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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.31 no.1 Rio de Janeiro jan./abr. 2019

http://dx.doi.org/10.33208/PC1980-5438v0031n01A09 

SEÇÃO LIVRE

 

Repetição e contingência na clínica da psicanálise e na arte da performance*

 

Repetition and contingency in the psychoanalytical clinic and in the art of performance

 

La repetición y la contingencia en el psicoanálisis clínico y en el arte de la performance

 

 

Camila Ferreira SalesI; Guilherme Massara RochaII

IMestre em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, Brasil. camilaferreirasales@gmail.com
IIProfessor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, Brasil. massaragr@gmail.com

 

 


RESUMO

Tanto Freud quanto Lacan deixaram um legado peculiar no que diz respeito à interface entre psicanálise e arte: utilizar o material estético como recurso para pensar a clínica psicanalítica. Nesta, os processos de subjetivação implicam o atravessamento da repetição significante pela pulsão. Lacan nomeia tiquê (τύχη) o retorno do real que incide sobre a repetição de signos (autômaton). De maneira análoga, há na arte - especialmente a contemporânea - um modo de apresentação de temas que não se atêm à categoria do sentido, mas que se abrem para o universo dos afetos e pulsões. O objeto estético, nesse sentido, pode ser pensado como objeto pulsional. A partir de alguns exemplos da obra de Marina Abramovic, artista sérvia que vem sendo descrita como a avó da arte da performance, veremos como isso se articula.

Palavras-chave: psicanálise; repetição; arte da performance; contingência.


ABSTRACT

Both Freud and Lacan have left a peculiar legacy concerning the interface between psychoanalysis and art: the use of aesthetic material as a resource for thinking the clinic. Subjectivation processes in the psychoanalytical clinic imply the pulsion to traverse the repetition as a significant. Lacan names Tyche (τύχη) the return of the real that bears on the repetition of signs (automaton). In an analogous way, in art - especially contemporary art - there is a way of presenting themes not bound by the category of meaning, but open to the universe of affections and pulsions. One can think the aesthetic object, in this sense, as a pulsional one. By taking some examples from the work of Marina Abramovic, a Serbian artist who has been described as the grandmother of performance art, we will see how these processes connect.

Keywords: psychoanalysis; repetition; performance art; contingency.


RESUMEN

Tanto Freud como Lacan han dejado un legado único en relación con la interfaz entre el psicoanálisis y el arte: el material estético empleado como recurso para pensar la clínica. En esta clínica, los procesos de subjetivación implican que la pulsión atraviese la repetición, en su papel de significante. Lacan nombra tyche (τύχη) el regreso de lo real que incide sobre la repetición de signos (autómata). De modo semejante, existe en el arte - sobre todo en el arte contemporáneo - una manera de presentar los temas que no se atienen a la categoría de sentido, sino que se abren al mundo de las emociones y de las pulsiones. El objeto estético, en este sentido, se puede considerar como un objeto pulsional. A partir de algunos ejemplos de la obra de Marina Abramovic, artista serbia que viene siendo descrita como la abuela del arte de la performance, vamos a ver cómo esto se articula.

Palabras clave: psicoanálisis; la repetición; el performance; la contingencia.


 

 

A performance como tiquê

No Seminário, Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Lacan trata das repetições em análise a partir de dois termos aristotélicos: autômaton e tiquê. Tiquê significa o "encontro do real" (Lacan, 1964/2008, p. 57). É algo que está para além do autômaton, que designa, por sua vez, o retorno dos signos comandado pelo princípio do prazer. A repetição em autômaton responde à necessidade de articulação da cadeia significante em torno daquilo que Freud já apontava como sendo a primeira experiência de prazer. Já tiquê está em relação com o real, com o que se produz por acaso. Por isso, sua ocorrência na análise é da ordem da contingência.

