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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.30 no.3 Rio de Janeiro set./dez. 2018

http://dx.doi.org/10.33208/PC1980-5438v0030n03A02 

SEÇÃO TEMÁTICA – QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS: GÊNERO, FEMINISMO, MIGRAÇÃO

 

 

Psicanálise, feminismo e os caminhos para a maternidade: diálogos possíveis?

 

Psychoanalysis, feminism and the paths towards motherhood: possible dialogues?

 

Psicoanálisis, feminismo y los caminos para la maternidad: diálogos posibles?

 

 

Marina Valentim BrasilI; Angelo Brandelli CostaII

IPsicóloga pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), Porto Alegre, Brasil. marinavbr@hotmail.com
IIProfessor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), Porto Alegre, Brasil

 

 


RESUMO

Historicamente, é presente nos estudos feministas a problematização da associação da maternidade como algo inerente à identidade feminina. Como a psicanálise historicamente se constituiu como campo de saber que promoveu diversas visões acerca do papel social da mulher, o presente estudo busca compreender se há possibilidade de uma interlocução entre as produções atuais dos estudos feministas acerca da maternidade e como esta é concebida pela psicanálise, apoiando-se principalmente na teoria winnicottiana. Em outras palavras, busca compreender se a maternidade na posição winnicottiana é possível sob a ótica feminista. Após uma breve consideração histórica da relação entre o feminismo e psicanálise, apresenta-se o conceito de feminilidade e de "mãe suficientemente boa" de Donald W. Winnicott, diferenciando sua teoria das demais no campo da psicanálise, e as possíveis flexibilizações que seus estudos propuseram. Pôde-se identificar termos como inatismo, atenção integral e "mães normais" como percalços para possíveis entrelaçamentos da teoria psicanalítica winnicottiana em geral com os estudos feministas contemporâneos.

Palavras-chave: Winnicott; feminismo; maternidade; psicanálise.


ABSTRACT

Historically, the consideration of the association of motherhood as something inherent to the feminine identity is present in feminist studies. As psychoanalysis has historically constituted a field of knowledge that promoted several views on the social role of women, the present study seeks to understand if there is a possible interlocution between the current output of feminist studies about motherhood and how it is envisioned by psychoanalysis, relying mainly on Winnicottian theory. In other words, it aims to establish whether a "Winnicott's maternity" is possible under a feminist perspective. After a brief historical review of the relation between feminism and psychoanalysis, Donald W. Winnicott's concept of femininity and "good enough mother" is presented, making a distinction between his theories and others as well as possible flexibilities which his studies proposed. It was possible to identify the terms of innatism, full attention, and "regular mother" as obstacles to a possible interweaving between Winnicott's theory and contemporary feminist studies.

Keywords: Winnicott; feminism; motherhood; psychoanalysis.


RESUMEN

Históricamente, la problemática de la asociación de la maternidad como inherente a la identidad femenina es presente en los estudios de género. Como el psicoanálisis ha constituido históricamente un campo de conocimiento que ha promovido varias visiones sobre el papel social de la mujer, el presente estudio busca entender si existe la posibilidad de una interlocución entre las producciones actuales de estudios feministas sobre la maternidad y cómo es concebida por el psicoanálisis, basándose principalmente en la teoría winnicottiana. En otras palabras, busca comprender si la maternidad en la posición winicottiana es posible bajo la óptica feminista. Después de un breve examen histórico de la relación entre el feminismo y el psicoanálisis, se presenta el concepto de la femineidad y de la "madre suficientemente buena" de Donald W. Winnicott, diferenciando su teoría de las demás, y las posibles flexibilizaciones que sus estudios propusieron. Se puede identificar en términos como innatismo, atención integral, y "madres normales" como percances para posibles entrelazamientos de la teoría psicoanalítica winnicottiana en general con los estudios feministas contemporáneos.

Palabras clave: Winnicott; feminismo; maternidad; psicoanálisis.


 

 

Introdução

Historicamente, é presente nos estudos feministas a problematização da associação da maternidade como algo inerente à identidade feminina. Dessa maneira, parte da posição feminista aponta a maternidade como sendo uma armadilha social para as mulheres, por estar permeada de processos de controle social e marcada por ideais tradicionais que a fomentam (Barcinski, 2012; Haney, 2013; Kilty & Dej, 2012). Também é postulado que o papel social da maternidade serve como fortalecimento da subjugação da mulher em relação ao homem nas sociedades patriarcais (Barcinski, Capra-Ramos, Weber & Dartora, 2013; Narvaz & Koller, 2006a). Estes estudos defendem ainda que a maternidade enclausuraria as mulheres no âmbito doméstico e no cuidado familiar, apoiados no entendimento que o oficio materno não é compartilhável com os homens, contribuindo para um maior isolamento no exercício parental por parte das mulheres. Consequentemente, a maternidade assumiria uma imagem de experiência fundamental e, quando negada, pode influenciar no próprio entendimento do ser mulher (Barcinski, 2012; Barcinski, Capra-Ramos, Weber & Dartora, 2013). Pode-se citar, como exemplo dessa perspectiva, os resultados da pesquisa de Trindade e Enumo (2002, p. 171) que evidenciaram uma concepção social da mulher que não é capaz de conceber um filho como "triste e incompleta".

Como a psicanálise historicamente se constituiu como um campo de saber que promoveu diversas visões acerca do papel social da mulher, o presente estudo busca compreender se há possibilidade de uma interlocução entre as produções atuais dos estudos feministas acerca da maternidade e como esta é concebida pela psicanálise, apoiando-se principalmente na teoria winnicottiana. Para fundamentarmos teoricamente a análise, primeiramente surge a necessidade de apresentar historicamente a articulação do movimento feminista com a maternidade. Dessa forma, discutiremos sobre a construção histórica dos estudos feministas; qual sua relação, também histórica, com a psicanálise; para, por fim, identificar a possibilidade de uma maior interlocução entre as críticas feministas e a interpretação da teoria psicanalítica, propondo uma viabilização de um diálogo entre dois campos do saber que por vezes aparentam desarmonia.

