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Psicologia Clínica

Print version ISSN 0103-5665On-line version ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.31 no.3 Rio de Janeiro Sept./Dec. 2019

http://dx.doi.org/10.33208/PC1980-5438v0031n03A03 

SEÇÃO TEMÁTICA - QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS DA MULHER

 

"Mulher objeto": feminismo e psicanálise

 

"Object woman": feminism and psychoanalysis

 

"Mujer objecto": femenismo y psicoanalisis

 

 

Lúcia Alves MeesI; Maria Cristina PoliII

IDoutoranda no Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. lucia.mees@gmail.com
IIProfessora Associada da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. mccpoli@gmail.com

 

 


RESUMO

Neste artigo, propomos retomar as elaborações lacanianas em torno das fórmulas da sexuação, com vistas a ressituar o lugar de objeto que comporia o gozo feminino. A inscrição da fórmula do fantasma no quadro da sexuação ainda é sujeita a inúmeros debates e interpretações diversas. Proporemos nossa leitura, de modo a conduzir o debate para algumas expressões contemporâneas do feminino, notadamente no cinema e no movimento feminista. Tanto no filme quanto na política, destacamos as roupas como expressão da posição objetal feminina: no primeiro caso, como mostra daquilo que no fantasma recobre o objeto; no segundo, enquanto plataforma de intervenção sobre o corpo da mulher. Nosso objetivo, nos limites possíveis a um artigo, é o de repensar sobretudo a questão do "objeto a" na posição feminina, considerando que ele não coincide de todo com o que o desejo masculino propõe que ele seja. Sugerimos, assim, que o "objeto a", na parte das fórmulas da sexuação que descreve a posição feminina, segue a nova lógica ali escrita: ele é "não-todo" efeito do desejo masculino no fantasma.

Palavras-chave: sexuação; psicanálise; fantasma; feminismo; objeto a.


ABSTRACT

In this article, a proposal is made to reconsider the Lacanian elaborations around the formulae of sexuation, aiming at situating the place of object comprising the feminine jouissance. The inscription of the formula of the phantom in the sexuation diagram is still subject to many debates and various interpretations. Our take is designed so as to conduct the debate to some contemporary expressions of the feminine, mostly in the cinema and the feminist movement. Both in the movies and in politics, clothing is emphasized as an expression of the feminine objectal position: in the first case as an example of what in the phantom wraps the object; in the second, as a platform to intervene over the woman's body. Our focus, within the limits an article allows, is to reconsider particularly the question of the "object a" in the feminine stance, taking into account that it does not match fully what the masculine desire proposes it to be. Thus, we suggest that the "object a" in the part of the sexuation formulae that describes the feminine stance follows the new logic therein inscribed: it is "not-all" effect of the masculine desire in the phantom.

Keywords: sexuation; psychoanalysis; phantom; feminism; object a.


RESUMEN

En este artículo, es propuesto retomar las elaboraciones lacanianas alrededor de las fórmulas de sexuación, con vistas a resituar el lugar del objeto que compone el goce femenino. La inscripción de la fórmula del fantasma en el cuadro de la sexuación es sujeta, aún, a varias discusiones e interpretaciones. Propondremos nuestra lectura para conducir el debate para algunas expresiones contemporaneas del femenino, notadamente en el cine y en el movimiento femenista. Tanto en las películas cuanto en la política, destacamos las ropas como expresión de la posición objetal femenina: en el primer caso, como muestra de lo que en el fantasma recubre el objeto; en el segundo, encuanto plataforma de intervención sobre el cuerpo de la mujer. Nuestro objetivo, en los límites posibles a un artículo, es el de repensar sobretodo la cuestión del "objeto a" en la posición femenina, considerando que no coincide completamente con lo que el deseo masculino propone que sea. Así, sugerimos que el "objeto a" en la parte de las fórmulas de sexuación que describe la posición femenina siga la nueva lógica acá escrita: él es "no-todo" efecto del deseo masculino en el fantasma.

Palabras clave: sexuación; psicoanálisis; fantasma; femenismo; objeto a.


 

 

Introdução

Desde o princípio da psicanálise, a feminilidade tem lugar fundamental nas indagações lançadas aos psicanalistas, assim como está associada à formulação de vários conceitos. Foi assim com Freud, e também com Lacan. Se as histéricas da virada do século XIX para o XX marcaram a ausência de um saber que desse conta de seus sintomas - o que levou Freud à descoberta do inconsciente - com Lacan, entre as décadas de 60 e 70, foram - além das analisantes - as feministas que participaram da retomada da pergunta sobre a feminilidade (Roudinesco, 1988). Lacan não coaduna com as opiniões das feministas, que buscam, via de regra, afirmar uma identidade propriamente feminina; entretanto, as escuta a ponto de formular uma particularidade feminina mediante a proposição de um gozo singular, suplementar. Diferentemente de uma identidade fechada, o psicanalista cerca o debate afirmando pela negação: "não há relação sexual", "a mulher não existe", quer dizer, não existe uma diferença sexual que se complementaria até formar um todo, e cada mulher existe apenas singularmente, sem um conjunto ou identidade que valha para todas.

