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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.30 no.2 Rio de Janeiro maio/ago. 2018

http://dx.doi.org/10.33208/PC1980-5438v0030n02A09 

SEÇÃO LIVRE

 

Verdade, acontecimento e sujeito

 

Truth, event and subject

 

Verdad, acontecimiento y sujeto

 

 

Oswaldo França Neto

Professor do Programa de Pós-graduação do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG, Brasil

 

 


RESUMO

Este texto visa a escrutinar o conceito de verdade, colocando-o como indissociável dos conceitos de acontecimento e sujeito. Propõe que a verdade seria um excesso em relação ao campo da existência, pois, para se preservar eterna e não particularizável, ela não poderia se localizar ou se deixar discernir como objeto. Entendida enquanto excesso quantitativo, segundo o filósofo Alain Badiou, três grandes orientações distintas de pensamento teriam se constituído na história da civilização para tentar resolver o problema da impossibilidade de localização da verdade. Recentemente uma quarta orientação teria surgido, quando então o termo acontecimento teria ganhado relevância. O acontecimento seria a impossível e efêmera localização da verdade, deixando como resto uma marca. Um sujeito se constitui na fidelidade a essa marca, sustentando seus desdobramentos. Como consequência dessa proposta de vinculação necessária entre verdade, acontecimento e sujeito, a apresentação destes no campo da existência seria sempre histórica, desqualificando transcendências e desdobrando-se como subversão do que se apresenta normatizado.

Palavras-chave: verdade; acontecimento; sujeito.


ABSTRACT

This text seeks to scrutinize the concept of truth, placing it as inseparable from the concepts of event and subject. It proposes that truth would be an excess in relation to the field of existence, since in order to preserve itself eternal and non-particularizable, it could not be located or discerned as an object. Understood as a quantitative excess, according to philosopher Alain Badiou, three great distinct orientations of thought would have been constituted in the history of civilization to try to solve the problem of the impossibility of locating the truth. Recently a fourth orientation would have emerged, when then the term event would have gained relevance. The event would be the impossible and ephemeral location of truth, leaving behind a mark. A subject is constituted in adherence to this mark, sustaining its unfolding. As a consequence of this proposed necessary link between truth, event and subject, the presentation of these in the field of existence would always be historical, disqualifying transcendences and unfolding as a subversion of what is standardized.

Keywords: truth; event; subject.


RESUMEN

Este texto pretende escudriñar el concepto de verdad, proponiéndolo como indisociable de los conceptos de acontecimiento y sujeto. Propone que la verdad sería un exceso con relación al campo de la existencia, ya que, para preservarse eterna y no particularizable, ella no podría localizarse o dejarse discernir como objeto. Entendida como exceso cuantitativo, según el filósofo Alain Badiou, tres grandes orientaciones distintas de pensamiento se habrían constituido en la historia de la civilización para intentar resolver el problema de la imposibilidad de localización de la verdad. Recientemente se habría presentado una cuarta orientación, cuando entonces el término acontecimiento habría ganado relevancia. El acontecimiento seria la imposible y efímera localización de la verdad, dejando como resto una marca. Un sujeto se constituye en la fidelidad a esa marca, respaldando sus desdoblamientos. Como consecuencia de esta propuesta de vinculación necesaria entre verdad, acontecimiento y sujeto, la presentación de estos en el campo de la existencia sería siempre histórica, descalificando transcendencias y desdoblándose como subversión de lo que se presenta normalizado.

Palabras clave: verdad; acontecimiento; sujeto.


 

 

Introdução

O que é a Verdade? Ela é global ou local?

Colocando em outros termos, ela é algo que concerne a tudo o que existe, portanto não localizável, ou ela pode ser localizada como algo delimitável dentro de um dado universo? Ou seja, a verdade pode ser vista ou discernível por meio da linguagem? Pois só pode ser visto ou delimitado por palavras aquilo que se apresenta, se corporifica, portanto, se localiza. Se considerarmos a verdade como sendo global, ela é interditada de existir (de se apresentar). Mas se ela puder existir, o que significa poder ser localizada, ela, como tudo o que se localiza, se corromperia com o tempo, além de deixar de ser concernente a todas as situações (já que estaria localizada).

Algo restrito a um dado objeto ou situação, e, portanto, não apenas corrompível como não universalmente aplicável, pode ser entendido enquanto verdade? Em princípio não, pois a Verdade, com "V" maiúsculo, além de ser eterna e imutável, não pode ser específica de apenas uma ou algumas coisas, devendo persistir como verdadeira em não importa qual época ou contexto.

Nos termos com que estamos trabalhando, existir significa se localizar, pois o que não se localiza, não podendo ser discernido, não possui existência para alguém daquele universo. A existência é uma categoria de essência topológica, que só pode ser atestada em um campo relacional. Ela está no campo dos objetos, da localização, não havendo objeto global. O Todo é irrepresentável, e, portanto, sua existência não é atestável (França Neto, 2012).

Do que não se localiza nós podemos até supor ou propor a existência, mas não podemos confirmá-la. Dessa forma, para nós, a pergunta se a verdade é global ou local pode ser colocada nos seguintes termos: a verdade existe?

Se a verdade for global, ela está no campo da especulação e não da existência. Mesmo que suponhamos sua existência, para nós ela é interditada. Já no caso de ser localizável e, portanto, passível de existência, ela não é verdade no sentido forte do termo, pois, como dissemos acima, tudo o que existe não apenas se corrompe como, por existir de forma discernida, localizada, não pode ser indistintamente generalizável.