Opta-se por versar acerca da teoria winnicottiana por entendermos a grande disseminação do conceito de "mãe suficientemente boa" do autor. Winnicott apoia sua teoria num entendimento que dá relevância ao ambiente no processo de subjetivação do indivíduo, diferentemente do que fora proposto por Freud, assim como por ter sido um autor que teve, como objetivo central da teoria da maternidade, uma tentativa de defesa da "boa mãe comum", o que a priori parece compreender uma demanda inerente à condição de ser mulher.

 

O feminismo e a maternidade

O feminismo foi constituído por momentos históricos distintos: as ondas feministas, que modificaram a teoria durante a história e foram divididas em três momentos. No que diz respeito à temática abordada neste estudo, a primeira onda feminista, em meados do século XIX, tinha uma postura dita maternalista. As feministas da primeira onda reivindicavam direitos trabalhistas e a criação da licença maternidade, e também as lutas sufragistas, direito reprodutivo e familiar, como as questões do aborto e do divórcio (Costa, 2005; Vásquez, 2014). Mesmo que não tenha sido totalmente homogênea, a busca de direitos estava fortemente ligada à garantia da maternidade (Scavone, 2001; Vásquez, 2014).

Foi a partir de Simone de Beauvoir, ao publicar sua obra O Segundo Sexo (1949/1980), que se iniciou um movimento de contestação do dito inatismo, afirmando que "ser" apenas é possível por meio de um movimento de "tornar-se". Nesse momento histórico, inaugura-se a segunda onda feminista, considerada o marco do abandono de ideias igualitaristas para um feminismo centrado na mulher, iniciando o que Vásquez (2014, p. 175) denominou "politização das questões privadas". A ideia de Beauvoir estava fortemente associada à concepção de que maternidade nessa época derivava de um contexto de pós-guerra, que defendia ideais conservadores de moral e bons costumes. A autora busca tensionar, em sua obra, questões de liberdade sexual, da prática da contracepção e do aborto como direitos da mulher, reivindicando a autonomia máxima sobre o próprio corpo por parte das mulheres.

A partir desse marco, foi possível a inauguração das primeiras construções de cunho social acerca do feminismo, refutando o inatismo que designava às mulheres o destino social de mães. Foi possível, a partir de então, compreender a maternidade como uma construção social que consolidava o papel feminino na família e na sociedade, e assim a causa da dominação do masculino sobre o feminino. A consequência da constatação dessa relação hierárquica resultou em movimentos de luta política, como em 1970 na França, para obter a pílula contraceptiva e o aborto, que tinha como lema "uma criança se eu quiser, quando eu quiser", no intuito de empoderar as mulheres em relação à decisão da maternidade (Scavone, 2001). Beauvoir dá início às críticas quanto às construções científicas de sua época, tendo como um dos alvos principais a teoria psicanalítica fundada por Freud. A teoria freudiana (da qual se pode citar termos como, por exemplo, a inveja do falo, a divisão do aparelho genital feminino, o narcisismo) é tida como responsável por sintetizar a controvérsia feminista em relação à psicanálise (Lago, 2012; Mitchell, 1979).

As reivindicações feministas começaram a ganhar espaço: os próprios temas de descriminalização do aborto, em grande parte da Europa e nos Estados Unidos, além do surgimento da pílula anticoncepcional, foram incorporados às demandas das mulheres. As críticas de Beauvoir fundaram a possibilidade de ampliar a noção de feminino e identidade de mulher, descentralizando a maternidade e buscando novas possibilidades. Esse momento histórico é conhecido como o momento do feminismo radical (Vásquez, 2014).

No ano de 1963, a americana Betty Friedan publica a obra A Mística Feminina, livro que analisa as influências do pós-Segunda Guerra Mundial nas construções sociais da mulher americana, sobretudo branca (Hooks, 1982). Em um capítulo, a autora comenta sobre a influência da psicanálise freudiana para a ideia social que restringe a mulher aos cuidados domésticos. Segundo Friedan (1971, p. 91), "foi uma ideia freudiana, reforçada até adquirir a aparência de um fato, que encurralou tantas mulheres nos dias de hoje". A autora defende que o uso da teoria psicanalítica foi naturalmente infiltrado em contextos diferentes, populares, e que o conceito de "inveja do pênis" provavelmente não poderia ser explicado por aqueles que a divulgavam na década de quarenta. Friedan diz que o conceito freudiano se transformou em uma explicação literal e que, além disso, provavelmente a explicação das neuroses como derivadas da repressão sexual poderia até ter algum sentido, mas que o autor foi "prisioneiro da própria cultura" (1971, p. 93). Ela usa o termo para postular que nem mesmo Freud foi capaz de "a-temporalizar" sua teoria, sofrendo desgastes de novas influências culturais com o passar das décadas.

O desconhecimento freudiano acerca da relatividade cultural foi para Friedan determinante no fenômeno da má interpretação das neuroses sexuais por parte do psicanalista. Crenças sobre o que seria instintivo/biológico seriam refutadas anos mais tarde, mas a teoria continuou sendo lida de forma anacrônica. A autora postula a inveja do pênis, a falta do falo, como uma concretização da ideia de inferioridade feminina em relação ao homem (Friedan, 1971).

