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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.31 no.3 Rio de Janeiro set./dez. 2019

http://dx.doi.org/10.33208/PC1980-5438v0031n03A02 

SEÇÃO TEMÁTICA - QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS DA MULHER

 

Representações maternas de gestantes sobre o bebê concebido por ovodoação

 

Pregnant women's maternal representations about the baby conceived by egg donation

 

Representaciones maternas de gestantes sobre el bebé concebido por donación de óvulos

 

 

Ivana Elia SchneiderI; Tagma Marina Schneider DonelliII

IMestre em Psicologia Clínica pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, RS, Brasil. ivanaschneider.psico@gmail.com
IIProfessora Assistente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, RS, Brasil. tagmad@unisinos.br

 

 


RESUMO

Este estudo tem como objetivo investigar as representações maternas de gestantes sobre o bebê concebido por ovodoação. Realizou-se uma pesquisa qualitativo-exploratória, com delineamento de estudo de casos múltiplos. Participaram três gestantes com idades entre 44 e 45 anos, que preencheram uma ficha de dados sociodemográficos e clínicos, responderam à entrevista IRMAG e a uma entrevista sobre reprodução assistida; também foram utilizadas anotações de campo. Os dados foram analisados a partir de dois eixos temáticos, um apoiado em elementos da realidade objetiva e outro em elementos da realidade subjetiva, abordando a ovodoação de forma transversal. Os resultados destacaram as expectativas em torno das características físicas da criança ao nascer, evidenciando a genética, e expectativas sobre a saúde física do bebê vinculadas à doadora. Revelar à criança sua origem genética não é considerado relevante nesse momento pelas gestantes. As representações são comuns às de gestações naturais e a doadora se fez presente nas representações sobre o bebê.

Palavras-chave: representações maternas; gestação; ovodoação; bebê.


ABSTRACT

This study had the goal of investigating pregnant women's maternal representations about the baby conceived by egg donation. A qualitative-exploratory research was conducted, with a multicase study design. Three pregnant women aged between 44 and 45 years took part, who filled a sociodemographic and clinical data sheet, answered the IRMAG interview and were interviewed about assisted reproduction; field notes were also used. The data was analyzed along two thematic axes, one based on elements of objective reality, and the other on elements of subjective reality, approaching egg donation transversely. The results highlight the expectations around the physical characteristics of the child to be born, pointing out genetics, and the expectations about the baby's physical health related to the donor. Revealing to the children their genetic origin was not considered relevant by the pregnant women at this moment. The representations are common to natural pregnancies and the donor was present in the representations about the baby.

Keywords: maternal representations; pregnancy; egg donation; baby.


RESUMEN

Este estudio investigó las representaciones maternas de gestantes sobre el bebé concebido por donación de óvulos. Se realizó una pesquisa cualitativo-exploratoria, con delineamiento de estudio de casos múltiples. Participaron tres gestantes entre 44 y 45 años, que llenaron una ficha de datos sociodemográficos y clínicos, respondieron a la entrevista IRMAG y a una entrevista sobre la reproducción asistida; además se utilizaron anotaciones de campo. Los datos fueron analizados a partir de dos ejes temáticos, uno apoyado en elementos de la realidad objetiva y otro apoyado en elementos de la realidad subjetiva, abordando la donación de forma transversal. Los resultados destacaron expectativas en torno a las características físicas del bebé, evidencia de la genética, y las expectativas sobre su salud física, vinculadas a la donadora. La revelación sobre el origen genético para el niño no es considerada relevante en este momento por las gestantes. Las representaciones son comunes a las de gestaciones naturales y la donadora se hizo presente en las representaciones sobre el bebé.

Palabras clave: representaciones maternas; embarazo; donación de óvulos; bebé.


 

 

Introdução

A gestação é um período de profunda complexidade na vida de uma mulher, envolvendo transformações biológicas e psíquicas. Ao mesmo tempo em que ela abriga outro ser no interior de seu corpo e mente, o bebê permanece ausente da realidade visível. Esse estado desencadeia um universo de representações mentais características, estudado por diferentes autores (Ammaniti, 1995; Aulagnier, 1999; Brazelton & Cramer, 1992; Bydlowski, 2002; Golse, 2002; Lebovici, 1987; Stern, 1997).

Stern (1997), psicanalista que se dedicou ao estudo das relações iniciais mãe-bebê, apresentou contribuições importantes para a compreensão das representações no contexto da maternidade, tanto no que diz respeito à constituição destas na mente da criança, quanto na dos pais. Ao falar sobre o mundo representacional dos pais, o autor considera que ele inclui não apenas as experiências das interações atuais com o bebê, mas também suas fantasias, esperanças, medos, sonhos, lembranças da própria infância, modelos de pais e expectativas para o futuro bebê. A criança, portanto, é representável, ao mesmo tempo, por elementos atuais e do passado (Aulagnier, 1999; Bydlowski, 2002; Rebelo, 2015; Stern, 1997).

No período gestacional, conforme o feto vai se desenvolvendo no útero da mãe, o bebê representado também é desenvolvido em sua mente (Stern, 1997). Especialmente entre o quarto e o sétimo mês de gestação, a sensação dos movimentos do bebê ocasiona um rápido aumento da riqueza, quantidade e especificidade das representações sobre o futuro bebê. Já a partir do sétimo mês, as representações tendem a diminuir pela proximidade do parto, preparando um espaço para o bebê real (Stern, 1997).

