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Psicologia Clínica

Print version ISSN 0103-5665On-line version ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.30 no.3 Rio de Janeiro Sept./Dec. 2018

http://dx.doi.org/10.33208/PC1980-5438v0030n03A01 

SEÇÃO TEMÁTICA – QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: GÊNERO, FEMINISMO, MIGRAÇÃO

 

Nascimento e primeiros desenvolvimentos do conceito de gênero

 

Genesis and early developments of the concept of gender

 

Nacimiento y primeros desarrollos del concepto de género

 

 

Felippe Figueiredo LattanzioI; Paulo de Carvalho RibeiroII

IDoutor em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, Brasil. felippelattanzio@gmail.com
IIProfessor Associado aposentado da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, Brasil

 

 


RESUMO

Partindo da percepção de uma lacuna nos estudos sobre gênero, por desconsiderarem o nascimento e primeiros desenvolvimentos do conceito, os autores resgatam a criação do conceito de gênero por John Money, datada de 1955, e seus primeiros desenvolvimentos teóricos anteriores a 1975, ano em que Gayle Rubin usa o conceito pela primeira vez no âmbito das teorias feministas. Dois outros autores, Ralph Greenson e Robert Stoller, são abordados nesse percurso. O objetivo principal é fornecer subsídios para pesquisadores da área compreenderem a história e a genealogia de um conceito tão difundido na atualidade. Ao final, defende-se que a cisão entre os estudos de viés político e os de viés clínico na área de gênero precisa ser desmontada, sem, contudo, negligenciar tensões e paradoxos entre os campos. Tais tensões devem ser exploradas e mantidas, pois mimetizam a complexidade e a transdisciplinaridade inerentes ao campo de estudos de gênero.

Palavras-chave: gênero; identidade; psicanálise; teoria feminista.


ABSTRACT

Based on a perceived gap in gender studies, for disregarding the genesis and early developments of the concept, the authors rescue the concept of gender by John Money, proposed in 1955, and its initial theoretical developments prior to 1975, the year in which Gayle Rubin employs the concept for the first time within feminist theories. Two other authors, Ralph Greenson and Robert Stoller, are discussed along the way. The main objective is to provide a basis for researchers in the field to understand the history and genealogy of such a widespread concept. In the end, it is argued that the rift between studies of a political bias and those of a clinical bias in the area of gender must be defused, though without overlooking the tensions and paradoxes between these fields. Such tensions must be explored and maintained, as they reflect the complexity and transdisciplinarity inherent in the field of gender studies.

Keywords: gender; identity; psychoanalysis; feminist theory.


RESUMEN

Partiendo de la percepción de una laguna en los estudios sobre género, por desconsiderar el nacimiento y los primeros desarrollos del concepto, los autores rescatan la creación del concepto de género por John Money, fechada en 1955, y sus primeros desarrollos teóricos anteriores a 1975, año en que Gayle Rubin usa el concepto por primera vez en el ámbito de las teorías feministas. Otros dos autores, Ralph Greenson y Robert Stoller, son enfocados en este recorrido. El objetivo principal es proporcionar un sustrato para los investigadores del área comprender la historia y genealogía de un concepto tan difundido. Al final, se defiende que la escisión entre los estudios de sesgo político y los de sesgo clínico en el área de género, precisa ser desmontada, aunque sin desconsiderar las tensiones y paradojas entre eses campos. Tales tensiones deben ser exploradas y mantenidas, pues mimetizan la complejidad y transdisciplinariedad inherentes al campo de estudios de género.

Palabras clave: género; identidad; psicoanálisis; teoría feminista.


 

 

Introdução

É interessante notar que, a despeito da enorme visibilidade atual do conceito de gênero, pouco se conhece sobre suas origens e primeiros desenvolvimentos. É comum vermos trabalhos (por exemplo, Azerêdo, 2007) que fazem referência ao importante texto de Gayle Rubin sobre o tráfico de mulheres, publicado em 1975, como marco inicial do termo gênero1. Realmente, tal publicação inaugura este uso no rol das teorias feministas, como Azerêdo reconhece; contudo, o gênero carrega uma pré-história clínica que remonta à década de 1950, quando o psicólogo John Money introduziu o termo pela primeira vez no corpo conceitual científico. Tal conceito veio dar credibilidade à ideia de que não existe uma relação natural entre o sexo anatômico de uma pessoa e sua identidade sexual ou, como veio a ser chamada, sua identidade de gênero. Posteriormente, mas ainda antes de 1975, os psicanalistas Ralph Greenson e Robert Stoller (ambos a partir de 1966) trabalharam no desenvolvimento do conceito, levando em conta as vicissitudes das primeiras relações entre mãe e filho na definição do gênero da criança.