Posteriormente, estudos como o da antropóloga americana Gayle Rubin, que denominou a psicanálise como uma das "mais sofisticadas ideologias do sexismo presente" (Rubin, 1973, p. 51), ganham força. Segundo o pensamento da autora, a psicanálise era tida como provedora de percepções que refletem sobre a domesticidade feminina, sem aprofundarem o tema com intuito de questionar tal concepção. Além disso, para a autora, a psicanálise reproduzia as relações em que as mulheres são oprimidas, inaugurava a heterossexualidade como norma e biologizava a questão do gênero (Rubin, 1973). A questão que se evidencia é que os estudos feministas, historicamente, apoiaram suas críticas primordialmente sobre a psicanálise freudiana, partindo do pressuposto que ela defende o inatismo da sexualidade, como se estivesse apoiada unicamente em questões biológicas/genitais, mesmo que o próprio autor tenha contestado esse conceito em diversos de seus textos posteriores (Freud, 1924/2006).

Ao final da década de 1970, o terceiro momento do feminismo traz um questionamento: "será que as mulheres querem ser definidas sem a maternidade?" (Vásquez, 2014, p. 175). A partir desta incógnita, o feminismo retorna a propor uma relação ativa com a maternidade. A partir desse modelo, o feminismo pôde encontrar um entrelaçamento com as ciências sociais e a psicologia. O fim do século XX foi marcado por uma inquietação quanto ao assunto da maternidade por parte das feministas, mas a ideia que é instaurada é que não seria apenas uma questão inata que determinaria a maternidade, mas sim o seu significado social. Em outras palavras, a dominação do masculino sobre o feminino não seria um fato natural, mas social (Vásquez, 2014). A terceira onda feminista não é a onda da igualdade, mas sim o feminismo da diferença, da alteridade e da produção discursiva da subjetividade. Ela "desloca-se do campo do estudo sobre mulheres e sobre sexos para o estudo das relações de gênero" (Narvaz & Koller, 2006b, p. 649). A partir dessa perspectiva, a maternidade assume uma concepção pluralizada, compreendendo a questão do gênero como sempre relacional.

Assim, nesse momento histórico, o feminismo defende não uma luta contra um destino biológico da maternidade, mas o significado dos discursos sociais atribuídos a ela. O feminismo do final do século XX até os dias atuais busca discorrer sobre as divisões sociais dos papéis de gênero, visando, para além do que tange às mulheres, a libertar todas as formas de expressão sexual, bem como abandonar determinismos e discriminações que tais papéis ocasionam. Também busca uma atuação igualitária entre os papéis parentais na criação dos filhos (Vásquez, 2014).

Em contraponto às demais estudiosas feministas, pode-se citar Juliet Mitchell, autora feminista e psicanalista, que reflete sobre a psicanálise não como defensora ou promotora de um sistema patriarcal, mas sim como uma possibilidade de teorizar sobre a sociedade em que se insere. Segundo a autora, a teoria feminista se beneficiaria de forma mais satisfatória se utilizasse as contribuições da psicanálise, ao invés de desqualificá-las. Ademais, reconhece a teoria como revolucionária, por abrir mão da ideia de genital como definidor de sexualidade, transbordando esta sexualidade por um campo que permeia capacidade simbólica, psiquismo e subjetividade (Mitchell, 1979). Ela ainda completa: "se estamos interessados em compreender e recusar a opressão da mulher não podemos nos dar ao luxo de negligenciá-la" (Mitchell, 1979, p. 17). Essa autora foi responsável por resgatar a importância das teorizações psicanalíticas, e utilizá-las em prol do movimento feminista (Moraes & Coelho Junior, 2010).

 

Psicanálise, feminilidade e maternidade

Responsável pela inauguração das concepções psicanalíticas, Freud (1905/2006, 1923/2006, 1924/2006, 1931/2006) constrói a base de sua teoria a partir do desenvolvimento psicossexual de meninos e meninas. Mencionando um primeiro momento de bissexualidade infantil - caracterizado pela indiferenciação entre menina e menino - para posteriormente ocorrer a noção de diferença sexual. Após esse estágio, cronologicamente, ocorre o chamado Complexo de Édipo, a vivência da ameaça de castração em relação ao amor da criança pelo objeto de amor (pai ou mãe) e a instituição do falo como o significante para a ocorrência desse processo.

Para o autor, o Complexo de Édipo corresponderia à percepção da mãe como o primeiro objeto de amor e desejo, e a competição com o pai como limitador da relação objetal. Na teoria freudiana, a inauguração da feminilidade ou da masculinidade ocorre nesse momento do desenvolvimento. Às meninas cabe a decepção com a falta do falo, ver-se próxima à mãe anatomicamente, e a busca - para o resto da vida - do falo perdido, na relação heterossexual. No pensamento de Freud, o processo feminino de obtenção da própria feminilidade, maturação sexual e a própria identidade de mulher é marcado pela falta. A maternidade, para a psicanálise freudiana e de seus seguidores, é vista como o desejo do pênis ressignificado pelo desejo do bebê. A maternidade seria um momento de completude da mulher, marcada por um sentimento que pode ser comparado ao sentido de "fálico": total, completo, onipotente (Freud, 1905/2006). Nesse sentido, a mulher que não se torna mãe seria sempre tida como incompleta.

A produção freudiana acerca do psiquismo feminino foi controversa desde as primeiras publicações. No artigo A Dissolução do Complexo de Édipo, de 1924, o psicanalista discorre sobre a importância da ameaça de castração no menino, para que internalize os valores sociais e se identifique com a figura paterna. Em relação à menina, ela já estaria castrada no período do Édipo, o que instauraria a angústia da perda parental mas, principalmente, a perda de um pênis que possuiu em fantasia. Freud versa sobre a função do clitóris como um órgão masculino, por ser um órgão de obtenção de prazer ativo, diferente da vagina, que seria uma zona erógena passiva. Em outra publicação, Novas Conferências sobre psicanálise: feminilidade, em 1933, Freud também discute o abandono do clitóris para a transição do prazer à vagina, como movimento necessário para a maturação sexual feminina. Adicionam-se nesses textos atributos da feminilidade adulta: inferioridade, necessidade maior de ser amada do que amar, e vaidade (Freud, 1933/2006).

