raças". No período medieval, em que a noção de soberania estava diretamente ligada à linhagem e à descendência, o inimigo ou o que ameaça tal soberania encontra-se fora do território regido pelo soberano, que, por sua vez, possui, por sua linhagem, o poder de governar. Soberania e descendência estão conectadas por um elo de herança, de passagem por via da consanguinidade. Desse modo, o rei estabelecia uma guerra com outros povos, outras linhagens, outras soberanias. Uma invasão, uma guerra, era um encontro bélico entre "raças" diferentes que disputavam territórios de domínio e exploração. Salvo as explorações colonialistas do século XVI, que não reconheceram suas culturas e linhagens nas terras encontradas, consideradas selvagens, a guerra das raças continha uma pluralidade que desaparece na modernidade - que Foucault chama de sociedade disciplinar.

Gobineau, em sua tentativa de instituir uma hierarquia racial, parte do princípio de que a sociedade começa a se formar a partir da expansão dos povos germânicos nas camadas étnicas dos outros grandes grupos que povoaram o Velho Mundo, a saber: egípcios, assírios, chineses, gregos, romanos, germânicos e, na América, as três grandes civilizações pré-colombianas. Este pensamento carrega um paradoxo: a obrigatoriedade da expansão ariana ocorrer por meio da miscigenação, que ele tanto advertia ser perigosa. A mesma força civilizatória que a miscigenação produz traz a degeneração intrínseca a si própria. Contudo, havia menos danos caso a raça ariana fosse dominante.

Inferindo que os povos escandinavos eram os mais "puros", Gobineau constatou também que eram uma população pequena para salvar a Europa da degenerescência. Entendeu que, por sua proximidade geográfica e condição insular, a Inglaterra poderia ser a melhor referência para uma possível arianização. Ali encontravam-se os mais próximos descendentes dos escandinavos que poderiam neutralizar a lei da atração. Essa lei levava os povos superiores a se misturarem com os inferiores, impedindo-os de manter sua habilidade para o desenvolvimento. Porém, a Inglaterra não aderiu tanto ao pensamento de Gobineau, já que com a industrialização precisou abrir seu campo de trabalho operário para raças não germânicas.

Com os ideais de igualdade, Gobineau não via saída e percebia uma fatal "mediocridade" tomando força e destruindo aptidões como força, beleza e intelectualidade - características da aristocracia ariana. A ordem democrática tomava de assalto todos os privilégios da aristocracia, que estava padecendo de degenerescência. Gobineau então desiste do ideal de linhagem para uma noção de hierarquia individual. Nas características individuais e educacionais um homem pode manter-se nobre e superior à plebe, não por características fenotípicas, mas sim, por uma aprendizagem, por negar comportamentos degenerados. É na hierarquia familiar que ele faz sua síntese entre a teoria das raças e o individualismo. "O homem só adquire sentido na qualidade de membro da família." Quando se referia a "sentido", queria dizer atributos de honra e nobreza; afinal, "quem sai aos seus não degenera" (Gahyva, 2013, p. 251).

Junto com a burguesia, o franco desenvolvimento do capitalismo, a decadência do soberano e o surgimento da sociedade disciplinar, a guerra das raças passa a ser a guerra da raça. O inimigo externo passa a ser interno, o controle dos corpos passa a ser do Estado e a racialização científica estabelece a soberania da raça branca em relação às não brancas. "En el fondo, debemos producir la verdad como debemos producir riquezas, hasta debemos producir la verdad para poder producir riquezas" (Foucault, 1996, p. 28). Os discursos produzem verdades que garantem riquezas; assim, a lógica racial se torna uma das linhas que constituem o tecido da supremacia burguesa na sociedade disciplinar.

Contrariado por seus superiores, Gobineau foi indicado a Ministro da França no Brasil (Reader, 1976), cargo equivalente ao de diplomata hoje. Em 1868, Gobineau residia com a família em Atenas quando soube de sua nomeação. Diante da notícia, o conde tentou, inutilmente, evitar sua vinda, temendo a febre amarela e o clima tropical. Para proteger a saúde de sua família preferiu vir só e, em fevereiro de 1869, embarcou rumo ao tão "terrível" destino. Suas expectativas eram das mais temerosas possíveis.

Chegou ao país, primeiramente em Pernambuco, onde se negou a desembarcar, passando pela Bahia, onde se deparou com a maior população negra que já havia visto. "Jamais supusera que, em todo o Universo, houvesse sequer, a metade dos que ali via." (Reader, 1976, p. 31) Surpreendeu-se com as roupas e adereços das mulheres negras. "Os trajes das negras são soberbos e de grande nobreza, com sabor completamente antigo." (idem) No início de abril, sua correspondência para a esposa e amigos conta a sua chegada à Baía de Guanabara, que comparou à beleza de Constantinopla.