Essa discussão, aos olhos de Alain Badiou (2010), pode ser considerada como sendo a grande questão da filosofia em toda a sua história. Passando por Platão, em sua querela com os sofistas, até nosso tempo, agora mergulhados que estamos no que o Badiou propôs como "relativismo cético" (Badiou, 2006, p. 533), a distinção entre o que seria verdadeiro e o mero erro foi motor, explícito ou não, de boa parte do pensamento de nossos maiores filósofos. Descartes, por exemplo, apresentava como motivo para todo o seu percurso especulativo a tentativa de estabelecer um solo seguro que lhe permitisse diferenciar, com certeza, a verdade das falsas opiniões. Ele começa assim sua primeira meditação:

Há já algum tempo eu me apercebi de que, desde meus primeiros anos, recebera muitas falsas opiniões como verdadeiras, e de que aquilo que depois eu fundei em princípios tão mal assegurados não podia ser senão mui duvidoso e incerto; de modo que me era necessário tentar seriamente, uma vez em minha vida, desfazer-me de todas as opiniões a que até então dera crédito, e começar tudo novamente desde os fundamentos, se quisesse estabelecer algo de firme e de constante nas ciências. (Descartes, 1641/1983, p. 85)

Sabemos de como o seu método o levou a um problemático solipsismo.

Badiou (2010) propõe então que, em termos gerais, duas soluções teriam sido desdobradas na filosofia frente a essa questão:

Solução clássica: a verdade é restrita ao ser, separada da existência. Dois filósofos citados como defensores dessa concepção seriam Kant e Heidegger. Kant, por exemplo, teria proposto que a verdade só poderia se dar no registro do ato. Fora da filosofia, poder-se-ia identificar a igreja participando de lógica similar, o que nos leva a propor que esta solução é, no fundo, ontoteológica.

Solução não clássica: forçar o impossível, ou seja, sua existência ou localização. Dentre os citados por Badiou, o mais antigo seria Platão, que teria chamado de Ideia a potência de localização em verdade do que existe. Outros filósofos elencados seriam Descartes (para quem as verdades eternas são sempre criadas, ou seja, localizadas), Espinoza (verdade enquanto nome da não separação) e Hegel. Badiou compartilha dessa solução não clássica, defendendo a necessidade de nos confrontarmos com essa interdição de localização do universal, e forçarmos a existência do impossível. Para ele, apesar de podermos afirmar o estatuto ontológico da verdade, ela não deixa de poder existir enquanto dado empírico, ou seja, ela é passível de localização.

 

A verdade como excesso

Em seu livro O ser e o evento, Badiou (1996) propõe que, na linguagem, naquilo que ela pode nomear ou localizar, existe alguma coisa que excede, não se deixando apreender pela capacidade discriminatória da língua. Existe algo que escapa ao simbólico, de que ele não consegue dar conta.

Este excesso não mensurável, materializado de forma proeminente no campo da matemática quando esta se põe a lidar com conjuntos infinitos, atormentou Georg Cantor (1845-1918). Para tentar resolvê-lo, o matemático postulou a "hipótese do contínuo". Por essa hipótese, ao lidarmos com conjuntos infinitos de grandezas distintas, no caso o conjunto dos números naturais e o dos números reais, aquilo que, apesar de estar incluído no primeiro conjunto, não se deixa discernir como elemento preservando-se como excesso ao que se apresenta, se somarmos à cardinalidade desse conjunto este seu excesso, obteríamos o conjunto infinito de grandeza imediatamente superior, ou seja, o conjunto dos números reais. Com essa hipótese, Cantor acreditou ter estabelecido uma sequência plausível na cardinalidade dos conjuntos infinitos de grandezas distintas.

Como ilustração, pensemos em um conjunto finito com um número qualquer de elementos. Na passagem desse múltiplo inicial para o conjunto de suas partes, ou para o "múltiplo-um composto por seus subconjuntos", passará a existir uma parte que, apesar de estar incluída, estará em excesso ao que se deixa discernir como elemento do conjunto inicial. Badiou chamou isso de "teorema do ponto de excesso" (Badiou, 1996, p. 75). Nessa parte vazia, posto que nela nenhum elemento se deixa apresentar, encontraríamos, por exemplo, o operador da conta, ou aquilo que unifica o conjunto enquanto reunião de elementos. A operação que constitui um conjunto, apesar de incluída neste, não se apresenta nele como sendo um de seus elementos - ele faz parte do conjunto sem se discernir como elemento. Isto que excede Badiou nomeou por "excrescência", sendo que a excrescência "toca o excesso" (Badiou, 1996, p. 390).

Porém, o excesso não se reduz à excrescência. Ele é mais do que ela. E o problema do excesso torna-se particularmente proeminente quando passamos a trabalhar com o infinito. Em um conjunto inumerável infinito, o excesso quantitativo não se limita ao operador da conta. Para fecharmos um conjunto infinito, impondo-lhe uma finitude fictícia, o que tem que ser excluído é o próprio infinito, que passa a persistir, dentro, como um excesso quantitativo, não passível de discernibilidade ou localização. Existe, assim, uma discrepância ou hiância inquantificável entre o que se deixa apresentar em um conjunto infinito inumerável e o que seria a sua totalização.