A literatura psicanalítica identifica vários tipos de bebês com os quais a mãe se relaciona em sua mente. Lebovici (1987) utiliza o termo "bebê imaginário" para referir-se à representação do bebê desenvolvido na gestação, resultado do desejo do casal, diferenciando-o do "bebê edípico", composto pelas fantasias presentes desde a infância em cada um dos membros do casal. Golse (2002) amplia esses conceitos, acrescentando a noção de "criança narcísica", sucessora dos ideais dos pais, e "criança mítica", resultante do grupo de representações coletivas de uma determinada sociedade.

Uma gestação pode ocorrer em contextos os mais diversos. No caso de uma gestação obtida por meio de tratamento de reprodução assistida, esta pressupõe uma situação prévia de infertilidade, apresentando certas peculiaridades que farão parte do universo representacional materno. Entre as diversas possibilidades que a tecnologia de reprodução assistida proporciona, destaca-se a ovodoação. Trata-se de uma prática que viabiliza a fertilização a partir de óvulos de doadora, quando a mulher não tem a possibilidade de utilizar seus próprios óvulos para a obtenção de uma gestação (Santos & Quayle, 2013).

A gestação por meio da ovodoação difere de outras, espontâneas ou por tratamento de reprodução assistida, pela presença do óvulo alheio e sua respectiva doadora, preservando a genética do parceiro. Por exigências da legislação brasileira, até o ano de 2017 a doação de óvulos era condicionada a que a doadora também estivesse em tratamento para infertilidade. A Resolução nº 2.168/2017 do Conselho Federal de Medicina (CFM, 2017) definiu a possibilidade de doação voluntária de óvulos, mantendo a condição da preservação do sigilo da identidade entre doadora e receptora. Embora seja vedado o caráter comercial da doação, esta alteração possibilita a aquisição de óvulos em bancos específicos.

Tal contexto coloca muitos desafios ao psiquismo, sendo escassos os estudos encontrados que abordem essa temática. Referindo-se ao trabalho psicológico de fantasia do bebê durante a gestação nos casos de concepção por meio de ovodoação, Faria (2005) considera ser essa uma tarefa particularmente difícil. Segundo a autora, o desconhecimento de parte da genética faz com que as fantasias e medos sejam exacerbados, levando também a uma necessidade de fantasiar a doadora. O estudo de Figueiredo (2012) observou que a presença da doadora é uma constante nas diversas etapas da gestação ao nível simbólico, influenciando na construção do bebê imaginário.

Ehrensaft (2012) também menciona a presença de fantasias em torno da doadora, relacionando a manutenção do segredo sobre o assunto por parte dos pais a esse fato. A questão da manutenção do segredo ou revelação da origem genética tem sido destacada com relevância em diversos estudos que tratam do tema da ovodoação (Cochini et al., 2011; Ehrensaft, 2012; Figueiredo, 2012; Montagnini, Malerbi & Cedenho, 2012; Plut & Oliveira, 2013).

As representações maternas têm sido estudadas em diferentes contextos, abordando a forma como cada situação específica de gestação impacta o psiquismo materno e sua relação com o bebê após o nascimento (Budzyn, Wendland & Levandowski, 2017; Cox & Maccotta, 2014; Faria & Piccinini, 2015; Ferrari, Piccinini & Lopes, 2007; Marciano, 2017; Piccinini et al., 2004). Tratando especificamente sobre as representações maternas e a ovodoação, encontrou-se na literatura a pesquisa de Cochini et al. (2011), cujo objetivo foi o de estudar as experiências e as representações maternas de mulheres inférteis durante as etapas de tratamento de reprodução assistida com doação de óvulos. Os autores apontaram que nenhuma se dispôs a participar do estudo após a concretização da gestação. Entenderam esse resultado como uma defesa frente às inquietudes e questionamentos ocasionados pelo processo de ovodoação, numa tentativa de pensar o mínimo possível sobre o assunto.

A reprodução assistida vem sendo abordada de forma crescente na literatura psicanalítica, mas são escassas as pesquisas publicadas, especialmente sobre a prática específica da ovodoação. Considerando a relevância da construção do bebê no psiquismo materno durante a gestação pelas implicações nas relações precoces após o nascimento (Chagas, 2014), constitui objetivo deste estudo investigar as representações maternas de gestantes sobre o bebê concebido por ovodoação.

 

Método

Delineamento

A presente pesquisa utilizou uma abordagem qualitativa do tipo exploratória, a partir da realização de estudos de casos múltiplos (Yin, 2010).

Participantes

Participaram desta pesquisa três gestantes que passaram por tratamento de reprodução assistida e que conceberam por meio de óvulos de doadora, mantendo a ligação genética do parceiro, conforme apresentado na Tabela 1. Foram utilizados nomes fictícios, no propósito de preservar o anonimato das participantes.

Instrumentos e Procedimentos

As participantes foram abordadas numa clínica de reprodução assistida da região Sul do Brasil, que mediou o contato entre as gestantes interessadas em participar e a pesquisadora. A coleta dos dados deu-se na residência de cada participante e todas assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Foi preenchida uma Ficha de Dados Sociodemográficos e Clínicos elaborada para este estudo, coletando informações sobre idade, escolaridade, nível socioeconômico, situação conjugal e profissional, bem como questões referentes à situação da infertilidade e gestação. Na sequência, foi realizada a Entrevista Sobre a Reprodução Assistida, também elaborada para este estudo, composta por nove questões abordando a história da infertilidade, história do tratamento de fertilização e tópicos específicos sobre a ovodoação.

