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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.31 no.2 Rio de Janeiro maio/ago. 2019

http://dx.doi.org/10.33208/PC1980-5438V0031N02A07 

SEÇÃO TEMÁTICA - O FAZER CLÍNICO EM PSICOLOGIA

 

Impasses da psicanálise em uma instituição militar

 

Impasses to psychoanalysis in a military institution

 

Impases del psicoanálisis en una institución militar

 

 

Flávia Brasil LimaI; Vinicius Anciães DarribaII

IDoutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. brasilflavia@hotmail.com
IIProfessor Associado do Instituto de Psicologia, Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. viniciusdarriba@gmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo é fruto de reflexões acerca da inserção institucional da psicanálise e do lugar do analista num campo bastante particular, uma instituição policial militar. Buscando articular algumas coordenadas que norteiam o militarismo e enquadram seus membros, valemo-nos da teoria dos quatro discursos de Lacan para refletir sobre os laços sociais instituídos nesse ambiente. Tal articulação visa a estabelecer os termos da discussão aqui proposta quanto aos impasses à circulação do discurso analítico. A partir dos impasses detectados na circulação deste discurso - o qual incide no sentido inverso à anulação subjetiva decorrente da fixação à identidade policial - e em seu entrecruzamento com os discursos vigentes nessa instituição, abordamos o desejo do analista como operador clínico crucial. Examinamos como, a partir da transferência na direção do tratamento, algo do sujeito do inconsciente pode ser mobilizado como efeito da fala endereçada ao analista. Em tal reflexão, leva-se em conta uma questão fundamental na experiência: a possibilidade de sustentar a posição de analista ocupando um posto de oficial na hierarquia da corporação.

Palavras-chave: psicanálise; instituição; militarismo; discursos.


ABSTRACT

This article arises out of reflections concerning the institutional insertion of psychoanalysis and the psychoanalyst's place in a rather particular field, a military police institution. As we seek to articulate aspects that shape militarism and bind its members, we employ Lacan's four discourses theory to reflect on the social bonds instituted by such an environment. This articulation intends to establish the terms of the argument proposed here concerning the impasses reached by the spread of the discourse of psychoanalysis. From impasses detected in the circulation of psychoanalytic discourse - which acts in the opposite direction to the subjective self-effacement that stems from the attachment to a police officer identity - and its intersections with the official discourse of the institution, we address the desire of the psychoanalyst as a crucial clinical operator. We examine how, as the transfer affects the course of treatment, some part of the unconscious subject can be mobilized as an effect of the speech directed to the psychoanalyst. In this reflection, we take into account a fundamental issue concerning the matter at hand: the possibility to sustain a psychoanalyst's stance at the same time as being a member of officer rank in the corps hierarchy.

Keywords: psychoanalysis; institution; militarism; discourses.


RESUMEN

Este artículo es resultado de reflexiones acerca de la inserción institucional del psicoanálisis y del lugar del analista en un campo bastante particular, una institución policial militar. Buscando articular algunas coordenadas que guían el militarismo y encuadran a sus miembros, nos valemos de la teoría de los cuatro discursos de Lacan para reflexionar sobre los lazos sociales instituidos en este ambiente. Tal articulación pretende establecer los términos de la discusión aquí propuesta en cuanto a los impases a la circulación del discurso analítico. A partir de los impases detectados en la circulación de este discurso - lo que incide en el sentido inverso a la anulación subjetiva resultante de la fijación a la identidad policial - y su entrecruzamiento con los discursos vigentes en esta institución, abordamos el deseo del analista como operador clínico crucial. Examinamos cómo, a partir de la transferencia en la dirección del tratamiento, algo del sujeto del inconsciente puede ser movilizado como efecto del habla dirigida al analista. En tal reflexión, se tiene en cuenta una cuestión fundamental en la experiencia: la posibilidad de sostener la posición de analista ocupando un rango de oficial en la jerarquía de la corporación.

Palabras clave: psicoanálisis; institución; militarismo; discursos.


 

 

Introdução

Freud (1919[1918]/1987) escreveu sobre o alcance da atividade psicanalítica ser reduzido a uma pequena parcela da população e supôs, no futuro, a existência de alguma organização que viabilizasse a extensão da psicanálise a uma massa maior da população. Em sua esteira, vemos hoje muitos psicanalistas trabalharem em diversas instituições e outros dispositivos para além dos consultórios particulares. Essa não é, entretanto, uma tarefa fácil, na medida em que traz à cena o alcance, as limitações e os impasses encontrados por analistas que tentam fazer o discurso analítico operar nestes lugares.

Em vista disso, pretendemos discutir a prática orientada pela psicanálise em uma instituição militar - mais especificamente a que se realiza em uma Unidade Operacional de Polícia, dito batalhão de polícia, onde são ouvidos os policiais e seus familiares (cônjuges e filhos) - com o objetivo de trazer à luz o que pode haver de refratário ao discurso analítico em uma instituição policial militarizada, sem deixar de considerar o modo particular de inserção do analista nela. Para tanto, destacaremos algumas coordenadas que norteiam o militarismo e enquadram seus membros, valendo-nos do arcabouço teórico dos quatro discursos, estabelecido por Lacan (1969-1970/1992) no Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise, para refletir sobre a dinâmica que subjaz aos laços sociais instituídos nesse ambiente.

