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Psicologia Clínica

Print version ISSN 0103-5665On-line version ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.30 no.2 Rio de Janeiro May./Aug. 2018

http://dx.doi.org/10.33208/PC1980-5438v0030n02R01 

RESENHAS

 

A cronicidade da dor: narrativas clínicas e teóricas

 

Chronic pain: clinical and theoretical narratives

 

La cronicidad del dolor: narrativas clínicas y teóricas

 

 

Clarice Medeiros

Doutoranda em Psicologia Clínica pela PUC-Rio; Professora da UVA (Universidade Veiga de Almeida), Rio de Janeiro, Brasil

 

 

Resenha do livro: Besset, V. L. & Zanotti, S. V. (org.). (2017). A face crônica da dor. Maceió: Edufal. (388p.)

O livro A face crônica da dor é uma coletânea de artigos inéditos, organizada por Vera Lopes Besset e Susane Vasconcelos Zanotti, de profissionais brasileiros e estrangeiros renomados, com ampla atuação e pesquisa na área. A iniciativa nos oferece um testemunho de como o profissional que trabalha com pacientes acometidos pela dor crônica precisa ter coragem para escutar as diferentes narrativas sem cair na paralisia e no discurso da impotência, que a dor, nesses casos, pode produzir no outro. Distante de dar uma resposta unívoca, os artigos, recheados de casos clínicos, abrem perspectivas para a compreensão da dor crônica. A coletânea é dividida em três partes: a clínica da dor: perspectivas; um sujeito e seu corpo; pulsão e gozo: ressonâncias no corpo. Percorreremos brevemente cada uma delas a fim de prover um panorama sobre a proposta da obra.

A primeira seção é um convite à multidisciplinaridade e à possibilidade de diversos olhares sobre a clínica da dor, deixando entrever o esforço de levar luz onde há escuridão. O livro se inicia com o artigo Os paradoxos clínicos da paixão dolorosa, de Benoît Maillard, Frédéric Gillot e Julien Nizard, que ressaltam a passagem de uma visão puramente sintomática da abordagem biomédica a um tratamento global e personalizado da pessoa dolorosa, realizado por um referencial psicossocial. Os autores introduzem o termo paixão dolorosa, marcando a origem da dor em relação a um objeto que falta ao sujeito e com o qual se tenta estabelecer um diálogo. A aposta é oferecer, por meio da multidisciplinaridade, um acolhimento, onde seja possível, a partir da mensagem de uma queixa dolorosa, a emergência dos diversos sentimentos que tentam encontrar uma forma de expressão e um primeiro endereçamento para serem ouvidos.

O artigo seguinte, A dor crônica na perspectiva médica, de Fernando Pires de Farias e Marcos Britto da Silva, como o próprio título indica, expõe a perspectiva médica da dor crônica. Enquanto a dor aguda é transitória e representa um mecanismo de defesa frente a uma ameaça à integridade do organismo, a dor crônica é metastática, o que indica que a defesa não opera mais e, por permanecer por um longo tempo, é capaz de ativar mecanismos de autoperpetuação que se reforçam cada vez mais, o que dá caráter difuso à dor e pode ter um impacto devastador na vida de um paciente.

Adiante, o artigo de Andréa G. Portnoi, O enfrentamento da dor, explicita o aspecto multifatorial da dor, apontando a não correspondência entre dor crônica e a presença de uma lesão e marcando a diferença entre dor aguda e crônica. A proposta da autora é elencar os mecanismos de que o paciente pode dispor para enfrentar a dor. Se a dor aguda desencadeia funções adaptativas e reações fisiológicas que acionam mecanismos de proteção, a dor crônica, por perdurar, dá origem a uma série de alterações fisiológicas, emocionais, comportamentais e sociais. Dessa forma, viver com dor crônica exige um esforço contínuo de adaptação e enfrentamento, que obriga o indivíduo a experimentar uma série de estratégias cognitivas e comportamentais para dar conta das sensações desagradáveis e das dificuldades provocadas pela dor.

Em seguida, o último artigo da primeira parte, Fibromialgia e psicose: a dor e suas funções, de Marina Pereira Vieira Espinoza e Susane Vasconcelos Zanotti, inicia introduzindo o caráter enigmático e desafiador que a clínica da dor impõe ao campo médico e ao psicanalítico. Por muito tempo, a dor, quando não possuía substrato orgânico, foi classificada como pertencente à categoria diagnóstica da histeria. As autoras consideram essa conclusão precipitada e propõem pensar a dor crônica não como um sintoma conversivo, mas como uma nomeação que possibilitaria a localização do gozo disruptivo que acomete o sujeito psicótico. Nesse caso, a aposta do tratamento é sustentar a dor como uma solução possível frente ao real.

A segunda parte do livro apresenta uma verdadeira rede em que os autores expõem a sobredeterminação da dor, por meio da teoria e conceitos psicanalíticos, demonstrando a complexidade do corpo dolorido. O primeiro artigo, denominado A dor e a denegação, de Pierre Ebtinger, propõe a relação entre os casos de dor e a denegação. Para o autor, a denegação é muito frequente nas histórias do paciente com dor, e ele apresenta a denegação como uma falha do significante e a dor como uma das consequências possíveis dessa falha.