É nessa mesma ordem que, conforme veremos neste artigo, inscreve-se a obra de arte. Como propõe Guilherme Rocha (2008), as diversas obras e procedimentos próprios da arte contemporânea são contemplados no programa de um "tratamento do simbólico pelo real" (p. 223). Isso significa que, no lugar de uma proposta figurativa e predicável da arte, aparecem os objetos-questão que interrogam o espectador e se produzem junto ao sujeito. Conforme o autor:

Onde triunfavam as formas estabelecidas, os estilos de época e as mídias consagradas advêm o informe, a subjetivação do estilo, a dissolução da fronteira entre a obra e o suporte de sua criação. A ação da contingência é decisiva na confrontação das obras aqui consideradas. (p. 223)

Tanto Freud quanto Lacan deixaram uma herança peculiar no que diz respeito à interface entre psicanálise e arte: utilizar o material estético como recurso para pensar a clínica. Esse artigo se propõe tratar de conceitos que atravessam a clínica psicanalítica e a experiência subjetiva da arte contemporânea - tanto a experiência do público quanto a do próprio artista. Para tal, nos servimos da performance de Marina Abramovic, artista sérvia que atualmente vive e desenvolve seu trabalho em Nova Iorque. Não se trata de interpretar a artista, tampouco reduzir sua obra a estruturas formais da psicanálise. Nosso objetivo é mostrar que a performance, por ser um tipo de arte contemporânea, apresenta uma opacidade de sentido que vem esvaziar a repetição das imagens e fazer aparecer algo do real por trás da dimensão da fantasia.

Tomemos como exemplo alguns trechos da obra de Marina Abramovic. Em 1977, numa performance denominada Expanding in space (Expansão no espaço), a artista e seu parceiro, Ulay, se colocavam de costas um para o outro, nus, no centro de um estacionamento fechado. À frente de cada um, a uma distância de mais ou menos 5 metros, havia uma espécie de pilastra móvel de 15kg cada. Os artistas então andavam em direção às estruturas até se chocarem fortemente contra elas, com todo o corpo, e depois voltavam a se colocar um de costas para o outro no centro do espaço. Esse movimento se repetia durante 46 minutos, enquanto eles caminhavam numa velocidade cada vez maior, passando enfim a correr e se chocar contra as pilastras, arrastando-as até as extremidades opostas do galpão. O resultado disso era a expansão do espaço entre as estruturas, o que justifica o nome da performance. Em entrevista recente1 a artista contou que ela e Ulay saíram da cena com seus corpos tão doloridos que precisaram ficar de repouso durante um mês.

Em outra performance, Art must be beautiful, artist must be beautiful (A arte tem que ser bela, a artista tem que ser bela), de 1975, Marina Abramovic está nua e começa a pentear seu cabelo com uma escova de metal na mão direita. Ela vai penteando com uma força cada vez maior e depois inicia o mesmo movimento com a outra mão, com um pente de metal. Ao longo da performance ela vai repetindo a frase que lhe confere o nome: "a arte tem que ser bela, a artista tem que ser bela". Ela permanece durante uma hora nessa repetição até seu rosto se machucar e seu cabelo ficar completamente embaraçado. Percebe-se que há uma repetição exaustiva de movimentos até chegar a um esgotamento, um verdadeiro estrago no corpo.

Semelhante repetição até o ponto de exaustão pode ser vista em Freeing the Body (Libertando o Corpo). A artista fica nua, apenas com a cabeça embrulhada num cachecol preto, movendo seu corpo durante 8 horas no ritmo de uma bateria africana. Ela se move - numa espécie de catarse ou conversão - até cair (Stiles, Biesenbach & Iles, 2008).

Marina Abramovic se considera a avó da performance e, em entrevista recente, ela declarou que já se cansou de ouvir a pergunta "por que isso que você faz é arte?". Disse que já não tenta responder mais, apenas dedicando-se a levar ao público uma experiência diferente, que o surpreenda, que o desloque de seu lugar comum e o convide a uma vivência inédita. Para ela, esse é o papel da performance: não endossar nossa ânsia pelo desvendamento do sentido na arte.