Com a "hipótese do contínuo" Cantor postulou uma espécie de mensurabilidade para esse excesso. Segundo sua proposta, o conjunto formado pelas partes do conjunto inumerável infinito (elementos + excesso) dos números naturais teria o mesmo valor que o conjunto formado pelos elementos (sem somar o excesso) do conjunto inumerável infinito que o sucedesse, no caso o dos números reais. Assim, se chamarmos o primeiro conjunto inumerável infinito de Alef 0, a partir do momento em que nomeamos essa infinitude, podemos inseri-la em uma cadeia, isto é, concebermos a existência de uma sucessão de Alefs: Alef 0, Alef 1, Alef 2, Alef 3 etc. Pela hipótese do contínuo de Cantor, a soma dos elementos de Alef 0 + seu quantitativo excedente seria igual aos elementos de Alef 1 (sem o seu excesso). De maneira similar, a soma dos elementos de Alef 1 + seu quantitativo excedente seria igual aos elementos de Alef 2, e assim sucessivamente. Dessa maneira, Cantor teria conseguido estabelecer uma hierarquia quantitativa sequencial nos conjuntos de cardinalidades infinitas, colmatando a hiância entre o contínuo e o enumerável (ou discreto).

Essa tentativa de Cantor, porém, mostrou-se frustrada. O teorema de Easton demonstrou que o conjunto das partes de um Alef qualquer pode ter quase não importa qual valor superior a este Alef (Badiou, 1996). O excesso quantitativo é inquantificável.

A quantificação do infinito, ou a tentativa de estabelecer o valor do excesso, representa o impasse da ontologia. "A superação desse impasse, não é excessivo dizê-lo, comanda o destino do pensamento" (Badiou, 1996, p. 214).

Existe então, na linguagem, algo que excede ou escapa à capacidade de nominação e discernimento da própria linguagem. Esse excesso, esse algo a mais, é que serve de mola ou impulso para toda atividade de pensamento, que anseia, por um movimento extensionista, tornar discernível essa parte inassimilável (ilusão de Cantor).

Segundo Badiou (1996), existem três grandes orientações de pensamento, determinadas por uma pré-decisão; na realidade tratam-se de três maneiras distintas de tentar resolver o problema do excesso quantitativo, a saber: as orientações de pensamento transcendente, construtivista e genérico.

(1) O pensamento de orientação transcendente se caracteriza pela pressuposição de um ente supremo, de uma potência transcendente (e.g., Deus), que parametrizaria com sua lei universal tudo que estivesse abaixo dele. Esse ente supremo teria sob seu jugo e sob sua lei todo o excesso que tanto incomoda. Um bom exemplo de funcionamento desse tipo de pensamento seria a religião. No campo matemático, essa forma de pensamento corresponde à doutrina dos grandes cardinais (Badiou, 1996).

(2) No pensamento de orientação construtivista, o referencial paradigmático, ou a lei, seria a própria língua. As regras de funcionamento desta, a sua lógica, articulando os elementos que se nos apresentam (que teriam o estatuto de nomes), seriam o parâmetro primordial. O grande objetivo dessa orientação de pensamento seria parametrizar tudo aquilo que excede por meio dos parâmetros daquilo que é excedido, isto é, a língua. Ela seria a lei, e o que a ultrapassasse, por não ser discernível nela, na verdade não existiria, pois, para existir, ele teria que ser nomeado e discernido (já que só existe o que está conforme a língua e, portanto, pode ser nomeado e classificado frente aos outros nomes), deixando de ser excesso. O construtivismo está eminentemente no campo do saber, e o saber designa "a capacidade de inscrever nomeações controláveis em ligações lícitas" (Badiou, 1996, p. 233). O pensamento construtivista "subsume a relação ao ser na dimensão do saber" (Badiou, 1996, p. 233).

Esse tipo de pensamento nega a existência de acontecimentos, já que, estranhos ao saber, eles provocam um disfuncionamento da conta (veremos adiante a definição de acontecimento). O construtivismo trabalha apenas no já estabelecido, protegendo o sentido de qualquer coisa que o ameace. E, a partir do momento em que estamos dentro do universo construtível, seus enunciados são irrefutáveis. Quem habita esse universo não aceita enunciados que coloquem em xeque o saber. O que não faz sentido, não existe. Os habitantes desse universo somente passarão a aceitar um enunciado anômalo se conseguirmos explicar-lhes sua veracidade, isto é, se conseguirmos vinculá-lo ao saber, o que fará com que ele deixe de ser anômalo. Nesse universo, o ideal, o que se busca, é que nada seja indecidível.

O campo do construtivismo, ou o campo do saber, é, apesar de limitante, necessário. O sentido acalma a existência, domestica o excesso. Mesmo para aqueles que trabalham com o acontecimento, arriscando a vida nas cercanias do vazio e do indiscernível, "convém, afinal de contas, ser sábio" (Badiou, 1996, p. 234).

No universo construtível, a hipótese generalizada do contínuo é verdadeira. Em termos matemáticos, o esquema ontológico de tal pensamento é o universo construtível de Gödel. Na filosofia, dois legítimos representantes deste tipo de pensamento seriam Leibniz e Wittgenstein.

(3) Chegamos agora à orientação de pensamento genérico. Esta seria mais próxima ao que estamos propondo. As orientações anteriores, por pré-decisão, constituem seu mundo negando a errância imanente do excesso, seja por sua corporificação em um ente externo, supremo, seja pela desconsideração de sua pertinência, partindo do pressuposto que sua emergência é consequência da má utilização (ou da não utilização de forma adequada) da lei que rege o sistema. Já na orientação de pensamento genérico, a errância do excesso é admitida, sendo considerada como imanente à situação, parte indiscernível e inapresentável desta. A verdade, neste caso, que aqui estamos correlacionando ao excesso, não se identificaria nem com a forma de funcionamento da linguagem (construtivismo), nem com um ente supremo (orientação de pensamento transcendente). A verdade, aqui, é o que faz furo no saber da língua. Esta orientação de pensamento tem seu esquema ontológico nos estudos matemáticos de J. Cohen.