Contudo, a recepção de D. Pedro II foi impecável. Conhecedor de sua obra, o Imperador aguardava ansioso por seu mais novo hóspede intelectual. Isso aliviou o impacto na saúde, porém não foi suficiente para evitar uma febre persistente, insônia e irritabilidade. Sinais de que não suportava mais conviver com tantos negros e falta de comunicação, pois só o Imperador estava à altura de suas ideias. O entusiasmo de D. Pedro pelas conversas com Gobineau durou todo o tempo em que ele esteve no Brasil: o encontro perfeito entre o soberano e a teoria das raças superiores.

Exigências abolicionistas tomavam conta da Europa e as principais Metrópoles já haviam abolido a escravidão em suas colônias, com o processo de industrialização e de mudança nas políticas comerciais internacionais. Contudo, o Brasil continuava escravocrata. O Ministro dos Negócios Estrangeiros da França dirigiu-se ao Ministro da França no Brasil pedindo maiores informações (Reader, 1976, p. 111). Gobineau dá detalhes minuciosos da situação financeira precária em que o país se encontrava devido à guerra do Paraguai e afirma que a indenização que os proprietários de negros libertos deveriam receber do Estado (eram cerca de dois milhões de escravos) seria inviável para o país. De resto, essa mão de obra assegurava a atividade mais importante do país e havia o risco de os escravos, quando libertos, não trabalharem mais nas fazendas.

Fica claro como a lógica racial entra no país como um suporte para questões políticas e econômicas. O envio de um Ministro francês, a atenção do Imperador e as exigências econômicas e políticas internacionais esclarecem o contexto da aproximação com a lógica racial. Um quadro que contextualiza como essa lógica, advinda do pensamento impreciso de Gobineau, infiltra-se através das relações que legitimavam suas ideias. Um quase nobre, que queria ser artista e acabou Ministro da França no Brasil por cerca de dois anos, contra a sua vontade, já que aqui estava tudo o que mais condenava. Gobineau analisou o país a partir da suposta degenerescência que a mestiçagem produziria:

A enorme maioria da população brasileira é mestiça, resultado de misturas entre indígenas, negros e um pequeno número de portugueses. Todo os países da América, quer no Norte, quer no Sul, mostram hoje, de maneira irrefutável, que os mulatos, dos diferentes graus, não se reproduzem para além de um número limitado de gerações. (Reader, 1976, p. 185)

 

O Século XIX e a Ciência

A Biologia, ciência que surge no século XIX para objetivar a vida, imersa na perspectiva evolucionista, descobre a hereditariedade como um meio em que o que é vivo pode, através de cruzamentos, "evoluir" ou "decair". Segundo Lobo (2015), "A hereditariedade passou a servir de fundamento para a ordem social, quando uma visão naturalista do mundo, não só partia da medicina e da biologia, como também tinha seus representantes na literatura." (Lobo, 2015, p. 40) Isso ilustra como esse século foi tomado pela expansão do cientificismo como uma lógica dominante.

O evolucionismo e o determinismo biológico (Gould, 1991) do século XIX trazem o pressuposto da superioridade/inferioridade como base do pensamento científico. No esteio das teorias raciais está a análise de grupos ou tipos humanos, no que se refere a características físicas e comportamentais, que se diferenciam numa escala evolutiva do inferior para o superior. A classificação de populações não brancas hierarquizou as relações sociais, legitimou processos de dominação econômica e política, definiu territórios de miséria e exploração. O Evolucionismo Social de Herbert Spencer, a Eugenia defendida por Francis Galton, a Teoria das Degenerescências proclamada por August Morel, a Craniologia de Cesare Lombroso, entre outras, foram teorias responsáveis pela produção de conhecimento do racismo científico e produtores de práticas, políticas e discursos raciais e discriminatórios. Na maioria dos escritos e em discursos de governantes ocidentais modernos pode ser encontrado o projeto de tornar suas nações livres das raças mestiças e não brancas (Gould, 1991).

O monogeísmo e o poligeísmo são conjuntos de teorias que buscam justificar o degeneracionismo dos grupos raciais. O termo degeneracionismo, no caso, não está atrelado ao de degenerescência, pois este surge posteriormente na literatura científica. O primeiro é pré-evolucionista e afirma que a humanidade adveio de Adão e Eva e que o clima definia as diferenças raciais, sendo que, quanto mais quente, mais lento o desenvolvimento do cérebro; em contrapartida, quanto mais frio, maior esse desenvolvimento, o que justifica que europeus de países mais setentrionais são superiores e constituem modelos de homem civilizado. O poligenismo surge da ideia de que os grupos humanos não brancos surgiram de outro Adão, possuidor de características diferentes do Adão caucasiano. O que importa de fato é a busca por justificar a inferioridade das raças não brancas em relação à branca. O degeneracionismo se ocupa dessa construção, dando origem aos estudos raciais, migratórios e climáticos, que influenciaram o racismo científico do século XIX.