A performance artística provoca a quebra desse suporte semântico sobre o qual estamos habituados a constituir nosso mundo de relação. É evidente que, nas cenas acima narradas, a repetição de imagens e movimentos faz aparecer, num determinado momento, algo extremamente perturbador, seja uma queda ao chão, um corpo machucado ou um rosto ensanguentado. Isso que se produz no corpo - na carne do corpo - causa choque, surpresa, susto ou estranheza, especialmente pela falta de sentido que comporta.

Pode-se chamar de contingente esse encontro inesperado com um corpo, digamos, fora do lugar - entendendo esse lugar como um ideal. Trata-se de um corpo que não corresponde a uma imagem ou fantasia adequada de corpo. Portanto, a repetição vista na performance não coaduna com o fenômeno de proliferação de signos que geraria um sentido para a cena, mas faz emergir o elemento novo que invade a cena e evoca a dimensão de um resto indizível - resto de corpo - que se relaciona ao que Lacan chamou de tiquê.

 

A repetição na psicanálise

Vejamos primeiramente como Freud entendia o paradoxal movimento de repetição que conjugava numa mesma experiência sensações de prazer e desprazer. A respeito do sintoma obsessivo, por exemplo, ele faz uma observação interessante: "O que não aconteceu de maneira conforme ao desejo é tornado não acontecido mediante a repetição de outra maneira" (Freud, 1926/2014, p. 58). Isso que não aconteceu conforme ao desejo diz respeito a uma vivência traumática cujo excesso de excitação não pôde ser descarregado no plano simbólico. O ideal, para Freud, é que o trauma tivesse escoamento pela via do processo secundário, por meio da ligação do afeto com palavras, na instância do pré-consciente.

No entanto, o que o sintoma obsessivo mostra é que tal vivência traumática, uma vez não tratada pelo sistema simbólico, passa pelo processo do recalque que separa o elemento quantitativo da representação correspondente. Assim, enquanto o conteúdo ideativo é lançado para o inconsciente, o afeto encontra outra forma de escoamento: o ato repetitivo. O sujeito atua em vez de simbolizar. Esse é um dos motivos que leva à formação do cerimonial obsessivo e que Freud nomeia "anulação do acontecido" (Freud, 1926/2014, p. 57). O sintoma aparece como tentativa de resolver a angústia do não acontecido, localizando numa série repetitiva algo que de outra forma ficaria disperso, como energia flutuante a provocar excitações contínuas no aparelho psíquico e causar desprazer. "A construção de um sintoma é o substituto de alguma outra coisa que não aconteceu." (Freud, 1917/1996, p. 287)

Ora, Freud reconhece que o intuito de anular uma ação passada (ação esta que não ocorreu conforme o desejo), tal como ocorre nos rituais mágicos e cerimônias religiosas, por ser algo impossível de se realizar, só pode proliferar ainda mais a repetição do ato. Por exemplo, um sujeito obsessivo pode lavar as mãos diversas vezes acreditando estar se livrando de uma experiência passada, embora conscientemente ele saiba que lavar as mãos não vai satisfazer tal desejo. Ele acaba provocando, com este ritual, uma repetição que ao invés de alívio causa mais angústia.

Temos então que o sintoma obsessivo combina esses dois impossíveis: o fato passado que não aconteceu conforme o desejo (fato traumático) e a anulação desse fato mediante a repetição a fim de torná-lo não acontecido (sintoma). Dessa combinação de "não acontecidos" resulta a positividade da repetição que vem proliferar o sintoma e, com isso, atualizar o resto intraduzível do trauma, do não-realizado.

A compulsão à repetição, como aparece no sintoma obsessivo, forneceu a Freud a chave para o entendimento da pulsão de morte. Ela se sustenta sobre a impossibilidade de realização do desejo, impossibilidade que tem sua origem na separação do objeto que foi o primeiro a garantir satisfação à criança. Uma vez perdido, o objeto deixará seu traço no caminho por onde o princípio do prazer buscará reencontrá-lo. Freud (1925/2011), no texto A negação, explica que o princípio de realidade é totalmente pautado sobre a necessidade de reencontro com esse objeto e por isso anda de mãos dadas com o princípio de prazer. "A meta inicial e imediata do exame de realidade não é, portanto, encontrar na percepção real um objeto correspondente ao imaginado, mas sim reencontrá-lo, convencer-se de que ainda existe" (p. 280).

