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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.31 no.2 Rio de Janeiro maio/ago. 2019

http://dx.doi.org/10.33208/PC1980-5438V0031N02A03 

SEÇÃO TEMÁTICA - O FAZER CLÍNICO EM PSICOLOGIA

 

Considerações sobre a transferência na atualidade a partir de Michael Balint e Piera Aulagnier

 

Considerations about transference nowadays from Michael Balint's and Piera Aulagnier's lectures

 

Consideraciones sobre la transferencia en la actualidad desde Michael Balint y Piera Aulagnier

 

 

Maicon CunhaI; Joel BirmanII

IDoutor em Teoria Psicanalítica, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor de Psicologia da Universidade Estácio de Sá (UNESA), Rio de Janeiro, RJ, Brasil. mpcrj1@gmail.com
IIPhD em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise pela Université Paris VII, Paris, France. Professor do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. joelbirman@uol.com.br

 

 


RESUMO

A proposta deste artigo é retomar um conceito fundamental para a psicanálise, a transferência. Esta retomada será organizada a partir de questões postas da cultura à clínica e da clínica à cultura na atualidade. Tomando como eixo central a discussão sobre a função apostólica, da qual Michael Balint assume a provocação da função do médico/analista como a prescrição de si mesmo no tratamento, investigaremos o lugar de poder que o analista assume. Pelas características inerentes à relação transferencial, o lugar do analista pode ser entendido como o equivalente ao uso de uma droga, tal qual uma dependência pode ocorrer na dinâmica da toxicomania, a qual constitui uma trama complexa que alude a um importante destino do prazer.

Palavras-chave: transferência; drogas; alienação.


ABSTRACT

The aim of this article is to return to a fundamental concept for psychoanalysis, transference. This resumption will be organized from questions posed by the culture to the clinic and by the clinic to the culture today. Taking as its central axis the discussion on the apostolic function of which Michael Balint assumes the provocation of the function of the physician/analyst as the prescription of himself in the treatment, we will investigate the place of power that the analyst assumes. Due to the inherent characteristics of the transference relationship, the analyst's place can be understood as the equivalent of using a drug, such that a dependence can take place in the dynamics of drug addiction, a complex plot that alludes to an important destination of pleasure.

Keywords: transference; drugs; alienation.


RESUMEN

La propuesta de este artículo es reanudar un concepto fundamental para el psicoanálisis, la transferencia. Esta reanudación se organizará a partir de cuestiones planteadas de la cultura a la clínica y la clínica a la cultura en la actualidad. Tomando como eje central la discusión sobre la función apostólica, de la que Michael Balint asume la provocación de la función del médico/analista como la prescripción de sí mismo en el tratamiento, investigaremos el lugar de poder que el analista asume. Por las características inherentes a la relación transferencial, el lugar del analista puede ser entendido como el equivalente al uso de una droga, tal cual una dependencia puede ocurrir en la dinámica de la toxicomanía, la cual es una trama compleja que alude a un importante destino del placer.

Palabras clave: transferencia; drogas; alienación.


 

 

Introdução

Neste estudo pretendemos realizar uma incursão a respeito de determinados destinos do sofrimento na atualidade. Um eixo basilar dessa proposta reside na reflexão de que a droga é uma das alquimias disponíveis ao indivíduo. No entanto, para além dos medicamentos e das drogas ilícitas propriamente ditas, outras modalidades de sedução são ofertadas no engendramento contemporâneo, inclusive as seduções da psicanálise, por meio dos efeitos paradoxais produzidos pela transferência: "É preciso que o psicanalista esteja ciente da ética que regula seu lugar e sua função, para que não se instale na posição de salvador, isto é, o detentor soberano de uma poção mágica que tem o dom de transformar a psicanálise num veneno prazeroso." (Birman, 2007, p. 204).

O poder fascinante que pode ser exercido na psicanálise será elencado com a referência ao estudo da transferência. A tematização sobre esta é fundamental para a psicanálise. Veremos como ela se inseriu no corpo teórico do pensamento freudiano, visando a traçar um caminhar pelas tramas do poder, para posteriormente refletir sobre as consequências a respeito do psicanalista/médico na função de droga, ideia comportada pelo pensamento de Michel Balint. Em um outro eixo, a reflexão será tomada sobre o conceito de alienação, tal como se coloca no pensamento de Piera Aulagnier. Esta apreensão nos conduzirá à investigação de uma determinada leitura possível acerca de boa parte das relações e das estruturas psíquicas na atualidade, aludindo aos vínculos que se enlaçam de maneira dependente e alienante, por um lado, e frágil, por outro, o que pode levar até mesmo a psicanálise a se inserir num circuito pulsional mortífero.

A transferência é um dos conceitos fundamentais para a psicanálise, sem a qual não há possibilidade de haver tratamento. A transferência, enquanto um "processo pelo qual os desejos inconscientes se atualizam sobre determinados objetos no quadro de um certo tipo de relação estabelecida com eles e, eminentemente, no quadro da relação analítica" (Laplanche & Pontalis, 2004), se fundamenta na repetição de protótipos infantis vivida na atualidade da figura do analista. Freud se deparou com o fenômeno da transferência sublinhando o aspecto da estranheza. Inicialmente, não era dada importância à transferência como essencial no estabelecimento da relação terapêutica, nem para os efeitos clínicos advindos dela.

Em "A história do movimento psicanalítico" (Freud, 1914/2006), Freud resgata a história recente do desenvolvimento da psicanálise na época, evocando o trabalho analítico "no sentido de que o conflito do momento e o fator desencadeante da doença devem ser trazidos para o primeiro plano da análise" (p. 20). Era o momento de condução da atenção do paciente até a cena traumática na qual o sintoma surgira, e havia o esforço por descobrir o conflito mental envolvido. Este era o chamado método catártico.