O Seminário 20, Mais, ainda (Lacan, 1972-1973/1985) é de especial relevância para estas formulações e considerações sobre a feminilidade. Nesse Seminário estão as fórmulas (ou quadro) da sexuação, que constituem importante resposta ao problema tanto teórico quanto clínico das identidades sexuais ou sexuadas. Não se trata nessas fórmulas de escolha de objeto, tema caro a Freud; não se pode afirmar, portanto, se alguém é masculino ou feminino de acordo com o(a) parceiro(a) escolhido(a). Lacan desloca a questão relativa ao masculino e feminino para as posições de gozo, o que permite incluir também as parcerias homossexuais, por exemplo. Além disso, outro ponto fundamental dessa formulação psicanalítica é a demarcação de outro momento de virada no ensino de Lacan, qual seja, o da conceptualização da alteridade feminina, com uma especificidade que ela não possuía até então em sua teoria, e tampouco na psicanálise freudiana, na qual se baseavam suas formulações anteriores acerca da dialética fálica (Soler, 2005).

Hoje, novas indagações se somam às anteriores e, mais uma vez, a feminilidade e o feminismo têm posição fundamental para levar a revisitar o já produzido, na psicanálise e fora dela. Nessa revisão, incluem-se as perguntas se as fórmulas da sexuação ainda têm vigência para descrever a atualidade dos laços eróticos entre masculino e feminino, bem como se contemplam as críticas do feminismo atual à reificação das mulheres na posição objetal. Para debater estas questões, apresentaremos o Quadro (ou fórmulas) da sexuação proposto por Lacan e utilizaremos um filme para ilustrá-lo, problematizando-as à luz de expressões culturais de cunho feminista.

Parte-se do pressuposto que o que hoje parece estar na ordem do dia do movimento feminista é o lugar de objeto atribuído ao feminino no jogo erótico. Isso diz respeito tanto à apropriação do corpo pelas mulheres - presente no bordão feminista "meu corpo, minhas regras" - quanto aos movimentos que buscam denunciar condutas masculinas abusivas. Em comum, há a referência repetida sobre as roupas das mulheres, interpretadas aqui como aquilo que o masculino reveste o feminino enquanto objeto causa de desejo: o objeto a.

 

O feminismo na atualidade

Na atualidade, o movimento feminista vem indagando justamente sobre a posição de objeto atribuída às mulheres. Se Lacan buscou responder àquilo que estava em pauta no movimento feminista da década de 60 e 70, hoje a questão lançada parece ser outra1. Trata-se atualmente de tomar a experiência singular e o corpo como bandeira política. O "corpo plataforma" - o que afirma "meu corpo, minhas regras" - serve para aludir também às roupas, sobre as quais elas próprias querem decidir, não aceitando um sentido pressuposto ao desejo delas, por exemplo, o de que se estão com pouca roupa isso significaria uma oferta de si ou convite a qualquer tipo de abordagem erótica.

Se para a geração das mulheres dos anos 1960 a descoberta de que o "pessoal é político" marcou um novo universo de atuação política, hoje as minas descobrem que o "político é que é pessoal" e agem como sujeito, descrevendo e postando suas experiências, demandas e causas que, potencializadas pelas redes [sociais], tornam-se rapidamente comuns a todas as minas. O mesmo ocorre nas marchas feministas jovens onde o corpo e a experiência vivida são plataformas políticas importantes. (Hollanda, 2018)

Antes, podíamos identificar a indagação relativa ao falo e ao sujeito, ou seja, a questão da identidade sexuada, à pergunta sobre o que é ser uma mulher, ou mesmo a reivindicação de um lugar na cultura com voz ativa, quer dizer, com participação reconhecida na linguagem. Atualmente, a reivindicação dos movimentos sociais das mulheres diz respeito, pelo menos em parte, ao lugar de objeto, ou seja, a afirmação que a posição de objeto que causa desejo passa necessariamente pelo desejo delas.

Recentemente, a discussão colocada entre as atrizes norte-americanas e francesas também dá mostra disso. Enquanto as primeiras denunciam os considerados abusos dos poderosos de Hollywood, as segundas defendem o valor do galanteio. O ano de 2018 começou com o protesto na premiação do Globo de Ouro do cinema americano. As mulheres vestiram preto para denunciar os assédios sofridos pelas atrizes de Hollywood, mobilização que veio na sequência de dezenas de acusações de estupro contra o poderoso produtor Harvey Weinstein. Dois dias depois desse protesto, uma carta redigida por mais de cem personalidades francesas - entre elas a atriz Catherine Deneuve, porta-voz do grupo -, publicada no jornal "Le Monde", opôs-se ao movimento, defendendo a "liberdade de importunar dos homens", tida por elas como "indispensável para a liberdade sexual". O corpo/roupa enquanto plataforma política se fez presente e a polêmica aberta bem representa o debate atual em torno da questão da mulher-objeto: trata-se de se insurgir sobre o lugar de objeto quando ele é forçado, não consentido, ou a intenção é policialesca, restritiva ao jogo da sedução?