Contemporânea de Freud, Karen Horney, psicanalista alemã, foi responsável por contrapor e fomentar o debate acerca da psicologia feminina dentro da academia psicanalítica na época de sua expansão teórica. Entre as décadas de 1920 e 1930, Horney foi responsável por problematizar diversos aspectos postulados pelos psicanalistas homens de sua geração, como por exemplo, a noção de inferioridade do corpo feminino defendida por Freud e seus discípulos. Além desta, Horney diferenciava a inveja do pênis entre normal (primária) - comparando-a com a mesma inveja do menino sobre gerar bebês - e patológica (secundária), que ocorreria em casos específicos e mais raros. Ela defendeu também que um grande impasse para o maior entendimento da dinâmica feminina viria do fato que os psicanalistas homens não compreendiam a diferença entre a inveja primária e secundária, transformando esta em um fato incontestável e presente em todas as mulheres (Garrison, 1981).

Garrison (1981) realizou um apanhado histórico da trajetória da psicologia feminina de Horney, chamando atenção para a personalidade da psicanalista, conhecida por evitar confrontos, mas que mesmo assim voltou sua prática para a ressignificação do universo feminino na psicanálise, questão que ocasionou rompimentos com outros profissionais da área. A autora também salienta a importância que os conceitos de Horney tiveram para os movimentos feministas, mesmo como psicanalista. Karen Horney obteve reconhecimento, e mesmo que não pensasse para além do inatismo biológico da psicanálise de sua época, refutou as rígidas concepções freudianas. Segundo Garrison, Horney foi a primeira a defender que a visão do feminino na teoria de Freud não passava de uma fantasia masculina, que "não diferem em nada das típicas ideias que um menino pequeno tem de uma menina" (1981, p. 679, tradução própria). Karen Horney também versou, durante sua carreira, sobre o medo inconsciente dos homens de serem reabsorvidos pela vagina, a obtenção de prazer pela estimulação clitoriana na mulher, a descoberta prematura da vagina por parte da menina, e a inveja da maternidade vivenciada pelos homens (Garrison, 1981; Horney, 1967).

Segundo o mesmo estudo, Garrison (1981) aponta que Karen Horney foi responsável por evidenciar o peso social carregado pela identidade feminina, motivo de frequentes desentendimentos dentro dos círculos psicanalíticos. No ano de 1931, Horney ganha alguns aliados psicanalistas, como Melanie Klein, Ernest Jones e Joan Riviere. Posteriormente no mesmo ano, Freud faz declaração sobre a feminilidade, retomando a importância da transição do clitóris para a vagina, não parecendo, segundo Garrison, dar espaço para a oposição. Após anos de debates sobre inveja do pênis versus desigualdade social, Karen Horney perdeu o posto de analista didata em abril de 1941.

Uma reação ao conceito do Édipo feminino, proposto por Freud, foi o complexo de Electra, proposto por Jung, e retomado pela psicanalista holandesa Hendrika Halberstadt-Freud em 1997. Na mitologia grega, Electra planeja a morte da própria mãe, Clitemnestra, para vingar o assassinato de seu pai. Na história, Electra expressa o amor pelo pai de forma ambivalente, uma vez que ele matou o primeiro marido de Clitemnestra e seus filhos, como também a filha que teve com a rainha (irmã de Electra), tudo isso na infância da personagem Electra. Segundo Halberstadt-Freud, boa parte da literatura grega postula que o ódio de Electra por sua mãe seria derivado do sentimento de negligência de Clitemnestra para com Electra, em contraponto a uma idealização de um pai ausente. Halberstadt-Freud (1997/2006) expõe o mito de Electra para evidenciar uma questão contrária à ideia do abandono do objeto de amor primário freudiano, e põe em questão se em algum momento a menina abriria mão da mãe como esse objeto. Para a psicanalista, em vez do abandono e da aceitação da castração, a menina acrescentaria à relação homossexual com a mãe uma outra, a heterossexual. Isso implicaria que o destino feminino seria determinado por diferentes aspectos ambivalentes da menina em relação a sua mãe. A raiva direcionada à mãe não mais teria um teor de decepção pela falta do falo, mas sim por não ter sido amada suficientemente. Tal acusação seria a evidência de um desejo intenso de amor materno igual ao vivenciado no início da vida. Aqui pode-se fazer ligação com a ideia de algo perdido, que o conceito de castração também postula, mas de forma ressignificada para um sentido ativo do feminino, e não do feminino como negativo ao masculino.

A relevância do mito de Electra para a feminilidade é atribuída ao detalhe do movimento objetal. A menina não precisa abrir mão do que já tem e teria a opção de adicionar algo à sua sexualidade, diferentemente do menino, que necessitaria diferenciar-se da mãe e buscar a própria identidade sexual para além da relação com ela. A separação da menina ocorreria parcialmente, e segundo Halberstadt-Freud, a mulher temeria frequentemente a vingança da mãe internalizada, caso a abandonasse. Outro aspecto considerável é que a teoria freudiana analisaria a menina como um pequeno homem, uma vez que a libido só seria concebida como algo do masculino. Tal compreensão carrega a ideia do clitóris como masculino e, por isso, o entendimento de que deve ser abandonado como zona erógena. A exigência da metamorfose por parte da menina seria restrita a ela, e seria culturalmente determinada pela concepção vitoriana da genitália feminina "derivada" da masculina, que não enfatizava a possibilidade de estimulação do clitóris, por exemplo (Halberstadt-Freud, 1997/2006).