Entretanto, o método catártico possuía limitações. Mesmo em casos em que era sabido o momento da irrupção da doença, Freud afirma não ter podido avançar na análise, como no caso Dora (Freud, 1905/2006). Somente após o advento do que se chamaria de transferência, inscrita enquanto fundamental na trama do caso, é que a compreensão sobre os fenômenos psíquicos de um ponto de vista propriamente psicanalítico pôde tomar cena.

É com Dora que o papel da transferência surge, primordialmente, no trabalho analítico, apesar de já no caso Anna O. (Freud, 1893-1895/2006) a questão transferencial ter surgido. Com o tratamento segundo o "método catártico", entretanto, a relação terapêutica transferencial era considerada um sintoma como qualquer outro, que ajudaria ou atrapalharia a condução do trabalho, ficando em um lugar secundário.

O fundamento sexual da transferência foi uma pontuação decisiva de Freud para o início da investigação propriamente psicanalítica do inconsciente, e foi um duplo aspecto relativo à transferência que propiciou a compreensão do que estava na trama a dois do processo. Se, por um lado, Freud compreendeu que o processo de Breuer com Anna O. não pôde avançar justamente no momento mais delicado, a Breuer é atribuída a descoberta da descoberta da importância da transferência, justamente pela negligência das energias sexuais contidas na relação médico-paciente.

Breuer, envolvido em "forte contratransferência diante da sua interessante paciente" (Jones, 1975, p. 237), ficou profundamente perturbado com a revelação do impulso erótico que agora se notava, mas que viria já de longa data nas sessões de hipnose. Freud retroagiu o impulso erótico ao histórico clínico da analisanda e o interpretou, acompanhando o campo sexual não analisado dos sintomas de então.

Com o abandono do método catártico e a formulação da psicanálise em si, após o livro "A Interpretação dos Sonhos" (Freud, 1900/2006), a transferência ganhou destaque e se tornou essencial no processo analítico, distinguindo-se da sugestão e da hipnose. É assim, portanto, que Freud compreende a transferência:

Durante o tratamento psicanalítico, pode-se dizer com segurança que uma nova formação de sintomas fica regularmente sustada. A produtividade da neurose, porém, de modo algum se extingue, mas se exerce na criação de um gênero especial de formações de pensamento, em sua maioria inconscientes, às quais se pode dar o nome de "transferências". O que são as transferências? São reedições, reproduções das moções e fantasias que, durante o avanço da análise, soem despertar-se e tornar-se conscientes, mas com a característica (própria do gênero) de substituir uma pessoa anterior pela pessoa do médico. Dito de outra maneira: toda uma série de experiências psíquicas prévias é revivida, não como algo passado, mas como um vínculo atual com a pessoa do médico. (Freud, 1905/2006, p. 111)

A importância da transferência está dada na apreensão do momento em que há uma verdadeira intensificação das forças da neurose atualizadas na relação com o médico. Por isso mesmo, o momento de crise é essencial de ser captado. E, nesta medida, a ebulição dessas forças intrínsecas ao vínculo não pode ser negligenciada no processo.

 

Abstinência e crise na experiência analítica

A experiência analítica supõe inexoravelmente a regra da abstinência. Retomando a exortação contida nas "Observações sobre o amor transferencial" (Freud, 1915[1914]/2006) sobre a necessidade de não se negar a retribuir ao paciente o que ele espera da relação analítica, algo da ordem do amor de transferência, mas atendo-se à necessária frustração da simetria na relação, Freud chama atenção para a regra da abstinência, qualificada como um princípio fundamental.

Já deixei claro que a técnica analítica exige do médico que ele negue à paciente que anseia por amor a satisfação que ela exige. O tratamento deve ser levado a cabo na abstinência. Com isto não quero significar apenas a abstinência física, nem a privação de tudo o que a paciente deseja, pois talvez nenhuma pessoa enferma pudesse tolerar isso. Em vez disso, fixarei como princípio fundamental que se deve permitir que a necessidade e o anseio da paciente nela persistam, a fim de poderem servir de forças que a incitem a trabalhar e efetuar mudanças, e que devemos cuidar de apaziguar estas forças por meio de substitutos. (Freud, 1915[1914]/2006, p. 182)

O psicanalista não obteria êxito em seu trabalho caso fosse retribuída a totalidade da demanda do paciente. É no registro da abstinência que a angústia, afeto imprescindível para o dispositivo analítico, pode advir e agir como mola propulsora para a mobilidade da libido. Assim, nem repelindo, nem se afastando do amor transferencial, é que uma análise pode tomar curso. Existe portanto um determinado domínio que o psicanalista deve exercer para alcançar as raízes infantis da trama do paciente, lidando com aquilo que remonta à vida erótica do paciente.

A tomada da abstinência como experiência no tratamento analítico pressupõe a caminhada rumo ao terreno pantanoso que uma análise precisa explorar, e que indica mexer na regulação da economia psíquica sob a forma da transferência. Nesse campo minado, Foucault (2012) entende a categoria de crise como um importante vetor no seio na medicina pré-moderna, até fins do século XVIII. Nesta compreensão, a noção de crise na prática médica desde Hipócrates era um norteador importante, na medida em que "[A crise] é muito exatamente o momento do combate, é o momento da batalha, o momento em que precisamente ela se decide." (Foucault, 2012, p. 310).

O momento da crise é quando eclode a doença em sua verdade, ou seja, é a realidade em si dela, e é precisamente aí que o médico deve intervir. Freud retomou esta ideia com a neurose de transferência, recuperando a categoria de crise. É necessário, no tratamento psicanalítico, que o momento de crise seja tomado como ápice no processo, no qual a verdade da trama do mito individual do sujeito tem a sua epifania.