Outro caso paradigmático do tipo de questão atual presente nas reivindicações femininas foi o ocorrido numa escola tradicional de Porto Alegre, há dois anos, intitulado "vai ter shortinho sim"2. A escola, ao proibir às meninas o uso de shorts durante as aulas, recebeu um abaixo-assinado3 que ganhou notoriedade na mídia e nas redes sociais e que assim principiava: "Exigimos que a instituição deixe no passado o machismo, a objetificação e sexualização dos corpos das alunas; exigimos que deixe no passado a mentalidade de que cabe às mulheres a prevenção de assédios, abusos e estupros; exigimos que, ao invés de ditar o que as meninas podem vestir, ditem o respeito". Tal como vários movimentos mundiais com o bordão "meu corpo, minhas regras", as meninas do colégio gaúcho denunciaram a recorrente afirmação do lugar de objeto das mulheres, como se fosse algo dado e coubesse a elas evitá-lo: "regras de vestuário reforçam a ideia de que meninas têm que 'se cobrir' porque garotos serão garotos; reforçam a ideia de que assediar é da natureza do homem e que é responsabilidade das mulheres evitar esse tipo de humilhação; reforçam a ideia de que as roupas de uma mulher definem seu respeito próprio e seu valor", escreveram elas no abaixo-assinado.

Para citar apenas mais um exemplo, pois o discurso se repete em diversas manifestações atuais, a escritora Cláudia Tajes (2018) declarou recentemente em sua coluna de jornal: "Hashtag fica a dica: foi-se a época de bater com o tacape na cabeça da garota para arrastá-la para a caverna. Ou de botar o olho na menina e mandar a guarda real sequestrá-la para seu uso e prazer. A regra é simples: a mulher sempre tem que querer. Só isso." Diferenciando paquera e assédio, a escritora resume nessa passagem o marco divisório entre um e outro: o desejo feminino.

Os três exemplos são uma pequena amostra do repetido assinalamento atual sobre o lugar da mulher em relação ao próprio desejo. Elas não querem mais vestir simplesmente o que o masculino dita, ou ao menos, não sob quaisquer circunstâncias. As jovens da referida escola querem escolher com o que adornar seus corpos. As atrizes do cinema americano, de outro lado, denunciaram os abusos do desejo masculino como abuso de poder e de violência, vestindo determinada cor para dizê-lo.

Trata-se nessas situações de retirar a naturalização da posição de objeto enquanto marca da feminilidade, afirmando que há algo nele que cabe àquela que o porta determinar. Assim como não há em nenhum dos movimentos de mulheres citados acima a afirmação categórica sobre o que elas desejam, apenas o assinalamento que não é necessariamente o que o parceiro propõe.

Neste sentido, é preciso considerar, em consonância com a referência proposta por Lacan sobre o gozo Outro - gozo feminino e não-todo fálico -, que a inscrição do objeto a neste situa algo de estritamente singular, impossível de ser subsumido pelas vestimentas - que constituem também marcas identitárias - que o desejo do outro lhe propõe. Como já afirmado em outro lugar: "O gozo Outro é, assim, o que mais nos aproxima da possibilidade da constituição de uma inscrição singular da enunciação que sendo sexuada dispensa o recurso às identidades sexuais." (Poli, 2007, p. 58)

O que está em causa, portanto, é a descolagem das máscaras identitárias que estabelecem no jogo erótico o lugar de objeto para as mulheres e de sujeito de desejo para os homens, o que repete a tão combalida proposição freudiana da passividade feminina e atividade masculina.

Lacan, na década de 70, propôs o famoso Quadro da sexuação, no qual se encontra inscrita sua fórmula do fantasma, posicionando o (sujeito do desejo) em direção ao objeto a (objeto causa do desejo). Nestas fórmulas, trata-se de outra forma de tomar as diferenças sexuais, dispensando as referências identitárias, sejam elas pautadas pela anatomia ou pelo desempenho de papéis sociais. Para o psicanalista, são posições de gozo que inscrevem uma diferença fundamental no campo sexual e que Lacan designa como "lado homem" e "lado mulher".

Permanece, contudo, nestas fórmulas a inscrição do do lado homem (gozo fálico) e o objeto a do lado mulher (gozo não-todo fálico). Estariam afirmadas aí posições reificadas no jogo erótico, tão criticadas atualmente pelas feministas, ou tratar-se-ia de outra forma de concebê-las, podendo se depreender do quadro modos de subversão a partir da psicanálise? É o que examinaremos a seguir.

 

As fórmulas quânticas da sexuação

O quadro das sexuações (Quadro 1) busca escrever duas formas de gozo, como já mencionado, apresentadas no seminário Mais, ainda (Lacan, 1972-1973/1985), depois de Lacan cercar o tema nos seminários anteriores. Trata-se do gozo fálico, inscrito no lado masculino, e o gozo Outro, não-todo, feminino, representado do lado direito das fórmulas, o que denota uma formulação inédita na psicanálise.

 

 

Na parte superior, dividida em dois grupos, temos propriamente as fórmulas da sexuação: duas para o campo masculino e duas para o campo feminino. Os símbolos das fórmulas, os quantificadores, estão presentes tanto na matemática quanto na lógica modal. Lacan, no seminário O ato analítico (Lacan, 1967-1968/2001), também trabalha a lógica dos quantificadores que retomará no seminário Mais, ainda e, antes deste, no seminário Ou pior (Lacan, 1971-1972/2012) e em O aturdito (Lacan, 1972/2003).