A ideia do complexo de Electra afasta-se ainda mais da proposta falocêntrica defendida por Freud. Halberstadt-Freud defende que a ideia de psicologia feminina que Freud propõe tem um caráter pouco evidenciado empiricamente, uma vez que baseou-se em poucas pacientes para formulá-la. A paciente de maior influência na teoria feminina de Freud foi Anna, sua filha, com quem tinha uma relação controversa (Halberstadt-Freud, 1997/2006, p. 41). Foi a análise da própria filha que fez com que Freud defendesse a ideia de abandono do objeto-mãe para o objeto-pai, e a transição da zona erógena principal do clitóris para a vagina. Freud acreditava não ser possível a combinação de amor por um dos pais e ódio pelo outro, no caso da menina. É importante ressaltar que, na ideia de complexo de Electra, descreve-se exatamente essa questão: a ambivalência intensa, prioritariamente dirigida ao mesmo genitor, no caso, a mãe (Halberstadt-Freud, 1997/2006), compatibilizando, de certa forma, preceitos feministas relacionados ao empoderamento da mulher através da desconstrução do seu papel intrinsicamente passivo, com postulados psicanalíticos em voga na época.

 

Winnicott e a maternidade

Outro autor que propôs uma ressignificação radical dos preceitos freudianos foi Donald W. Winnicott, psicanalista inglês, que refutou a relevância do complexo de Édipo na constituição subjetiva, defendendo, como processo primordial no desenvolvimento psíquico, o amadurecimento. Dentro dessa postulação, durante a década de 1930, Winnicott afirmou a existência de angústias que não eram derivadas de fixações sexuais, mas sim originadas de um momento de maior regressão, sem ligação com um conflito gerado pela situação edípica: "a condição inicial do homem não é a de ser um Édipo em potencial, mas a de um ser humano frágil, insuperavelmente finito, que precisa de um outro ser para continuar existindo" (Loparic, 1996, p. 46). Assim, Winnicott começa a desenvolver sua teoria voltada ao amadurecimento humano, e às condições necessárias para que o indivíduo passe por esse processo. O psicanalista também define que a relação de dependência não seria uma relação objetal, muito menos a três (como na conflitiva edípica). Afirma que a relação relevante que o bebê estabeleceria com a mãe ("mãe-ambiente") seria anterior à possibilidade mesma de o bebê dar-se conta da existência da mãe e de si; do exterior e do interior (Loparic, 1996).

Winnicott (1960/1983) postula que a maternidade teria um papel ativo no desenvolvimento da criança, não mais cumprindo o papel freudiano de objeto sobre o qual pai e filho competem no complexo Edípico. Influenciado por Melanie Klein, o autor substituiu o falo pelas noções de carinho e continência (Esteca, 2012; Gerson, 2004). A relação com as mães já estaria introjetada no infante antes da suposta introjeção da castração. Em função disso, a ideia winnicottiana da importância da continência emocional e de um ambiente favorável ganham reconhecimento no universo psicanalítico. Winnicott introduziu e enfatizou o papel ativo das mães na sociedade, e frisou a importância da interação do mundo interno da criança com o ambiente na qual ela está inserida (Gerson, 2004; Winnicott, 1957/1989). Na teoria winnicottiana, alteram-se todos os elementos da descrição do complexo edípico:

no lugar do sujeito com a constituição biológico-dinâmico-mental, o bebê que tem como única herança o processo de amadurecimento; no lugar da mãe objeto-pulsional, a mãe ambiente; no lugar da experiência de satisfação instintual, as necessidades oriundas do próprio existir; no lugar de sexualidade infantil, a dependência; no lugar da mãe libidinal, a mãe da preocupação primária; no lugar da situação intramundana determinante a três, o bebê num modo subjetivo de dois-em-um, próximo ao estado de não ser. (Loparic, 1996, p. 46)

Sobre o ser-mãe segundo a concepção winnicottiana, a maternidade se manifestaria em todos os estágios do amadurecimento humano (Gomes, 2010). Para Winnicott, haveria uma tríade constituinte do ser-mulher. A bebê, a mãe, e a mãe da mãe (Winnicott, 1964/1989). O autor defende que a feminilidade seria constituída por experiências e aquisições feitas pela mulher em diferentes estágios de seu amadurecimento. Esse processo seria dividido em duas aquisições importantes: a primeira, condizente com uma noção dos próprios instintos, daquilo que seria puramente corporal, e uma elaboração imaginativa deles. A primeira aquisição terminaria estabelecendo a sexualidade como tipo de instinto dominante na vida adulta. A segunda aquisição seria o desenvolvimento das características sexuais que não derivariam dos instintos, ou seja, que não dependeriam da fisiologia, e sim de inter-relações diversas. A partir do surgimento das inter-relações, o autor argumenta sobre a existência de um processo de integração do ego do bebê, que seria oriundo de um cuidado ambiental suficientemente bom (Winnicott, 1960/1983).

Nas primeiras aquisições, a bebê experienciaria seus instintos, de forma indiferente de como seriam experienciados por qualquer outro animal. Nas aquisições do segundo tipo, a bebê poderia reconhecer-se apenas pelos cuidados de algo externo, como a mãe. O cuidado materno permitiria a instauração da subjetividade de seu bebê - do self - que posteriormente levará à própria noção de "Eu sou"; em outras palavras, a diferenciação do ego do bebê de um ego externo, do outro, do cuidador. Winnicott diz que só a partir dessa inauguração do self a bebê se relacionará e identificará com sua mãe. Esta mãe será identificada primeiramente como parte do ambiente externo e também chegaria a fazer parte da própria noção de eu do bebê; e, posteriormente (no amadurecimento da criança), como mãe objeto, passaria a ser diferenciada do self do bebê. A partir dessa mudança, a criança entender-se-ia dependente desse objeto externo-mãe. A partir de tal noção, os cuidados maternos permitiriam que a criança inicie um processo de diferenciação das suas vontades e das vontades da mãe. A mãe que cumpriu um papel suficientemente bom supriu as necessidades fisiológicas e afetivas de sua filha, se identificou com ela, e assim permitiu que a menina começasse a "ser". O processo de diferenciar-se da mãe permitirá que mais tarde a menina possa olhar para a mesma, e ver-se semelhante. Segundo Winnicott, além de cuidadora, a mãe é aquela que tem o mesmo órgão genital da menina e assim servirá para esta espelhar-se (Winnicott, 1960/1983).