Neste sentido, é pela dimensão da neurose de transferência que Freud retoma a categoria de crise, abandonada com o modelo médico da anatomopatologia (Foucault, 2014). O psicanalista não pode se furtar à combustão dos elementos explosivos dos interstícios da trama individual do paciente, atualizada no tratamento. Há uma equivalência ao lugar do xamã que Freud retoma no seio da era moderna. Segundo Lévi-Strauss (2012), o psicanalista é o "herdeiro" da tradição do xamanismo.

Assim, se Freud resgata um modelo de medicina pré-científica pela concepção de crise, é instaurando o lugar do médico como o exercício de um certo fascínio e funcionando como uma droga que se alteram as configurações da economia do gozo. Laurent (2002) estabelece uma leitura histórica do que ele chama de revolução terapêutica, na contemporaneidade dos anos 1930, quando começaram tratamentos de terapia de choque, revolução esta que se intensificou com a oferta dos medicamentos. Nesta contemporaneidade, a tematização do surgimento do psicanalista como droga surgiu no contexto das relações de objeto:

Freud situou o analista como representante do pai da transferência, garantia da adequação das palavras à pulsão pela interpretação psicanalítica. Foi mais tarde, na geração dos anos 30 - aquela que nomeamos como a dos pós-freudianos - que o psicanalista apareceu como objeto. Deram-se várias versões disso. Para Mélanie Klein, mãe genial, apareceu como o seio magnífico. Michaël Balint, médico inspirado pela demanda histérica, colocou-se a si mesmo como medicamento reparador. Para ele, particularmente preocupado com a eficácia terapêutica, como a tradição húngara na psicanálise, é o psicanalista que se prescreve a si mesmo. Ele é o medicamento escondido no dispositivo. É a revelação que Balint quis transmitir aos médicos clínicos: "Antes de tudo, o medicamento é você!". (Laurent, 2002, p. 26)

Balint (1988) disserta sobre a função apostólica do psicanalista, e nessa vertente, a ideia do psicanalista inglês é que a função do psicanalista é de funcionar como uma droga para o paciente. Essa temática de Balint é retomada por Lacan (1966/2001) em uma conferência a uma comunidade médica em que indica o lugar da psicanálise na medicina: Lacan evoca o lugar do médico como aquele que exerce uma grande autoridade, prestígio, e que à maneira como Balint ilustra, receita a si mesmo. A tese de Lacan é interessante no sentido de que ele evoca um lugar importante do psicanalista, agindo na detecção de um corpo que goza na dimensão da transferência. O corpo libidinizado é precisamente o corpo com o qual a psicanálise lida, e o psicanalista oferece uma escuta a partir da linguagem para esse corpo, fato que geralmente é negligenciado pela medicina. Essa temática insere a problemática das relações de poder do par médico-paciente.

 

Transferência e toxicomania

A temática da transferência deve ser cuidadosamente vista na cartografia do sujeito na atualidade, na medida em que a trama dos vínculos se altera em relação ao paciente enquadrado na nosografia psicanalítica tipicamente das neuroses de transferência. Se a clínica se alterou em relação à época de Freud, foi por conta de as contingências dos indivíduos terem também se alterado, em suas relações sociais, políticas e econômicas. Do ponto de vista eminentemente clínico, a toxicomania elucida um estilo de paciente que impõe um manejo delicado no domínio da transferência por seu caráter paradoxal na forma do vínculo, muito dependente, mas também pouco "aderido".

Não pretendemos esgotar um mapeamento do sujeito na atualidade que o rotule como toxicômano, pois tal leitura seria reduzir toda uma complexidade dos fenômenos que surgem na clínica; apontamos, entretanto, algumas aproximações das ditas novas patologias que se enquadram em uma moldura que nos permite aproximar-nos da clínica da toxicomania por um paradoxo. Esse paradoxo se insere na perspectiva de que algumas modalidades de estrutura mental sugerem o sujeito funcionar mediante o desejo do outro, na esperança que este forneça uma poção mágica que lhe restitua sua plenitude narcísica.

Se o analista aceita e responde a essa demanda, ou se seduz o analisando com a promessa de uma possibilidade futura, o trabalho analítico fica comprometido, posto que o processo de análise deve se fundamentar na escuta do desejo do sujeito, sendo o analista o suporte para isso acontecer. O analista não deve cair nesses imbróglios da trama dual, e é por isso mesmo que Freud elencou a regra da abstinência como condição para o método analítico:

Freud enunciou a "regra da abstinência" como condição de possibilidade do método analítico e que destacamos aqui como um dos fundamentos da ética psicanalítica. Se não considerarmos isso devidamente, estaremos participando de um pacto com a morte, acreditando que possuímos alguma alquimia capaz de preencher a falta e restituir a plenitude narcísica do analisando. Enfim, se esta questão se coloca para qualquer processo analítico, ela ganha maior relevo com os toxicômanos, pois nestes, a demanda de preenchimento recebe apelos dramáticos. (Birman, 2007, p. 204)

O ponto que pretendemos ressaltar é a adesão ora deveras intensa e um afastamento que se estabelece na relação do paciente toxicômano com o analista, e que presenciamos na clínica da atualidade de forma maciça sob a forma de um pedido de socorro para que lhe ampare narcisicamente - mesmo que este pedido possa não ser explícito, ou mesmo pela negativa, tendo o desdém e os ataques ao analista como mote.

O analista não deve recusar a necessidade intensa de adesão por parte do paciente, mas não pode desatentar para a função de droga em que ele mesmo pode ser colocado e lá permanecer sem atenção, numa postura salvacionista. Ele deve escutar e procurar decifrar as vias de prazer com a droga, de forma que a continuação do processo implique em que uma efervescência libidinal, o que inclui a figura do analista numa posição de droga, ficando assim como um objeto-fetiche.

O analista não pode se furtar às aventuras de uma espécie de faca de dois gumes imposta a quem deseja adentrar o campo minado da transferência. Se o paciente procura a análise, é porque houve algum desequilíbrio em sua economia psíquica. Em geral, qualquer pessoa que busca uma análise recorre ao dispositivo analítico quando suas formas de gozo se encontram capengas, com o desprazer em limiares insustentáveis.