A coleta de dados finalizou com a aplicação da IRMAG (Intervista per le Rappresentazioni Materne in Gravidanza), específica para avaliar as representações maternas na gestação. Trata-se de uma entrevista semiestruturada validada por Ammaniti et al. (1995), constituída por 41 questões, que abordam seis grandes áreas: (1) desejo da maternidade na história da mulher e do casal; (2) emoções em torno do anúncio da gravidez; (3) emoções e mudanças durante a gestação; (4) percepções e fantasias sobre o bebê; (5) expectativas e preparação para a chegada do bebê; e (6) identidade como futura mãe e como filha de sua mãe.

Os dados foram coletados num único encontro, com exceção de uma das participantes, com quem a coleta de dados se deu em dois momentos distintos. As entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas para análise dos dados. Durante todo o processo, foram feitas anotações de campo sobre as situações e percepções da pesquisadora relacionadas aos procedimentos da pesquisa.

O estudo foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da UNISINOS sob o CAAE nº 54815616.8.0000.5344, estando em conformidade com as exigências éticas e metodológicas esperadas de uma pesquisa com seres humanos, conforme a Resolução CNS nº 466/2012.

Procedimentos de Análise de Dados

A Entrevista sobre a Reprodução Assistida e a IRMAG foram analisadas qualitativamente por meio da análise temática proposta por Braun e Clarke (2006). As categorias temáticas foram definidas a posteriori, a partir dos dados levantados nas entrevistas e considerações da literatura sobre o tema.

Em seguida, foram organizados dois eixos temáticos que auxiliaram na construção individual de cada caso: Eixo 1: representações sobre o bebê apoiadas em elementos da realidade objetiva, para analisar os aspectos imaginados acerca do bebê provenientes de dados reais, tais como procedimentos de fertilização e ovodoação, procedimentos de ecografia, movimentos fetais e identificação do sexo do bebê; e Eixo 2: representações sobre o bebê apoiadas em elementos da realidade subjetiva, para analisar os aspectos imaginados acerca do bebê provenientes do mundo interno e imaginativo da gestante. Neste eixo foram abordados os sonhos noturnos, compreendidos como expressão de desejos inconscientes e tentativas de elaboração, expectativas em torno de características físicas e de personalidade, temores, e escolha do nome.

Os casos foram estruturados individualmente e o tema da reprodução assistida por ovodoação foi abordado de forma transversal, perpassando a compreensão dos eixos em cada caso, embora tenha sido abordado de forma mais específica no Eixo 1. Os dados da ficha de dados sociodemográficos e clínicos e as anotações de campo foram utilizados para complementar a construção de cada caso.

Após isso, foi desenvolvida uma síntese pelo cruzamento dos casos conforme a proposta de Yin (2010), sendo que o confronto dos resultados obtidos na análise individual possibilitou a identificação de convergências e divergências, proporcionando evidências que auxiliaram na investigação das representações maternas das gestantes sobre o bebê concebido por ovodoação.

 

Resultados

Caso 1 - Aline e a filha forte e independente

Aline tem ensino superior completo e pós-graduação, trabalha como profissional liberal e tem sua própria empresa. O marido tem um filho de casamento anterior. Sua primeira tentativa para engravidar deu-se aos 40 anos de idade. Não relatou outros problemas de infertilidade e não tem histórico de aborto.

(a) Representações sobre o bebê apoiadas em elementos da realidade objetiva

A proposta da ovodoação, como alternativa de tratamento para a infertilidade constatada, levou Aline a buscar muitas informações sobre essa prática. Encontrou apoio na ideia de que "aquela carga genética que a criança vai carregar é muito pouco do que vai ser o teu filho realmente", minimizando o fator genético.

No processo de decisão pela ovodoação, o pensamento em torno da real possibilidade de seu bebê vir a ter irmãos se fez presente. A impossibilidade de acesso a informações acerca da doadora despertou temores relacionados com o futuro da filha, no sentido de estar exposta a relações incestuosas.

A fertilização resultou em três embriões, sendo necessário realizar uma escolha para implantação. Frente à decisão do casal de implantar somente um embrião para evitar a possibilidade de uma gestação gemelar, a escolha recaiu sobre o embrião de "excelente qualidade", conforme a avaliação do médico.

Aline afirmou que a presença de um óvulo doado não implica que o bebê pertença a quem o doou. Com muita ênfase, disse que este bebê lhe pertence: "Tá, tem o DNA, mas ela tá na minha barriga, é os meus sentimentos que ela tem. Eu que tô gerando ela. Eu que vou criar, então ela é minha."

Sustentou que não faria diferença para a filha saber ou não saber sobre sua origem genética. Condicionou a decisão sobre a revelação da ovodoação às características da filha no futuro: "Eu gostaria de contar. Mas acho que vai depender dela. Porque eu acho que isso não vai mudar nada na vida dela. Ela é minha filha."

Relatou ter sentido muita emoção, chorando a cada vez que via a filha nas ecografias, assegurando o desenvolvimento saudável. O temor de doenças pelo desconhecimento da genética da doadora se fez presente a cada exame.

Quanto à percepção dos movimentos fetais, Aline associou as manifestações do bebê aos seus próprios sentimentos. Atribuiu-lhe a capacidade de intencionalidade e autonomia, fato identificado nas verbalizações em que diferenciou os movimentos do bebê de suas próprias intenções.