A relevância de tais teorizações era enorme, pois aquela era uma época em que movimentos de mulheres lutavam por igualdade de direitos, em que os direitos dos homossexuais começavam a ganhar visibilidade política, as lutas de várias "minorias" contra preconceitos ganhavam força, os transexuais cada dia mais buscavam nas cirurgias de mudança de sexo uma possível solução para sua condição e, ainda, novas configurações familiares se disseminavam na sociedade. A psicologia e a psicanálise avançavam tanto no âmbito teórico, ao postular a não naturalização da categoria de identidade sexual, dando assim primazia ao impacto das vivências iniciais sobre a formação da identidade da criança, quanto no âmbito político, pois tentavam responder a importantes questões de seu tempo. No entanto, de um modo geral, o conceito de gênero foi mal recebido entre os psicanalistas e, com o passar dos anos, praticamente desapareceu do corpo teórico da psicanálise. São diversas as razões para tal rechaço2, mas entre elas podemos destacar o pensamento de que o gênero era um conceito social e, dessa forma, não interessava à psicanálise.

Entra em cena, nesse momento, a teoria feminista, que enxergou a importância do conceito de gênero para sua tentativa de desnaturalização das relações de poder estabelecidas entre os sexos, importando-o para seu arcabouço teórico. As feministas, então, desenvolveram o conceito de forma brilhante e subversiva, relacionando-o com questões políticas amplas, mostrando a normatividade inerente às relações de gênero, denunciando como inúmeras categorias do pensamento ocidental moderno pautam-se em valores masculinos e se pretendem naturais. Atualmente, a teoria feminista ganha cada vez mais espaço, e sua credibilidade é indiscutível: uma gama de epistemólogas, filósofas, sociólogas e autoras oriundas de formações diversas (Haraway, 1995, 2004; Butler, 1993, 2003; Anzaldúa, 1987; Scott, 1986; Spivak, 2010) utilizam o gênero como categoria de análise crítica das relações sociais, de poder e mesmo do próprio fazer científico. Tal movimento foi tão intenso que hoje, ao se pensar o gênero, automaticamente se atribui tal conceito às teorias feministas e aos "gender studies". Criou-se, assim, uma cisão: os estudos de viés predominantemente sociológico ou psicossocial sobre o gênero enfatizam questões como a normatividade e as relações desiguais entre os sexos, enquanto suas determinações psíquicas, a importância do gênero na constituição subjetiva, seu papel no conflito psíquico, entre outros aspectos, foram deixados de lado ao longo da história do conceito. Esses temas inicialmente negligenciados voltaram a ganhar importância, recentemente, no debate científico-acadêmico. Assim, faz-se necessária uma retomada dos primórdios desse conceito, bem como de seus primeiros desenvolvimentos. Tal empreitada, acreditamos, será útil tanto para o campo de estudo que se relaciona à identidade de gênero de um ponto de vista clínico, quanto para a corrente que toma as categorias sociais ligadas ao gênero como principal aporte analítico. Na verdade, entendemos que esses campos são complementares e interdependentes.

 

John Money e a criação do gênero

Na década de 1950, John Money, psicólogo e sexólogo norte-americano, foi o primeiro teórico a utilizar o termo gênero no sentido de relacioná-lo às diferenças entre o sexo anatômico e o que ele considerava o sexo psicológico. Antes disso, existiam evidentemente os termos gênero linguístico, gênero textual, gênero biológico, entre outros, todos eles tendo em comum o fato de se relacionarem a algum tipo de classificação. A apropriação do termo gender, todavia, de forma a estabelecer todo um novo campo de estudos e dar respaldo científico a teorias esparsas que, por exemplo, combatiam a naturalização das desigualdades entre homens e mulheres, foi mérito de Money. Cabe lembrar, no entanto, que a percepção de que o sexo anatômico não é o elemento definidor do que chamamos de masculinidade e feminilidade é algo que antecede muito a Money. Nesse sentido, para se ter uma ideia, a precursora do chamado feminismo político, Mary Wollstonecraft (1792/1998), já denunciava em 1792, em seu livro A Vindication of the Rights of Woman, que as diferenças intelectuais e de papel social entre homens e mulheres resultava da educação diferenciada dispensada a cada uma dessas classes, contrariando as teorias de sua época, segundo as quais tal desigualdade era resultado de fatores biológicos ou mesmo de desígnios divinos. De todo modo, é fato que Money conseguiu, ao forjar o conceito de gênero, catalisar e formalizar tal anseio histórico que se intensificava em sua época com o crescimento de estudos e movimentos cujas temáticas principais relacionavam-se à identidade sexual, de um ponto de vista seja psicológico, seja político.