A questão que se coloca é que, se este modelo de regulação é uma forma universal, dadas as contingências do circuito pulsional, seria lícito afirmar uma especificidade que se impõe à clínica da atualidade? Em caso afirmativo, qual seria esse arranjo específico? Para adentrar um pouco mais nos interstícios acerca da clínica da atualidade é preciso contextualizá-la na cultura.

Pelos idos dos anos 1970, a psicanálise começou a se interrogar sobre uma determinada postura que "polarizava" as neuroses e psicoses. O debate sobre os estados limites impunha a reflexão acerca de uma classe de pacientes que não se encaixava propriamente nem na neurose e nem na psicose, mas que transitava entre essas duas estruturações. Nessa contemporaneidade, Lasch (1983) formulava a ideia de uma cultura do narcisismo. Localizando o declínio do homem público em favor do homem privado, as patologias do ideal (Ehrenberg, 2012) se revelam um importante indicador de um individualismo que, do ponto de vista psicanalítico, seria inscrito na alternação do mito de Édipo pelo mito de Narciso. (Herzog & Pacheco-Ferreira, 2014).

Essa descrição nos aproxima da leitura de Roussillon (2014) sobre as patologias narcísico-identitárias, marcadas por um estado de aflição intensa e permanente e que apresentam uma fratura nos processos relativos à representação e simbolização. Com isso, as formas de perlaboração se configuram de forma diferenciada da clínica dita clássica (Lopes & Klautau, 2018).

De acordo com Pontalis (1974), a partir da segunda metade do século XX as neuroses de transferência cedem lugar às neuroses de caráter, apontando uma reflexão sobre os limites do analisável. Se nas neuroses de transferência tratava-se de liberar as amarras da repressão, que impediam o indivíduo de se tornar si mesmo, não se pode afirmar que uma tal liberdade concebida na atualidade reflete inequivocamente uma realização do projeto de si. Antes se faz necessário pensar nas seduções mórbidas dos ideais que engendram uma subjetividade liberada.

A população analítica estaria cada vez menos composta de neuroses francas, precisamente aquelas que Freud definia como neuroses de transferência; veríamos de maneira intensa as formas "mistas" às quais, na frente neurótica, se revelaria a intensa atividade projetiva do esquizo-paranoide ou uma fragilidade narcísica tal que o único recurso seria a dissociação entre a psique e o soma ou ainda aquilo que Freud já havia identificado como "alterações do eu" que marcam o comportamento de uma sorte de loucura sem delírio. (Pontalis, 1974, p. 10, tradução nossa)

Para inserir esta problemática em seu referente epistêmico é preciso enunciar que o projeto do individualismo está intimamente articulado à temática da cultura do narcisismo na atualidade (Lasch, 1983). O conceito de narcisismo exerce uma importância axial na teoria psicanalítica. Isto se refere, sobretudo, ao fato de o narcisismo apontar para a questão da constituição do eu. No entanto, o narcisismo comporta em si um caráter mortífero, se levado às últimas consequências. O narcisismo mortífero inscreve o eu no domínio de um eu ideal, sem a transmutação para o simbólico ideal do eu.

Seguimos a sustentação de Ehrenberg (2012) na indicação das patologias atuais como patologias do ideal, nas quais o eixo central é que essas são patologias cuja expressão se define em uma tensão entre a tradicional igualdade de proteção social, doravante incapaz de impedir os mais desfavorecidos, prejudicados pelas consequências das transformações econômicas e sociais, e a nova igualdade da autonomia. Recuamos na noção de proteção para apontar os sujeitos desprotegidos, do ponto de vista psíquico, em momentos muito precoces, para refletir, na contemporaneidade das sociedades narcísicas, os efeitos das desproteções, ou dito de outro modo, dos grilhões do desamparo.

 

Balint e a falha básica

Balint (2014) se questiona sobre em que parte da mente os processos terapêuticos ocorrem, e o que neles é responsável pelas várias dificuldades experimentadas pelos analistas, partindo da constatação de que existe uma classe de pacientes difíceis que deixa mesmo os analistas mais experientes perplexos com sua dificuldade de condução. Balint chama a atenção para a ocorrência de pacientes que têm uma séria dificuldade em tolerar o aumento de pressão sobre eles. Estes são bastante cindidos, apresentando um ego que o autor chama de demasiadamente narcísico.

Há, portanto, para Balint, o trabalho a nível edípico, e um outro nível: para não localizar como pré-edípico, pois pode coexistir com o nível edípico, Balint alude à caracterização de um momento primitivo em relação ao Édipo. A esse nível é dado o nome de falha básica, e que remete a momentos precoces do desenvolvimento do eu. Nesse nível há o aparecimento da fenomenologia que alude a uma crise como momento dramático e que revela sérias perturbações no psiquismo, bem como denota o aparecimento de defesas deveras primitivas para lidar com a dimensão da falha.

Chama atenção o caráter bipessoal primitivo no nível da falha básica, caracterizada por um tipo de relação objetal primária, ou amor primário. Não há, no nível da falha básica, a estrutura de conflito, tal como se manifesta na neurose de transferência clássica. Balint afirma que o paciente diz sentir como que existindo uma falha dentro de si; por isso, a falha básica como fenômeno e como conceito. Há a sensação de que a falha foi provocada porque alguém falhou ou descuidou dele, o que se reflete, no trabalho analítico, numa insuportável angústia, expressa como uma demanda desesperada de que agora o analista não pode falhar.