Antes de decidir pela ovodoação, imaginava-se olhando para um filho, questionando sua capacidade de suporte caso a criança apresentasse um aspecto físico diferente do seu. Pensava que se tivesse um menino, a falta de semelhança física não a afetaria. A confirmação de uma menina no exame de ecografia contrariou sua expectativa inicial acerca do sexo do bebê, afirmando com pesar a convicção de que a filha não iria se assemelhar fisicamente a ela: "dá um quezinho assim, de pensar - 'ahh, a [nome da filha] não vai ser parecida comigo'."

(b) Representações sobre o bebê apoiadas em elementos da realidade subjetiva

Aline recorda ter sonhado com seu bebê em três ocasiões, sempre em torno das características físicas: "ela era muito moreninha e tinha uns olhão assim saltados, parecia uma caricatura. E daí eu dizia, 'meu Deus do céu, como é que eu vou dizer que essa criança é minha filha?'." Relacionou esse sonho com a preocupação de não ter revelado sobre a ovodoação aos familiares e com o temor de que a filha pudesse nascer com feições muito diferentes das de sua família.

Em outro sonho, o bebê apresentava características que vinham ao encontro de seu desejo, "bem branquinha, de olhinho claro [...] igual à mamãe". Em um terceiro sonho, o bebê apresentava características mais uma vez diferentes: "já sonhei com ela normalzinha, assim, castanhinha. É justamente por eu não conseguir imaginar, né, eu acho que eu fico sonhando...". Expressou a expectativa de desfazer a importância atribuída à semelhança física após o nascimento da filha.

Quanto às características de personalidade da filha, imaginou-as como provenientes tanto de si mesma quanto do marido. Aline escolheu para o bebê um nome que considera forte, bonito e fácil, revelando suas expectativas em relação à personalidade do bebê. Além de possuir significado religioso associado ao seu tratamento de fertilização, era o nome de sua bisavó: "Eu acho um nome forte. A minha bisavó era [nome da filha] também, foi uma mulher muito forte [...]. Então eu imagino a minha filha uma pessoa forte, uma pessoa do bem, forte, de personalidade."

Aline manifestou muitas expectativas em relação à filha, esperando que "ela se torne adulta cedo", para não ser totalmente dependente dos pais. Verbalizou o desejo de que a criança desenvolva características de personalidade que se assemelhem a sua família e que seja diferente da família do marido em alguns aspectos.

Caso 2 - Fernanda e o filho predestinado e voraz

Fernanda tem ensino superior completo e pós-graduação, e trabalha como servidora pública. Tentou engravidar pela primeira vez aos 34 anos de idade, quando um exame diagnóstico constatou a obstrução de uma de suas trompas. Desistiu das tentativas para engravidar, retomando somente oito anos mais tarde, em clínicas de reprodução assistida. Optou pela ovodoação após insucesso de FIV com os próprios óvulos, associado às características de sua idade. Engravidou após a segunda tentativa de FIV com óvulo de doadora.

(a) Representações sobre o bebê apoiadas em elementos da realidade objetiva

Para Fernanda, a decisão de realizar uma ovodoação foi possível por considerar que um filho é um ser espiritual já destinado ao casal: "Já está determinado. Então, independe muito, assim, do físico dele, da genética dele, é um ser espiritual que vem." Atenuou o sentimento em torno da possibilidade de não ter um filho parecido fisicamente com ela pela falta de sua genética com a ideia de que os cuidados e a educação "moldados" pelo ambiente criam identidades, tornando-o semelhante.

Durante as etapas da fertilização, Fernanda demonstrou necessidade de compreender o que se passava no interior de seu corpo, solicitando muitas informações a seu médico. Procurava imaginar o que aconteceria ao colocar o embrião em seu útero: "o embrião é como se fosse uma planta carnívora. Ele [o médico] disse assim: 'Ele [o embrião] vai pegar e vai tentar se agarrar no teu endométrio, ele vai lançar umas raízes e ele vai começar a se enraizar'. [...] 'Ah, então tá! [...] Porque eu pensei que ele largou ali e pronto, né'."

O início da gestação de Fernanda foi marcado pela ocorrência de sangramentos, havendo a necessidade de fazer repouso. As ecografias tiveram uma grande importância nesse período, assegurando a continuidade de sua gestação. Eram realizadas ecografias quinzenais para ver, segundo Fernanda, a "evolução do [problema que ocasionou os sangramentos]". Nas ecografias subsequentes, o olhar era voltado para a presença de um mioma, a situação da placenta baixa e o diâmetro do colo do útero, configurando um conjunto de fatores percebidos como riscos para a gravidez.

Fernanda mencionou que costuma olhar as fotos das ecografias. Ao mostrá-las para sua ginecologista, esta comentou que o bebê se parecia com ela, ao que respondeu "pois é, eu vou contrariar todas as teorias da genética. Tu vai ver, ele vai se parecer comigo."

Fernanda solicitou o auxílio de uma amiga para tentar reconhecer os primeiros movimentos do bebê, procurando diferenciar as sensações de seu próprio corpo: "daí eu comecei a prestar bastante a atenção pra tentar diferenciar o que que é um pum mesmo e o que que é um pum dentro.". Relacionou os movimentos do bebê como resposta à sua agitação, notando que ele se acalma assim que ela mesma fica quieta. As sensações dos movimentos do bebê na barriga trouxeram muitas preocupações: "Até o momento dele não se mexer, não sentir, tudo estava na alegria da gestação: 'ah que coisa boa, já está aparecendo o barrigão e tal' e agora já começa a preocupação."