A correlação entre as etnias e as características climáticas é evidente em escritos de Nina Rodrigues, por exemplo, ao referir-se às ideias de Sylvio Romero acerca do clima brasileiro ser favorável à imigração de europeus:

Desses preceitos, conclui-se facilmente que o auctor não acredita na expansão demographica da raça branca abandonada aos seus proprios recursos, propondo esse trabalho impossível de sua conservação por meios artificiais da ordem das estufas nos climas frios, ao lado de incessante renovamento do sangue. (Rodrigues, p. 60)

Rodrigues, na continuação do texto, afirma que a raça branca precisa do mulato para adaptar-se no sul da República. Ou seja, fica clara a relação entre raça e clima nos preceitos do determinismo biológico. O branco está fadado a se adaptar ao frio, e o negro e o índio ao clima quente, o que também define a capacidade intelectual de cada população em função dessa adaptação. A miscigenação traria a capacidade de fixação do branco, ao passo que tornaria o povo mais claro; porém, a miscigenação destruiria a pureza das raças - um perigoso erro.

Bénédicte-Auguste Morel publicou em 1857 o Tratado das degenerescências, onde sustenta, inicialmente, a ideia da existência do criminoso nato e da causa do crime poder ser identificada no próprio criminoso. Suas ideias definiram também o monstruoso, relatando "variedades" doentias (físicas, morais e intelectuais) na busca por prevenção e progresso. Tal teoria também foi usada para justificar a "inferioridade" racial dos povos primitivos. O conceito de degenerescência influenciou notavelmente os discursos médicos, jurídicos e educacionais.

No Brasil, no início do século XX, a relação estabelecida entre uma ciência racista e o conceito de degenerescência é aliada na construção de um Estado racista e controlador, devido ao seu alto e perigoso índice de miscigenação. Schwarcz (1993), examinando os artigos científicos publicados no período de 1891 a 1930, verificou que a maior parte dos textos era vinculada aos Direitos Criminal e Civil. Isso mostrava a necessidade de se legislar sobre "direito das gentes e do indivíduo", de delimitar a liberdade e os critérios de punição à violação dessas convenções, devido ao perigo da delinquência (Schwarcz, 1993, p. 208). Esse era o empenho em uniformizar a legislação, contemplando a perigosa variação da população, sobretudo os mestiços.

 

Nina Rodrigues e Oliveira Viana, qual a saída para o Brasil?

Nina Rodrigues (1862-1906) nasceu no Maranhão, filho do coronel Francisco Solano Rodrigues, e foi para Salvador em 1882 para cursar Medicina. Rodrigues se dedica a estudos da cultura negra (1956): "No ponto de vista histórico e social penso com o Dr. Sylvio Romero: todo brazileiro é mestiço, se não no sangue, pelo menos nas idéas." (Rodrigues, 1956, p. 89) Jurista criminalista, médico legista, psiquiatra, professor, escritor, etnógrafo, sexologista, higienista, entre outros, ele se dedica a estudar os africanos no Brasil e sua relação com a responsabilidade penal. Foi um dos fundadores da instituição criminológica brasileira e do Código Penal republicano. Discípulo de Cesare Lombroso (Góes, 2016), que usava a classificação de crânios para identificar tendências ao comportamento criminoso, busca identificar as características das raças brasileiras. Estudioso da degenerescência como causa racial, acreditava que indivíduos da mesma raça tinham características comuns. No caso da mistura de raças, o resultado seria uma desorganização das suas características genuínas.

Sua tese em relação à condição de inimputabilidade penal do negro está baseada em sua teoria racial. Já que o Código Penal foi elaborado por brancos, estaria o negro apto a cumprir tal código? O determinismo racial configuraria uma origem endógena que define o comportamento, não havendo possibilidade de interferência externa. "A bem conhecida incapacidade de um trabalho physico continuado e regular nos selvagens tem a sua explicação natural na physiologia comparada das raças humanas." (Rodrigues, 1956, p. 142) Nesse caso, a prisão como dispositivo recuperador do criminoso não seria aplicável ao negro, já que a condição de sua raça não permitiria uma mudança em sua condição. "A indolência dos nossos mestiços é um legado dos seus maiores, que mais deve merecer da arte de educar do que das repressões penaes." (idem) Para Rodrigues não havia saída para o negro e, por conseguinte, não também haveria para o Brasil. Se o negro, depois de séculos em contato com povos mais superiores, não "se civilizou" é porque não consegue.