 

Acontecimento e sujeito

Badiou, porém, não se limita a essas três orientações de pensamento. O filósofo francês considera "uma quarta via, discernível desde Marx, tomada por outro viés em Freud" (Badiou, 1996, p. 227). Ela seria transversal às outras três, sustentando que a verdade não se deixa delimitar por nenhum dispositivo de saber.

Nas três decisões citadas, observamos três formas diferentes utilizadas pelo saber para tentar circunscrever ou pasteurizar aquilo que excede a linguagem, e que aqui estamos aproximando com a verdade. Na primeira, este excesso se situaria transcendentemente ao campo, portanto inacessível ao campo do saber, que se exime então de entendê-lo. Na segunda, este excesso não existiria, pois tudo o que existe pode ou poderia ser discernível pela língua, caso em que a verdade não seria mais identificada como um excesso em relação à linguagem, entendendo como impotência e não como impossibilidade aquilo que, contingencialmente, não se deixa apreender pelo saber. Na terceira, o excesso persiste como excesso e é concebido como imanente ao campo, como parte não discernível neste. Nesta última orientação, o excesso seria mais angustiante, já que, apesar de apartado da existência, não deixaria de compartilhar com os existentes o território onde se desdobram suas vidas, lembrança constante da precária consistência que nos constitui como portadores de identidades.

A quarta orientação, independente de qual das orientações anteriores em que se esteja, seria a sustentação do impossível, ou seja, da localização/apresentação do excesso, enfrentando as consequências da operacionalização, no campo do saber, da fugaz apresentação daquilo que o excede. Apesar de ser transversal às três primeiras, suas consequências são mais harmoniosas com a orientação de pensamento genérico, que já concebe o excesso como imanente à situação. Nas outras duas orientações, quando esta quarta se apresenta, a orientação como um todo pode vir a ser colocada em questão.

Segundo essa quarta orientação, a verdade se produz como efeito nas consequências de um acontecimento, onde se forçaria a apresentação de "um des-ligamento do ser, pois é na ocorrência indecidível de um não-ente supranumerário que se orienta todo procedimento de verdade, inclusive de uma verdade em que estivesse em jogo esse des-ligamento" (Badiou, 1996, p. 227). Nela, a verdade nem está do lado de fora corporificada em um ente supremo, nem se confunde com a linguagem, nem está como algo indiscernível condenado às sombras e à errância do próprio campo, mas ela se faz apresentar de forma tão inusitada quanto evanescente, como um relâmpago em um céu azul, deixando como resto um traço, signo de uma verdade a ser (re)produzida, desdobrada, carreada por essa marca que ficou de sua fugaz e impossível presentificação.

Essa via des-liga o sujeito do ser, por meio de uma escansão, ou ruptura, do que neste se desdobra como saber, mantendo-se "o procedimento inapresentado do verdadeiro, único resto deixado pela ontologia matemática a quem se anima do desejo de pensar, e ao qual convém o nome de Sujeito" (Badiou, 1996, p. 227).

Do excesso, que como des-medida se faz existir, um puro nome que não remete a nada, apenas a si mesmo, passa a carreá-lo na situação. Estaríamos aqui no que Badiou nomeou por acontecimento.

Com o acontecimento, o indiscernível, antes inapresentado, vem a apresentar-se e a desdobrar-se por meio do traço que resta de sua efêmera existência. À situação originária suplementa-se uma nova parte, imanente a esta, onde seu excesso, persistindo indiscernível, se desdobra como consequência por meio da operacionalização do traço que restou de sua evanescente apresentação. A essa nova situação, suplementada pelo indiscernível agora nomeado e forçado a existir, Badiou nomeou por "extensão genérica". Nesta nova situação, "o procedimento genérico é nela um indiscernível intrínseco" (Badiou, 1996, p. 270).

Com o forçamento de Cohen a verdade se des-liga definitivamente do ser (em oposição a Heidegger), tornando-se pós-acontecimento. A verdade, identificando-se com o indiscernível, sendo aquilo que faz furo no saber, é dependente ou posterior à apresentação do acontecimento, que Badiou nomeou como não-ser.

O sujeito, segundo uma das definições que Badiou lhe dá, seria a "configuração local de um procedimento genérico" (Badiou, 1996, p. 317). Ele é a "instância finita de uma verdade" (Badiou, p. 400) Enquanto a verdade é infinita, o sujeito "é uma configuração finita do procedimento genérico do qual uma verdade resulta" (Badiou, p. 312).

O indiscernível, enquanto verdade pós-acontecimento, carreado por um traço e sustentado por um puro nome no campo do saber, encontra-se na linguagem nas cercanias do vazio, porém distinguindo-se deste na medida em que se lança como um saber a ser produzido, um saber que em um tempo hipotético seria discernível. A verdade estaria aqui em um futuro inalcançável ou, mais precisamente, em um tempo verbal que tanto Badiou (1996, p. 314) quanto Lacan (1960/1998, p. 823), ao trabalharem a verdade que um sujeito sustenta e desdobra, a explicitaram como "terá sido"1. Ou seja, a verdade seria aquilo que teria se concretizado no futuro do pretérito se um hipotético acontecimento originário tivesse sido sustentado até seu resultado final. O vazio em si não pode fixar-se a nada, pois ele é a sutura ao ser da linguagem. Sua presentificação seria a presentificação do ser, ou a irrupção do gozo enquanto substância positiva, o que é incompatível com a existência da linguagem. O acontecimento, ou o não-ser, é a forma pela qual o vazio é convocado, tornando-se imanente à situação, porém na forma da interdição de sua localização em si. Assim, apesar da verdade, na situação, estar ligada ao não-ser, podemos dizer que o não-ser é a forma com que o vazio (nome próprio do ser) é convocado/separado na linguagem.