(b) Representações sobre o bebê apoiadas em elementos da realidade subjetiva

Os sonhos noturnos revelaram preocupações em torno do aspecto físico do bebê. Relatou um sonho, quase um pesadelo, em que "nascia um prematuro e que não se parecia comigo". Atribuiu esse sonho à dificuldade de assimilar a ovodoação e à imagem do bebê prematuro de sua irmã gravada em sua memória.

Apesar de ter afirmado que o aspecto físico não tem importância, gostaria que o filho fosse fisicamente parecido com o marido, por ser apaixonada por ele. O fato de saber que a doadora escolhida é fisicamente parecida com ela remeteu à ideia de que a genética dela venha a ser dominante como a sua. Dessa forma, embora tenha afirmado não saber com quem o bebê vai se parecer, imaginou que o filho teria suas características físicas.

Gostaria que o filho tivesse um pouco da personalidade calma do pai, mas que se assemelhasse a ela quanto ao caráter, valores familiares e cultura de seu país de origem. Fernanda escolheu para seu bebê o nome de seu irmão mais velho. O marido gostou do nome sugerido e, ao pesquisarem o significado, confirmaram a decisão. Trata-se de um nome bíblico, relacionado à história de uma mulher que não podia ter filhos. Essa mulher prometeu dedicar o filho a Deus, caso Ele ouvisse suas preces. Ao conceber e dar à luz, ela escolheu um nome cujo significado é "Deus ouviu as minhas preces".

A maior expectativa de Fernanda situou-se no desejo de ter um bebê saudável, confiando que o processo de seleção feito pela clínica tenha escolhido óvulos de uma doadora saudável. Fez muito esforço para imaginar as necessidades de um recém-nascido, pois mencionou que costuma pensar em situações características de um bebê maior. Com base nas informações que buscou de amigas, afirmou imaginar que "ele vai mamar o tempo todo".

Caso 3 - Marta e o bebê evoluído

Marta, 44 anos, é casada, empresária e tem ensino superior incompleto. É a mais nova de uma prole de dois. Seu marido não teve filhos do casamento anterior. Tentou engravidar pela primeira vez aos 39 anos de idade. Engravidou naturalmente, mas houve um aborto espontâneo na oitava semana de gestação. Aos 42 anos passou por uma FIV com os próprios óvulos, que resultou em uma gestação e outro aborto espontâneo. Optou por fertilizar com óvulo de doadora em função da idade. Não relata outros problemas de infertilidade.

(a) Representações sobre o bebê apoiadas em elementos da realidade objetiva

O contexto da reprodução assistida proporciona a Marta a oportunidade de escolha do embrião a ser implantado. Entre os cinco embriões resultantes, um foi considerado excelente, segundo a opinião médica. Marta e o marido decidiram: "vamos pegar então o melhor, a gente quer um só".

A ovodoação proporcionou mais tranquilidade quanto a sua preocupação com possíveis problemas genéticos do bebê provenientes da idade. Disse confiar na avaliação médica realizada pela clínica sobre a escolha de uma mulher mais jovem e saudável.

Quanto a revelar à criança sobre a ovodoação, considerou não ser necessário contar-lhe, mas caso surgisse o assunto, pensou que iria falar. Entendeu tratar-se de uma situação diferente da adoção: "A adoção, sim, [...] desde quando o nenê chega em casa, ele começa já a amadurecer, a gente já vai contando né, que é filhinho do coração. Agora, a ovodoação vou deixar por conta do destino."

Por já ter passado por dois abortos, Marta estava muito apreensiva em relação à ecografia. Os resultados normais trouxeram sensação de alívio. Ficou surpresa ao saber sobre o sexo do bebê, pois a ecografia revelou um sexo diferente do que havia imaginado.

Marta identificou com muita convicção a primeira percepção de movimento do bebê: "Ela mexeu, [...] eu tenho certeza que é ela!". Disse conversar muito com seu bebê contando histórias, rezando, mantendo uma comunicação onde ambas se expressam e se fazem compreender. Disse que costuma conversar com a filha sobre o parto, considerando o bebê como um ser diferenciado, dotado de vontade própria e autonomia.

(b) Representações sobre o bebê apoiadas em elementos da realidade subjetiva

Contou ter sonhado poucas vezes com o bebê, sempre em torno da identificação do sexo, falando de forma vaga sobre o assunto. Marta afirmou não se importar com as características físicas de sua filha, considerando mais importante que seja saudável: "vindo com saúde, perfeitinha, assim, pra mim já tá de bom tamanho". Mesmo levando em conta a parte genética do marido, disse não saber se a filha será parecida com a família dele, pois não são fisicamente parecidos entre si.

Gostaria que a filha desenvolvesse características de personalidade provenientes tanto de sua família quanto da família do marido. Escolheu um nome inspirada em pessoas de destaque na mídia, valorizando a estética sonora. Queria um nome "forte", argumentando que nomes fortes "sustentam mais a gente como ser humano".

Marta manifestou a ideia de que seu bebê faz parte de uma geração mais evoluída, de crianças que já vêm com um "layout diferente". Afirmou que, como pais, terão mais a aprender do que ensinar à filha, que virá "para melhorar o mundo".

 

Discussão

Síntese dos casos cruzados

A análise dos dados possibilitou verificar que todas as participantes desenvolveram esquemas de representações sobre o bebê. Em relação ao eixo temático Representações sobre o bebê apoiadas em elementos da realidade objetiva, no que diz respeito aos procedimentos de fertilização e ovodoação, estes proporcionaram a situação de escolha do embrião a ser implantado. Foi possível observar a atribuição de características já nesse momento.