Ninguem pode duvidar tão pouco de que anatomicamente o negro esteja menos adiantado em evolução do que o branco. Os negros africanos são o que são: nem melhores nem piores que os brancos; simplesmente elles pertencem a uma outra phase do desenvolvimento intellectual e moral. (idem, p. 120)

Esse fragmento ilustra a infantilização que o pensamento racial de Rodrigues impõe ao negro. A tutela se torna a melhor opção para o negro criminoso, já que ele não está no mesmo nível de desenvolvimento que o branco. Sua raça está ainda em um momento evolucionista anterior. Seu cérebro é proporcional ao da raça branca em um período já ultrapassado; o negro estaria sempre atrasado se comparado ao branco.

Esta analyse psychologica dá sem duvida a explicação inteira do caracter indolente e imprevidente do mestiço braziliero, capaz de attingir, como aconteceu na Amazonia, onde tão ao vivo nol-o pinta o Sr. José Veríssimo, às raias de uma verdadeira degradação moral. (idem, p. 140)

É interessante a análise "psicológica" da relação do "selvagem" com a propriedade privada. A partir da "physilogia criminal", diz que é rudimentar o sentimento do direito à propriedade e que, por outro lado, a impulsividade o domina enquanto comportamento. Impulsividade, força física, incapacidade mental e sexualidade exacerbada ("A sensualidade do negro pode attingir às raias quasi das perversões sexuaes morbidas." idem, p. 153) são características que passam como herança aos descendentes mestiços, tornando a possibilidade de refreamento do impulso de obter de imediato o objeto de desejo algo impossível. O mestiço é um perigoso ingênuo, que não pode se refrear, não por maldade, mas por imaturidade evolutiva.

Ora, como estes estados psychicos dominam os crimes contra pessoas, tanto quanto os crimes contra propriedade, é intuitivo que por defeito de organisação, por insufficiencia e desharmonia de desenvolvimento physiopsychologico, não só o índio e o negro, mas ainda os seus mestiços devem ser menos responsaveis do que os brancos civilisados. (idem, p. 141)

A relação estabelecida entre a impulsividade e o não reconhecimento da propriedade privada instaura uma condição de análise muito restrita a um tipo de conhecimento e a um contexto de interesses econômicos específicos. Os índios não estavam inseridos no código de propriedade capitalista que se pretendia instituir nem o negro, que se via às voltas com a abolição da escravidão, da qual participou apenas como produto. Como esperar desses grupos intimidade com o senso de propriedade privada? Mas a distância que o lugar de saber instaura entre um intelectual, mesmo que simpático ao grupo negro como Rodrigues era, e o objeto pesquisado faz com que se produza um conhecimento preconcebido. Frequentar os rituais do candomblé, como o jurista fez, não foi suficiente para que visse ali uma forma de cultura legítima, pois ali não estava presente o modelo branco e europeu.

Rodrigues pensava que a experiência da escravidão era necessária para o desenvolvimento sociológico do negro, considerando essa instituição como um "phenomeno natural", característico de uma fase da evolução social do negro. Ele julgava a dominação, exploração e tortura vivida pelos africanos e negros escravizados como algo que os fará alcançar o estado de evolução da raça branca. Considerando que existem negros dotados de "nobres sentimentos altruístas", como os abolicionistas, isso poderia ser considerado uma objeção à sua teoria, mas esses só a confirmam, pois são os elementos que anunciam o processo evolutivo. São exceções e por isso não seriam provas suficientes para questionar a inferioridade da raça negra.

Rodrigues dá significativa atenção para o atavismo, que seriam (assim como características físicas primitivas que se manifestam em gerações posteriores) comportamentos primitivos que poderiam contribuir para uma forma criminosa de personalidade. Por esse e por todos os motivos anteriores, ele chama atenção para a dificuldade que os peritos vivem ao analisar um possível criminoso selvagem.

Essa circunstancia complica sobremodo a tarefa do perito nos exames medico-psychologicos. Mesmo nos mestiços mais disfarçados, naquelles em que o predomínio dos caracteres da raça superior parece definitiva e solidamente firmado, não é impossível revelar-se de um momento para outro o fundo atávico do selvagem. (Rodrigues, 1956, p. 162)

A conclusão a que Nina Rodrigues chega é que os selvagens (índios e negros) são inimputáveis por uma condição de responsabilidade moral diversa, porém não pode afirmar com certeza o mesmo dos mestiços. De fundo degenerativo e ligadas às más condições "anthropologicas", as manifestações criminosas dos mestiços necessitam de maior exame. Ele identifica três tipos: os do primeiro tipo, os mestiços superiores pela predominância da raça superior e civilizada branca, devem ser julgados e responsabilizados penalmente. O segundo seria o dos mestiços evidentemente degenerados devido às "anomalias de sua organisação physica, bem como de suas faculdades intellectuaes e moraes". Referindo-se a Morel, definiu o segundo tipo como a fase das representantes de variedades doentias da espécie. Alguns destes deveriam ser totalmente responsáveis e outros, parcialmente. O terceiro grupo seria o dos "mestiços comuns, produtos socialmente aproveitáveis" (idem, p. 167). Considerados superiores às raças selvagens, mas degenerados pela miscigenação, não poderiam ser equiparáveis à raça superior, e por isso, se encontrariam sempre na iminência de cometer ações antissociais, pelas quais não poderiam ser totalmente responsáveis. Por isso, seriam casos de responsabilidade atenuada.