Para Gomes (2010), a teoria winnicottiana cumpriria um papel esclarecedor, defendendo que o desenvolvimento da mulher ocorreria apenas por meio de um processo de amadurecimento. Em suas palavras: "ter um corpo de mulher não é suficiente para ser mulher, tal corpo precisa ser experienciado, vivido de maneira que ser mulher implica em elaborar imaginativamente os sentimentos e as funções corpóreas durante toda a vida" (p. 196). A conflitiva edípica seria apenas mais um estágio no processo de amadurecimento, e não o momento crucial para a consolidação da feminilidade. A menina começa a ser menina desde seu nascimento, e o desenvolvimento de sua feminilidade será presente até o momento de sua morte.

No ano de 1964, Winnicott escreveu o rascunho de uma palestra, que posteriormente seria publicada em seu livro Tudo Começa em Casa (1964/1989), denominada Este Feminismo. Nessa obra, o autor inicia defendendo que "a maioria dos machos se tornam homens, e a maioria das fêmeas tornam-se mulheres" (Winnicott, 1964/1989, p. 184). Entretanto, não toma as questões como regra. Ele se propõe desmistificar a própria teoria e fundamenta que, por mais que para as mulheres o fato seja irritante, existe sim em um momento de suas vidas a inveja de um falo. Por questões de percepção concreta das crianças, a fase em que isso ocorre - a fase fálica - é chamada por ele de uma fase de ostentação masculina, onde fantasias quanto à diferenciação anatômica seriam sintetizadas; os meninos possuiriam "algo a mais" do que as meninas. Da mesma forma que as meninas, que notam a existência peniana de forma concreta, e não poderiam compreender qual a razão para os meninos terem esse órgão imponente, enquanto o seu havia ficado "para dentro" (Winnicott, 1957/1989).

A questão que o autor levanta é que uma inveja do falo não necessariamente deva repercutir de forma hierárquica ou que necessite ser atacada de forma agressiva. Ele comenta que o fenômeno em questão seria inclusive a "enfatização" masculina desse aspecto "castrado" da personalidade das mulheres, ocasionando uma crença de inferioridade em relação ao masculino. Entretanto, ele mesmo descreve este fenômeno como "delírio em massa" (Winnicott, 1960/1983, p. 187). Em seguida, comenta que há também a inveja masculina em relação às mulheres, e que talvez esta seja muito maior, falando da inveja masculina em relação a uma capacidade feminina plena. Em outras palavras, uma ideia de completude alcançada no momento da maternidade, da qual não poderá ser compartilhada de forma igual por pai e mãe. É relevante demarcar que a ideia psicanalítica de completude da mulher em relação à maternidade não está vinculada apenas à incompletude da mulher. A ideia de incompletude em psicanálise diz respeito ao fenômeno humano, de notar-se desejante do outro, ou o que na teoria chama-se Ideal do Eu (Freud, 1905/2006). Portanto, em psicanálise, todo indivíduo se veria faltante e buscando em seus objetos uma completude idealizada. E tal sentimento de completude, segundo Winnicott, seria experienciado durante o período da gravidez.

Se haveria uma inveja masculina em relação à mulher é porque, segundo o autor "todo homem e toda mulher vieram de uma mulher" (Winnicott, 1964/1989, p. 192). Ou seja, em algum momento da vida de qualquer indivíduo, ele foi inteiramente dependente de uma mulher num momento primário, para no próximo estágio poder ser relativamente dependente. Em outras palavras, necessita-se de um útero para poder existir. É dessa maneira que o autor explica, como anteriormente mencionado, que em cada mulher há três mulheres: a bebê menina, a mãe, e a mãe da mãe. A mulher já começa sendo três, enquanto o homem é um só. O homem não poderia compartilhar a maternidade com a mulher, e "fundir-se com sua própria linhagem" da mesma forma que a feminina. Mesmo que seja impossível, o desejo inconsciente dos homens seria compartilhado com as mulheres (Winnicott, 1964/1989, p. 193).

Na conclusão de Este Feminismo, o autor defende:

[] as mulheres - em virtude de sua identificação com as mulheres do passado, do presente e do futuro - enfrentam o risco do parto. Não é aconselhável fingir que o parto não acarreta nenhum risco, ou seja, existe um perigo inerente à função natural da mulher. Os homens invejam esse perigo da mulher; além disso, sentem-se culpados por causar a gravidez e então ficam lá sentados, bonitinhos, olhando a mulher passar por aquilo tudo, não somente o parto, mas todo o confinamento e as responsabilidades terrivelmente restritivas dos cuidados para com a criança. [] Mas, quando um homem morre, ele está morto, enquanto que as mulheres sempre foram e sempre serão. (Winnicott, 1964/1989, p. 194)

Mesmo que o autor se posicione firmemente quanto à importância de uma maternidade "suficientemente boa" ele chama atenção para a maternagem como um trabalho coletivo, que não será o mesmo sem a presença do pai. Ele defende que a maternagem é presente no homem, mesmo que ele não possa participar de algumas experiências reservadas à díade mãe-bebê. Entretanto, o autor argumenta que a maternagem existe, sim, no masculino, mesmo que com características distintas (Winnicott, 1964/1989).