Marta e Aline decidiram pela implantação de um único embrião, com o critério de escolha pelo "melhor" ou "excelente", conforme avaliação médica. Se o discurso médico é direcionado ao campo do biológico, é possível compreender tal associação com o processo natural de "seleção da espécie" pela escolha do mais forte para a reprodução. Mas, entre as palavras proferidas pelo médico e a escuta da paciente (Szejer & Stewart, 1997), em sua origem este bebê pode ser considerado melhor que os demais, incrementando o narcisismo, fundamental para a construção e investimento libidinal no bebê imaginado (Brazelton & Cramer, 1992; Ferrari, Piccinini & Lopes, 2007).

Os procedimentos de reprodução assistida incrementaram ansiedades e fantasias, especialmente em Fernanda, que solicitou muitas informações nas etapas de fertilização. Sua ideia inicial de um "embrião solto" em seu útero deu lugar à ideia de um embrião "planta carnívora", que se agarra e se enraíza em seu endométrio, metáfora utilizada pelo médico para explicar o que acontecia após a implantação.

Aline e Fernanda minimizaram a importância da questão genética presente na concepção por ovodoação, enfatizando a maior influência e determinação do ambiente no desenvolvimento da criança, confirmando as constatações feitas por Canneaux et al. (2013). Já Marta atribuiu maior importância e valor à genética da doadora, por representar a possibilidade de ter um bebê saudável.

A ruptura da filiação genética pela presença do óvulo da doadora fere o narcisismo vinculado aos desejos de imortalidade (Brazelton & Cramer, 1992; Plut & Oliveira, 2013). É possível atribuir a tendência de Aline e Fernanda para o deslocamento da expectativa de continuidade materna às trocas interativas a este fato. O estudo de Imrie et al. (2018), no qual realiza um comparativo da relação parental em famílias que realizaram ovodoação e outras que utilizaram fertilização in vitro (FIV) com os próprios óvulos, sugere haver diferenças nas relações mãe-bebê, o que mostra o quanto a questão da genética alheia na gestação não é irrelevante após o nascimento.

No período de decisão pela ovodoação, somente Aline reflete sobre a real possibilidade de seu bebê vir a ter outros irmãos. Tal situação despertou a preocupação de que esse bebê possa estar sujeito a envolver-se em relações incestuosas no futuro, corroborando os achados da literatura quanto ao incremento dos temores e fantasias durante a gestação relacionados com a presença da doadora (Faria, 2005; Figueiredo, 2012).

Um aspecto peculiar aos casos de crianças nascidas por ovodoação é a revelação, por parte dos pais, sobre sua origem genética. Foi possível observar que a questão da revelação para a criança ainda não foi pensada por Fernanda. Aline e Marta pensaram sobre o assunto e consideraram essa informação desnecessária para criança. Apoiados na consideração de que o aspecto físico se apresenta como evidência externa acerca da origem genética, Monagnini, Malerbi e Cedenho (2012) apontam a tendência a manter o sigilo sobre a ovodoação quando há semelhança física entre pais e filhos, pois provavelmente não ocorrerão questionamentos de outras pessoas.

Sobre esta questão, Szejer (2002) enfatiza a importância de revelar à criança sua origem genética, entendendo que os "não-ditos" possam impedir sua estruturação psíquica saudável. Em geral, alguma pessoa de relacionamento mais próximo do casal tem conhecimento sobre a ovodoação realizada. Caso a criança venha a saber por vias indiretas, tal situação pode resultar em efeitos devastadores (Szejer & Stewart, 1997).

A tendência à não revelação é constatada e abordada em diversos estudos (Ehrensaft, 2012; Figueiredo, 2012; Montagnini, Malerbi & Cedenho, 2012; Plut & Oliveira, 2013). A pesquisa de Golombok et al. (2013) revela que as mães que mantiveram as origens de seus filhos em segredo mostraram níveis elevados de sofrimento, e, mesmo que as crianças saibam sobre as circunstâncias de sua concepção, elas ficam vulneráveis aos efeitos do sofrimento materno acerca dessa questão.

O argumento apresentado por Marta sobre a obviedade de se revelar a um filho sobre a adoção e a não necessidade de falar sobre a ovodoação é abordado no estudo de Montagnini, Malerbi e Cedenho (2012). Os autores entendem essa diferença pelo fato de que na ovodoação há a recepção de uma célula e não de um bebê, como no caso das adoções, que passaram pela vivência de gestação em outra mulher. Ao receber uma célula, o bebê já estaria inserido na família desde a concepção, sendo considerado filho.

Com relação aos procedimentos de ecografia, foi possível observar que a percepção do bebê pelas imagens adquiriu significados relacionados com as vivências que cada participante enfrentou no percurso dos tratamentos. Para Marta e Fernanda, foi tranquilizador constatar a continuidade da gestação, lembrando que Marta passou por dois abortos anteriormente e Fernanda teve sangramentos na fase inicial da gestação, temendo abortar. Aline aliviou-se ao constatar o desenvolvimento saudável do bebê. Enquanto Marta associou a saúde do bebê com a genética da doadora, Aline a percebeu como fonte potencial de doenças.

A preocupação com o estado de saúde do bebê e o temor de deformidades é comum em muitas gestantes (Piccinini et al., 2004; Sälevaara et al., 2016). No entanto, nas gestantes em estudo esses temores foram direcionados para a genética da doadora, que é inserida e utilizada conforme as angústias e necessidades de cada uma nas questões relativas ao estado de saúde do bebê.