A partir das classificações de Rodrigues, baseadas no movimento da Criminologia Positivista de Enrico Ferri e da "Psichyatria" legal de Morel, delineia-se uma criminalidade no Brasil relacionada à miscigenação. A tendência ao comportamento antissocial estava diretamente ligada ao contexto hereditário da mistura de raças.

Em tal paiz, o germen da criminalidade, - fecundado pela tendencia degenerativa do mestiçamento, pela impulsividade dominante das raças inferiores, ainda marcadas do estygma infame da escravidão recentemente extincta, pela conciencia geral, prestes a formar-se, da inconsistência das doutrinas penaes fundadas no livre arbítrio -; semeado em solo tão fértil e cuidadosamente amanhado, há de por força vir a produzir o crime em vegetação luxuriante, tropical verdadeiramente. (idem, p. 176)

Estão presentes nessa parte da obra de Rodrigues a preocupação com o controle do comportamento e o exame desse comportamento por parte do perito. O autor nos fala claramente do saber psychologico, o que, de alguma forma, anuncia o discurso que posteriormente instituiria a prática do psicólogo nas engrenagens penais e judiciárias. Em grande medida, a demanda por tal especialista surge das lógicas raciais, da necessidade de previsão do comportamento antissocial dos mestiços e de proteger a sociedade da inevitável degradação hereditária que os acomete.

Segundo Rauter (2003), podem-se dimensionar os efeitos das ideias de Nina Rodrigues em fases posteriores, como nas condutas dos especialistas psi presentes no Código Penal de 1940 (Rauter, 2003, p. 79). Esses exames fazem parte do processo da pena do encarcerado, suas modulações e benefícios passam a ser aprovadas ou não em função dos laudos psicológicos. Tais benefícios, como a mudança de regime penitenciário, concessão de livramento condicional, entre outros, são definidos judicialmente baseados em pareceres de equipes multidisciplinares, em que o psicólogo está incluído. Dessa forma, a Justiça se fundamenta na ciência para definir os destinos dos encarcerados. Os conceitos de Lombroso, Morel e Ferri, entre outros pensadores da Criminologia Positivista, passam a vigorar por meio de uma prática de avaliação individualizada e especializada. O psicólogo passa a ser um dos especialistas que avalia o sujeito do crime, determinando seu grau de periculosidade. O EVCP (Exame para Verificação de Cessação de Periculosidade) constitui um dos dispositivos do Código Penal a partir de 1940, em que uma equipe de "cientistas humanos" (2003, p. 81) decidia a vida do condenado em ampla dimensão. A partir da relação entre as lógicas raciais e a elaboração do Código Penal de 1940, não é surpreendente que a grande maioria da população carcerária no Brasil seja negra. Não se pode deixar de implicar a psicologia nesse processo de produção de subjetividade do racismo nas instituições carcerárias, enquanto ferramenta de avaliação do negro condenado, nas bases da lógica racial positivista (Bicalho, Kastrup & Reishoffer, 2012).

Oliveira Viana, nascido em 1883 em Niterói e falecido em 1951, também fez contribuições para as ideologias raciais no Brasil. Professor, jurista, historiador e sociólogo, participa da construção da sociologia no Brasil. Assumiu vários cargos governamentais, tendo sido inclusive Ministro do Tribunal de Contas da União, em 1940. Conhecido no Brasil como ideólogo da eugenia, escreveu "Evolução do Povo Brasileiro" (1923/1956), em que sistematiza os elementos necessários para o Brasil tornar-se uma nação. Diferentemente de Rodrigues, Vianna via na ciência da eugenia um caminho para a construção de um tipo legitimamente brasileiro, que pudesse estar no caminho da evolução pela mistura das raças inferiores com as superiores. Vianna acreditava que as raças inferiores poderiam ser aprimoradas com o cruzamento crescente com a raça ariana. "O trabalho arianizante, exercido pelas seleções étnicas sobre a massa mestiça, sofre, com efeito, um retardamento ou uma aceleração, conforme se trate de uma zona de concentração ou de uma zona de transmigração." (Viana, 1923/1956, p. 147)

Em sua análise do período colonial, Viana procura identificar as atribuições de cada raça. Com relação aos negros, teriam aptidão para o trabalho agrícola e atividades que exigem menos inteligência, como trapiches e trabalhos braçais. As mulheres negras seriam muito úteis na cozinha, possuindo habilidades culinárias inatas (idem, p. 149-150). Os mulatos estariam em um patamar mais inteligente que os negros puros e poderiam exercer atividades mais sofisticadas como alfaiates e sapateiros.