A perda do objeto, cuja experiência prototípica é a perda da mãe logo quando do nascimento do bebê, é, para Freud, o trauma por excelência. Ela se atualiza na brincadeira do fort-da, quando a criança manifesta a separação de forma repetitiva, a fim de anular seu teor traumático, passando de uma posição passiva a uma posição ativa. Freud considera que a brincadeira com o carretel se encontra em conformidade ao princípio de prazer, pois a criança "só foi capaz de repetir sua experiência desagradável na brincadeira porque a repetição trazia consigo uma produção de prazer de outro tipo, uma produção mais direta" (Freud, 1920/1996, p. 27).

É este o ponto paradoxal da teoria econômica freudiana: se a compulsão à repetição é de domínio da pulsão de morte, já que repete uma atuação desagradável para o sujeito e com isso gera angústia, por outro lado ela está em conformidade ao princípio de prazer, por produzir alívio de tensão e por tentar anular aquilo que não ocorreu de acordo com o desejo. É pela compulsão a repetir a brincadeira do fort-da que o princípio de prazer domina o além desse princípio, a pulsão de morte. Trata-se da tentativa de chegar à homeostase a partir da descarga de energia gerada por uma experiência traumática (no caso, a separação da mãe), por um processo em que se repete a cena angustiante de modo ativo, não mais passivo. O sujeito não mais é vítima do fato traumático - ou daquilo que não ocorreu conforme o desejo - pois pelo sintoma ele encontra uma forma de tratamento.

Freud (1920/1996) percebeu claramente esse paradoxo a partir dos sonhos traumáticos de guerra, que o levaram a questionar sua teoria de que todo sonho era uma realização de desejo. Conteúdos oníricos horripilantes de cenas de guerra só podiam ser movidos por alguma outra força que precisava de escoamento. Se não se tratava apenas de uma experiência de prazer ou de realização de desejo, haveria também a pulsão de morte que, contraditoriamente, participava do princípio de prazer, repetindo algo desprazeroso na tentativa de se chegar ao equilíbrio psíquico. O sonho, assim como a repetição no sintoma, colocava em cena algo de outra ordem que não a do prazer, e sim do traumático. Isso o levou à seguinte conclusão: "O princípio de prazer parece, na realidade, servir às pulsões de morte" (Freud, 1920/1996, p. 74).

Lacan (1962-1963/2005) propõe uma leitura que recoloca o princípio quantitativo freudiano na dimensão entre o significante e o real, ressaltando a estrutura em detrimento da análise energética operada por Freud. Ele diz que a hipótese freudiana da repetição do fort-da como tentativa de amenizar a perda da mãe é apenas secundária. O que está no centro dessa dinâmica é mais exatamente a hiância que introduz, com a ausência da mãe, a separação em que a criança se destaca ela própria como objeto. O carretel é a colocação em ato do próprio sujeito, donde ele resulta como objeto a.

Logo, a separação da mãe deixa a fenda por onde a criança se introduz na ordem significante, tornando possível sua entrada no universo simbólico. É também dessa separação que surge o hiato entre o desejo e a garantia de seu não esgotamento. Causado pela divisão, o sujeito repete na tentativa de encontrar uma satisfação-toda que é ilusória, mas que ao mesmo tempo sustenta o movimento do desejo e garante sua existência.

Em Lacan, a repetição que corresponde a autômaton diz respeito à rememoração, conforme Freud a explicita nos escritos técnicos, uma vez que ela procede da necessidade do significante em se repetir. Tal como vemos nas manifestações do sintoma e do sonho, a repetição exaustiva procede da cadeia significante, embora os elementos que compõem tais formações do inconsciente não sejam exclusivamente simbólicos. Verifica-se tal repetição no sintoma obsessivo, por exemplo, com a promessa de anular a marca do trauma pela proliferação infinita de signos. Signos que, convenhamos, pouco ou nada têm a ver com a experiência original. Relembremos o sintoma obsessivo clássico de lavar as mãos: o que ele diz sobre a experiência traumática original? É difícil encontrar qualquer correspondência.