A primeira aparição, numa publicação, do conceito de gênero data de 1955, num texto de Money sobre o hermafroditismo (Money, 1955). Para ele, a pertinência psicológica de se estudar o hermafroditismo situa-se no fato de que esta condição possibilita a descoberta de enormes evidências a respeito do desenvolvimento da orientação sexual dos humanos em geral. É a mesma justificativa dada por Stoller, anos mais tarde, ao chamar o transexualismo3 de experimento natural (Stoller, 1975), ou mesmo de Freud ao teorizar o psiquismo dito "normal" a partir de suas experiências com o patológico. O hermafroditismo seria, então, um experimento natural no qual diversas formas de ambiguidade sexual biológica ofereciam a oportunidade de se medir quais fatores teriam mais influência na formação do papel de gênero (gender role) desses indivíduos: o sexo cromossômico, gonadal, hormonal ou o sexo designado pelos cuidadores da criança. O principal resultado desse estudo conduzido por Money surgiu a partir da análise dos casos de contradição entre os sexos gonadal e hormonal em relação ao sexo de criação:

Das 17 pessoas representadas na tabela II [casos em que havia tal contradição], todas menos 3 se discriminam no papel de gênero totalmente em concordância com a sua criação, mesmo que contradito por suas gônadas. A estrutura gonadal por si nos dá um prognóstico menos fidedigno do papel de gênero de uma pessoa e sua orientação como homem ou mulher; o sexo designado nos dá um prognóstico extremamente fidedigno. (Money, 1955, p. 254, tradução nossa)

Dessa forma, o gênero torna-se um conceito que não necessariamente se vincula ao sexo biológico, tendo uma maior relação com as experiências de sociabilidade e criação de uma pessoa do que com fatores inatos. A importância dada por Money a esses fatores é apenas indireta: o funcionamento hormonal desempenha o papel principal na diferenciação sexual embrionária do aparelho reprodutivo interno e das genitálias externas, e estas são um signo a partir do qual os pais e outras pessoas próximas conseguem formular o modo como designar o gênero do bebê neonato (Money, 1955, p. 257). Ao longo dos primeiros anos, a criança se servirá de uma gama de signos - alguns dos quais podem ser considerados hereditários ou constitucionais, outros do ambiente - para construir seu papel de gênero. Tais signos, pois, precisam ser decifrados e interpretados, e somente então começará a delinear-se o papel de gênero, desenvolvimento este que, no entanto, se faria muito precocemente4.

Em artigo escrito um mês mais tarde, em colaboração com dois endocrinologistas (Money et al., 1955), destinado a discutir o manejo psicológico relativo à designação precoce de gênero de hermafroditas, bem como à mudança de gênero tardia, Money esclarece sua concepção do que seria o papel de gênero:

Pelo termo papel de gênero, nós queremos dizer todas aquelas coisas que uma pessoa diz ou faz para se mostrar como tendo o status de menino ou homem, menina ou mulher, respectivamente. Isso inclui, mas não se restringe à sexualidade no sentido de erotismo. Um papel de gênero não é estabelecido no nascimento, mas é construído cumulativamente através de experiências confrontadas e negociadas - através de aprendizagens casuais e não planejadas, através de instruções explícitas e inculcações, e através de, espontaneamente, colocar juntos dois e dois para formar às vezes quatro e às vezes, erroneamente, cinco. Resumindo, um papel de gênero é estabelecido de maneira muito similar a uma língua nativa. (Money et al., 1955, p. 285, tradução nossa)

Assim, Money postula que o fator mais decisivo para a formação da identidade masculina ou feminina da criança é a designação do gênero. Em texto posterior, Money, novamente em colaboração com os Hampson (Money et al., 1957), tenta relacionar o estabelecimento do gênero com o conceito de imprinting, tomado de empréstimo do etólogo Konrad Lorenz, buscando explicar como uma função psicológica estabelecida após o nascimento pode se tornar impossível de ser erradicada. Para tal, ele descreve os resultados obtidos por Lorenz como meio de comparação: ao contrário dos famosos gansos Greylag que aceitavam inquestionavelmente o primeiro ser vivo que viam como sendo sua mãe, os patos da espécie Mallard, após nascerem, ficavam em pânico até ouvir repetidamente o grasnido usualmente feito pelas mães patas. Somente após Lorenz despender meio dia imitando continuamente e de cócoras o grasnido de uma pata é que os filhotes o reconheceram como sua mãe, e daí em diante tal relação tornou-se estabelecida e irreversível: os patos passaram a seguir Lorenz em excursões locais e, ao ouvir a imitação de grasnido feita por ele, eles vinham voando em qualquer época de suas vidas. É com este fenômeno que Money compara o estabelecimento do gênero em seres humanos, dado que nas teorias psicológicas não havia muitos precedentes disponíveis para se tentar explicar como uma função não biológica se estabelece após o nascimento de forma tão irreversível. De certo, foi apenas o esboço de um conceito (sem levar em conta as diferenças neurológicas e mesmo instintuais entre os seres humanos e os patos, tampouco desenvolvendo o raciocínio para além de uma simples comparação), que seria novamente trabalhado por Stoller anos depois. Com relação à nomenclatura, houve tentativas de traduzir o termo por "cunhagem" ou "estampagem", mas aqui manterei o inglês imprinting, já que este dá uma noção melhor de algo que se estabelece do exterior sem participação voluntária por parte das crianças cujo gênero é, assim, formado. No entanto, na época em que Money desenvolvia sua teoria, tais processos ainda não haviam sido relacionados com a identificação, como reconhece o próprio Money (1973), quase duas décadas depois, ao relatar a posterior confusão entre os termos "papel de gênero" e "identidade de gênero". Somente dez anos mais tarde, em 1966, Ralph Greenson começaria a explorar a vinculação entre a designação e a formação do gênero com os processos identificatórios, como veremos a seguir.