A arianização progressiva era uma proposta de política pública que visava à redução da população negra pela miscigenação com a raça branca superior. A arianização era uma saída civilizatória para o Brasil. Na seleção natural, o negro se extinguiria pela seleção social, que diz respeito à raça branca ser mais forte e mais bela, e por isso dominadora socialmente; a razão patológica, que se caracteriza pelas condições precárias de vida, que trariam maior contato com doenças; e finalmente a econômica, que, pela precariedade em que os negros viviam, levaria à menor expectativa de vida. "Reconhece que, para este efeito destruidor do H. afer [negros] em nosso meio, colaboram três causas: uma seleção social, uma seleção patológica e uma seleção econômica: ou, mais expressivamente: o açoite, o álcool e a má alimentação." (Viana, 1923/1956, p. 179)

A seleção progressiva entende a extinção do negro como algo natural que deveria ser parte do branqueamento. Essa era a meta, o objetivo político; na República, passa a ser indesejada uma raça que, no processo eugênico, deveria desaparecer:

O valor de um grupo étnico é aferido pela sua maior ou menor fecundidade em gerar tipos superiores, capazes de ultrapassar pelo talento, pelo caráter ou pela energia da vontade, o estalão médio dos homens de sua raça ou do seu tempo. [] Em todas as raças humanas, mesmo as mais baixamente colocadas na escala da civilização, esses tipos superiores aparecem: não há raça sem eugenismo. [] Quando duas ou mais raças, são postas em contato num dado meio, as raças menos fecundas estão condenadas, mesmo na hipótese da igualdade do ponto de partida, a serem absorvidas ou, no mínimo, dominadas pela raça de maior fecundidade. Esta gera senhores; aquelas, os servidores. Esta, as oligarquias dirigentes; aquelas, as maiorias passivas e abdicatórias. (idem, p. 153)

Fernandes (1964/2013) lembra que, com o fim da escravidão, instaura-se uma política imigratória maciça em função da industrialização. Após as influentes teorias raciais, o negro jamais seria considerado mão de obra adequada para o ambiente fabril. Todo o estigma da raça negra, construído por meio de conceitos, verdades científicas e práticas racistas, o condenava a ser incapaz de operar uma simples máquina. O ambiente das fábricas era branco, sua ideologia era branca e o salário era também coisa de branco. Aos negros, a enxada e a panela.

Na esfera dos serviços essenciais para a expansão da economia urbana, da livre empresa e do capitalismo, prevalecia irrefreadamente a filosofia de the right man in the right place. O "estrangeiro" aparecia, aí, como a grande esperança nacional de progresso por saltos. (Fernandes, 1964/2013, p. 33)

Se a fábrica não se destinou ao negro e as fazendas foram gradativamente se tornando uma atividade econômica obsoleta, o que foi destinado a eles? A integração do povo negro à sociedade pode ser considerada concluída ou a lógica racial, ainda que bastante modulada, se mantém viva, produzindo nessa população um processo de branqueamento, encarceramento, adoecimento e miséria?

Outra figura importante da política do embranquecimento foi o médico e antropólogo João Baptista Lacerda, que representou o Brasil no I Congresso Universal das Raças em Londres no ano de 1911 (Hofbauer, 2007). Mediante estimativas estatísticas, apresentou no Congresso que a saída para a questão racial estava em vias de ser resolvida pela imigração e "seleção sexual", ou seja, de casamentos entre mestiços ou negros com brancos, o que deveria extinguir a raça negra num prazo de cem anos. De acordo com essas estimativas, em 2011 não teríamos mais negros no Brasil.

O uso de mensurações populacionais, com o intuito de controlar as ameaças ao desenvolvimento liberal e capitalista da passagem do século XIX para o XX, foi chamado por Foucault de biopoder (Foucault, 1996). A lógica racial e o controle da população negra eram assuntos de Estado e geradores de políticas públicas que saneassem a sociedade desses riscos. Fica claro aqui como o racismo científico e as estratégias do Estado moderno se articularam no Brasil em função de evitar a condenação do país a tornar-se uma Nação diante das forças internacionais, em função da multiplicidade racial existente aqui. Na fala de Lacerda fica claro que o objetivo da imigração e da seleção sexual era acabar com a raça negra, pois o mestiço seria o meio do caminho. "[] é lógico supor que num período de um novo século, os mestiços desaparecerão do Brasil, fato que coincidirá com a extinção paralela da raça negra entre nós" (Lacerda, 1911, p. 18-19, citado em Hofbauer, 2007, p. 160). Tal concepção demonstra a força das teorias raciais, hoje já desconstruídas pelas ciências biológicas contemporâneas, porém presentes nas relações em que o racismo se torna uma prática.