Winnicott (1964/1989) defende uma posição natural na mulher no que diz respeito à maternidade, a partir de um "ato de ser mãe" que a maternagem inaugura. E que, assim, naturalmente mãe a mulher seria. Em outras palavras, o ato de ser mãe seria o compromisso, a aceitação desse lugar que, se realizado, influenciaria na construção de "Eu" do bebê. Tal contrato reconheceria uma relação de dependência total do bebê em relação a esta mãe. Quanto ao aporte teórico, inaugura-se o célebre conceito winnicottiano de "mãe suficientemente boa" (Winnicott, 1960/1983, p. 133). Antes de caracterizá-lo, torna-se necessário completar que, quando fala de mãe suficientemente boa, o autor buscou se referir às chamadas "boas mães comuns" (Winnicott, 1957/1989). Em outras palavras, Winnicott defendia as mães suficientemente boas não como pessoas cientificamente apoiadas para o manejo para com seus filhos, mas sim como mães que se permitissem, por algum período, depositar sua atenção total no bebê. Quando se fala da necessidade que uma mãe seja suficientemente boa, fala-se da possibilidade que alguém cuide, para além das necessidades primitivas e de sobrevivência de um bebê. A partir da teoria winnicottiana, seria nos primeiros meses de vida de um indivíduo que ele necessitaria iniciar um processo de integração do que é um Eu. A noção de estar existindo precisa ser inaugurada (Winnicott, 1960/1983). Para que isso ocorra, o autor defende que seria necessário que a criança seja emocionalmente investida, e que seja compreendida suficientemente, para se sentir num primeiro momento amparada e completa (Winnicott, 1960/1983).

A partir do que foi exposto, objetiva-se compreender se essa maternidade defendida por Winnicott é possível sob a ótica dos estudos feministas. Ou seja, se a proposta de um diálogo de duas vertentes teóricas, a princípio aparentemente tão diferentes, torna-se viável. Este estudo não tem como pretensão hierarquizar uma ou outra linha, mas sim compreender quais as contribuições de cada uma delas, tanto no que tange ao entendimento de maternidade e feminilidade, quanto às consequências da maternagem para mulheres e filhas(os).

Winnicott foi reconhecidamente revolucionário quanto às concepções de maturação sexual (Benjamin, citado por Gerson, 2004). Primeiro, por abandonar o inatismo determinado por Freud quanto à sexualidade vinculada às diferenças anatômicas. Ao defender o bom ambiente para um adequado processo de maturação, o autor esclarece ser a maternagem algo ativo, e que pode ser exercida por diferentes personagens. Além disso, ao enfatizar a relevância dos estágios mais iniciais do desenvolvimento infantil, permitiu um maior distanciamento do conceito de competição e castração freudianos. Entretanto, mesmo ao valorizar o papel social da mãe, também defende a inveja do pênis como fortalecedora da feminilidade (Winnicott, 1957/1989). Assim, o autor parece endossar a perpetuação de uma ideia que fortalece a subjugação do gênero feminino ao masculino.

Retomando a questão do ambiente suficientemente bom, Gerson (2004) argumenta que haveria uma distorção entre a diferenciação benevolente - correspondente à postura empática do cuidador com seu bebê, permitindo que este reconheça o outro similar, mesmo que fora de seu controle - de uma imposição de desejos, submetendo-o a eles. A autora defende que tamanha distorção ocorreria justamente em função de se dividir socialmente os papéis parentais. Herança das concepções freudianas de inatismo, as mulheres seriam submetidas a se adequarem à concepção de cuidadoras primárias, deixando a diferenciação, a lei e o provimento aos pais, concepções essas verificadas como ainda atuais no imaginário social (Narvaz & Koller, 2006a; Trindade & Enumo, 2002). Em outras palavras, é em função da existência da representação social da mulher enquanto mãe especialista nas necessidades do infante que há uma espécie de imposição desse papel, o que poderia gerar em algumas mulheres o fenômeno psicanalítico da "maternidade que não é suficientemente boa" (Gerson, 2004). Ao libertarmos as mulheres do papel de agentes indispensáveis no cuidado, permitiríamos que outros cuidadores pudessem exercê-lo.

Além disso, as publicações winnicottianas foram contemporâneas à expansão dos manuais de maternidade, e pode-se verificar que elas foram influentes nesses guias de comportamento (Gerson, 2004; Martins, 2008). Escritos por especialistas, citavam os riscos das "mães ausentes", ou das "mães superprotetoras", gerando ansiedade e culpa em mulheres que desejassem ter uma vida profissional, por exemplo (Martins, 2008). A ênfase na criança chega a seu apogeu na década de 1960, com apoio das teorias da medicina e psicologia. O fenômeno da pedagogia materna foi responsável por normatizar a experiência de maternidade, além de introduzir o mito da mãe ideal, perfeita (Costa et al., 2006; Martins, 2008). Pode-se entender que o processo da criação do imaginário da "mãe perfeita" (mesmo na versão winnicottiana) é também uma forma de controle dos padrões de comportamento feminino, naturalizando a maternidade como constituinte da identidade feminina e, sobretudo, perpetuando a desigualdade de gênero (Costa et al., 2006).

Embora Winnicott tenha tido maior preocupação em desvincular-se da ideia do inatismo, ele assume uma postura que hoje pode ser tida como retrógrada ao defender o desejo de ser mãe como inato para a atuação exemplar da maternidade. Em outras palavras, por mais que defenda a complexidade da interação do bebê com o mundo externo e a participação do pai diante da necessidade de continência e defesa do infante contra ataques do ambiente, ele adota um ponto de vista que exige uma dedicação total da mãe para seu sucesso na maternidade. Apenas se a mãe dedicar toda a sua atenção - e também falhar apenas minimamente - para os sinais e demandas de seu filho ele será suprido de forma suficientemente boa. Tal constatação é defendida por Gerson (2004) como problemática. A autora ressalta ainda a omissão de Winnicott no que diz respeito a uma ideia de saúde vinculada prioritariamente ao lar de pai-mãe; a necessidade de dois gêneros que são desiguais mas interdependentes, dividindo suas tarefas, para que assim um ambiente seja chamado de saudável. A maternidade especializada assume um caráter solitário, aprisionador, uma vez que, por mais que as normas de conduta da maternagem tenham sido estabelecidas nos manuais de pedagogia materna, paradoxalmente contam com a maternagem intuitiva.