 

A Instituição

A Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ), que é, segundo a Constituição (Brasil, 1988), força auxiliar e reserva do Exército Brasileiro, tem o militarismo como norma que configura todas as suas regras. Seu pilar é a escala hierárquica que dispõe seus membros de acordo com o posto que cada um ocupa.

Com Freud (1921/1987), destacamos que essa configuração é a descrita em Psicologia das massas e análise do eu, onde, ao referir-se ao Exército, ressalta que a identificação horizontal aos membros do grupo é sustentada pela identificação vertical ao líder; que está, portanto, no lugar da exceção que funciona como ideal que institui o grupo. Tal lógica é a mesma que subjaz ao lugar do pai morto do mito de Totem e tabu (Freud, 1913[1912-1913]/1987), o qual Lacan (1957-1958/1999), ao aludir ao Nome-do-Pai, demarcou como pura função. Essa função, embora seja encarnada pelo líder, não é apenas externa, pois o pai morto, como uma exceção interna, é o que permite que cada um dê tratamento ao que figurava localizado como um gozo do Outro.

É, portanto, a partir desse lugar de exceção que Lacan (1957-1958/1999), apoiando-se na teoria do complexo de Édipo de Freud (1924/1987) e, ao mesmo tempo, avançando com relação a ela, estabelece no início de seu ensino o Nome-do-Pai como função que, mediante a metáfora paterna, substitui a relação primordial entre a criança e a mãe por um significante, fundando a sua lei. Nos termos do que Lacan (1969-1970/1992) designa como discurso do mestre mais tarde em seu ensino, época em que estabelece os quatro discursos elaborados a partir da dialética do senhor e do escravo de Hegel (1807/1992), o Nome-do-Pai funcionará como um significante mestre (S1), na medida em que é tomado como o significante inaugural "que representa a existência do lugar da cadeia significante como lei" (Lacan, 1957-1958/1999, p. 202). Diversamente do signo, que representa alguma coisa para alguém, ele é o que representa um sujeito para outro significante. A função paterna opera, portanto, como S1, princípio que ordena em direção ao S2, funcionando, como veremos, nos moldes do discurso do mestre.

A teorização sobre os quatro discursos é o momento em que Lacan (1969-1970/1992) retoma a noção de pluralização dos Nomes-do-pai, que havia começado a formalizar no final do Seminário, livro 10: a angústia (1962-1963/2005) para dar continuidade no seminário do ano seguinte, o qual foi interrompido por sua exclusão da International Psychoanalytical Association em 1964. Foi nesse momento de seu ensino que Lacan desenvolveu a noção de objeto a, relacionando-o com a angústia e localizando-o como causa de desejo, distanciando-se assim de Freud, que formulou o desejo como efeito da interdição paterna. Lacan (1962-1963/2005) promove uma subversão ao demonstrar que não é o pai o operador da lei que causa o desejo, mas sim o objeto a. Assim, não é o pai, consequentemente, que efetiva a castração, pelo fato de que ela é efeito da inserção do sujeito na linguagem. O pai é, portanto, aquele que, por ser castrado, desejante, apenas transmite o desejo. Consequentemente, a formulação do objeto a dá início à derrocada do pai freudiano, conduzindo à pluralização dos Nomes-do-pai.

A retomada da noção de pluralização dos Nomes-do-pai no momento de elaboração dos quatro discursos, no seminário O avesso da psicanálise (Lacan, 1969-1970/1992), está relacionada à passagem da incompletude do Outro para a inconsistência do Outro. Formulada no seminário De um Outro ao outro (1968-1969/2008), essa passagem decorre do abandono da consistência do significante do Nome-do-pai e é concomitante ao deslocamento da questão relativa ao que daria consistência ao discurso para o plano do objeto. Essa inconsistência do Outro não diz respeito ao significante último que faltaria à bateria dos significantes, mas sim àquilo que se institui como gozo perdido pela incidência do significante no corpo, a partir de uma operação lógica que inscreve o objeto a, na função de mais-de-gozar (Lacan, 1968-1969/2008, p. 44), no lugar do que fazia furo no Outro. Segundo Miller (2007, p. 15), "é preciso passar pela inconsistência do grande Outro, pelo furo que ele comporta, definir o próprio objeto a como o furo que se designa no nível do Outro, a fim de emparelhar o pequeno a com o grande Outro". Portanto, se para Freud a perda de gozo era imputada à interdição do pai, para Lacan ela é engendrada em termos de estrutura, incluindo o gozo na estrutura; o que torna o pai do Édipo dispensável como significante mestre primordial, ou, como propõe Lacan (1969-1970/1992, p. 110), aquele seria um sonho de Freud.