 

Ralph Greenson: simbiose e des-identificação em relação à mãe

A partir do tratamento de Lance, um menino de cinco anos com "problemas de identidade de gênero"5, Ralph Greenson, psicanalista e pesquisador da Universidade da Califórnia, começou a delinear sua noção de des-identificação como um passo crucial para o estabelecimento da identidade de gênero (Greenson, 1966). Com a idade de um ano e alguns meses, Lance começou a apresentar uma compulsão por usar as roupas de sua mãe e de sua irmã. Como é habitual nesses casos, sua mãe somente procurou aconselhamento especializado e tratamento após o alerta dado por um terceiro; neste caso, por um vizinho. Na escola, Lance só brincava com meninas e tentava também sempre vestir roupas femininas. Greenson, então, atendeu o garoto por quatorze meses, numa frequência de quatro vezes por semana. O tratamento pode ser resumido da seguinte forma: Greenson se ofereceu ao menino como uma espécie de pai substituto, ou seja, um modelo masculino de identificação. As sessões ocorriam na casa de Greenson, e Lance convivia com sua família, nadava na piscina com Greenson, tendo chegado a levar uma colega de escola para conhecer e brincar na "casa deles". Logo nos primeiros encontros, Greenson observou uma "ânsia por identificação e imitação" (1966, p. 397, tradução nossa) por parte de Lance. Ao longo do tratamento, Lance foi pouco a pouco substituindo os laços de identificação que o ligavam à mãe e à feminilidade pelos laços criados com Greenson. Ao mesmo tempo, uma convivência mais intensa com seu pai foi sendo criada. Como exemplo desse processo, podemos destacar o fato de que, inicialmente, Lance somente brincava com uma boneca Barbie, se identificando com ela nas brincadeiras e chamando-a de "eu". Algum tempo depois, ele passa a chamar a boneca de "ela" e, rapidamente, passa a brincar com o boneco Ken (namorado da Barbie). A última descrição do caso, nesse sentido, é de Lance orgulhosamente usando botas de cowboy como as de Greenson. Todo esse processo vem corroborar o ponto de vista de Greenson segundo o qual "o travestismo pode ser mais bem entendido nessa criança se nós olharmos as roupas como representando a pele da mãe" (Greenson, 1966, p. 402).

Tal atendimento incomum (como o próprio Greenson reconhece, ao dizer que esta havia sido a primeira vez que ele atendera uma criança e confessar "não ter certeza" se os psicanalistas infantis concordariam com seus métodos) fez com que Greenson começasse a formular sua principal hipótese:

Parece-me que, da mesma forma que a menina tem um especial problema em estabelecer relações objetais por ter que trocar o gênero de seu objeto de amor, também o menino tem um problema especial ao construir uma identidade de gênero por ter que trocar o objeto original de sua identificação. (Greenson, 1966, p. 402)

Para Lance, assim como para toda criança nos primórdios do estabelecimento do eu, "amar era equacionado com se tornar" (Greenson, 1966, p. 402, grifo nosso). Para Greenson, portanto, a distinção entre amar e se identificar com alguém só é adquirida tardiamente no desenvolvimento6. Pensamos que um episódio do tratamento de Lance (Greenson, 1966, p. 400) ilustra muito bem essa ideia: após vestirem a Barbie de princesa, Greenson fala à boneca: "Oh, você é tão bonita, princesa, eu quero dançar com você. Eu gosto de você. Eu quero te beijar." Lance então responde, de modo hesitante: "Ah, você quer ser a princesa? Vai em frente, você pode ser ela" …… Greenson insiste que não quer ser a princesa, mas dançar com ela, pois ele gosta dela. O garoto, novamente, diz que Greenson pode sim ser a princesa. Somente após uma terceira tentativa é que Lance permite que Greenson dance com a boneca.