 

Política de branqueamento, produção de subjetividade e racismo

A política de branqueamento não é a única iniciativa de Estado responsável pelos efeitos do racismo na população; porém, sua permanência ainda é produtora de sofrimento psíquico e social. O conjunto das instituições republicanas, como o judiciário, o sistema educacional, as leis e as políticas públicas, entre outras, são uma rede tecida nas bases do racismo científico. A política do "embranquecimento" é parte dessa rede, constituindo-se e capilarizando-se nos planos mais sutis, micropolíticos, da história brasileira.

Destacar essa parte do racismo estrutural aponta para a substancialidade de seus efeitos no fortalecimento da supremacia da coloração branca, na relação cotidiana com outras cores e etnias brasileiras. No início do século XX, período de institucionalização da política do branqueamento, os recortes de jornais do Movimento Negro da época (Hofbauer, 2007), como o Getulino e o jornal da FNB (Frente Negra Brasileira), trazem narrativas que mostram os efeitos dessa política. Na tentativa da população negra, recém liberta da escravidão, de inserir-se socialmente, houve uma clara associação entre inserção social e branqueamento. Em fragmentos de anúncios nos citados jornais, encontra-se essa narrativa: "Frente-Negrinas: Quereis ter os vossos cabelos lisos e sedosos! a preços razoaveis Procurai a cabelizadeira Frente-Negrina" (A Voz da Raça, 1933, p. 4). Tal propaganda representa a desqualificação do cabelo negro em relação ao cabelo liso do branco. As negras já eram induzidas a alisar os cabelos, parte da política do branqueamento. Outro fragmento aponta para o constrangimento do negro ao transitar nas ruas depois da abolição.

As futuristas: Minhas irmãs negras; nós, antes de usarmos, Boina, Sapatos sem meia, Blúsa sem mangas e Brincos Argolão, devemos primeiramente consultar com as nossas costureiras ou pessoas amigas, para ver-se nos fica bem, para não sermos vitima do riso dos transeuntes e vergonha das nossas irmãs que sabem trajar-se bem. (Campos, 1933, p. 3)

A ansiosa irmandade da qual se fala no fragmento acima se trata menos da que se estabelece entre as negras do que entre negras e brancas. Para que fossem aceitos no convívio com brancos, o negro teve que embranquecer hábitos, linguagem, vestimentas, comportamentos, e mesmo assim essa irmandade não se deu.

Antes de se espirrar ou tossir devemos colocar um lenço deante da boca ou no nariz para não encomodar quem esteja perto. [] Quando formos convidados para tomar parte em casamento, jantar, ceia ou espetaculo, devemos nos apresentar limpos e bem vestidos para não desgostar quem deu o convite, alem do dono da casa. Não devemos convidar ninguem para matar o bicho mas, sim para tomar um Café ou comer uns pasteis, por exemplo []. Nós os negros não devemos ser indiferentes em tudo que seja pelo nosso progresso. (Freitas, 1934, p. 4)

O progresso e a construção de um Estado Nação brasileiro foi uma causa abraçada por todos. Hofbauer (2007) afirma que na busca pela constituição da Nação estava incluída a ideia de homogeneidade, de unidade, que nunca vislumbrou a inclusão das culturas étnicas não brancas. Homogeneidade e unidade foram sinônimos de aniquilação da cultura negra e indígena.

Vannuchi (2017) afirma que, na transição da sociedade rural para a industrial, ocorreu um processo irreversível que se caracterizou pelo desprezo e negação dos costumes da população negra. Ou seja, a representação negativa da cultura negra produzida pelo branco tornou-se naturalizada pela política do branqueamento, disseminando uma busca por aceitação por parte da população ex-escrava através do modelo brancocêntrico. O embranquecimento legitima, mais uma vez, um não-lugar para o negro na sociedade pós-abolicionista, solidificando-se no imaginário social de forma a atravessar os processos de subjetivação tanto do negro quanto do branco. O negro, marcado por uma negação existencial, e o branco, por uma supremacia narcísica e hegemônica, ambos mantêm, em grande medida, essa estrutura na contemporaneidade.

A resistência negra atual luta por reverter esses efeitos, produzindo algo talvez inédito na história da luta contra o racismo, afirmando a cultura e a ancestralidade negra e rompendo com o embranquecimento. É importante compreender os efeitos desse processo na subjetivação contemporânea. A coloridade, tonalidade e diferenças sociais podem ser ainda correlatas da política do embranquecimento, estabelecendo um dégradé de privilégios e exclusões. É real que um negro de tom de pele mais claro possa ter mais acesso aos espaços sociais, à saúde, às "irmandades" e aos vínculos sociais que pessoas com tons de pele mais escuros, o que produz e reproduz sofrimentos. São ainda resquícios dos processos de subjetivação do racismo pela busca do embranquecimento, o que não foi uma escolha do negro, e sim uma imposição estatal, assimilada avidamente por uma sociedade brancocêntrica, racista e escravagista.