É interessante perceber o quão consonante com os acontecimentos da época veio a ser a retomada da questão do pai por Lacan, pois o seminário sobre os quatro discursos foi proferido no ano seguinte aos protestos estudantis de maio de 1968 na França, que justamente questionavam os ideais e os valores tradicionais vigentes naquele momento. O que esse movimento que abalou a França e teve proporções mundiais descortinou, surtindo efeitos até os dias de hoje, é que os ideais sustentados pela regulação da metáfora paterna como esteio único dos valores tradicionais de nossa cultura estão em declínio, na medida em que valores como o patriarcado, a família, a sexualidade e, em última instância, a própria lei simbólica estão sendo questionados. Queremos pensar, aqui, como isso reverbera no contexto atual da Polícia Militar. Por exemplo, quando se observa que o lugar da exceção pode ser ocupado por qualquer um, mesmo por quem não é líder.

Em vista disso, pretendemos nos voltar para a hipótese de que há a concorrência de outro discurso na Polícia Militar, o que não decorre somente da contração da função paterna como discurso do mestre - a qual, como dissemos acima, é efeito da pluralização dos Nomes-do-Pai. Como salienta Greiser (2012, p. 118, tradução nossa), ela "deriva da rotação de um quarto de volta deste último, substituído assim pelo discurso universitário"1. Segundo essa autora, o discurso do mestre dá lugar ao dito discurso universitário (Lacan, 1969-1970/1992), na medida em que as instituições estão atualmente sob "o paradigma contemporâneo das burocracias sanitárias" (Greiser, 2012, p. 115, tradução nossa)2. Assim, não há quem responda como autoridade garantindo que um dizer funcione como lei (S1), pois as pessoas estão cumprindo uma função determinada por um estatuto ou regulamento e ninguém toma decisões, apenas cumprem ordens determinadas por uma gestão administrativa que, por isso, é anônima. Trata-se do saber (S2) que, com o giro de um quarto de volta, passou a ocupar o lugar dominante no discurso (ver Figura 1 - Quatro discursos).

Lacan, ao introduzir o discurso universitário, aproxima-o efetivamente das burocracias. Referindo-se à passagem do discurso do mestre para o discurso universitário, destaca que o "que se opera entre o discurso do senhor antigo e o senhor moderno, que se chama capitalista, é uma modificação no lugar do saber" (Lacan, 1969-1970/1992, p. 29). Nesse momento, Lacan chama o senhor moderno do discurso universitário de capitalista por conta da usurpação do saber do escravo (S2) pela exploração capitalista, que passou ao lugar dominante, antes ocupado por (S1), promovendo uma tirania do tout-savoir3, que funciona como se fosse possível um saber absoluto constituindo uma totalidade. Entretanto, o que ocorre é que isso torna ainda mais opaco o que concerne à verdade desse discurso. Daí ele ser anônimo, uma vez que não é possível acessar o significante mestre (S1), a lei, que foi deslocada para o lugar da verdade, que situa o que no discurso está sob a barra do recalque e não é acessível.

Seguindo nossa hipótese, o que nossa experiência clínica deixaria entrever é que os impasses à circulação do discurso analítico se intensificam quando está em vigor o discurso universitário, em relação a quando opera o discurso do mestre. Isso decorre do fato de que o saber que está em jogo na experiência da psicanálise não é da ordem do conhecimento ou da representação, mas "trata-se precisamente de algo que liga, em uma relação de razão, um significante S1 a um outro significante S2" (Lacan, 1969-1970/1992, p. 28). Tal é o funcionamento da cadeia significante que, justamente quando tropeça, faz irromper as formações do inconsciente. Daí Lacan (1969-1970/1992) afirmar que o discurso da psicanálise é o avesso do discurso do mestre.

Já o discurso universitário, por operar com a ideia de que o saber (S2) pode constituir uma totalidade sem furos, tal como a ideia imaginária do todo que é dada pelo corpo, obstaculiza o trabalho da análise ao inviabilizar que, pelas vias do inconsciente, ou seja, do encadeamento significante S1-S2, se desvele o saber não-sabido referido ao saber inconsciente. Dito de outro modo, o saber (S2) do discurso universitário é totalmente distinto daquele do discurso do mestre, e essa diferença é fundamental para a operação analítica que trabalha na via deste último, a partir da falha na sequência significante S1-S2 que irrompe na fala.

 

Entre o senhor antigo e o moderno

Veja a Figura 1 - Quatro discursos.

Nos termos do discurso do mestre, teríamos o comandante, o líder da tropa comandando as ações que norteiam seus comandados, que são executores de suas ordens. O significante mestre (S1) representante da lei estaria, portanto, em posição de comando e agiria sobre os integrantes da tropa, alienando-os de suas vontades particulares em prol da constituição de um saber (S2) sobre a execução das diretrizes do policiamento ostensivo. Trata-se de um saber derivado, isto é, subordinado à ordem do significante mestre, que visa à produção da força policial.