Uma verdade é a totalidade infinita do conjunto das manifestações da qual, por exemplo na arte, um objeto artístico específico é um fragmento, ou uma manifestação finita. Uma verdade é indiscernível, faz furo no saber. Mas o indiscernível que constitui a verdade, apesar de, assim como o vazio, não se apresentar (já que a rigor ambos são indiscerníveis), não se confunde com o vazio. A verdade não é vazia, mas é a reunião infinita de todos os termos que teriam sido constatados como vinculados a um procedimento genérico. Jamais conseguiríamos, nela, atingir a totalidade que permitiria a constituição de um saber que a discernisse e o que a compõe em sua integralidade, já que sua totalização seria correlata à própria desconstituição do saber. O não-ser, como forma de convocação do vazio, ganha o estatuto ilusório de uma presentificação do ser. Mas o que ele realmente apresenta é o desencadeamento potencialmente infinito de fragmentos finitos de um outro indiscernível que não o vazio, que é a verdade. Se a verdade, a partir do acontecimento (não-ser), pode apresentar no presente fragmentos do que ela hipoteticamente seria se tivesse se realizado, o ser é o que no discurso só se apresenta de forma subtrativa.

O sujeito, tendo como solo a verdade (ele é uma configuração finita da verdade infinita), tem como causa o acontecimento. Para Badiou, então, só há sujeito no procedimento genérico.

Talvez possamos afirmar que, na psicose, a constituição do acontecimento seja problemática, o que coloca o psicótico em uma situação delicada. Comprometendo a constituição do acontecimento, ficaria comprometida a única possibilidade de se lidar com o excesso (ou com o gozo, que é a maneira pela qual o excesso se presentifica na linguagem) de forma imanente à situação. Sem o acontecimento (não-ser), o excesso (que aqui estamos aproximando com o ser) tende a se presentificar em sua forma pura, o que seria disruptivo para a realidade psíquica do psicótico. Poderíamos então supor que os psicóticos, numa tentativa de impedir a fixação do vazio (ou a irrupção do excesso quantitativo), tentem se sustentar muitas vezes tomando, por pré-decisão, seja uma orientação de pensamento construtivista (eliminando o excesso do campo), seja uma orientação de pensamento transcendente (entificando o Outro no seu psiquiatra, por exemplo, e assim promovendo uma separação, mesmo que precária, deste excesso que o invade). De qualquer maneira, em ambas as formas o excesso tende a retornar. Se quisermos proporcionar uma estabilidade maior ao psicótico, e se quisermos que ele se constitua enquanto sujeito, temos que viabilizar, de alguma forma, que o excesso se operacionalize de forma imanente ao campo.

 

Implicações

Voltando à discussão que nos norteia no momento, quais as consequências, para o conceito de verdade, da decisão por essa quarta via, ou seja, de se entender a verdade como um excesso irredutível em relação ao saber (em oposição ao construtivismo), como imanente à situação (em oposição ao pensamento de orientação transcendente), e como passível, por meio de um forçamento em relação ao saber, de se fazer, fugazmente, se localizar ou se apresentar (diferentemente do pensamento de orientação genérica)?

Já dissemos da dificuldade da terceira orientação de pensamento, a do pensamento genérico, pois ela implica em conceber o excesso como imanente, o que significa que ele seria uma angustiante sombra, lembrança constante da precariedade do saber que nos sustenta, e consequentemente da própria consistência do que se constitui como sendo o nosso mundo. O global não pode se localizar. A concepção de um excesso genuíno e indiscernível no campo do saber implica em colocarmos em xeque a pensabilidade do próprio campo, estabelecido, como todo campo, como uma rede de localizações e hierarquias sábias. Ou seja, para que um dado mundo se constituísse, o que teve que ser excluído, como excesso, foi aquele elemento indiscernível, inclassificável, não hierarquizável, igualmente comum a tudo o que se apresenta, e portador, portanto, da verdade de todo o campo.

Vamos agora, pois, com a quarta orientação, forçar a localização do excesso/verdade, ou seja, forçar a existência ou a apresentação, de forma imanente, do indiscernível de uma dada situação qualquer.

Que consequências podemos supor de uma tal decisão?

(1) A verdade passa a ser concebida como histórica.

Um acontecimento é a impossível junção, no território, do indiscernível e daquilo que nele se deixa apreender no campo do saber, quando o primeiro se faz apresentar enigmaticamente como pertencente ao segundo. Por ser impossível, esse encontro em si não é apreensível, restando dele apenas um traço.

O acontecimento, assim, é o que rompe com a estabilidade, produzindo uma ruptura e criando, com o traço que sobra dele e as consequências que dele advém a partir da fidelidade a ele sustentada por um sujeito, uma temporalidade.

A verdade, nesse sentido, é sempre histórica, produzindo-se como um novo presente, efeito de um acontecimento. E um sujeito é o modo sob a qual um corpo se inscreve como corpo subjetivo na produção desse presente.

(2) Um acontecimento desqualifica transcendências.

No pensamento de orientação transcendente, a verdade é algo que existe fora, parametrizando do exterior tudo o que existe dentro. Nesse caso, pode-se concebê-la como tendo existência prévia, e que seria a partir dela que toda a situação se organizaria. Uma leitura apressada do Mito da Caverna de Platão, não compartilhada por Badiou, concedendo à verdade uma existência externa, transcendente ao que se apresenta como mundo, pode servir de ilustração para essa forma de pensar.

De acordo com o mito, o lado de fora da caverna, campo das Ideias, seria o espaço onde a verdade existiria. No lado de dentro, onde habitaríamos de costas para a saída, voltados para o fundo da caverna e condenados a ver apenas o que de fora se projetaria em suas paredes, só nos restaria como possibilidade nos aprimorarmos em distinguir as cópias (boas imagens) dos simulacros (imagens distorcidas). E para Platão, todos aqueles que tivessem a experiência de saída da caverna deveriam trazer para as outras pessoas essa experiência.