O 'A' invertido é o quantificador universal e se lê "para todo", indicando o que vale para todo elemento. O 'E' ao contrário é chamado quantificador existencial e significa "existe um", "existe ao menos um" ou simplesmente "existe". Indica algo que se aplica não a todos os elementos, mas ao menos a um deles. Do lado masculino, Lacan escreveu: "todo x phi de x", quer dizer, a todo elemento desse conjunto se aplica a função Φx, ou, dito de outra forma: todo elemento do conjunto masculino é concernido pela função fálica. Abaixo, à esquerda, lê-se "existe um x não phi de x", ou seja, existe ao menos um elemento desse conjunto para o qual essa função não se aplica; existe ao menos um que escapa à função fálica. Quer dizer, do lado da sexuação masculina, o ao-menos-um que escapa à castração define a exceção que faz existir a regra de que todo x é função de x, ou seja, que o masculino é todo na função fálica. Como diz Lacan (1972-1973/1985): "O todo repousa, portanto, aqui, na exceção colocada" (p. 107) e também que "é a partir desse existe um, é com referência a essa exceção, que todos os outros podem funcionar" (Lacan, 1971-1972/2012, p. 35). Detalhadamente, x Φx indica que é pela função fálica que o homem como todo faz sua inscrição, exceto que essa função encontra seu limite na existência de um x pelo qual a função Φx é negada. Marc Darmon (1994) esclarece que a castração é a lei universal: x Φx (para todo x, x é castrado) e que existe ao menos um x que escapa a ela, precisamente aquele que a aplica a todos: o Pai simbólico.

A lógica inscrita no campo masculino, logo, é a do Um, do universo constituído a partir da exceção e que especifica o conjunto ou classe que, aos moldes do zoólogo, determina uma classe animal de acordo com o traço diferencial específico e que, portanto, não pode faltar para pertencer àquele grupo. A classe forma o Um, agrupamento que reúne os que compartilham o traço em comum a todos, destacado a partir da comparação com a ausência desse traço. A lógica fálica do Um constitui um universal, conjunto fechado, no qual todos estão referidos ao pai simbólico e ao falo do mesmo registro daí decorrente.

Em termos edípicos4, a exceção alude ao tempo do pai severo, privador e dono de todos os bens, o pai do sexo ou falóforo (Pommier, 1992), promovendo a passagem da angústia e impotência diante de um pai todo-poderoso para a potência sexual, devido à identificação com o possuidor do falo. Até aí nenhuma especificidade feminina ou masculina se pôs na constituição do sujeito, e será na relação com essa instância do pai falóforo, possuidor do falo, que uma escolha determinada da sexuação se dará. Antes disso, tanto o menino quanto a menina estavam igualmente falicizados e incestuosamente ligados ao desejo da mãe. O caminho feminino será o do reconhecimento do amor por esse pai severo, mas salvador da ligação mortífera com o desejo materno. A alternativa masculina será o da identificação com o pai falóforo, escapando da violência paterna e da feminilização implicada em tal submissão. Nesse momento, a identidade masculina encontra sua eficácia, uma espécie de certeza sobre sua identidade sexual que atrairá o sujeito masculino a aí se situar. Assim, a identidade masculina fica respondida pela identificação com o pai violento, e, eventualmente, precisando submeter o feminino, de modo que seja esse outro, e não ele, a ser feminilizado (Mees, 2001). Porém, essa identidade sexual não responde ao masculino sobre sua condição subjetiva, simbólica. Essa posição subjetiva e singular será dada por seu nome, pela transmissão de um traço paterno, a partir do qual se fundará como único. O terceiro tempo edípico proposto por Lacan (1957-1958/1999) descreve tal passagem: o falo não se encarna mais no pai, instaurando-se enquanto instância simbólica. Não havendo mais o pai possuidor absoluto do falo, será uma nominação, um traço identificatório que ele transmitirá a sua descendência. Aqui será a instância do pai simbólico ou pai de nome que se colocará. Fazer valer o nome em seus atos será a atividade a que se lançará o sujeito masculino. Em um tipo de heroísmo cotidiano, buscarão honrar o nome a partir de cada ação, pois atuar será uma forma de assinar, de ser sujeito de seu ato, portanto, uma maneira de metaforizar o nome próprio.

Na verdade, o que há de potencial em sua [do nome] transmissão é a simbolização do falo, no sentido da prescrição da violência maléfica trazida por sua [do pai] potência. A parcela despedaçadora ou perversa do gozo é estancada pelo nome. Ele não pactua, pois, e aspira a dispensar de qualquer totem, de qualquer imagem, de qualquer velo de ouro. (Pommier, 1992, p. 78)

Já no lado feminino, não existe ninguém que escape à castração , o que conduz - na ausência de uma exceção - a que elas sejam não-todas na função fálica . A fórmula indica que, sendo não-toda na função fálica, não existe no feminino alguém que escape a ela: não há exceção fundadora; portanto, o conjunto feminino não constitui uma classe, mesmo que seja constituído por elementos singulares e contáveis. Se não há traço comum que as especifique, a primeira consequência é que não há uma categoria fechada feminina. Como o artigo não pode se aplicar, Lacan escreve mulher. Isso deixa mulher sem classe à qual pertencer, sem traço distintivo que garantiria sua identidade feminina.