É frequente na literatura psicanalítica contemporânea a opinião de que as postulações freudianas acerca da sexualidade feminina já caíram em desuso, ou que passaram por um longo processo de amadurecimento teórico (Arán, 2009; Lobo, 2008; Moraes & Coelho Junior, 2010). Entretanto, as publicações acadêmicas sobre sexualidade feminina em psicanálise tendem a voltar-se para os preceitos da época vitoriana. Os autores Moraes e Coelho Junior (2010, p. 792) defendem que as publicações psicanalíticas na época do "auge do feminismo" versavam prioritariamente a partir de um pensamento "falocêntrico". Os autores defendem que tal falocentrismo não parece ser "apenas resultado da cultura preponderante na sociedade europeia que Freud conheceu. É a própria relevância do complexo de castração que o sustenta" (Moraes & Coelho Junior, 2010, p. 795).

A teoria winnicottiana não foge à regra. Segundo Lago (2010), Winnicott desenvolveu algo mais próximo a uma psicologia do ego, que colocaria sua teoria fora do campo psicanalítico em certos momentos. Entretanto, ao encontrarmos em suas publicações os preceitos de inveja, o reconhecimento da castração, o inatismo da maternidade, pode-se facilmente enquadrá-lo na crítica feminista à psicanálise de forma quase generalista. Quanto aos textos winnicottianos, mesmo ao versar sobre o próprio feminismo, o autor transmite a ideia de insuficiência de posicionamento, como se não houvesse a intenção de cotejar suas concepções em prol das reivindicações feministas; como exemplo, a noção da castração, entendida na literatura psicanalítica como um símbolo da falta, o dar-se conta de que não se poderia ter nem ser tudo, e que a vida em sociedade nos exigiria certas limitações. No entanto, em nenhum momento Winnicott parece fazer questão de explanar esse conceito, o que acarretaria um novo entendimento da inveja na menina como algo também vivenciado pelo menino, como perdas e separações que toda criança enfrentaria no seu desenvolvimento.

 

Considerações finais

Talvez, da mesma forma apontada anteriormente, Winnicott também tenha sido refém de um contexto específico durante a formulação de sua teoria. Mesmo que de forma mais flexível, ainda é um psicanalista "alfabetizado" durante as produções das escolas iniciais em psicanálise. Assim como Halberstadt-Freud, Winnicott permitiu maior flexibilização da teoria psicanalítica, não mais estritamente dependente dos preceitos falocêntricos. Como um psicanalista da chamada escola do ego, ele transferiu a relevância da castração para uma boa capacidade de interação com o meio, herdada de um período inicial de dependência e continência ambiental (materna). Entretanto, a mãe "normal", segundo o autor, seria a mulher que se dispusesse a despir de todas as demais identificações para vivenciar uma atenção integral ao seu bebê. Essa mãe normal é, na leitura winnicottiana, a mãe sacrificada; a mãe que reconhece sua missão materna como a mais importante de sua vida, e que conta com o apoio de um marido homem que possa supri-la de todas as maneiras que necessite, para assim não se ocupar de mais nada. A questão a ser levantada não é em relação a essa ideia representar pequena ou grande parcela da população feminina que deseja a maternidade, mas sim o que restaria àquelas mães que não se enquadrassem dentro de tal papel. Seriam as mães winnicotianas as únicas capazes de suprir as necessidades infantis dos filhos? Ou ainda, seriam elas as únicas aptas naturalmente a oferecer um ambiente que contenha a criança de forma satisfatória?

Em relação a essa questão, Elisabeth Badinter (1985) enfatiza o papel das primeiras elaborações da psicanálise para o fortalecimento da representação social que o sofrimento, a angústia (da castração ou do abandono da simbiose), a passividade e o masoquismo seriam inerentes à natureza feminina. Esse masoquismo seria derivado do entendimento de que apenas o homem poderia dirigir sua agressividade para o exterior, e restaria à mulher transformar essa agressão autoinfligida em um desejo de ser amada. Ainda sobre essa questão, a autora defende que Freud e, posteriormente, Winnicott possibilitaram o uso de uma ferramenta potente para a argumentação de que o sacrifício para a maternidade seria fruto de prazer para as mulheres: "se a mulher é naturalmente feita para sofrer e, ademais, gosta desse sofrimento, não há mais razão para constrangimento a esse respeito" (Badinter, 1985, p. 306). A única saída das tendências masoquistas femininas seriam as "alegrias da maternidade" (Badinter, 1985, p. 307).

Mesmo que Winnicott valorize o papel social da mulher e da mãe, ele não foi além de perpetuar os ditames tradicionais associados à escola freudiana. Mesmo quando defende que "as mulheres sempre foram e sempre serão", dizendo assim que o ser mulher seria uma identificação entre diferentes gerações - bebê, mãe, avó - ele reafirma a inerência da maternidade para o sentido de feminilidade. Vale retomar as ideias de Betty Friedan, que historicamente surgiram de um período em que as mulheres burguesas não podiam exercer a maternidade de forma integral, em função do afastamento dos maridos durante a Segunda Guerra Mundial. Como poderia a mulher a quem Winnicott se dirigia contemplar suas instruções?

Além disso, por mais que o psicanalista tenha desvencilhado sua teoria do foco da castração, definir a maternidade atrelada ao adjetivo "normal" e "suficientemente boa" não só limitou as possibilidades que o próprio autor pareceu desejar que fossem exploradas, mas confundiu - e aqui não podemos culpar apenas os psicanalistas, mas também as demais instituições produtoras de saberes patriarcais - mulheres que, embora desviantes das regras impostas, poderiam ser mães ou, ainda, cumprir infindáveis outros papéis continuando a ser, de diversas formas, mulheres.

 

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Recebido em 12 de setembro de 2017
Aceito para publicação em 22 de janeiro de 2018

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