Em comunicação feita no 25º Congresso Psicanalítico Internacional, no ano de 1967, Greenson deixa clara sua discordância com relação à teoria psicanalítica clássica, formulando então sua hipótese, agora de forma consistente:

O objetivo desta apresentação é focalizar uma vicissitude especial no desenvolvimento psicológico normal do menino, que ocorre nos anos pré-edipianos. Refiro-me ao fato de que o menino, para chegar a um sentimento saudável de virilidade, deve substituir o objeto primário de identificação, a mãe, e se identificar com o pai. Acredito que as dificuldades inerentes a esta etapa adicional de desenvolvimento, da qual as meninas estão livres, são responsáveis por certos problemas de identidade de gênero no homem, na sua noção de pertencer ao sexo masculino. A menina também precisa se des-identificar da mãe para desenvolver uma identidade feminina própria, mas sua identificação com a mãe a ajuda a estabelecer sua feminilidade. Minha opinião é de que os homens sejam muito mais inseguros sobre sua masculinidade do que as mulheres sobre sua feminilidade. Acredito que a certeza das mulheres sobre sua identidade de gênero e a insegurança dos homens estejam enraizadas na identificação infantil com a mãe. (Greenson, 1967/1998, p. 263, grifo do autor)

Greenson fala de uma fusão simbiótica infantil com a mãe como etapa universal do desenvolvimento, e que o processo de des-identificação é fundamental para a capacidade de separação-individuação descrita por Mahler. Dessa forma, sob o nome des-identificação ele se refere aos "complexos e inter-relacionados processos que ocorrem na luta da criança para liberar-se da fusão simbiótica infantil com a mãe" (Greenson, 1967/1998, p. 263). Essa inversão no objeto primário de identificação faz com que a ascensão à masculinidade seja mais tortuosa para os homens do que o é a feminilidade para as mulheres. Greenson aponta também como o temor à homossexualidade (que significaria, em última instância, o temor da perda da identidade de gênero) é mais forte nos homens.

Tais formulações de Greenson, além de serem dotadas de certa honestidade intelectual advindas da primazia da clínica, abriram caminho para um novo rumo nas pesquisas psicanalíticas sobre o gênero. É interessante notar como Greenson se pergunta, ao final de sua apresentação no referido congresso, qual seria o destino da antiga identificação com a mãe: ela desapareceria, substituída pela nova identificação? Tornar-se-ia latente? A identificação subsequente do menino com o pai seria uma contra-identificação, um meio de compensar a antiga identificação? Tais pontos foram posteriormente trabalhados por Stoller, autor reconhecido pelas investigações sobre o transexualismo.

 

Robert Stoller: gênero, imprinting e transexualismo

Robert Stoller, psicanalista norte-americano que trabalhava juntamente com Greenson em pesquisas de gênero na Universidade da Califórnia, tornou-se uma das principais referências nos estudos de gênero. A partir de seu contato com pacientes transexuais e suas famílias, Stoller (1966, 1968) articulou sua teoria ancorado nos conceitos de Greenson e Money. Dois eixos principais estruturam sua obra e nos dão ideia da dupla inversão teórica por ele concretizada: por um lado, ao retomar a noção de imprinting, Stoller chamou a atenção para o fato de que a identidade de gênero ocorre num movimento que se origina do exterior antes mesmo da existência de um Eu suficientemente formado capaz de desejar algo. Assim, um importante passo foi dado na teoria psicanalítica em direção a uma primazia da alteridade na constituição identitária. Em segundo lugar, Stoller deu corpo teórico à tese de Greenson, invertendo a noção freudiana de que a masculinidade é um destino mais fácil e mais desejado do que a feminilidade. Ao falar da difícil conquista da masculinidade, Stoller desmonta a noção de uma primazia do masculino ou do falo, apontando na direção de uma primazia do feminino que se ancora na identificação precoce com a mãe (identificação que, no entanto, surge como resultado do imprinting materno). A mãe, aqui, ocupa lugar central, e é importante dar ênfase a isso para entender que Stoller não inverte simplesmente a tese freudiana de uma primazia fálica que se dá sem nenhuma explicação, como se fosse uma constatação natural e óbvia7. A primazia da feminilidade em Stoller se apoia no fato de que são as mães que estabelecem as primeiras trocas com os bebês e é com elas que eles passam a maior parte de seus primeiros anos. Nesse sentido, toda a obra de Stoller é eminentemente a descrição de uma experiência, oriunda de sua extensa casuística e da sociedade em que viveu. Ademais, a primazia do feminino também decorre do fato de que o registro do desejo pode ser entendido como precedido, em sua obra, pelo registro da necessidade (cf. Ferraz, 2008): a necessidade do bebê de alimentação introduz em seu universo simbólico o seio; a necessidade de ser cuidado introduz a figura da mãe e seus atributos femininos.