[...] não-todo, isto quer dizer que quando um ser falante qualquer que se alinha sob a bandeira das mulheres, isto se dá a partir de que ele se funda por ser não-todo a se situar na função fálica [...] Não há A mulher, artigo definido para designar o universal. Não há A mulher pois [...] por sua essência ela é não-toda. (Lacan, 1972-1973/1985, p. 98)

As fórmulas da sexuação são, assim, dentre outros aspectos, a escrita da relação do masculino com o falo e de sua submissão a ele, visto que é condição que tenham a marca do Outro não castrado e de sua morte para, assim, operar a castração e inscrição significante. Com o feminino, não há todo, apenas o uma a uma, sem uma classe que afirme o que é ser mulher. E, como não há exceção, as mulheres estão "não-todas" submetidas à função fálica, dado que não existe o conjunto das mulheres. O pai terrível da mitologia masculina não se inscreve na sexuação feminina, posto que todos são castrados. O feminino não se identifica com o pai falóforo, como referido antes, e sua escolha é a do amor por ele. Logo, a instância do pai falóforo não se inscreve no feminino por identificação, nada se incorpora, nem como identidade sexual, nem subjetiva, pois o feminino não possui a tarefa de "fazer o nome". Na medida em que o nome transmitido pelo pai simbólico vem contrabalançar a feminilização implicada na relação ao pai falóforo, se o feminino assumisse o nome teria sua pertença sexual questionada, visto que, em relação à eleição da sexuação, o nome serve para fazer frente à feminilização.

A sexuação masculina, portanto, se caracteriza por ser, via simbolização do falo, uma defesa da feminilização inerente à sujeição ao pai falóforo. A posição feminina, mesmo que afetada pelo nome, não supõe "fazer o nome". A nominação relativa ao masculino é a mesma inscrita no gozo fálico, o da linguagem, no qual o nome se inscreve e exige honrar tal inscrição. No feminino o gozo não-todo supõe um não ao nome, designando um fora da linguagem, para além do fálico. Ora linguagem, ora não nominação.

As fórmulas da sexuação permitem, portanto, o estabelecimento de diferenças entre o masculino e o feminino por meio dos gozos de cada uma destas posições. Elas inscrevem duas modalidades de relação com a função fálica, na medida em que, em razão da linguagem, ela é relativa à castração. Assim, não é por ser homem que alguém está na função fálica, mas, diferentemente disso, é pelo fato de um x indeterminado situar-se todo na função fálica que podemos chamá-lo de homem (Soler, 2005). O feminino, não-todo, da mesma forma, inscreve-se por efeito numa sexuação e, portanto, independente de sua anatomia. Trata-se de uma posição lógica que acarretará a posteriori determinada posição sexuada que também pode guardar certa plasticidade. Conforme propõe Quinet:

O macho humano XY também pode se situar como objeto causa de desejo além de sujeito e ocupar o lugar de A mulher que não existe atraído pela posição fálica da parceira ou do parceiro. Essa posição não-toda faz com que o sujeito aí se divida entre o falo (buscado no parceiro sexual) e sua solidão. Assim, o mesmo sujeito, independente do destino que sua anatomia impõe, pode se deslocar e trans-passar o outro lado indo para o não universo do não-todo fálico. Na vida sexual, essas posições são plásticas, tendo cada uma suas preferências e fixações na cama ou fora dela. (Quinet, 2018, p. 21)

Na parte inferior do quadro da sexuação, no lado esquerdo, masculino, vê-se o sujeito barrado, porque marcado pela castração, assim como o significante fálico, Φ, inscrito como uma função, ou seja, o acesso ao significante fálico necessita da castração simbólica para que se escreva sob a forma da função Φx (Darmon, 1994). No campo feminino, vê-se o objeto a, causa de desejo; o significante da falta do Outro S() e , a mulher barrada, indicando a sua duplicidade em relação ao gozo - gozo fálico, por um lado, mas também gozo Outro, mais além do falo. O Φ e o S() são outra forma de assinalar os diferentes gozos masculino e feminino. Como Lacan (1975-1976/2007) alertou, a dimensão da falta na linguagem e a falta que inscreve a castração não se confundem. S() indica que há um significante que falta no Outro, posto que a linguagem é marcada por uma falta primordial; enquanto o falo Φ designa a falta específica, a que concerne à castração.

As posições de gozo todo fálico e não-todo fálico se definem a partir da função fálica, que é consequência da castração. Assim, S() não designa o referente em relação ao qual os sujeitos definem suas posições de gozo, não se equivalendo, portanto, com o falo. Afinal, o S() não funda uma sexuação que o levaria a ser a "outra metade" do masculino, não dirimindo a "inexistência da mulher" e seu correlato: "A relação sexual não existe" (Lacan, 1972-1973/2010). O significante da falta do Outro é pura ausência de nominação, referindo àquilo que é silêncio no feminino e que remete ao gozo Outro, além do fálico. De outro lado, o falo simbólico é, para o masculino, uma nominação, uma "versão" da falta genérica da linguagem.

O quadro da sexuação escreve, ainda, a relação ao Outro sexo, o que leva a considerar o que se inscreve em cada um a partir do laço com o outro lado do quadro das fórmulas. Ou, mais precisamente, a parte superior do quadro da sexuação diz respeito às posições do gozo, nas quais os sujeitos se inscrevem e que demonstram a inexistência da relação (rapport) sexual. Já a parte inferior descreve a relação (relation) sexual stricto sensu, o encontro sexual entre os seres da fala (Soler, 2005).