Há, portanto, uma espécie de falta de adaptação entre a criança e seu entorno e é isso que se repete posteriormente. Do ponto de vista transferencial, há uma falta de "comunicação", que provavelmente é a raiz das dificuldades sentidas pelo analista com esses pacientes, que gratificam pouco ou nada o analista. Balint toca num ponto essencial, que diz respeito aos limites da analisabilidade. Estes pacientes exigem uma reformulação da clínica da interpretação, pois, se o entorno exige demais deles, grande parte de sua libido será retirada para o interior. Então, ao mesmo tempo em que é necessário não deixar de lado a objetividade do tratamento, com interpretações bem fundamentadas, a forma do tratamento sob a espécie de uma harmonia constantemente vigiada precisa estar presente.

Esse conjunto de articulações permite refletir sobre as dificuldades propostas no campo transferencial e incrementam o repensamento da clínica da atualidade, em muito marcada pelo traço narcisista. Balint aponta a dificuldade do tratamento dos "pacientes difíceis", provocada no âmbito da regressão terapêutica, em virtude do intenso narcisismo. Com esses pacientes, Balint afirma ter sido possível reconhecer a existência de severos prejuízos nas relações primitivas com o entorno. A dificuldade remete a eventos pertencentes à área da falha básica e que refletem o registro de uma relação exclusivamente bipessoal, com a exigência absoluta, no caso da relação analítica, de que o analista esteja o tempo todo em sintonia com o paciente.

Desde que os cuidados com o bebê não sejam deficientes ou excessivos, desarmoniosos, partes do entorno poderão conservar algo de seu investimento primário original, o que Balint denomina de "objetos primários". Estes objetos são, em primeiro lugar, a mãe, ou alguém que cuide, e depois, do ponto de vista do tratamento psicanalítico, o analista, que assume as qualidades de um objeto primário. A relação primitiva, procurada novamente ao longo da vida, constitui um eixo de equivalência entre a função que o analista exerce com a função do objeto droga. Por mais que tenhamos que distinguir as complexas relações de dependência, neste momento cabe situar que a função apaziguadora da tensão é de enorme necessidade para o sujeito.

Retomando a noção da harmonia necessária que instaura um campo de equilíbrio para o psiquismo se orientar e sustentar suas atividades, é preciso destacar que toda a finalidade última de todo impulso libidinal é a restauração da harmonia original. Essa fórmula pode ser descrita na síntese do sentimento oceânico, fonte de toda a plenitude do ego com o cosmos. O sentimento oceânico, que abre o texto do Mal-estar é motivo de um debate de Freud (1930/2006) com Romain Rolland. Vemos isso presente no êxtase, também na sublimação, e em certos períodos regressivos do trabalho analítico, o que dá a sensação de que toda desarmonia foi eliminada. O ego ideal, fonte de puro prazer da descrição freudiana, encontra aqui sua plenitude.

Propomos observar a problemática da regressão em outro ângulo, como fazendo parte da constelação clínica necessária no atendimento de pacientes severamente perturbados, mais regredidos, o que ocorre na análise dos distúrbios narcísicos e que ganha espaço na dinâmica com muitos pacientes na atualidade.

Em algum momento do tratamento analítico, é natural que resistências surjam e o paciente deixe de cooperar, o que pode assumir a forma de uma recusa a se mover. O que ocorre é que, em casos de intensa regressão, o paciente deixa de ser capaz de sustentar a regra básica da associação livre. O paciente é simplesmente incapaz de ir além do plano da interpretação analítica, e muitas vezes o trabalho escapa ao plano verbal. Esse tipo de transferência, que absorve quase toda a libido do paciente, evoca a estrutura de uma relação exclusivamente bipessoal, o que a distingue da dita transferência clássica, aquela situada no registro das neuroses de transferência, nas quais há uma composição triangular. Aí se está no domínio da área da falha básica.

Há que se ter uma espécie de área a para a criação de uma nova disposição da realidade, pois aqui a dimensão do abandono é que triunfa como rendado do trabalho a ser tecido. Somente quando há uma intensa experiência de regressão é que a dependência se revela. O nó que se instaura com a regressão, e que os pacientes situados na área da falha básica mostram dinamicamente no trabalho analítico, é como articular uma saída possível entre a abstinência do qual necessita o trabalho analítico e a dependência que a relação bipessoal evoca. É sempre um manejo delicado. Os pacientes regredidos criaram com seus analistas uma atmosfera na qual houve o desenvolvimento de um entorno harmonioso, na fé da restauração de um quadro a-conflitual, que Balint chama de amor primário (Balint, 1937/1965).

Dessa forma, esse conjunto de articulações permite refletir sobre as dificuldades propostas no campo transferencial e impõe necessidade de repensar a clínica da atualidade, em muito marcada por um traço narcisista. Balint aponta a dificuldade do tratamento dos "pacientes difíceis", provocada no âmbito da regressão terapêutica, em virtude do intenso narcisismo. Com esses pacientes foi possível reconhecer a existência de severos prejuízos nas relações primitivas com o entorno. Essa dificuldade remete a eventos pertencentes à área da falha básica, que refletem o registro de uma relação exclusivamente bipessoal, com a exigência absoluta, no caso da relação analítica, de que o analista esteja o tempo todo em sintonia com o paciente.

Fugindo da hipótese do narcisismo primário, que se revela problemática, fazendo mergulhar em contradições e incertezas insolúveis, a alternativa de Balint é utilizar experiências clínicas com pacientes para construir uma nova teoria para substituir o narcisismo primário que fosse mais passível de verificação ou refutação. Assim, Balint propõe a teoria da relação primária com o entorno, o amor primário.

Na equivalência da situação biológica, na qual para o desenvolvimento e bem-estar é necessário que o entorno garanta o tempo todo a atenção às necessidades da criança, a distribuição da libido e a formação da condição psicológica dependerão da relação com este entorno. Pode-se pensar mesmo nos momentos intrauterinos, quando esse entorno é indiferenciado, mais ainda do que na criança e no adulto.