Na clínica, a elisão significante faz aparecer o real sincrônico que reduz o sujeito a seu aspecto negativo, a sua origem em das Ding (Lacan, 1972-1973/1985). Ocorre quando o autômaton é interrompido pela tiquê, ou seja, o significante cessa no ponto em que é ultrapassado pela pulsão. A rememoração esbarra num limite que é do real e que acontece por acaso, sem previsão. É esse limite que se trata em tiquê. O pensamento orientado pelo processo primário (pensamento inconsciente) não pode jamais recobrir o real, porque este é justamente o que "não para de não se escrever" (Lacan, 1972-1973/1985, p. 127).

Da mesma forma, é impossível resgatar a experiência de satisfação original com o objeto, como Freud (1925/2011) diz: "Mas reconhecemos, como precondição para que se instaure o exame da realidade, a perda de objetos que um dia proporcionaram real satisfação" (p. 280). O que significa que a experiência da falta se origina da perda desse objeto a partir da qual a cadeia significante se instaura na tentativa de reencontrá-lo. Em Freud, trata-se de uma perda real, que se presentifica na figura da mãe.

Já em Lacan, o objeto perdido não tem consistência real (no sentido de realidade), mas é um objeto que funciona no nível do real, na materialidade da Coisa (das Ding), articulado à cadeia significante. Entende-se que o campo do real - impossível de ser recoberto pelo significante ou pela repetição em autômaton - se manifesta pela pulsão que insiste em retornar. "O real é aqui o que retorna sempre ao mesmo lugar - a esse lugar onde o sujeito, na medida em que ele cogita, onde a res cogitans, não o encontra" (Lacan, 1964/2008, p. 55).

Se o real é o que retorna sempre ao mesmo lugar é porque, na tentativa de reencontrar o objeto que não está lá, que Lacan vai chamar de objeto a, surge um movimento interminável de busca de realização do desejo. A compulsão à repetição de que Freud nos dá notícia é a insistência de voltar a um estado anterior, de puro prazer, antes da separação entre o Eu e o objeto. Freud atribui o sentimento primordial de desamparo a essa separação, e é dela que se origina o afeto de angústia. Porém, é desse destacamento do corpo do outro, desse objeto a ao qual o sujeito se vê reduzido no jogo do fort-da, que Lacan parte para dizer que a angústia é na verdade o contrário do que Freud postula. Ela está não na separação da mãe, mas na ausência dessa separação, ou seja, quando a criança não é senão um prolongamento do corpo materno.

Em Lacan, a angústia é falta da falta. Ela anuncia ao sujeito o perigo de se ver misturado a essa mãe-toda, o perigo da ausência do intervalo, entendido esse intervalo como o simbólico que se introduz no real e que sustenta o desejo. A angústia é sinal do real: "já podemos dizer que esse etwas (algo) diante do qual a angústia funciona como sinal é da ordem da irredutibilidade do real" (Lacan, 1962-1963/2005, p. 178).

Por isso Lacan elege o fenômeno do duplo como paradigma para o afeto de angústia, associando-o ao sentimento de estranheza. No duplo, não se reconhece o lugar da falta, pois ela está preenchida por um objeto que a tampona, do que resulta que "a falta vem a faltar" (Lacan, 1962-1963/2005, p. 52). Como no conto do Homem de Areia, de E. T. A. Hoffmann, comentado por Freud em seu famoso ensaio O estranho (1919/1996), o aspecto de estranheza surge de uma situação em que o olho daquele que olha aparece na cena. O objeto é duplicado no lugar da falta, resultando em nada mais que a reafirmação da própria falta. Isso faz aparecer o elemento de origem inconsciente que deveria permanecer escondido, porém veio à luz: a castração.