 

"Não há relação sexual"

No quadro da sexuação, além dos já descritos campos de cada uma das sexuações, duas flechas furam a barra de separação entre os dois terrenos do masculino e feminino, barra essa que separa as sexuações, de modo que o encontro seja marcado por uma impossibilidade - aquela da relação sexual que não existe -, ao mesmo tempo em que revela alguns modos possíveis de encontro. Não existe a sonhada complementaridade dos diferentes que formariam o todo. As fórmulas escrevem a indelével separação entre ambos. Habitando universos diferentes, masculino e feminino podem se tocar, porém, em dois pontos: com o masculino através da flecha que liga o sujeito barrado, de seu lado, ao objeto causa de desejo, no lado feminino; com o feminino, a seta que fura o intransponível dos campos é aquela que parte da inexistência da mulher completa, a mulher barrada (), para o falo simbólico do lado masculino (além da flecha que permanece em seu campo, a que a relaciona com o S(), significante da falta do Outro).

Vertente feminina, aquela que é não-toda, , está dividida em seu desejo, bem como em seu gozo. Visa o falo como atributo de seu parceiro, mas a outra direção de seu desejo se orienta em direção ao S(), que pode ser lido aqui como a ausência de que ela goza (Millot, 1989, p. 78).

A flecha do feminino para o masculino se refere à busca - já formulada por Freud - do feminino pelo falo. Observe-se que o falo escrito é o simbólico, marcado pela função, efeito da castração, aquele que reporta o laço de um sujeito à transmissão de um significante que dê conta de um lugar, de um nome, de uma inscrição fálica, portanto. Quer dizer, a seta liga o feminino ao masculino sob a condição do sujeito desse campo se relacionar com a castração, com a condição de portar o significante que o constitui, mas que também o liga com a ausência de significado, com o nada mais ser senão esse traço que ele carrega e do qual se torna transmissor. No lado do feminino, o furo na barra supõe para ela a posição de alguém às voltas com sua falta e a do Outro, com a inconsistência de um lugar, com a falta de um significante que a represente, condição para que busque no masculino algo do significante que ele porta (Mees, 2013).

Na relação que escreve a fórmula do fantasma5, de do masculino ao objeto a do lado feminino, outras condições se colocam, considerando que o fantasma é a versão que cada um constrói a partir do desejo do Outro, constituindo uma "janela para o real" (Lacan, 1967/2003), como uma moldura que dá enquadre ao irrepresentável do real e do irrespondível sobre o desejo do Outro. Na trama fantasmática está a relação do sujeito com o objeto que causa seu desejo e ali compõe uma cena de linguagem, a partir da qual interpreta o mundo e sua "realidade". Pois o sujeito na linguagem é dividido (), determinado pelos significantes do Outro, e, no que se refere ao gozo do corpo, ele se reduz a um objeto parcial para o desejo do Outro.

[...] Desse homem que eu inscrevi aqui com e com esse Φ que o sustenta como significante [...] justamente esse significante do qual não há significado que, quanto ao sentido, simboliza seu fracasso [...] E esse só tem de lidar, enquanto parceiro, com o a inscrito como tal, do outro lado da barra. Só lhe é dado alcançar esse parceiro que é o Outro, com maiúscula, por intermédio disso: que ele é a causa de seu desejo. (Lacan, 1972-1973/2010, p. 169)

Logo, o fantasma põe em cena o sujeito desejante determinado pelos significantes e sustentado por suas identificações simbólicas, bem como o objeto que ele supõe ter sido para o Outro e que diria do objeto causa de desejo do Outro. "A fantasia é o quadro que o sujeito pinta para responder ao enigma do desejo do Outro; é sua forma de tapar cenicamente o furo do Outro (S()) que lhe retorna como castração (-φ) [...] ela tem, simultaneamente, a função de instância protetora e função de sustentáculo do desejo do sujeito". (Quinet, 2009, p. 159)

No quadro da sexuação, as duas posições do fantasma se distribuem entre o masculino e o feminino. O masculino, afetado e tributário do significante, desencontra-se do corpo que se emprestaria ao gozo; e o feminino, carente do significante que diria de si, oferta seu corpo à designação do outro enquanto objeto causa de desejo. O fantasma é o que permite abordar essas duas vertentes do inconsciente: a da decifração do desejo e a do gozo a ser experimentado no corpo afetado pelo significante.

Ou ainda, podemos dizer que o masculino "veste" o feminino com o objeto que ele supõe ser para o Outro, que causa seu desejo. Portanto, não é o corpo feminino enquanto tal que interessa, mas esse objeto a, o objeto de sua fantasia, que ele lhe faz portar. Tal roupagem, em parte do movimento feminista atual, transfigura-se na roupa trajada pela mulher, sendo essa vestimenta foco de debate atual, como situamos anteriormente.

Com a ajuda de um filme recente de título sugestivo - "A trama fantasma" -, vamos desdobrar um pouco mais os fios desse enredo que compõe a trama da fantasia e as aberturas possíveis que a psicanálise inscreve nos modos de lidar com os lugares de sujeito e objeto no jogo erótico.