Balint evoca a noção de uma mescla harmoniosa interpenetrante, na qual o indivíduo e o entorno se interpenetram, para conferir a qualidade de uma relação simbiótica, sem que haja distinção entre sujeito e objeto: "o feto, o fluido amniótico e a placenta são uma mistura tão complicadamente interpenetrante de feto e de entorno-mãe, que sua histologia e fisiologia estão entre as perguntas mais temidas dos exames de Medicina" (Balint, 2014, p. 81). Portanto, nessa teoria, o indivíduo nasce em um estado de total relação com seu entorno, seja biológica, seja libidinalmente, de forma que o nascimento é um trauma que altera o equilíbrio pela mudança radical do entorno (sob uma verdadeira ameaça de morte), constituindo uma separação entre o indivíduo e o entorno.

 

Função apostólica

No campo do estudo da transferência, outra das dimensões importantes a serem consideradas é o ponto de vista das relações de poder que se afiguram. Nesse âmbito, é interessante trazer a leitura sobre a função apostólica (Balint, 1988) ao presente estudo, pois nessa apreensão há a sustentação da relação médico-paciente do ponto de vista do poder que a figura do médico exerce, sobretudo se tivermos em mente a necessidade que um sujeito severamente perturbado tem de fusão com o analista, o que remete à fusão com o objeto primário, tornando a relação essencialmente de dependência.

Balint chama a atenção para este conceito como uma problemática de ordem médica e moral, uma vez que se postula existir, por parte do médico, "uma vaga mas quase inabalável ideia sobre o modo como deve se comportar o paciente quando está doente." (Balint, 1988, p. 186). Perpassando todos os detalhes do trabalho do médico com o paciente, a função apostólica agiria como um ato de fé.

Elencando uma série de exemplos de debates clínicos dos seminários que realizava com médicos, Balint realça a postura do médico frente a inúmeras questões que surgiam na relação com o paciente e como eram manejadas. Nesses exemplos, ele traz uma luz ao fato de que existem nuances que extrapolam o domínio puramente médico. O autor, que era médico e psicanalista, traz da psicanálise para a medicina o conceito de contratransferência, cujo enfoque se situa no padrão relacional do ponto de vista do efeito que as fantasias do médico têm sobre o tratamento. Ao contrário de conferir uma suposta neutralidade do médico, o desejo do médico que seu paciente adira ao processo e melhore é a base da função apostólica. E a condição para esta adesão é a necessidade que o paciente siga seus parâmetros.

Nesses seminários que Balint realizava com os médicos havia muita discussão em torno dos seus comportamentos, que resultavam de medos inconscientes, por exemplo, de que seus pacientes os abandonassem, da raiva em virtude de os pacientes não cumprirem suas normas, ou algum fator que mexesse em suas cotas narcísicas investidas no tratamento. A ideia é de que o tratamento só pode ser realizado de maneira eficaz se o paciente é, de certa forma, convertido.

Assim, Balint põe em xeque a medicina que buscava tão somente nos órgãos dos pacientes a etiologia das doenças (Foucault, 2014), mas supõe uma extrema importância no aspecto relacional do par médico-paciente: "São muitas as esferas da medicina moderna nas quais a ciência pouco contribui para o trabalho do clínico geral, e nas quais este deve apoiar-se essencialmente sobre seu senso comum, que é simplesmente outra denominação da função apostólica." (Balint, 1988, p. 193). É nesta medida que o anseio de cura do médico deve ser compreendido como uma força influenciadora, que atua como uma droga: "Desejo destacar novamente que o zelo apostólico - do mesmo modo que o reconforto - não é em si mesmo atitude negativa; ao contrário, trata-se de uma droga de grande poder, e de notáveis possibilidades." (Balint, 1988 p. 193).

Balint nota em sua contemporaneidade, pelos idos da metade do século XX, uma crescente temática do individualismo, correlacionando a função apostólica ao adensamento do número de pessoas isoladas e solitárias. Sustenta inclusive que as pessoas procuram cada vez menos os sacerdotes, identificando que lhes resta se dirigirem aos médicos para se queixarem.

É neste contexto que Balint afirma uma ocorrência frequente de medicamentos como importante ferramenta terapêutica, e que fazem com que os pacientes melhorem, ainda que não se saiba exatamente o porquê. Do ponto de vista dinâmico, Balint salienta que, no início do tratamento medicamentoso, o paciente em geral fica organizado em sua doença, de modo que esta resulte inacessível terapeuticamente. Nesse sentido, há oclusão dos elementos desencadeadores da doença e uma consequente retroalimentação da conversão à fé nos medicamentos, fator que eleva o médico à categoria de "confortador". A crença nos medicamentos é o deslocamento necessário da fé no médico, restando este como a droga por excelência. Isto significa que o profissional se administra a si mesmo. Assim, é imprescindível estudar essa droga em potencial, o analista: "O estudo da 'função apostólica' é talvez o modo mais direto de estudar o efeito principal - o efeito terapêutico - dessa substância." (Balint, 1988, p. 206).

Entretanto, se a fé consiste em um elemento necessário na dinâmica transferencial, ponto ressaltado por Balint, a dependência neste mesmo enredo é a outra face da mesma moeda. Nesse sentido, veremos como, a partir da noção de alienação e dependência, a psicanálise, na leitura de Piera Aulagnier, incorre no risco de se tornar uma ética da moralidade. O poder que o psicanalista exerce é algo que fundamentalmente deve ser analisado, pois ele pode facilmente recair numa perspectiva salvacionista, funcionando tal como uma droga.