A angústia, segundo Lacan (1962-1963/2005), é o afeto que sinaliza o desejo na medida em que este está articulado no lugar da falta. Se a análise causa angústia é por descentrar a fantasia que reveste o real, desestabilizando a estrutura narcísica do Eu. Lacan aposta que a verdade do inconsciente se localiza na escansão significante que remete ao real e que a fantasia tenta velar: "é em relação ao real que funciona o plano da fantasia", ou seja, "o real suporta a fantasia, e a fantasia protege o real" (p. 47). Por isso ele diz que "nenhuma práxis, mais do que a análise, é orientada para aquilo que, no coração da experiência, é o núcleo do real" (p. 58).

 

Estética do real: o corpo na performance

Tal como na clínica da psicanálise, na performance prevalece o descentramento do ideal de Eu (ideal da imagem do corpo) e no lugar dos afetos que tendem a compor uma identidade com a obra - ou a partir dela - surge o elemento do estranho. A respeito da arte contemporânea, o filósofo Theodor Adorno (2006) comenta: "a identidade estética deve defender o não-idêntico que a compulsão à identidade oprime na realidade" (p. 15).

Vladimir Safatle, a partir da leitura de Adorno, argumenta que a obra de arte pode ser vista como objeto da pulsão, o que a torna irredutível ao campo do sentido. O objeto estético é refratário à totalização pretendida pelo discurso conceitual. Estando o objeto estético em sintonia com o objeto da pulsão, "a arte pode aparecer como modo de formalização da irredutibilidade do não-conceitual, como pensamento da opacidade" (Safatle, 2004, p. 117).

Guilherme Rocha (2008), em seu Olho clínico: ensaios e estudos sobre arte e psicanálise, defende que o artista decompõe o conceito, desestabilizando a relação do objeto com seu lugar-comum e provocando assim a clivagem do par significante-significado. O resultado disso é que o sujeito é efeito da obra de arte, e não o contrário. O objeto é convocado a dividir o sujeito. "A experiência estética se realiza, então, a partir daquilo que a obra de arte causa no advento do sujeito" (p. 224). Especificamente a arte contemporânea, em seu apelo ao informe, dá acesso à figura do desejo conforme Freud a expõe, desejo este encoberto por um véu, inatingível, dissimulado. Seu caráter inapreensível admite um "saber em fracasso" (p. 225), a demissão do conceito em sua paixão pela significação, o que realça a negatividade irredutível daquilo sobre o qual ele se tece. Assim:

O discurso estético que elucida as formas e procedimentos peculiares às artes contemporâneas tem por horizonte a negatividade da obra, a apreensão da subtração induzida na consistência dos semblants, sejam esses constituídos pelas figuras típicas dos protocolos artísticos, sejam aqueles demais estereótipos e arranjos personalísticos, em que a cultura se arvora, e que a arte interroga. Arte marcada, então, por um saber programaticamente discernido pelo real e submetido à desfiguração, à hiância, aos arranjos imprevistos, aos não-lugares. Saber que se funda do real e que é por ele nutrido, tratado. (Rocha, 2008, p. 225-226)

A performance artística de Marina Abramovic, como apresentada no início deste artigo, pode ser pensada nessa mesma direção. As obras subvertem a tentativa de absorção de sua estética pelo sentido. Elas parecem estar mais próximas do registro do sublime, do informe, do estranho, do que propriamente do belo, daquilo que condiz com a forma harmonizada de seus elementos.

O crítico de arte norte-americano Hal Foster (1996/2014), em O retorno do real, diz que a arte contemporânea recusa a diretiva de pacificar o olhar e de unir imaginário e simbólico contra o real. "É como se essa arte quisesse que o olhar brilhasse, que o objeto se sustentasse, que o real existisse, em toda a glória (ou horror) de seu desejo pulsátil, ou ao menos evocar essa condição sublime" (p. 136). Utilizando os termos tiquê e autômaton, o autor tece uma comparação interessante da arte com o paradoxo da repetição presente na clínica psicanalítica. Ele diz que a repetição dos signos, tal como ocorre no sintoma e por isso da ordem do autômaton, ao mesmo tempo em que serve de proteção ao aparecimento do trauma, acaba por produzi-lo (assim como o sintoma obsessivo, como vimos com Freud). A produção desse traumatismo pega o sujeito de surpresa, já que se inscreve na dimensão da tiquê, da causalidade acidental.