Nos casos de transexuais femininas (ou seja, de transexualismo homemmulher) por ele estudados, Stoller percebeu que a origem desta condição era sempre muito precoce e se encontrava num tipo especial e raro de interação entre mãe e filho. Trata-se de uma simbiose que ocorre sobretudo num nível corporal, na qual a mãe impregna a criança de sua feminilidade antes mesmo desta ter um Eu suficientemente formado. Tal feminilidade é recebida passivamente por esses meninos, "por via da excessiva imposição dos corpos demasiadamente ternos de suas mães" (Stoller, 1975, p. 54, tradução nossa). O grande passo dado por Stoller foi perceber que tal processo, em verdade, ocorre também em crianças cujo destino não será o transexualismo nem a feminização; a diferença sendo apenas o grau com que a mãe impregna o filho com sua feminilidade e sua capacidade de deixá-lo des-identificar-se dela. O transexualismo homemmulher, dessa forma, seria a "chave que permite a compreensão do desenvolvimento da masculinidade e da feminilidade em todo ser humano" (Stoller, 1978, p. 207, tradução nossa). A partir desse "experimento natural" onde o imprinting materno é máximo, abre-se a possibilidade do estudo de "processos que contribuem para o desenvolvimento da masculinidade e da feminilidade que estão ocultos e, portanto, não revelados nos indivíduos mais normais" (Stoller, 1982, p. 3). Os indivíduos biologicamente masculinos que vivem e se identificam como mulheres, então, seriam o extremo de um processo inicial presente em toda pessoa, seja homem ou mulher8. Detenhamo-nos um pouco, então, nesse mecanismo de transmissão da feminilidade à criança, chamado por Stoller de imprinting, para entendermos sua natureza e o desafio que ele propõe à teoria psicanalítica.

Stoller admite que, por muito tempo, ele presumiu que "o processo essencial pelo qual esses meninos desenvolviam a feminilidade fosse a identificação" (Stoller, 1982, p. 55). No entanto, a identificação "requer estruturas psíquicas, ou mais acuradamente, o suficiente desenvolvimento da memória e da fantasia, para que a criança possa acreditar-se absorvendo (incorporando) sua mãe" (Stoller, 1982, p. 55). As evidências clínicas, no entanto, mostraram que não ocorre qualquer tipo de processo intramotivado, e apontaram para a ocorrência precoce de imprinting. Em algumas ocasiões, Stoller admite não saber a palavra correta para designar a ausência de escolha presente nesses momentos inaugurais do psiquismo (p.ex., Stoller, 1968, p. 268 et seq.), mas sempre enfatiza não se tratar de identificação. Os termos condicionamento, moldagem do sistema nervoso central, e outros foram por ele usados para tentar explicar o processo que, no entanto, só fica claro a partir das inúmeras descrições e digressões apresentadas:

As palavras "incorporação", "introjeção" e "identificação" conotam uma atividade motivada, dirigida a um objeto que não é reconhecido como parte de si mesmo. Isso significa que deve haver uma psique (mente) suficientemente desenvolvida para apreender o objeto (parcial) e desejar alojá-lo no interior de si (). Mas nossa teoria deve também reservar um lugar para outros mecanismos, não mentais (quer dizer, não motivados pelo indivíduo), graças aos quais a realidade externa possa também encontrar seu lugar no interior. (Stoller, 1978, p. 211, tradução nossa)

Tal imprinting faz com que surja, nas crianças de ambos os sexos, uma identificação precoce com a mãe. Embora seja verdade que o primeiro amor de um menino é heterossexual (sua mãe), é também verdade que "há um estágio mais precoce no desenvolvimento da identidade de gênero em que o menino [e também a menina] está fundido com a mãe" (Stoller, 1993, p. 35). Tal fusão ou simbiose determina a posição sexual primária de ambos os sexos, que é a feminina. Essa posição "coloca a menina firmemente no caminho para a feminilidade na idade adulta" (Stoller, 1993, p. 35), enquanto que, para o menino, desenha-se um caminho mais tortuoso, e coloca-se o risco permanente de que, em sua "identidade de gênero nuclear", haja um apelo de retorno ao feminino. Para que o menino conquiste a masculinidade, então, se impõe uma tarefa mais árdua e ansiogênica: des-identificar-se da mãe e erigir uma identidade masculina. A menina também deve, obviamente, des-identificar-se da mãe, mas as mudanças a serem feitas no que tange à identidade de gênero não seriam tão drásticas para ela. Tal maneira diversa de enxergar a posição sexual primária nos seres humanos claramente se opõe à concepção freudiana e coloca em xeque a primazia do masculino sobre a qual muito da psicanálise clássica se funda. Em vez da importância dada ao pênis, são os atributos femininos aqueles que a criança mais deseja e, como lembra Flávio Carvalho Ferraz (2008, s.n.), uma das consequências desse modo de pensar é a ideia de que "os homens, quando em fantasia atribuem um pênis à mulher, não o fazem para negar a inferioridade dela, mas sim a superioridade". A masculinidade, assim, torna-se defensiva em relação a essa identificação precoce com a feminilidade da mãe.