A força policial seria, consequentemente, o produto do discurso do mestre e funcionaria como objeto mais-de-gozar, pois a dimensão do gozo localiza-se no discurso do mestre a partir da extração do objeto a resultante da articulação significante S1-S2, que Lacan (1969-1970/1992), apoiando-se na função da mais-valia de Marx (1867/2013), nomeia como mais-de-gozar. Segundo Marx (1867/2013, p. 374), a mais-valia é o que gera o trabalhador quando "trabalha além dos limites do trabalho necessário, [que] custa-lhe, de certo, trabalho, dispêndio de força de trabalho, porém não cria valor algum para o próprio trabalhador"; ou seja, trata-se de um excedente de trabalho, um excesso que é produzido pelo trabalhador e do qual ele não tem como se reapropriar. Para Cardoso e Darriba (2016, p. 194), "a mais-valia, tornada modelo do mais-de-gozar, torna possível compreender de que maneira o gozo pode ser produzido/extraído pelo que nos pareceria o mais distante da experiência corporal, por algo de ordem eminentemente estrutural". Então, a dimensão do gozo estaria no fazer policial, como força de trabalho que se extrai deste encadeamento instaurado pelo comando (S1) e sob o jugo do saber (S2). Enquanto a tropa deteria o saber sobre a força policial repassando do mais antigo ao mais moderno na hierarquia, o líder da tropa, pela disposição no discurso, teria como verdade velada sua própria posição subjetiva, já que na posição de comando apenas ordena e não executa.

Como dito anteriormente, pelo viés do discurso universitário haverá uma modificação no lugar do saber (S2), então localizado na posição de comando. Esta modificação pode ser detectada na Polícia Militar quando as regras do militarismo passam a ser exercidas sem o necessário agenciamento do líder enquanto representante da lei. Por exemplo, quando a regra clássica regida pela hierarquia que determina privilégios das patentes superiores sobre as inferiores é suplantada pelo conhecimento interpessoal como determinante para concessão de alguns direitos. Disso decorre que o lugar reservado na hierarquia para cada um não seja mais determinante como função de poder e comando, tampouco o saber acumulado, antes repassado do mais antigo ao mais moderno. Nesses termos, Lacan (1969-1970/1992, p. 194) inclui, na passagem do discurso do senhor antigo para o do senhor moderno, no lugar que antes era o do escravo, o proletário, e acrescenta que "o proletário não é simplesmente explorado, ele é aquele que foi despojado de sua função de saber".

Temos então, no lugar do agente, a própria doutrina militar como S2 que, no caso da PMERJ, é encarnada pelo Regulamento Disciplinar da Polícia Militar, o RDPM (Estado do Rio de Janeiro, 1983), que estabelece rígidas normas de convívio social dentro e fora da caserna. Esse é o documento que rege as ações dos policiais e se ocupa de especificar e classificar aquelas consideradas faltas disciplinares, somando um total de 125 transgressões, estabelecendo a partir disso as punições a elas relativas, cuja finalidade é o fortalecimento da disciplina. Trata-se de uma tentativa de normatizar de forma meticulosa todas as esferas de sociabilidade do policial, de modo a funcionar como uma rígida camisa de força, na medida em que tipifica transgressões, tanto no que se refere à conduta do policial militar no interior da corporação, quanto nas atividades de policiamento, incluindo até mesmo o convívio social do policial em sua vida civil.

O poder disciplinar, segundo Foucault (2001), tem a função de adestrar os indivíduos para melhor utilizar suas forças num todo. Assim diz ele: "a disciplina 'fabrica' indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício" (Foucault, 2001, p. 143). Tomar os indivíduos como objetos e instrumentos é o que Lacan articula como o que o discurso universitário instaura, na medida em que parte de uma tirania do saber (S2) que objetifica (a) o outro e cuja pretensão insensata é a produção de um ser pensante, fazendo as vezes do sujeito. Mas o que se produz é um sujeito dividido por esse saber burocrático: por um lado, homem e, por outro, agente policial. Esse sujeito, Lacan (1969-1970/1992, p. 166) diz que "de maneira alguma poderia se perceber por um só instante como senhor do saber", pois, como produto, ele não tem acesso a sua verdade, onde está localizado o significante primordial (S1) que o marca.

Uma vez pensado o modo de configuração dos laços sociais no batalhão de polícia militar, voltamos à pergunta inicial quanto à dificuldade para o discurso analítico operar nesta instituição.

 

Há lugar para a psicanálise?

Antes de avançar, é necessário dizer que instaurar a clínica psicanalítica num ambiente policial militar consiste em uma invenção. É preciso pensar a possibilidade do trabalho quando a demanda surge, pois, mesmo que o policial procure o psicólogo da instituição de livre vontade, como é o caso nos batalhões, o policial veicula o discurso no qual está inserido. Propositalmente dizemos que ele procura o psicólogo da instituição, pois é assim que somos vistos e apresentados. Que ele encontre um analista que o tome no lugar de sujeito dependerá do lugar desde o qual se dá a resposta. Dito de outro modo, o analista com sua presença, ao não responder à demanda, visa a promover um giro discursivo que fomente a emergência dos significantes fundamentais. Trata-se aqui de visar ao sujeito dividido que, diferente do indivíduo, é efeito da própria manifestação inconsciente na fala, que aparece na brecha do encadeamento significante S1-S2, autenticado pelo analista. Daí Lacan (1964b/1998, p. 848) dizer que "os psicanalistas fazem parte do conceito de inconsciente, posto que constituem seu destinatário". Ou seja, o analista enquanto destinatário do inconsciente faz parte dele. Por isso não podemos dizer que o inconsciente é individual, pois precisa de alguém que acolha seus efeitos. É na medida em que o analista intervém demarcando o sujeito da enunciação que se dá a interpretação, revelando a enunciação presente no enunciado e fazendo existir nesse ato o inconsciente.