Assim, na arte contemporânea a repetição de imagens (e, podemos acrescentar a partir da performance, a repetição de movimentos) evoca esse elemento do traumatismo quando algo surge por acaso - a queda, o corpo ensanguentado, o cabelo desfigurado. É isso que Foster chama de "realismo traumático" (Foster, 1996/2014, p. 126), categoria que não exclui a dimensão dos referenciais e simulacros - ou dos significados e semblantes - porém flerta com esses elementos numa esfera em que aparece "um sujeito em estado de choque, que assume a natureza daquilo que o choca como defesa mimética contra esse choque" (Foster, 1996/2014, p. 126).

Impossível de ser representado, o trauma só pode ser repetido. Consequentemente, as repetições acabam por despertar a sensação de estranheza que dá à angústia seu caráter fundamental. Forma-se, pois, um ciclo vicioso: "repetições que se fixam no real traumático, que o encobrem, que o produzem" (Foster, 1996/2014, p. 131).

Gilson Iannini (2004), nessa mesma direção, sugere que a arte contemporânea aparece como "figura de um certo excesso de real - que desnuda a precariedade do simbólico - espécie de ruína, espécie de catástrofe das imagens de reconciliação" (p. 84). Nesse sentido, ela rompe com a adequação não apenas a uma tessitura simbólica, mas também com a tendência do Eu a uma totalização imaginária ou à unificação em torno de uma Gestalt.

Como se pode perceber a partir dos trechos da obra de Marina Abramovic, o que aparece em cena não é um corpo ideal, belo, intacto e de formas perfeitas, e sim a dimensão de um corpo fragmentado, sempre passível de sofrer o atravessamento de algum ato que o desfigure e que venha denunciar sua finitude. O corpo com o qual se joga na performance, longe de ser aquele de nossa fantasia, aproxima-se da dimensão do real - corpo que ficou fora do espelho, impossível de ser refletido, aquele resto de objeto que não faz imagem - corpo do objeto a, objeto da angústia.

Tânia Rivera (2006) comenta as performances artísticas na perspectiva do unheimlich. O estranho aparece no jogo especular que produz duplicações do eu, num movimento de ocultamento e mostração: "o Estranho aponta para um ato que chacoalha a cena da fantasia, pondo em questão seu estatuto de cena, ou seja, de agenciamento entre o sujeito e o objeto no campo do olhar" (p. 130). Ou seja, o estranho é aquilo que denuncia a fragilidade da fantasia ao trazer para a cena um inesperado ato de fragmentação, evidenciando o fator pulsional que constitui o sujeito.

Em outro texto, a autora propõe que a performance apresenta mais uma ausência do que uma presença "mais ou menos espetacular do corpo" (Rivera, 2013, p. 20). O corpo na performance denuncia, "para além de qualquer reafirmação de sua existência individual, a sua fugacidade, a condição mortal, passageira, do homem" (Rivera, 2013, p. 19-20). Por isso ela atualiza algo da cena traumática que diz respeito à finitude, à castração, ao desamparo humano.

Trata-se do real léxico de Lacan, aquele que é uma espécie de fundo último das coisas, destacado da imagem, e que se trata sempre de tentar representar, sem que tal operação jamais se cumpra de forma definitiva. Real traumático, terrível, com o qual o sujeito se depara repetida e violentamente. (p. 21)

Nesse sentido, a performance provoca o efeito de desestabilizar não apenas o espaço da representação, mas também o Eu como imagem. Esse efeito Rivera (2013) denomina de "verdadeiro retorno do sujeito" (p. 20), já que, em vez de servir de ponto de partida para a criação artística, advém de fora do espaço da representação. Esse sujeito não se exerce na representação da realidade sob um olhar fixo; ele retorna como sujeito "descentrado", como "corpo real" (p. 21), portanto, mais próximo à dimensão de objeto, uma vez que seu corpo se coloca a serviço do gozo do Outro, entregue àquele que o olha e o modifica com seu olhar.