O artigo subsequente, Dor crônica: um sinthoma possível para a psicose, de Fábio Paes Barreto e Vera Lopes Besset, traz uma rica contribuição para o psicanalista ao propor não encarar prontamente a fibromialgia como sintoma conversivo histérico ou um fenômeno psicossomático. O escrito abre a possibilidade de refletir sobre a função da fibromialgia como um sinthoma na psicose oferecendo ao sujeito uma pacificação do gozo. Na psicose, em vez de tratar a dor, em uma ação de retirada, cabe ao analista secretariar o sujeito na invenção de uma prótese corporal pelo viés do real das dores crônicas, permitindo um ordenamento do gozo.

Em A clínica subjetiva da dor, de Patrick Martin-Mattera, o autor dá ênfase à subjetividade da dor. Por se encontrar nos limites do significante, a dor se expressa em uma particularidade e coloca em cena a escolha psíquica realizada pelo sujeito. A aposta da psicanálise, defendida pelo autor, é que, por meio da transformação da dor ao estatuto do sintoma, algo de uma mensagem cifrada possa ser dita e direcionada ao analista, permitindo inserir a dor na dimensão da linguagem.

O último artigo desta parte traz uma proposta inovadora. Gabriella Dupim e Jean-Luc Gaspard, em Dor crônica e devastação feminina, introduzem o elemento da devastação. A proposta é entender a dor crônica, para certas mulheres, com a função de localizar o gozo feminino no corpo, barrando a demanda infinita de amor dirigida à mãe ou ao parceiro.

A terceira e última parte centra a discussão em torno do conceito de pulsão que, como tal, nunca se satisfaz, demonstrando a necessidade de se lançar mão de outras noções psicanalíticas. Em A escuta psicanalítica da dor, Patrícia do Socorro Nunes Pereira e Roseane Freitas trabalham com três vetores: sintoma, masoquismo e angústia. É no corpo que a dor incide, mesmo lugar onde a angústia emerge; no entanto, a dor pode aparecer como um modo de arranjo defensivo - sintoma - do psiquismo diante da angústia. E ao sofrer do corpo, o paciente deixa de se haver com sua neurose, numa relação de satisfação e ganho masoquista com sua doença.

Adiante, em Reflexões sobre dor e gozo nos acontecimentos de corpo, Edilene Freire Queiroz enfatiza que o inconsciente funciona como um litoral entre corpo e psiquismo, de modo que o sintoma somático é revelador do impacto físico do real inconsciente no corpo. Na clínica contemporânea, na opinião da autora, são os acontecimentos de corpo que aparecem como sintoma. Quando há um limite ao gozo do corpo, os sujeitos tornam-se doloridos, e quando levam o usufruto do corpo às últimas consequências, tornam-se sujeitos gozantes, adictos ou somatizantes.

Em seguida, o artigo Dor crônica: signo do excesso pulsional, de Clarice Medeiros e Isabel Fortes, destaca o caráter da cronicidade da dor, compreendendo-a como uma insistência pulsional, que, como tal, pode ser pensada sobre a égide da compulsão a repetição. A dor crônica, devido à sua perseverança, é sinal do excesso pulsional e o caráter da compulsão à repetição denuncia a tentativa de ligação das quantidades intoleráveis de excitação. O excesso da pulsão só pode ser apreendido pela linguagem, e o grito tem a função primordial no trabalho de inscrição por, desde o início, estar entrelaçado ao simbólico. A tarefa do analista consiste, então, em apostar que uma escuta da dor seja possível.

O artigo Outro lugar para o corpo e a dor, de Márcia Cristina Maesso, situa a dor para além da medicina. Para a psicanálise, a dor pode comparecer como formação inconsciente ou como fora da palavra, não simbolizada; por isso, a dor crônica é concebida como um fenômeno transestrutural, que pode ocorrer na neurose e na psicose, como sintoma ou fenômeno psicossomático. A direção do tratamento, que tem como vetor a escuta do analista, é que a dor possa deslocar-se do lugar fixado na carne para situá-la simbolicamente em relação à memória do vivido.

O último artigo do livro, Fibromialgia e fenômeno psicossomático, de Carla Oliveira Fernandes, Andréa Rolo Fares e Wilker Luiz Pessoa de França, traz a distinção clara entre o sintoma descrito por Freud e o fenômeno psicossomático. Há, hoje, a prevalência nas escolhas feitas pela via do gozo que têm como decorrência sintomas sem palavras, mudos, que incidem de forma direta no corpo. Os autores tecem aproximações e distanciamentos entre o fenômeno psicossomático e a fibromialgia, por considerarem que tanto no fenômeno psicossomático quanto na fibromialgia o corpo está afetado. A dor seria, nesse viés, efeito do significante sobre o corpo.

Dessa forma, a riqueza e a contribuição dessa coletânea não consiste apenas em um levantamento psicanalítico sobre a dor crônica, mas na abertura dos horizontes teóricos para pensar a clínica da dor. Teoria e clínica caminham juntas e permitem pontos de abertura, propiciando uma saída de um discurso da impotência diante da face crônica da dor. Se a dor silencia o sujeito, a psicanálise aposta em sua fala. Se há uma fala, é preciso escutar sua singularidade e particularidade. A dor convoca todos a dar um destino.

 

 

Recebido em 05 de janeiro de 2018
Aceito para publicação em 05 de abril de 2018

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