A aposta enquanto analista nessa instituição é, portanto, dar lugar a uma escuta que prioriza aquilo que é singular de cada um frente à linguagem homogeneizante do grupo. Essa não tem sido, entretanto, tarefa fácil, pois nos batalhões o espaço para a subjetividade é muito reduzido, o que aparece por meio de uma fala codificada, que é institucionalizada, repetitiva e queixosa dessa mesma realidade. Os policiais que procuram por atendimento dão a impressão de pouco subjetivar a realidade da qual fazem parte, o que não quer dizer que não falem de si, mas que, mesmo quando o fazem, sua fala manifesta-se sem referência a uma suposta interioridade, da qual estes sujeitos tivessem algo a dizer e com a qual se surpreendessem. A forma superficial como o conflito parece se manifestar no discurso dos policiais nos faz indagar se há espaço para a subversão inconsciente. Suas queixas remetem quase que exclusivamente às mazelas que a própria instituição lhes causa, numa posição rígida, pouco afeita a qualquer deslize.

Diante disto, nos perguntamos se, da dificuldade em localizar o singular de cada um, participa a prevalência do discurso universitário, já que nele o sujeito está alijado dos significantes fundamentais que o marcam. Isso pelo modo como se dispõem os termos no discurso, pois Lacan (1969-1970/1992) afirma que, no discurso universitário, ao sujeito enquanto produto não é possível estabelecer um encadeamento significante a partir de seus significantes primordiais pelo fato deles estarem inacessíveis, sob a barra do recalque. Fica vedada a aproximação àquilo que lhe é constitutivo e cujo acesso poderia produzir algum efeito de verdade. Independente do que se coloque no lugar de agente, portanto, a produção não tem qualquer relação com a verdade.

O que ocorre é que a lei (S1), ao aparecer no lugar da verdade, produz efeitos específicos, sobretudo porque, uma vez escondida, não há nada que esteja em posição de articular o desejo à lei. Um dos efeitos de um discurso impessoal como esse é que emissor e receptor são apenas instrumentos ocasionais no reino do saber, sendo este, o saber absoluto (S2), quem ocupa a totalidade do direito à fala. Portanto, não há quem fale em nome próprio e assuma a responsabilidade plena daquilo que diz e faz, como no caso do discurso do mestre, onde disso não há como se esquivar.

Com relação ao que aí se distingue, destacamos das demandas dos policiais uma queixa recorrente em que dizem: "somos apenas números, ninguém está preocupado se estamos bem". Acrescentam que seus direitos não são respeitados e, como números, são apenas peças de reposição, pois, caso venham a ficar impossibilitados de trabalhar por algum infortúnio, são descartados e substituídos. Entendemos que essa queixa é, ao mesmo tempo, resultado desta lógica impressa pelo discurso do mestre moderno - universitário; em que o trabalhador "é apenas unidade de valor" (Lacan, 1969-1970/1992, p. 76), mas também porta um apelo ao outro, alguém que lhe desse um lastro.

A partir do que evidenciamos até aqui, podemos detectar que os policiais buscam junto ao psicólogo o reconhecimento, uma restituição do lugar que ocupam na engrenagem institucional, numa tentativa de resgate do ideal perdido. Isso acontece porque, ao ingressarem numa instituição moldada conforme o Exército, os policiais esperam ter assegurada uma identidade forjada tal como o discurso do mestre determina, segundo o ideal no lugar da lei estabelecendo um lugar para cada um. Lembremos que Freud (1921/1987, p. 126) propõe uma fórmula para grupos com líder que diz o seguinte: "um grupo primário desse tipo é um certo número de indivíduos que colocaram um só e mesmo objeto no lugar de ideal do eu e, consequentemente, se identificaram uns com os outros em seu eu". Ele acrescenta, ainda, que a estabilidade do grupo se mantém em função da ligação com o líder. Caso ela se desfaça, sobrevém o fenômeno do pânico e o grupo se desintegra. Então, segundo nossa hipótese, se prevalece o discurso universitário, eles estão como sujeitos divididos, que é o que esse discurso produz, mas sem conseguir questionar-se sobre a posição que ocupam nesta engrenagem. Logo, há algo de determinante quanto ao papel da instituição, mas que não nos cabe tomar aqui de modo demasiado consistente na medida em que lidamos com o caso a caso, ou seja, com o particular de cada caso e com o que faz sintoma para cada um.