 

A trama do fantasma

O filme "Trama fantasma" ("Phantom thread", direção de Paul Thomas Anderson, 2017) é precioso na apresentação da questão da posição de objeto que move o erotismo de um casal. A película destaca e explicita a vestimenta como objeto de ligação no laço entre um homem e uma mulher. É narrada a história de um estilista renomado na Inglaterra dos anos 50, habituado a vestir aristocratas, milionárias e princesas. Reynolds Woodcock (Daniel Day-Lewis) é o estilista de moda e Alma (Vicky Krieps) é a garçonete que se tornará sua parceira. Eles se encontram na lanchonete na qual ela trabalha e ele está de passagem a caminho de sua casa de campo. A jovem o arrebata e o inspira a criar novos vestidos com tecidos guardados à espera da musa. Eles ficam juntos, ele a veste, ela se deixa vestir, dizendo que se encanta com seu próprio corpo a partir daquilo que ele cria para ela. E, se antes ela se via sem atrativos e desinteressante, ela agora não se olha mais do mesmo modo.6

Alma, desde o primeiro momento, é quem alimenta Reynolds; ela o serve como garçonete, inicialmente, e depois fará seus jantares, até servir-lhe cogumelos venenosos, por fim. Como acontecera com a mulher que veio antes dela - e, podemos supor, com todas até então -, ele a leva para sua casa, mas começa a se incomodar com seus sons, com sua vontade de falar, com seus ruídos à mesa. Ameaça dispensá-la e ela, desnudando sua fragilidade, o transforma em doente e dependente, envenenando-o só até o limite de sua força e prepotência. Dá-lhe de comer o que o adoece e o deixa fraco, posição infantil que remete ao desamparo - referência à falecida mãe de Woodcock, presença marcante e da qual ele afirma sentir muita falta.

A trama anunciada no título é também a de tecido - fio ou linha -, o que costura as partes, como o fantasma o faz. Woodcock veste Alma com o objeto de seu fantasma, e ela aceita portar o objeto para buscar se tornar aquilo que ele deseja. Se o desejo dele vacila, entretanto, ou se ele a humilha, como passa a fazer, é ela quem passa a subjugá-lo, transformando-o em objeto-filho e reconquistando o desejo dele. Assim, eles tecem a trama fantasmática que os une e os separa. Encenam, com isso, a inversão dos lugares relativos ao sujeito e ao objeto do fantasma, um e outro vindo a ocupar o lugar de objeto que causa o desejo.

Diferentemente da posição feminista atual, o filme apresenta a repetição dos mesmos lugares, mesmo que se invertam. A personagem feminina, ao se insurgir contra o que lhe é oferecido, almeja que seja ela a recobrir Woodcock, agora com o lugar de filho. O estilista passa a ser seu objeto, a ser nutrido/envenenado, conferindo a ela o poder de deixá-lo existir ou não. Logo, eles permutam os lugares, todavia a estrutura é a mesma.

No que se refere ao feminino, retomando o que desenvolvemos anteriormente, o quadro da sexuação permite situar três grandes questões: o laço daquele que posiciona seu gozo com o falo, com a falta no Outro e com o objeto. É a partir deste, o objeto a, que nos deteremos agora, a fim de indagar seu estatuto para o feminino.

Frequentemente, tal objeto é situado apenas como efeito do sujeito masculino, pois, apesar de estar situado no lado feminino, tratar-se-ia do objeto, segundo Soler (2005), da fantasia do homem, que ela desconhece e não pode conter. Por consequência, o objeto nada poderia revelar acerca de uma especificidade do feminino, mas tão somente a fantasia do seu parceiro. Desse modo, o objeto a do lado feminino do quadro só teria existência a partir do masculino. Como se fosse inerente ao feminino ser vestida pelo desejo masculino, e exclusivamente isso. No filme descrito, a personagem Alma, trazendo atualidade à trama dos anos 50, denuncia a degradação implicada em tal exclusividade, ou, mais que isso, que sua aceitação em se deixar vestir obedecia à condição da oferta de um olhar recheado de valor, aspecto que retomaremos na conclusão deste texto.

Interessante ainda notar que essa interpretação corrente considera que a flecha que parte do masculino é que faria existir o objeto a. A seta que parte do lado feminino para o masculino, em direção ao falo simbólico, entretanto, é lida como uma busca, porém sem que sua existência dependa do feminino. Então, será que essa leitura é análoga à inexistência da mulher, afirmando que a ausência de um significante que forme classe para o feminino se estende também à questão do objeto a? Pois, se o escrito em cada campo é considerado como próprio daquela sexuação específica e as flechas indicam os modos parciais de encontro entre as duas, o que tornaria diferente a lógica de leitura do falo simbólico no lado masculino e o objeto a no feminino?