Mas aqui, segundo Badiou, encontraríamos o toque de mestre do filósofo de Atenas. Platão não nos diz que devamos sair, ver a verdade e depois voltar e contar o todos o que seria o verdadeiro. Ver a verdade é impossível, pois esta, em si, não se localiza, não se deixando apreender como objeto. Ela pode existir enquanto postulação, mas não enquanto algo passível de existência, ou seja, de apreensão pelos órgãos de sentido. Dessa forma, sair da caverna é impossível. A saída, e mesmo a própria caverna, para Platão, na leitura de Badiou, seriam figuras metafóricas. Falando sobre os cavalos desenhados por nossos ancestrais há cerca de trinta séculos nas paredes da caverna Chauvet-Point-d'Arc no sul da França, nos diz Badiou:

Resulta de tudo isso que pintar um animal sobre a parede de uma gruta é exatamente - como no mito platônico, porém ao inverso - evadir-se da gruta para tornar a subir em direção à luz da Ideia. É o que Platão finge não ver: a imagem, aqui, é o contrário de sombra. Ela atesta a Ideia na invariância variada de seu signo pictural. Ela é, de forma alguma a descida da Ideia no sensível, mas a criação sensível da Ideia. "Isso é um cavalo", eis o que diz o Mestre da gruta Chauvet. E como ele o diz fora de toda visibilidade de um cavalo vivo, ele revela o cavalo como o que existe eternamente para o pensamento. (Badiou, 2006, p. 27 - tradução do autor)

O que Platão propõe é que façamos a experiência da saída, não a saída propriamente dita. Segundo ele, de acordo com Badiou, o que devemos fazer é a experiência de perceber que a Ideia, ou a verdade, não é passível de se apreender enquanto objetividade, encontrando-se antes na experiência de um processo em que a apreenderíamos como aquilo que, de essencial, está na gênese, ao mesmo tempo que escapando de toda e qualquer imagem. A verdade entendida enquanto processo, ou procedimento (utilizando termos de Badiou), e não como algo a ser cernido enquanto objeto.

A experiência da saída seria uma figura metafórica, utilizada por Platão, para o que seria a apercepção de nossa própria prisão, percepção esta que se apaga sempre que acreditamos na possibilidade da substancialização seja do engodo, seja da verdade. A verdade existe indissociável do engodo, como seu constituinte inapreensível. "O real já é semblante do real", dizia Lacan (citado por Zizek, 2011, p. 1).

Caímos, então, na terceira característica, já pontuada acima quando realçamos o caráter histórico da verdade.

(3) Se a verdade não existe dissociada do engodo, o acontecimento é o que produz essa impossível junção.

A oposição entre verdade e semblante, como se ambos carreassem uma afirmação própria, é no fundo uma falsa oposição, uma ficção.

A partir do momento em que decidimos que, com o acontecimento, a verdade se localiza, ela já o faz como semblante, ou como algo diferente do que é em si. Para Lacan, por exemplo, a verdade só pode ser "meio dita" (Lacan, 1972/2003, p. 454), sendo indissociáveis a verdade e o engodo que a carreia:

[] está claro que a Fala só começa com a passagem do fingimento à ordem do significante, e que o significante exige um outro lugar - o lugar do Outro, o Outro-testemunha, o testemunho Outro que não qualquer de seus parceiros - para que a Fala que ele sustenta possa mentir, isto é, colocar-se como verdade. (Lacan, 1960/1998, p. 822)

Mas isso não significa que toda e qualquer imagem carreie, indistintamente, a verdade. A questão levantada por Platão sobre a distinção entre cópias e simulacros persiste. Existem as imagens que, em movimento, sustentam uma verdade. E existem outras que se desdobram sem compromisso com a verdade, ou com aquilo que é global, não sendo mais do que a conservação do que nelas se deixa apreender como particularidade, ou como identidade a si. Estas, os simulacros, ou o negativo (em relação à afirmação de uma verdade) não têm para Badiou positividade em si, sem ser mais do que a ausência da existência de uma verdade em movimento. A negatividade, para o filósofo francês, é secundária, sem estatuto ontológico, reduzindo-se à ausência da positividade, ou ao desvio ou bloqueio de um processo em que se desdobraria uma afirmação (Badiou, 2013).

Como então tematizar, no território, esses dois tipos de imagem? Como entender, no território, a diferença entre semblante e verdade, já que ao se apresentar (ao existir) a verdade já o faz como semblante? E se o semblante em si não tem positividade, quais seriam aqueles que carreariam uma verdade (uma afirmação ou positividade), e quais seriam aqueles que, não sendo portadores de uma verdade, seriam desprovidos de positividade própria? Como faríamos, nos termos de Platão, para distinguir as cópias dos simulacros?

(4) Um acontecimento e a verdade que ele carreia se desdobram em suas consequências como subversão.

Quando decidimos que a verdade existe de forma imanente, ou seja, quando forçamos a localização de algo que, por definição, não pode se localizar, apresentando-se, nos dizeres de Badiou, como uma localização deslocalizada (Badiou, 2006), como consequência imediata, a partir de então, a verdade não pode ser mais concebida como adequação, mas como subversão. Forçar ou operacionalizar a existência de uma verdade implica que esta se processe sempre como subversão imanente ao que existe.

Para nos ajudar a pensar essa concepção de verdade, podemos fazer uso dos trabalhos do antropólogo do Museu de História Natural do Rio de Janeiro, Eduardo Viveiros de Castro, citado recentemente por Lévi-Strauss como sendo aquele que trouxe novamente a antropologia para o centro das discussões.