Então, diante do apelo de reconhecimento dirigido a nós, remetemo-nos à indagação: como ir além desta reiteração de reconhecimento identitário? Dito de outro modo, como se posiciona o analista para que suas intervenções não se dissolvam e se percam entre os discursos que prevalecem na instituição? Quanto a isso, Greiser (2012) frisa que o analista que trabalha em instituições não deve fazer eco às reivindicações do sujeito, sob pena de operar a partir do discurso histérico (ver Figura 1 - Quatro discursos). Este questiona o discurso do mestre, uma vez que no lugar do agente está o sujeito dividido dirigindo-se aos significantes mestres (S1), mas concerne, por excelência, ao trabalho do analisando e não o do analista. Também não deve intervir no plano normativo, já que assim estaria no discurso universitário. Menos ainda deve o analista manobrar a conduta do sujeito a partir dos ideais identificatórios, pois estaria no plano do discurso do mestre.

Há ainda um importante complicador para o analista que trabalha nessa instituição, pois os psicólogos inserem-se como oficiais de saúde; ou seja, enquadram-se dentro da estrutura hierárquica do regime militar, o que é muito bem demarcado pelo uso obrigatório da farda branca e das insígnias que marcam o posto ocupado na hierarquia. Fato que estabelece uma questão fundamental: como sustentar a posição de analista, uma vez que se é psicólogo e, ao mesmo tempo, se está enquadrado como os demais na hierarquia da polícia e submetido às mesmas regras disciplinares?

Em vista disso, indagamo-nos quanto à ideia difundida de neutralidade do analista, a qual, embora não tenha sido especialmente desenvolvida por Freud, ganhou importância no modo como veio a se apresentar a formação dos analistas na época. Estaria dita neutralidade comprometida nesse ambiente? Já que o analista, como oficial psicólogo e identificado em um lugar predeterminado hierarquicamente, contradiria a orientação de Freud (1912/1987, p. 131) de que "o médico deve ser opaco aos seus pacientes e, como um espelho, não mostrar nada, exceto o que lhe é mostrado".

Como ser opaco em tais circunstâncias? A que se refere a opacidade em jogo para o analista?

 

A neutralidade do analista

A recomendação de Freud (1915[1914]/1987), presente nas indicações à técnica psicanalítica, de que devemos manter a neutralidade para com o paciente foi apresentada historicamente como característica da posição do analista no tratamento. Caberia a este, principalmente, controlar os anseios afetivos despertados pelo analisando e, além disso, se abster de dirigir a vida do paciente em análise segundo seus próprios ideais. Sobre este ponto, Lacan (1958/1998) é bem claro quando diz que o analista dirige o tratamento, mas não deve de forma alguma dirigir o paciente.

A opacidade a que se refere Freud (1912/1987) foi então relacionada à subjetividade do analista, que não deve estar presente na condução de uma análise. Em decorrência dessa indicação, entretanto, houve um enrijecimento na exigência de estabilidade do setting, sobretudo nas convenções prescritas pela International Psychoanalytical Association. Segundo Jorge (2016), a construção de um enquadre radicalmente neutro pretenderia justamente neutralizar a interferência da subjetividade do analista. Entretanto, ele chama atenção para o fato de que a preocupação com o setting visa à neutralização pela via do imaginário, que apaga a dimensão simbólica, que é a verdadeira neutralidade exigida para o analista.

Jorge (2016) vai um pouco mais longe ao dizer que o medo de não intervir como analista é um deslocamento do lugar de objeto próprio ao analista e, consequentemente, a entrada em cena de uma posição subjetiva que corresponde a uma posição de analista imaginária. Assim, diz ele, vemos "como a preocupação de dimensão imaginária da estabilização do setting surge como uma defesa contra esse medo" (Jorge, 2016, p. 45, tradução nossa)4.

Esta nos parece uma articulação preciosa para pensarmos sobre a prática clínica de que estamos tratando neste artigo, pois evidencia que, se a preocupação quanto a ser oficial está do lado do analista, este pode acabar respondendo exatamente desse lugar ao invés do lugar do analista. Isso nos remete a situações exemplares, em que a analista - como pretenso manejo da dificuldade do policial de falar, atribuída ao desconforto causado por sua posição de "capitão" - se preocupou em indicar que não estava ali para julgar e que a diferença hierárquica não se aplicava ao tratamento. Foi justamente aí que o policial não voltou, ficando claro que a preocupação prévia da analista, quanto a sua posição, havia de fato desfeito a transferência necessária ao início do trabalho analítico.

Indicamos esse tipo de situação como exemplar por dois motivos: o primeiro evidencia que o setting não é o mais importante, mas sim o lugar do analista, que, segundo Jorge (2016), é essencialmente discursivo e privilegia na fala do analisando a dimensão simbólica; o segundo decorre do primeiro, e diz respeito à transferência e a seu manejo, considerada crucial ao tratamento desde Freud e corroborada por Lacan (1958/1998, p. 594) como o "segredo da análise". Não se trata, então, de o analista evitar que o analisando o instale em dado lugar ou o tome a partir de um traço de identificação, uma vez que é assim que a transferência se estabelece. O que cabe ao analista é justamente sustentar-se numa posição na qual possa manejar a transferência, manter a demanda de tratamento e dirigi-lo.