 

Destinos do prazer e alienação no pensamento de Piera Aulagnier

Considerando a importância da transferência, sublinharemos que há uma busca de prazer no domínio psíquico que leva a um estado de dependência, mediante a leitura que Piera Aulagnier realiza da tríade alienação-amor-paixão como três destinos que podem ser impostos ao pensamento e aos investimentos libidinais. Por meio do estudo sobre os destinos do prazer (Aulagnier, 1985), a autora define a relação do toxicômano com o objeto droga como um dos três protótipos em função da natureza do objeto no que ela chama de relação passional. Aulagnier ressalta que a relação do toxicômano com a droga é de apaixonamento. Por essa via, aproximamos o pensamento de Aulagnier com o exposto sobre a função apostólica e a caracterização da falha básica, de Balint, apesar de enxergarmos diferenças cruciais do ponto de vista de como esses autores se posicionam frente à relação transferencial. A questão do poder posta através de uma relação de verticalidade é o que perpassa as leituras, apesar das diferenças, e que pretendemos sublinhar como aspecto fundamental sobre a transferência na atualidade.

Aulagnier sustenta que existem relações simétricas e assimétricas. Nas relações simétricas o protótipo seriam as relações amorosas, enquanto as relações passionais seriam abarcadas nas relações assimétricas, tendo como variante a alienação. O estado de alienação é, na definição de Aulagnier, "um destino do Eu e da atividade de pensar que visa a um estado a-conflitual, através da abolição de todas as causas de conflito entre o identificante e o identificado e, também, entre o Eu, seus desejos e os desejos dos outros por ele investidos." (Aulagnier, 1985, p. 34).

A autora sustenta que o modelo da alienação, um estado prototípico das relações assimétricas, revela o paradigma estruturado nos limites entre a neurose e a psicose. A pista dada por Aulagnier é bem interessante para pensar a atualidade, na qual a clínica revela um incremento da dinâmica com pacientes limítrofes, ou como Roussillon (2014) chama, pacientes com patologias narcísico-identitárias.

Ora, entre a resposta neurótica e a resposta psicótica, a experiência prova a existência de uma terceira via de saída para o conflito identificatório. Via que será imposta ao sujeito porque os acontecimentos singulares de sua estória pessoal erodiram sua tolerância ao conflito, e porque a realidade ambiente que ele encontra o confronta efetivamente a injunções absurdas e paradoxais, a demandas cuja desmedida torna impossível qualquer resposta que não seja marcada pelo compromisso que efetua a atividade de pensar e que eu chamo de alienação. (Aulagnier, 1985, p. 18)

Assim, a autora define a alienação como um dos destinos que o conflito identificatório pode impor ao eu. É preciso contextualizar nossa intenção aqui, que é de trazer o conceito de alienação da autora com a intenção de nos guiar no exame da questão da transferência como um estado complexo de relações possíveis, iluminando as nuances de dependência, tal como uma droga ocasiona na toxicomania.

Na exposição sobre as relações de simetria, Aulagnier diferencia o amor de uma forma patológica dos investimentos do eu, "porque amar implica e exige que o Eu tenha podido diversificar e preservar um certo número de destinatários de suas demandas de prazer, embora não-sexual" (Aulagnier, 1985, p. 144). Para que esta flexibilidade possa ocorrer, é preciso que o eu tenha podido conservar a capacidade de mobilidade dos investimentos.

Esta mobilidade se exclui do que Aulagnier chama de uma primeira fase da relação Eu-realidade ou Eu-Eu do outro, na qual o eu da criança não pode separar objeto da necessidade e objeto do prazer. Mas à medida que o eu se desenvolve, é preciso que um longo trabalho de separação ocorra. Com efeito, se tal separação for possível, Aulagnier afirma a possibilidade do estabelecimento de uma simetria.

Assim, amar significa, nessa perspectiva, compartilhar (ou ao menos ter a ilusão de compartilhar) uma determinada cota de investimento de maneira não excessiva e marcada pela não exclusividade. A simetria nas relações se configura, portanto, numa espécie de reciprocidade do poder afetivo na qual "cada um dos dois 'Eus' faz do outro o depositário privilegiado mas não exclusivo de suas demandas de prazer" (Aulagnier, 1985 p. 148).

Já do ponto de vista das relações assimétricas, haveria uma coincidência no poder de prazer e de sofrimento presentes que comportaria uma diferença qualitativa e não quantitativa, o que quer dizer que na relação passional o eu é inexistente para o objeto que ele investiu passionalmente (como é o caso da droga), ou no caso de o objeto ser um outro Eu, só há o reconhecimento de um poder de prazer neste outro eu. Nesse caso, sustenta a autora, "o Eu dos outros não reconhece o indício de realidade do Eu do sujeito, ou lhe reconhece apenas um poder ansiogênico, um poder de sofrimento e jamais um poder de prazer" (Aulagnier, 1985, p. 149).

A relação passional contém uma dimensão de dependência, posto que está centrada na categoria de exclusividade dos investimentos de prazer. Em função dessa característica, Aulagnier postula três protótipos da relação passional: (i) a relação do toxicômano com o objeto droga; (ii) a relação que liga o jogador à atividade particular que é o jogo; e (iii) a relação do eu com o eu de um outro, que configuraria a paixão propriamente dita.

Essas relações apontam para uma interessante equivalência nas dinâmicas assimétricas e que se revelam importantes para o atual estudo, pois indicam a insígnia de vínculos marcados por um poder que pode ser conflitivo, em alguma medida, todavia necessário e dependente. Mesmo que existam outras formas de investimento, como é o caso da relação do toxicômano com a droga, houve o estabelecimento intrincado entre prazer e necessidade.

Na formulação acerca da finalidade da pulsão, que é a satisfação, permitindo o reencontro com o estado de prazer, a pergunta fundamental levantada por Aulagnier em seu trabalho sobre os destinos do prazer se inscreve no questionamento das transformações das forças pulsionais "cegas", na medida em que há formulação de demandas a um outro eu. É assim que compreendemos a fenomenologia transferencial na mesma formulação da relação eu-outro que na relação eu-objeto droga, pois a experiência de prazer depende da relação que a droga, assim como o jogo, induzirá entre o sujeito e a representação pela qual o sujeito pensa a realidade enquanto se encontra sob o efeito da droga.