O colorismo é definido como um conjunto de privilégios de que pessoas negras com tons de pele mais claros desfrutam, em detrimento dos negros de pele mais escura (Banks, 2000; Moore, 2016; Mathew, 2013). Estes e outros estudos mostram que tais vantagens são vividas principalmente no mercado de trabalho, no qual pessoas escuras têm mais dificuldade em serem empregados. O desempenho escolar de alunos mais claros é maior; relatos comparados entre esses dois grupos mostram que existe maior satisfação com a autoimagem, mais facilidade em estabelecer relacionamentos e casamentos por parte dessa população.

Entender o colorismo enquanto reflexo da política do branqueamento faz refletir sobre como os efeitos dessa política se atualizam na contemporaneidade, dificultando que o negro possa ser negro, que possa reconhecer sua ancestralidade, sua cultura e seus direitos - inclusive que possa se sentir confortável no seu próprio corpo (Fanon, 2008; Souza, 1983). De outro modo, invisibiliza o branco em sua supremacia, seu privilégio, sua branquitude (Schucman, 2010, 2014).

O colorismo pode ser compreendido também como uma engrenagem de produção de sofrimento, já que o ideal de branqueamento continua a se perpetuar e a dividir a própria população negra e a brasileira entre o branco, o menos branco, o bege, o marrom, o "queimado", o vermelho e o negro! A cada tom mais escuro se institui potencialmente menos humanidade e mais sofrimento; em contrapartida, a cada tom mais claro se afirma mais privilégio e um modelo hegemônico de Ser Humano.

Vergner, Vilhena, Zamora e Rosa (2015) apontam formas de permanência das práticas desumanizadoras e genocidas da população negra que, atravessadas pela lógica racial, mantêm as desigualdades e a violência contra a população negra. Suas análises perpassam os discursos midiáticos que propagandeiam a imagem desqualificada do negro como perigoso e indesejável, de modo a reatualizar o modelo brancocêntrico como mais belo, referência de sucesso e de saúde. A escassa presença de protagonistas negros nos programas de TV, dificultando o desenvolvimento pela população negra da sua autoimagem, à semelhança da população branca; a questão das imagens religiosas que circulam e que veiculam o modelo fenotípico branco ao divino e ao sagrado, em detrimento das religiões de matriz africana, demonizadas o tempo todo, trazendo medo e constrangimento social aos que compartilham dessas crenças. Banalizando o mal e caracterizando racialmente sua inumanidade e mortalidade, seguimos na política do branqueamento e da mortificação da população negra nas virtualidades e minúcias não tão sutis do cotidiano.

Mais recentemente encontramos numa reportagem no The Wall Street Journal do dia 22 de março de 2018 (https://noticias.r7.com/, acessado em 26-mar-2018), a notícia de que o Brasil tem importado sêmen de homens norte-americanos, brancos e de olhos azuis. Em 2011 eram 11 tubos importados por ano, e em 2017 foram 500 tubos. O próprio periódico reconhece que tal aumento das importações de sêmen de homens com essas características se deve ao racismo da sociedade brasileira, que busca ainda se embranquecer adquirindo esse fenótipo pela miscigenação, na atual possibilidade tecnológica, com a ajuda da inseminação artificial. A busca pelo embranquecimento também teria relação com a hesitação do empobrecimento, já que no Brasil os negros em geral são mais pobres que os brancos.

 

Considerações finais

Ainda estamos atuando sobre a lógica racial e sobre a política do embranquecimento; elas se reeditam, se recriam e produzem subjetividades. A construção da lógica racial no Brasil faz-nos compreender o coengendramento entre a política do branqueamento e os modos de incidência do racismo na subjetividade negra e branca na contemporaneidade. O Brasil é um país que vive o racismo estrutural sustentado na hegemonia da brancura. Isso marca privilégios por parte da população branca e inviabiliza o acesso da população negra, em amplo aspecto, aos territórios existenciais, políticos, econômicos e sociais

Arthur de Gobineau, Nina Rodrigues e Oliveira Vianna são vozes que protagonizaram uma parte desse processo, legitimando teorias, leis e políticas públicas que formaram estigmas e práticas cotidianas perpetradas ao longo do último século. Já temos muitas produções acadêmicas antirracistas, produção ainda não tão frequente na Psicologia (Carone e Bento, 2014). Porém, ainda é tempo de contar a história do racismo à brasileira, produzida por ilustres brancos, já que ainda não cessaram seus ecos.

 

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Recebido em 02 de janeiro de 2018
Aceito para publicação em 19 de abril de 2018

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