Lacan, no seminário em que se dedica à questão da transferência, esboça o que se configura como o lugar próprio do analista ao enunciar:

que possamos talvez definir, e em termos de longitude e de latitude, as coordenadas que o analista deve ser capaz de atingir para, simplesmente, ocupar o lugar que é o seu, o qual se define como aquele que ele deve oferecer vago ao desejo do paciente para que se realize como desejo do Outro. (Lacan, 1960-1961/1988, p. 109)

Trata-se, portanto, de um lugar vazio, deixado livre do próprio desejo, que não deve estar preenchido por esse objeto que, como afirma Rabinovich (2000, p. 14), é o "desejo de seu Outro particular". De modo que, ao ocupar um lugar vazio de suas próprias intenções, o analista pode oferecer-se como suporte às demandas do paciente, desde que não responda a elas, dando-lhe voz e deixando o campo livre para a circulação da fala que lhe é própria. O analista, assim, permite que a transferência seja estabelecida, condição para a condução do tratamento. Essa posição é fundamental para que opere o que Lacan (1969-1970/1992) vem a formular como discurso do analista, ponto de chegada crucial, como ressalta Jorge (2016), da interrogação acerca do lugar do analista no ensino lacaniano.

 

Construindo o lugar do analista

Veja a Figura 1 - Quatro discursos.

No discurso do analista, Lacan (1969-1970/1992) situa no lugar do agente o analista como objeto causa de desejo (a), ou seja, o analista não responde do lugar daquele que sabe, e assim impele o sujeito, no lugar do outro, "a dizer o que ele próprio sabe, sem saber que sabe" (Jorge, 2002, p. 30). Interrogando-se sobre a estrutura do discurso do analista, no Seminário, livro 17, Lacan articula assim a posição do analista:

essa posição é, substancialmente, a do objeto a, na medida em que esse objeto a designa precisamente o que, dos efeitos do discurso, se apresenta como o mais opaco, há muitíssimo tempo desconhecido, e no entanto essencial. Trata-se do efeito de discurso que é efeito de rechaço. (Lacan, 1969-1970/1992, p. 40)

É interessante pensarmos na indagação a respeito do preceito freudiano de que o analista deve ser opaco aos seus pacientes, pois Lacan postula que, na posição de objeto a, o analista apresenta justamente o que há de mais opaco como efeito de discurso, que é o efeito de rechaço. Eis o que está em jogo nesta posição e que Lacan considera essencial o analista sustentar: o efeito de rechaço do discurso, aquilo a que se repudia ou resiste e que o sujeito sabe sem saber que sabe. Essa é a via aberta por Freud nos primórdios da psicanálise, ao trazer à luz o fato de que somos movidos por um saber que não se sabe. Tal é o inconsciente que, como o sujeito desconhecido do eu, desnuda que "o eu não é o senhor de sua própria casa" (Freud, 1917/1987, p. 153).

Portanto, numa instituição cujos lugares são fortemente demarcados pela hierarquia, a disciplina, a farda, os rituais e as insígnias, o analista é também inserido nesses moldes, cabendo a ele se emprestar aos efeitos imaginários, ao invés de pretender se des-identificar ou se desvencilhar deles. Trata-se antes de, partindo desse lugar, operar sem estar aderido ao cargo. Assim, entendemos quando Lacan (1958/1998, p. 593) diz que o analista também entra com sua quota no tratamento, pois o analista paga com sua pessoa - essa é sua estratégia, diz ele, "na medida em que, haja o que houver, ele a empresta como suporte aos fenômenos singulares que a análise descobriu na transferência".

É uma torção a ser feita estando dentro desse lugar, para que algo que estava fora seja incluído. Como uma via para o resgate do recalcado, do segregado, do excluído, mas não partindo de fora, e sim de dentro. Ao mesmo tempo, é como se criasse um fora dali ali, em uma torção que só é possível a partir do desejo do analista, designado por Lacan (1964a/1988) como função crucial para sustentação de sua posição.

Com relação ao que estamos designando como uma torção possível, a partir da sustentação do lugar ocupado pelo analista, reportamo-nos a situações como quando o policial, após algumas entrevistas, não volta a aparecer e a analista, ao ficar sabendo que ele está de licença, decide telefonar-lhe para saber como ele está. O telefonema da analista vem a deslocar a relação de subordinado/superior, na medida em que, segundo o policial, um superior não liga para um subordinado a não ser para cobrar. Pelo efeito que provocou, verificamos que a oficial/psicóloga constituiu, ao ligar, um enigma e introduziu uma questão que, nos moldes de uma torção, veio a permitir a abertura para a Outra cena, que diz respeito ao inconsciente. Isso porque no instante em que se pôde estabelecer uma separação entre os lugares, a qual pôde ser sustentada pela analista como questão, descortinou-se uma brecha, um dispositivo para a fala diferente daquele a que se está condicionado no ambiente militar.

Lacan, em Variantes do tratamento-padrão (1955/1998, p. 352), diz que "o analista se distingue por fazer de uma função que é comum a todos os homens um uso que não está ao alcance de todo mundo, quando ele porta a palavra falada". Trata-se do que o analista faz pela fala do sujeito a partir de sua posição de ouvinte, não só por acolhê-la, mas por guardar-se em silêncio ao invés de responder. Assim, o psicanalista posiciona-se segundo uma "douta ignorância" (Lacan, 1955/1998, p. 364), que diz respeito a um não-saber. Este não é uma negação do saber, mas um furtar-se a um saber prévio, que é quando o analista "deixa de ser portador da fala" (Lacan, 1955/1998, p. 361), por acreditar já saber o que ela tem a dizer.