Observando mais intrinsecamente as coordenadas das relações assimétricas aqui postuladas, extraem-se importantes considerações sobre a economia psíquica e as alterações provenientes dessas relações, que apontam inequivocamente para a dinâmica no coração da experiência analítica, posto que a análise pressupõe a abstinência da atividade sexual para que a angústia surja, como expusemos inicialmente. É importante frisar que o analista pode funcionar como uma droga. No entanto, a dimensão do conhecimento desta característica não pode ser negligenciada, com o perigo de que a relação se perpetue num plano de pura dependência.

O analisando recorre ao analista pedindo ajuda no ponto mesmo onde ele não consegue liberar seu circuito pulsional de um labirinto do gozo. E no entanto ele pode se enredar numa trama nova, mas apenas deslocada, qual seja, a dependência da figura do analista, da mesma forma que, segundo Aulagnier, ocorre na toxicomania, relação na qual existe um compromisso entre "o desejo de não mais pensar a realidade e a recusa ou a impossibilidade de recorrer à reconstrução delirante desta realidade, ou ainda, a toxicomania é um compromisso entre o desejar e o preservar e o desejo de reduzir ao silêncio a atividade de pensamento do eu" (Aulagnier, 1985, p. 152).

Isso incrementa as possibilidades de destruição do sujeito, já que mais dependência leva a um uso de substâncias cada vez mais intenso, no desejo de prolongar cada vez mais o efeito. Portanto, no prazer que experimenta o toxicômano ocorre uma contemplação passiva das representações que se apresentam em seu espaço psíquico, o que possibilita o deslocamento para o objeto droga da responsabilidade e da escolha das representações que se impõem à atividade do pensamento enquanto dura o efeito da droga. A pauta da assimetria se configura na verticalidade da relação de gozo que o Deus-droga lhe oferece para pensar.

A prevalência da vivência de sofrimento é, assim, crucial nessa dinâmica da relação do eu com o outro de forma assimétrica, uma relação passional, por assim dizer. A dimensão do sofrimento ocorre, seja pela rejeição do objeto, seja pelo medo dessa rejeição. Esse fato revela a articulação pela qual Aulagnier constata as mesmas características com relação ao objeto droga e na relação com o objeto "Eu do outro", uma vez que, se a intensidade de sofrimento e a intensidade de prazer são equivalentes, o tempo de sofrimento supera em muito o tempo de prazer.

Com efeito, a superintensificação do sofrimento subsome a fórmula do "eu gozo, portanto eu amo" pela "eu sofro, portanto eu amo", demonstrando a necessidade desse prazer que se pode traduzir por uma fórmula masoquista. Com isso, há, por um lado, um circuito de retroalimentação com a figura do analista na qual a relação de assimetria é triunfante, e o poder e a dependência são inequivocamente os elementos de combustão nessa trama. Por outro lado, a oclusão narcísica propicia um isolamento subjetivo cada vez mais intenso, revelando essa faca de dois gumes entre se vincular e não se vincular. Tal maneira de situar a questão pronuncia uma amarração sobre o objeto que satisfaz conjuntamente o desejo de prazer e o desejo de sofrimento, supondo uma idealização do objeto nesse estado passional, no qual o eu vive à espera do objeto necessário.

 

Conclusão

A articulação metapsicológica que se pretendeu realçar com a leitura dos destinos do prazer nas relações de alienação com Aulagnier sustentou-se fundamentalmente num traço narcísico intrinsecamente relacionado à trama das relações que a autora chama de assimétricas. Do ponto de vista das metas pulsionais, o objeto e a finalidade se encontram antinômicos e paralelos ao mesmo tempo, dado que se opera uma fusão fonte de prazer que tem como causa a solução precária e frágil do estado de conflito que opõe Eros e Tânatos. É por isso que, na tentativa de silenciar a dimensão conflitiva, o recuo narcísico serve como respaldo, ao mesmo tempo em que há uma espécie de fusão ao objeto, sem o qual é com o abismo do vazio e do desamparo que se encontra descortinado para o sujeito.

Logo, ao mesmo tempo em que um fusionamento ocorre no encontro com o objeto, ao menor sinal de separação ele revela um afastamento intrínseco. Essa é uma característica basilar que distingue esse tipo de investimento da relação simétrica, já que no amar, diferentemente da paixão, "a possibilidade do Eu de sentir prazer sem pagar com um excesso de sofrimento ou por um estado conflitual agudo pressupõe que o Eu consiga preservar o investimento 'implicado' de dois lugares e duas formas de prazer - o prazer e o espaço do pensamento, o prazer e o espaço do corpo" (Aulagnier, 1985, p. 160).

Assim, poder amar exige uma implicação realizada pelas metas da energia libidinal em que o eu se apropria e investe em seu funcionamento psíquico, correndo os riscos do desencontro amoroso, mas sobrevivendo, pois existem outros destinatários do prazer. É esta implicação que está constantemente sob risco de ruir na trama passional, e pode nos conduzir a pistas sobre as dificuldades encontradas no âmbito transferencial na atualidade.

O ponto precisamente que desejamos marcar com a leitura de Aulagnier é que a psicanálise pode constantemente incorrer no risco de se inscrever no registro de uma dependência pelo vínculo que pode haver entre analista e analisando. Nesse sentido, a psicanálise deixa de ser paradisíaca, porque contém elementos inerentes ao coração de sua atividade que são altamente perigosos. Essa leitura põe em perspectiva a visão unilateral que podemos ter sobre a relação transferencial tal como se coloca na questão da função apostólica, de Michel Balint. Com efeito, a leitura de Balint chama a atenção para a possibilidade de o analista estar no lugar salvacionista, convertendo o paciente à fé no seu poder.

 

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Recebido em 17 de agosto de 2018
Aceito para publicação em 30 de novembro de 2018

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