Alguns autores consideram que o conhecimento do sexo do bebê antes do nascimento pode ser profilático quando a constatação real se distancia da expectativa, no sentido de proporcionar um tempo de elaboração e preparação de um melhor acolhimento da criança (Grigoletti, 2005; Szejer, 2002). Nos casos de Marta e Aline, o sexo do bebê identificado na ecografia contrariou suas expectativas, observando-se que, especialmente para Aline, a importância atribuída ao sexo ficou associada a seus conflitos iniciais em torno da ovodoação: a perspectiva de não encontrar sua imagem refletida em uma filha menina desafia sua tolerância quanto à percepção da ausência de sua genética.

Quanto às representações desenvolvidas a partir dos movimentos fetais, Aline e Marta identificaram seus bebês como diferenciados de seu próprio corpo, referindo-se ao bebê como "ela", atribuindo intencionalidade e autonomia às suas manifestações. Fernanda esforçou-se em diferenciar o bebê, mas este foi nomeado conforme sua própria sensação corporal - "um pum dentro" -, sendo percebido como uma modificação de um aspecto seu. A percepção do bebê como um ser diferenciado é considerada um fator importante, pois promove o exercício de desfazer gradualmente o sonho de fusão emocional proporcionado pelo período simbiótico do primeiro trimestre (Faria, 2005; Szejer, 2002; Szejer & Stewart, 1997). Na medida em que a percepção dos movimentos conferiu mais realidade ao bebê, tal situação causou preocupação para Fernanda, pois precisou deslocar a "alegria da gestação", o fato de estar grávida (ênfase narcísica), para dar lugar a uma criança.

No eixo temático Representações sobre o bebê apoiadas na realidade subjetiva, o conteúdo dos sonhos noturnos revelou de forma muito clara as preocupações de Aline e Fernanda em torno das características físicas do bebê associadas à ovodoação, evidenciando a permanência de suas apreensões existentes já antes da gravidez. Aline verbalizou seu temor de não conseguir reconhecê-la como sua filha caso apresentasse um aspecto físico muito diferente do seu. O estudo de Anzieu-Premmeurer (2017) descreve um caso de importantes problemas interativos mãe-bebê pela falta de semelhança física do bebê com a mãe, sinalizando o quanto a ideia da genética de doadora pode interferir de forma perturbadora.

Ao contrário da maior parte das mulheres grávidas, que podem ter a ilusão de colocar no mundo uma criança "cópia de si", as gestantes por ovodoação precisam renunciar a essa ilusão durante a gestação, ou mesmo antes (Canneaux et al., 2013). Os sonhos podem conter tanto uma função elaborativa e/ou evacuativa, como também de transição entre o mundo imaginário e a realidade (Zimerman, 2001). Percebe-se a expressão da angústia de Aline e a tentativa de elaboração psíquica mediante sonhos com bebês de características diferentes, ampliando as opções para receber o bebê real.

A preconcepção de Fernanda acerca do embrião "planta carnívora", agarrado em seu endométrio no período inicial da gestação, parece se estender à sua representação sobre o bebê após o nascimento, mantendo a ideia de voracidade ao imaginar um bebê que mamará o tempo inteiro. Por habitar solos pobres em nutrientes e terem raízes fracas, as plantas carnívoras desenvolveram a característica de digerir pequenos animais a fim de absorverem seus nutrientes, mas a imagem folclórica associada a um "monstro comedor de gente" parece estar presente (Saridakis, Torezan & Andrade, 2004). Embora o propósito da analogia utilizada pelo médico estivesse voltada para a fixação de raízes, Fernanda parece tê-la associado ao aspecto voraz.

Bydlowski (2002) considera o feto uma representação metafórica do objeto interno da gestante, no sentido de que o bebê que a gestante atual foi no passado tenha constituído um bom ou um ameaçador objeto interno, dependendo dos cuidados recebidos quando recém-nascida. Dessa forma, é possível inferir que as representações atuais no caso de Fernanda tenham mais relação com sua própria história infantil do que com a genética alheia do filho.

As preocupações em torno das características físicas são citadas em várias ocasiões ao longo das entrevistas, mas quando questionadas diretamente, todas afirmam não conseguirem imaginar com quem o bebê se parecerá, embora expressem suas expectativas. Marta é quem parece ter conferido menos ênfase ao aspecto físico, abordando expectativas mais relacionadas à saúde do bebê. Imagina uma criança com características físicas próprias, não relacionadas a ela e tampouco ao marido. Pelo critério de semelhança física contemplado pela clínica na escolha da doadora, Fernanda imaginou que seu bebê teria características físicas suas, apesar de dizer que gostaria que se parecesse com o marido. Aline tem a expectativa de desfazer a importância atribuída ao aspecto físico assim que a filha nascer, pois apesar do grande desejo de ver um traço que se assemelhe a ela, tem a convicção de que será diferente. Surpreende o fato de que nenhuma das participantes imaginou o bebê com semelhança física ao pai, uma vez que a genética dele é tão presente quanto a da doadora.

Para Szejer e Stewart (1997), a preocupação com o que é visível, a aparência da criança que os outros vão ver, é característico no período final da gestação. Associam a uma angústia narcísica de não corresponder às expectativas, temor ligado à história pessoal de cada uma. Para Aline e Fernanda, tal preocupação é marcante desde o início da gestação, por ser uma evidência externa da genética da doadora. Se o desejo consciente de ter uma criança que se assemelhe a si é ligado à necessidade de projetar imagens familiares sobre o feto a fim de reduzir sua estranheza, mesmo em gestações com a própria genética, no caso de doação de óvulos esse processo torna-se ainda mais delicado (Canneaux et al., 2013).