Estudando os índios do continente americano, Viveiros de Castro propõe a existência de uma outra forma de se compreender o real, diferente da nossa, nomeada por ele de perspectivismo ameríndio.

Para esse pensador, os índios funcionam com uma lógica gramatical diferente da nossa, europeia. Por existirem no contexto da caça, eles pensam o mundo sob a forma de caçadores. Todos os animais viventes (incluindo aí os homens) dividir-se-iam em três classes: os que me comem, os que eu como, e os que comem comigo. Ou seja, o que definiria alguém, seja bicho ou gente, é sua posição em relação ao verbo comer, diferentemente do nosso mundo ocidental, onde o que define uma pessoa são os predicados que ela detém. Para Viveiros de Castro, o nosso mundo é predicativo. Enquanto nós pensamos "A é B", definindo A a partir dos predicados B que o determinam, os índios pensam "A come B" (Viveiros de Castro, 2005, p. 10), ou, poderíamos dizer, A se transforma em B. Os objetos, no perspectivismo ameríndio, são desprovidos de fixidez, determinando-se a partir da posição que ocupam em uma dada relação, e transformando-se nessa mesma relação. Se para nós o que é dado é a substância, e as relações são aquilo que se tem que conhecer, para os índios há uma inversão, ou seja:

[] a relação vem antes da substância e, portanto, os sujeitos e os objetos são antes de mais nada efeitos das relações em que estão localizados e assim se definem, redefinem, se produzem e se destroem na medida em que as relações que os constituem mudam. (Viveiros de Castro, 2005, p. 10)

Assim, enquanto nós, ocidentais, funcionamos em uma lógica predicativa, elementarista, onde tudo o que existe pode ser identificado como objeto, portador de predicados, o índio funciona em uma lógica da transformação.

Segundo o antropólogo o que serviria como pano de fundo para essa forma ameríndia de pensar o mundo seria a ausência de um Deus único, transcendente a tudo e a todos. Acompanhemos seu raciocínio.

A cultura ocidental, monoteísta, trabalha com a concepção do Um, ou de um Nome Próprio único, universal, garantidor de uma ontologia única, que seria a natureza, à qual teríamos acesso por meio de uma linguagem que também seria universal, a linguagem da ciência. Em oposição à natureza, que existiria independentemente de nós, teríamos as várias culturas, estas sim estabelecidas pelas diferentes formas que o olhar humano pode adquirir. Nós partimos assim da identidade (a natureza), sendo a diferença (as variadas culturas) secundária a essa ontologia primeira. Para nós, o que causa problema é a cultura, estando aí a ciência para nos salvar e desvelar a natureza, substância constante que nos serve de solo. E essa concepção de um uni-verso é tributária da crença em um Deus único e criador. Para os índios, ao contrário, não existe uma natureza e várias culturas, mas apenas a cultura. Eles não supõem uma natureza exterior às lentes culturais. Não há um uni-verso, mas multi-versos, visão esta tributária de uma concepção politeísta do mundo. Para eles, a diferença é primeira, e o que causa estranheza é a identidade. Ao priorizar a relação em detrimento da substância, os índios experienciam o mundo como algo em movimento, em transformação. Uma ontologia estática, imutável, é estranha ao seu pensamento.

Outro brasileiro notável, Guimarães Rosa, escreveu um pequeno conto intitulado Meu tio o Iauaretê (Guimarães Rosa, 1961/2001), onde encontramos a história de um caçador de onças que é chamado para desonçar uma dada região. Durante o seu trabalho, o caçador vai, pouco a pouco, se transformando em onça. Fica a questão, nesse conto, onde estaria o exato ponto em que podemos dizer que não se trata mais do caçador, mas de uma onça. Se a diferença entre o início do processo, onde teríamos o caçador, e o final, onde nos depararíamos com a onça, é qualitativa, onde, no processo contínuo de transformação, o discreto, o intervalo, se constituiu, marcando a escansão que separaria o objeto caçador do objeto onça?

Na psicanálise fazemos uso de uma ferramenta que pode nos auxiliar nesse raciocínio, sendo inclusive citada por Viveiros de Castro em alguns momentos, quando discute o perspectivismo ameríndio (Viveiros de Castro, 2012). Trata-se da banda de Moebius, na qual, ao percorrermos sua superfície, se entre o início e o fim podemos perceber uma diferença qualitativa, uma escansão, ao seguirmos ao longo do percurso, onde se encontraria essa ruptura?

O que Guimarães Rosa e a banda de Moebius figuram está em consonância com o que parece pensar Viveiros de Castro ao afirmar que a "transformação é, precisamente, o nome do jogo" (Viveiros de Castro, 2012, p. 159). Trata-se, nessa frase, de uma subversão de nossa forma predicativa de olhar, propondo pensar o mundo não como um aglomerado de substâncias, mas pensar o mundo, e as substâncias, como algo em contínua transformação.

Voltando à psicanálise, além da banda de Moebius, podemos apontar outra discussão que também trata dessa questão de forma interessante. Trata-se da questão que Freud levantou em carta a Marie Bonaparte: "O que quer a mulher?" (Jones, 1972, p. 445 - tradução do autor).

Lacan, trabalhando em vários momentos de sua obra as dificuldades/impossibilidades de se discernir aquilo que nos possibilitaria apreender a mulher, propõe, em O seminário XX (Lacan, 1975/1985), que a identifiquemos com a verdade.

Como ambos chegaram a essa problematização?