A identidade de gênero nuclear a que nos referimos acima é um conceito desenvolvido por Stoller e que designa, sucintamente, a "primeira e fundamental sensação de que uma pessoa pertence a seu sexo" (Stoller, 1982, p. 31). Em diversas ocasiões (1975, 1978, 1982, 1993), Stoller enfatiza que tal núcleo identitário se forma de maneira não conflitual, através do imprinting, da influência dos pais ao designar um sexo e ao criar a criança, assim como de fatores biológicos. Com a ideia de ausência de conflito, Stoller quer denotar uma espécie de aceitação passiva da criança frente a essas forças que atuam na definição de sua identidade. A palavra aceitação, a rigor, estaria errada, pois não existe um Eu suficientemente delimitado que possa querer aceitar ou não. Enfim, Stoller vê no mecanismo de imprinting e na designação do sexo da criança pelos pais a expressão de um gênero que, ao menos inicialmente, se formaria de maneira linear, criando o núcleo da identidade de gênero sobre o qual, então, se criariam os conflitos edípicos na edificação da identidade de gênero final. No entanto, tal conceito se torna um pouco confuso quando é relacionado à identificação precoce com a mãe que, especialmente no caso dos meninos, torna a aquisição de um núcleo de masculinidade bastante conflituosa. Como dizer que o núcleo de identidade de gênero, nos meninos, é a-conflitual se, para conquistá-lo, empreende-se uma angustiante jornada de des-identificação da mãe? Mesmo de uma maneira geral, o fato de que as primeiras vivências de um bebê sejam de extrema passividade frente ao imprinting e à designação dos pais não significa que não haja conflito. Ao contrário, a principal característica do conflito psíquico na psicanálise é o fato de que ele se dá numa temporalidade completamente diferente: a temporalidade do a posteriori. O trauma psíquico, pois, se dá em dois tempos, e só pode se configurar a rigor como conflito quando, num segundo momento, alguma mudança faz com que determinadas inscrições se transformem pela aquisição de um significado que não possuíam9.

O próprio Stoller, no entanto, se encarrega de mostrar-nos tal contradição inerente ao desenvolvimento da masculinidade: "é somente se o menino () puder se separar sem problema da feminilidade de sua mãe que ele terá condições de desenvolver essa identidade de gênero mais tardia - que não é o núcleo - que nós chamamos masculinidade" (Stoller, 1978, p. 215, tradução e grifo nossos). De qualquer forma, toda pessoa terá uma espécie de núcleo de feminilidade em si, que, no entanto, é muito mais problemático para os homens por entrar em conflito com sua identidade. Stoller postula assim que, se o núcleo da identidade de gênero (ou seja, a certeza de saber-se homem ou mulher) é estável e inerradicável nas mulheres, nos homens ele é instável e edificado sobre um conflito, transportando "sempre com ele a necessidade urgente de regressar ao estado original de união com a mãe" (Stoller, 1978, p. 216). É contra tal necessidade que os homens edificam sua masculinidade, e em relação a ela haverá sempre um sentimento misto de atração e terror à perda de identidade. Stoller chega a comparar tal empuxo ao feminino com o canto das sereias, que cativa e aterroriza os homens que o ouvem.

Tal particularidade na constituição identitária masculina, enfim, tem alto poder explicativo sobre vários fenômenos, desde a maior incidência de perversão e transexualismo nos homens até o maior temor que estes têm da homossexualidade, atingindo até a concretude das manifestações alucinatórias nos casos de psicose:

Tudo isso pode talvez iluminar as diferenças entre homens e mulheres nas perversões - a ausência de fetichismo cross-dressing [vestir as roupas do sexo oposto] e exibicionismo genital como fonte de excitação genital nas mulheres; [] o modo como a sociedade teme a homossexualidade masculina e não a feminina; o medo da afeminação em tantos homens e a relativa ausência de um medo correspondente de ser masculina na maioria das mulheres; e a frequência muito menor de acusações alucinatórias de homossexualidade nas psicóticas mulheres em relação aos homens [] Mas esses resultados são por demais fortes para serem pautados com segurança no meu parco material. (Stoller, 1968, p. 264-265, tradução nossa)

É interessante notar como a teoria de Stoller tem o mérito de conseguir explicar vários fenômenos da masculinidade que até então permaneciam como uma incongruência dentro das teorias do primado do falo. Metapsicologicamente, no entanto, Stoller deixou várias lacunas abertas, que vieram a ser desenvolvidas por autores que o sucederam; questões que ainda na atualidade são alvo de divergências e debates teóricos (André, 1995; Bleichmar, 2009; Ribeiro, 2000; Lattanzio, 2011).

 

Conclusão

Após o presente percurso, esperamos ter contribuído para aqueles e aquelas que tomam o gênero como objeto de estudo. O conhecimento desta "pré-história" do conceito, acreditamos, é fundamental para compreendê-lo em seus aspectos históricos, clínicos e sociais.