Quanto às definições de personalidade e caráter, Aline as relacionou com aspectos provenientes de si mesma e do marido, embora tenha manifestado o desejo de que a filha desenvolvesse características valorizadas de sua família e não da família do marido. Já Fernanda expressou a expectativa de que o bebê tenha a personalidade do pai, mas que mantivesse os valores da cultura de sua família e seu país de origem. Marta pareceu valorizar mais as características de personalidade do pai, mas não enfatiza expectativas sobre o desenvolvimento de características familiares específicas.

Sobre a escolha do nome do bebê, nos três casos os nomes foram sugeridos por elas, com a concordância dos maridos. As escolhas de Aline e Marta expressaram simbolicamente características esperadas para as filhas associadas à força e personalidade. Marta valoriza a estética sonora do nome, inspirando-se em pessoas de destaque profissional observadas na mídia. Aline e Fernanda escolheram nomes de familiares especialmente importantes para elas, possuindo também um significado religioso relacionado ao fato de terem conseguido engravidar. Segundo Lebovici (1987), a escolha do nome pode constituir uma forma de verificar o lugar que a criança ocupa no imaginário da mãe, tanto o seu lugar no sistema familiar, quanto na natureza da projeção de seus desejos inconscientes. Nos casos de Aline e Fernanda, a criança carregará em seu nome elementos alusivos à superação da infertilidade.

A atribuição de características físicas, de personalidade e a designação de um nome não somente personificam o bebê como um ser diferenciado, como também o inserem numa linhagem (Brazelton & Cramer, 1992; Ferrari, Piccinini & Lopes, 2007). A filiação permite reconhecer a criança como seu filho e a afiliação como pertencente ao mesmo grupo familiar. Percebe-se que Fernanda e Aline procuram aproximar o bebê de características suas e de suas famílias, se não for possível pelo aspecto físico, pelos traços de personalidade, cultura familiar e escolha do nome de pessoas de seu lado da família. Já Marta parece não buscar esses tipos de aproximação, desenvolvendo em suas representações uma criança de características próprias, um bebê diferente.

Finalizando, as representações acerca do bebê gestado por ovodoação observadas nos dados deste estudo foram em grande parte comuns às de gestações espontâneas descritas na literatura, como percepção dos movimentos fetais, atribuição de características físicas e de personalidade, ou preocupações com a saúde do bebê (Brazelton & Cramer, 1992; Sälevaara et al., 2016; Stern, 1997; Szejer & Stewart, 1997). No entanto, foi possível observar a interferência das peculiaridades do processo de ovodoação em alguns pontos específicos, envolvendo referências ao fator genético e à doadora tanto em representações apoiadas na realidade objetiva, quanto na subjetiva.

 

Considerações finais

Considerando os dados obtidos, observa-se que grande parte das questões abordadas pelos casos deste estudo são comuns às de gestações naturais descritas na literatura sobre o tema, sendo que a vivência da ovodoação se faz presente de forma significativa nas representações sobre o bebê, salientando a presença da doadora e a ausência da genética materna. As referências ao aspecto físico do bebê recebem destaque, pois tal fato oferece uma evidência externa da expressão genética, evocando a presença da doadora.

As dúvidas sobre a revelação da origem genética, questão comum aos três casos, sugere dedicar maior atenção no trabalho clínico nesse contexto, especialmente diante da posição de alguns autores psicanalíticos quanto às implicações para o desenvolvimento da criança. Por estar no interior do corpo da mãe, o bebê ainda não possui o caráter de objeto externo, limitando as formas de interação. Após o nascimento, o aspecto físico do bebê real talvez adquira outra importância diante da possibilidade de novas formas de interação, auxiliando ou dificultando a abordagem dessa parte da história com a criança.

Qualquer gestação envolve um intenso trabalho psíquico no sentido de sonhar o bebê para depois transformar suas representações e acolher o bebê real ao nascer, que nunca será igual ao imaginado. Nesse sentido, a gestação pode ser também um período de elaboração das marcas da infertilidade e das peculiaridades da ovodoação, facilitada ou dificultada pelas histórias individuais, em que um acompanhamento psicológico poderia trazer muitos benefícios.

Em relação às limitações deste estudo, a dificuldade de acesso à população estudada pode não ter contemplado aspectos significativos acerca das representações maternas sobre o bebê gestado por ovodoação em outras situações de infertilidade, não relacionadas ao fator da idade. O exercício da parentalidade já contém por si só muitos desafios. Para que pais e filhos da ovodoação não carreguem essa parte de suas histórias como um estigma, tendência em quaisquer situações diferentes das naturalmente concebidas, sugere-se o desenvolvimento de novas pesquisas no intuito de promover intervenções clínicas possíveis para esse contexto. Pesquisas abordando a revelação sob a perspectiva da criança nascida por ovodoação poderiam proporcionar elementos para destacar a importância desse ponto e minimizar temores e fantasias por parte dos pais.

Em suma, o presente estudo contribuiu no avanço da compreensão do tema sobre a ovodoação no sentido de identificar representações maternas presentes em gestantes acerca do bebê, em vista da carência de estudos específicos. Situações comuns às de outras gestações, tais como temores e expectativas, mostraram-se vinculados à presença da genética da doadora nos casos estudados, fazendo emergir um universo de fantasias. O apoio psicológico tem muito a contribuir nesse campo.

 

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Recebido em 27 de abril de 2018
Aceito para publicação em 15 de janeiro de 2019

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