Na época vitoriana de Freud, evidenciada nas famosas apresentações de Charcot, as histéricas em suas performances carregadas de sentido se apresentavam como furo no saber patriarcal normativo que as encarcerava, produzindo-se como excesso em relação ao saber instituído. Essa é, por definição, como vimos, o lugar da verdade.

E a mulher, se a reconhecemos como incorporando o lugar da verdade, por estar imanente à situação, desqualifica transcendências que eventualmente tenham sido invocadas para receberem e conterem esse excesso. Não é sem razão, por exemplo, que as religiões em geral (cristã, muçulmana etc.) sejam tão enfáticas na desautorização da mulher, reforçando sempre sua inferioridade na escala de valores vigente.

Levar ao silêncio o feminino é apagar a existência intrínseca da verdade, tornando a sociedade submissa a uma normatização que existiria a priori.

Poderíamos propor que o movimento da Reforma Psiquiátrica estaria inserido no mesmo rol de questões. Ao derrubar os muros dos hospitais psiquiátricos, o que a reforma se propôs a fazer foi forçar a convivência, dentro, daquilo que não se deixa apreender pelo saber racional, e que estava condenado a existir fora, cercada nos nosocômios. A estes lugares é que eram encaminhadas, na época de Freud, as performáticas histéricas, exuberantes em sua manifestação de rebeldia em relação às regras e imposições que as sufocavam.

Chegamos, assim, à quinta consequência.

(5) O resgate da verdade passa pelo resgate do que, como excesso, foi condenado à inexistência.

Giorgio Agamben, filósofo italiano contemporâneo, ao trabalhar a questão da arte em seu texto O que é o contemporâneo (Agamben, 2008), coloca a verdade de uma forma muito interessante. Para ele, aquele que carreia a verdade de seu tempo, ou que é capaz de alguma forma de vislumbrá-la, é aquele que se encontra deslocalizado em relação a sua contemporaneidade. E é essa deslocalização, ou essa estranheza em relação ao mundo que o cerca, que lhe permite a incorporação, como processo, da verdade desse mesmo mundo.

Seguindo na esteira de Agamben, poderíamos aventar que seriam os excluídos, aqueles que habitam às margens da sociedade, inadaptados em suas regras e valores, os mais aptos a vislumbrarem e a carrearem a verdade de seu tempo. Somente eles, em excesso em relação ao que ficticiamente estabeleceu a finitude daquele mundo por meio de hierarquizações e classificações, são capazes de carrear a infinitude que necessariamente teve que ser excluída para que limites apaziguantes fossem estabelecidos. Na sociedade tradicional e vitoriana de Viena do início do século XX, as enigmáticas histéricas de Charcot souberam atrair a atenção de Freud, que reconheceu nelas o caminho para a redescoberta do sujeito, apagado na enrijecida civilização de sua época.

Resta agora descobrirmos quem serão aqueles que, hoje em dia, em consonância com as mulheres, em melhores condições estariam para nos ajudar a reencontrar a trilha dos desejos de um sujeito e sua verdade.

 

Referências

Agamben, G. (2008). Qu'est-ce que le contemporain?. Paris: Payot & Rivages.         [ Links ]

Badiou, A. (1996). O ser e o evento. Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Badiou, A. (2006). Logiques des mondes. Paris: Seuil.         [ Links ]

Badiou, A. (2010, maio). Localização e verdade. Séminaire Regards croisés. Paris, França.         [ Links ]

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Jones, E. (1972). La vie et l'œuvre de Sigmund Freud, tome II, Paris: PUF.         [ Links ]

Lacan, J. (1985). O seminário, livro 20: mais ainda. Rio de Janeiro: Zahar. (original publicado em 1975).         [ Links ]

Lacan, J. (1998). Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In Escritos, p. 807-842. Rio de Janeiro: Zahar. (original publicado em 1960).         [ Links ]

Lacan, J. (2003). O aturdito. In Outros escritos, p. 448-497. Rio de Janeiro: Zahar. (original publicado em 1972).         [ Links ]

Viveiros de Castro, E. (2005). A filosofia canibal. Folha de São Paulo - Caderno Mais, 10. http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2108200509.htm (acesso em 21-jul-2017).         [ Links ]

Viveiros de Castro, E. (2012). "Transformação" na antropologia, transformação da "antropologia". Mana, 18(1), 151-171. http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-93132012000100006&script=sci_arttext (acesso em 19-jun-2017).         [ Links ]

Zizek, S. (2011, março). L'inconscient, c'est la politique. University of Leeds, Leeds, UK. http://colblog.blog.lemonde.fr/2011/09/01/slavoj-zizek-linconscient-cest-la-politique/#more-1354 (acesso em 18-jun-2017).         [ Links ]

 

 

Recebido em 03 de agosto de 2017
Aceito para publicação em 12 de novembro de 2017

 

 

1 "O que excede a situação é o sentido referencial dos nomes, o qual só existe na retroação da existência (logo da apresentação) de uma parte indiscernível da situação. Portanto, podemos dizer: tal enunciado da língua-sujeito terá sido verídico, se a verdade for tal ou tal" (Badiou, 1996, p. 314).
[...] lei fundamental do sujeito, que é também uma lei do futuro do presente. Esta lei é a seguinte: se um enunciado da língua-sujeito é tal que ele terá sido verídico para uma situação de que adveio uma verdade, é porque existe um termo da situação que ao mesmo tempo pertence a essa verdade (pertence à parte genérica que é essa verdade) e mantém com os nomes postos em jogo no enunciado uma relação particular" (Badiou, 1996, p. 314).
[...] efeito de retroversão pelo qual o sujeito, em cada etapa, transforma-se naquilo que era, como antes, e só se anuncia 'ele terá sido', no futuro anterior" (Lacan, 1960/1998, p. 823).

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