Isso se dá pela reconfiguração do corpo como arte e, ao mesmo tempo, do sujeito como corpo. Pela via do corpo, o artista sai do domínio sobre a obra e a interação com o espectador provoca efeitos em ambos - efeitos da ordem da contingência. Entregue como objeto ao olhar do Outro, um deslocamento é provocado. Quem é sujeito agora? Quem é objeto? Nesse lugar onde tanto artista quanto público são lançados, sem o véu da fantasia que lhes garante a proteção narcísica, encontra-se uma certa dimensão do corpo vazio. Não sendo da ordem do ideal, do belo, o corpo do performer deixa aparecer o informe, a queda, o acidente, o estranho.

No seu livro mais recente, Safatle (2015) comenta, a respeito da performance de Yves Klein (Leap into the Void, 1960) em que o artista se lança do parapeito de uma casa em direção ao chão: "como quem diz: mas é para isto que a arte existe em sua força política, para deixar os corpos se quebrarem" (p. 44). Como se a arte se sustentasse sobre a possibilidade de quebra dos corpos. Ou talvez na mostração de um corpo que não está na integridade da imagem, e sim na fragmentação causada pela pulsão.

Há momentos em que os corpos precisam se quebrar, se decompor, ser despossuídos para que novos circuitos de afetos apareçam. Fixados na integridade de nosso corpo próprio, não deixamos o próprio se quebrar, se desamparar de sua forma atual para que seja às vezes recomposto de maneira inesperada (Safatle, 2015, p. 44).

Pode-se concluir, então, que a arte da performance remete cada um que a vivencia a uma experiência de descentramento do corpo. Na impossibilidade de generalizar, já que o encontro com a arte é subjetivo (assim como a clínica é do um a um), cabe apenas observar que, tanto na arte contemporânea quanto na clínica, o desamparo tem seu lugar central.

A partir do desamparo, talvez seja possível encontrar saídas menos adoecedoras para a repetição simbólica que compõe os sintomas, mas também o mundo em que vivemos, dominado por uma certa insistência nos símbolos (símbolos do mercado, da mídia, da indústria farmacêutica, dos manuais psiquiátricos etc.). Quando o autômaton é atravessado pelo acontecimento de tiquê, seja na arte ou na clínica, subverte-se o modo habitual de compreender o mundo e os corpos. O próprio olhar - que em geral se estabiliza sobre formas imaginárias - é invadido por uma certa estranheza.

Na performance, como também na psicanálise, deixar aparecer esse corpo estranho é possibilitar uma identificação menos atrelada ao ideal de Eu e mais próxima ao objeto que Lacan chama de objeto a: o que não tem formas fixas e que se refere à causa do desejo. Objeto da angústia, afeto que sinaliza o real. É por essa via que se torna possível sair da repetição de signos e fazer falar o sujeito do desejo.

 

Referências

Adorno, T. W. (2006). Teoria estética. Lisboa: Edições 70.         [ Links ]

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Recebido em 14 de janeiro de 2018
Aceito para publicação em 09 de maio de 2018

 

 

* Este artigo é resultado da pesquisa de mestrado intitulada "A experiência da angústia na clínica psicanalítica e na arte da performance", financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), apresentada em fevereiro de 2016 na Universidade Federal de Minas Gerais.
1 Ciclo de palestras ministradas pela artista durante a exposição Terra Comunal, entre os dias 11 de março e 30 de abril, no Sesc Pompeia, em São Paulo. Disponível em: http://terracomunal.sescsp.org.br/7-conversas. A título de curiosidade, o centro cultural Sesc Pompeia foi onde ocorreu o primeiro festival de performances realizado no Brasil, segundo Cohen (2013).

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