A partir desta retomada, cabe "fazer trabalhar" o gênero, de modo a superar a falsa dicotomia estabelecida entre os estudos políticos e os estudos clínicos, pois é por meio da concretude das microrrelações pessoais que as normas de gênero se instauram, gerando modos de subjetivação mais ou menos estáveis ao longo de determinados períodos históricos. Ao mesmo tempo, cabe advertir que a relação entre os estudos políticos de gênero e os do campo clínico, notadamente da psicanálise, não é a-conflitual, sendo marcada por diversas tensões (de um lado, por exemplo, muitas teorias psicanalíticas ainda carregam variados pontos de normatividade e falocentrismo; de outro, muitos estudos de gênero desconsideram a necessidade de compreender a materialidade das transmissões das normas de gênero na formação das identidades de cada sujeito). Tais tensões, mais do que serem eliminadas, precisam ser explicitadas e trabalhadas em suas potências10, pois os problemas que delas se originam nos ajudam a manter a complexidade de um campo de estudo que exige tratamento transdisciplinar e não se deixa reduzir sem restos a nenhuma teoria.

 

Referências

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Recebido em 27 de novembro de 2017
Aceito para publicação em 14 de dezembro de 2017

 

 

1 Em outra publicação, Haraway (2004) apresenta certo grau de imprecisão ao sugerir os trabalhos de Robert Stoller como inauguradores do termo gênero, apesar de citar também Money, sem, contudo, referir-se a ele como criador do conceito e sem precisar a cronologia das ideias desses autores.
2 Para uma explanação dos motivos desse rechaço, cf. Dimen (2000).
3 Apesar de preferirmos a utilização do termo transexualidade, uma vez que não carrega sufixo patologizante, usamos no presente artigo a terminologia dos autores citados. Para uma discussão crítica sobre a patologização das transexualidades, remetemos ao artigo de nossa autoria "Transexualidade, psicose e feminilidade originária: entre psicanálise e teoria feminista" (Lattanzio & Ribeiro, 2017).
4 Apesar de nossa preocupação não ser estabelecer idades ou aderir a um ponto de vista desenvolvimentista, pensamos ser interessante relatar que Money considerava que a identidade de gênero (saber-se homem ou saber-se mulher) se estabelecia de maneira mais ou menos fixa aos dezoito meses e, aos dois anos e meio, já era irreversível. A maioria dos autores posteriores também concorda com a precocidade desse desenvolvimento.
5 Tal tratamento demanda uma discussão aprofundada e crítica sobre a patologização das identidades trans, que não poderá ser feita aqui. No entanto, consideramos importante nos posicionar, em especial no atual momento político brasileiro, afirmando que acreditamos serem extremamente danosas quaisquer tentativas de tratamento reversivo de uma identidade sexual, sendo antes o lugar da psicologia e da psicanálise trabalhar para que os sujeitos possam integrar tais identidades de forma mais saudável ao seu Eu, problematizando os preconceitos sociais e a normatividade excludente do sistema sexo-gênero. O caso de Lance, podemos pensar, tem alto valor histórico e embasou importantes e válidas produções teóricas por parte de Greenson, e por isso não pode ser desconsiderado. Utilizando uma metáfora cara a Silvia Bleichmar: não podemos jogar fora o bebê junto com a água do banho. Ademais, se considerarmos a identificação maciça com a mãe uma etapa do desenvolvimento humano que precisa ser em algum grau superada para a formação minimamente autônoma de uma identidade (tanto em meninos quanto em meninas), o tratamento de Lance ainda guarda certos caracteres positivos. Cabe aqui, enfim, ressaltar que também John Money foi bastante criticado por suas práticas de adequação sexual precoce com bebês hermafroditas, das quais também discordamos.
6 Tal formulação se opõe às de Freud, para quem os meninos logo ao nascer já têm a mãe como objeto de amor e o pai como objeto de identificação, mesmo que para corroborar tal teoria seja preciso recorrer à enigmática noção de identificação com o pai da pré-história pessoal (Cf. Freud, 1921/1996, p. 133 et. seq.).
7 "[A organização genital infantil] consiste no fato de, para ambos os sexos, entrar em consideração apenas um órgão genital, ou seja, o masculino. O que está presente, portanto, não é uma primazia dos órgãos genitais, mas uma primazia do falo." (Freud, 1923/1996, p. 158, grifo dele) Para uma discussão sobre o ponto de vista freudiano, remetemos a Lattanzio, 2011, p. 21-26.
8 Stoller considera que o transexualismo masculino (mulher
homem) difere completamente quanto à etiologia do transexualismo feminino. Enquanto este representa a extremidade de um processo humano universal que nos dá a chance de apreender uma fase desenvolvimental até então oculta, aquele se explicaria pelo "efeito de um traumatismo crônico e inconsciente" (Stoller, 1978, p. 207, tradução nossa), cuja especificidade não permite uma generalização.
9 Para uma discussão sobre tais pontos, remetemos o leitor ao artigo "Recalcamento originário, gênero e sofrimento psíquico" (Lattanzio & Ribeiro, 2012).
10 Um de nós buscou trabalhar tais tensões na dissertação de mestrado intitulada O lugar do gênero na psicanálise: da metapsicologia às novas formas de subjetivação, em especial no segundo capítulo, ao qual remetemos o leitor (Lattanzio, 2011).

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