O analista se abstém de responder segundo um saber prévio e, menos ainda, de acordo com as paixões que o habitam, porque "é possuído por um desejo mais forte que os desejos que poderiam estar em causa" (Lacan, 1960-1961/1992, p. 187). Eis o desejo do analista, que não se confunde com os de sua pessoa, na medida em que opera a partir de um lugar que aceitou ocupar, cuja responsabilidade diz respeito "ao desejo que o autoriza a ocupar esse lugar e não à pessoa do analista responsável pela pessoa do seu paciente" (Bernardes, 2003, p. 3).

É nesse sentido que o silêncio do analista é um dos modos de resposta, pois, ao não responder à demanda do paciente, introduz uma incógnita que põe em jogo a interpretação. Trata-se de deixar um vazio que enseja ao trabalho do analisando que, na busca de completá-lo, a partir da transferência, envereda na via de seu desejo. Para Lacan (1969-1970/1992), a interpretação deve ter a estrutura de um enigma, cuja função é a enunciação de um semi-dizer, já que não existe uma verdade absoluta. No discurso do analista, o saber (S2) está no lugar da verdade, e é justamente advertido de que "a verdade, nunca se pode dizê-la a não ser pela metade" (Lacan, 1969-1970/1992, p. 34) que deve operar o analista na condução de uma análise.

Portanto, o desejo do analista convoca o desejo do paciente, uma vez que o analista se abstém como sujeito e opera como objeto a, em posição de a, tal como é situado no discurso do analista. Assim postula Lacan:

É como idêntico ao objeto a, quer dizer, a isso que se apresenta ao sujeito como causa de desejo, que o analista se oferece como ponto de mira para essa operação insensata, uma psicanálise, na medida em que ela envereda pelos rastros do desejo de saber. (Lacan, 1969-1970/1992, p. 99)

O que esta clínica demonstra é que, quando o analista sustenta sua posição a partir do desejo do analista, há como efeito a mobilização do sujeito do inconsciente e algo que estava inacessível, mascarado pela pretensa unidade que a identidade de policial confere, pode aparecer. A questão enigmática que surge do lado do policial, ao não ser respondida pela analista, possibilita que, a partir da brecha instaurada pela fala, não se seja mais apenas policial e outras possibilidades possam advir.

 

Considerações finais

A despeito das dificuldades e limitações encontradas na tentativa de inscrever um lugar para endereçamento de questões subjetivas a pessoas não habituadas a um espaço para a fala particularizada e propícia à subjetivação, por ser o avesso da linguagem codificada e homogeneizante característica dessa instituição militar, apostamos na experiência da transferência que, aliada ao desejo do analista, funciona como mola para que uma psicanálise seja possível. Assim, não recuamos diante do que se apresenta como refratário à circulação do discurso do psicanalista nessa instituição, cuja rígida organização militar delineia os modos de estruturação dos laços sociais de seus membros e que, tal como outras instituições tradicionais de nossa cultura, não deixa de sofrer influência do declínio dos ideais e do patriarcado presente na atualidade, o que tem efeitos na maneira como se inscrevem os discursos nela vigentes, afetando diretamente a vida do policial.

O psicanalista situa-se num lugar peculiar na instituição, uma vez que está inserido na hierarquia ostentando uma patente como oficial psicólogo e submetido às regras disciplinares que regem o militarismo. Para operar a partir do discurso do analista, precisa, então, ocupar um lugar que só é construído no caso a caso e a partir do desejo do analista como operador fundamental para a produção de um deslocamento da demanda inicial de tratamento. Entendemos que somente assim é possível acessar o sujeito do inconsciente que é efeito da fala endereçada ao analista em transferência.

Frisamos ser esse o efeito que se espera do encontro com um analista, que pode se desdobrar em uma série de encontros ou não, pois o essencial é que algo dessa divisão possa ser tocada, pelo fato de que é essa a via do desejo. Acreditamos que a psicanálise como práxis numa instituição como a polícia militar é indispensável porque, ao conduzir o sujeito na trilha do desejo, possibilita se deslocar por relação ao discurso homogeneizante que o aliena das trilhas inconscientes de seu sofrimento.

 

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Recebido em 04 de março de 2018
Aceito para publicação em 12 de agosto de 2018

 

 

1 No original: "deriva de la rotación de um cuarto de vuelta de este último, substituído así por el discurso universitário".
2 No original: "el paradigma contemporáneo de las burocracias sanitárias".
3 Optamos por manter o termo em francês porque, embora nesta edição tenha sido traduzido por "tudo-saber", há também a alternativa de tradução como "todo-saber" (Lacan, 1969-1970/1992, p. 29).
4 No original: "Comment la préoccupation de la dimension imaginaire de la stabilisation du setting surgit comme une défense contre cette peur".

 

 

Anexo

 

 

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