Cumpre considerar que, se o falo simbólico do masculino tem existência em seu campo próprio, a flecha que lhe chega do feminino indica que ele tem função de causa no feminino a ponto de estabelecer um laço ( Φ). Assim, propomos utilizar a mesma lógica interpretativa empregada no quadro da sexuação para ambas as partes, o que significaria afirmar que o objeto a se inscreve no campo feminino e é também, e de outro lado, causa do desejo masculino ( a). O objeto a no campo feminino do quadro da sexuação precisaria, portanto, ser lido como associado aos outros termos ali constantes, o S() e o , ou seja, sem qualquer possibilidade de nominação, na medida em que eles marcam a falta de um significante, bem como uma inexistência. Isso conduz a uma leitura diversa daquela que supõe exclusivamente que o objeto a do quadro diz respeito a sua dimensão imaginária, ou seja, aquela que supõe um recorte do corpo da parceira (voz, olhar, seios, etc.), como afirma Soler (2005). Nesse sentido, propomos considerar a dimensão real do objeto a, faltante, causa do desejo, que suscita o desejo sem designar um objeto de satisfação a ele. Esta consideração permite uma abertura em relação à posição de objeto delegada às mulheres que faz eco ao movimento feminista na atualidade.

 

Para concluir

No campo da psicanálise e a partir do quadro da sexuação, cabe voltar a indagar sobre o objeto a no lado feminino, abrindo-se daí duas reflexões: a primeira, que diferencia o jogo fantasmático do assédio ou abuso sexual; e a segunda, que pondera sobre o objeto a no campo feminino da sexuação.

Como já mencionamos, a fórmula do fantasma situa o sujeito barrado no lado masculino e o objeto a no campo feminino, demonstrando as condições para a constituição do laço fantasmático: para o feminino ser objeto é condição de que o masculino se coloque na posição de sujeito barrado, referente ao falo simbólico. Quer dizer, sem a violência e anonimato do falo imaginário da identificação com o pai falóforo. Aqui fica ressaltado que o sujeito masculino que "veste" o feminino com seu objeto é castrado e, nesse sentido, não violento, na medida em que o significante o dividiu e o nomeou, levando a que seus atos sejam simbólicos, e não reais, como a violência supõe. Ou, dito de outra forma, que o feminino pode vir a acolher a posição de objeto sob algumas condições: se, antes de tudo, o masculino dedicar palavras que ofereçam algum sentido à relação, visto que, para que um sujeito se situe diante do outro enquanto ser sexuado, é preciso que haja a entrada do significante fálico, de modo que a dimensão da falta seja especificada no âmbito sexual.

Para estabelecer o sentido sexual de S() - elemento necessariamente associado ao objeto a no campo feminino do quadro da sexuação -, o falo é indispensável, nominando a dimensão genérica da falta. Esse é o sentido que a proposta masculina ao feminino pode ganhar e servir de convite à posição de objeto a. O feminino, carente de nominação, pode aceitar vestir a posição de quem recebe uma definição fantasmática, ofertando seu corpo em troca de palavras. Que haja certa troca já requer que ambos estejam implicados no laço, mesmo que de modos radicalmente diferentes. O jogo fantasmático, portanto, pressupõe parcialidade, a do falo devido ao nome que ele porta, e a do objeto a, recorte do corpo que convoca o desejo, sem capturá-lo.

Como já indicado, Lacan, com as fórmulas da sexuação, buscou também escrever uma outra lógica, diferente da lógica fálica do Um, a lógica para além do falo, a do não quantificável, não nominável, com parte fora do simbólico e, portanto, ligada ao registro do real. Isso se explicita pela seta de ligação, dentro do campo feminino, em direção ao S(), indicando sua duplicidade em relação ao gozo - gozo fálico, por um lado, quando ligada ao campo masculino, mas também gozo Outro, além do falo [ S()]. O S() designa o ponto de relação com o gozo Outro e, dividida entre o significante do falo e a falta do grande Outro, o parceiro para o feminino não é o objeto a. O parceiro é, nesse caso, ofertador de significantes, mas ela também está em relação à ausência desses, ligada à falta e ao gozo que se produz daí. O sujeito masculino, por sua vez, visa ao Outro com seu desejo; porém, lhe é dado alcançar o objeto a, visto que o gozo sexual lhe impõe essa restrição. O objeto a é o recorte imaginário que o masculino efetua para dar existência a esse Outro, por meio do corpo feminino, "vestindo-a" com o objeto. Que assim o seja para o masculino, entretanto, não responde o que o objeto a é para o campo feminino, considerando que ele não é exclusivamente o que deseja o masculino, como o feminismo atual bem explicita. Pois, se aplicarmos a lógica indicada por Lacan também a esse ponto do quadro da sexuação, o estatuto do objeto a ganha outra interpretação: no lado feminino há a presença do real.

O objeto a que se escreve no campo feminino poderia assim se diferenciar do objeto imaginário masculino, indicando um estatuto próprio. Ou seja, pressuporia que o objeto na parte feminina do quadro da sexuação seja efeito do significante da falta do Outro, quer dizer, associado ao objeto a da travessia do fantasma: sem consistência e presente no feminino enquanto disponibilidade à proposta masculina. A disponibilidade, contudo, não significa que ela se relacione com o objeto exclusivamente a partir do que o fantasma masculino lhe propõe. Ela o faz no laço com o masculino, deixando ter parte de seu corpo apreendida pelo sujeito, em nome do significante que ele porta, mas não-toda. Isso supõe desejo de seu lado (ou consentimento, se quisermos usar a terminologia dos movimentos feministas), mesmo que não haja saber ou determinação imaginária do objeto a. Ela não sabe de seu objeto a, ele não tem "vestimenta" imaginária, o que o coloca em outra relação com o desejo, agora intransitivo, sem objeto configurável ou nominável, mas existente enquanto causa.

"A mulher não existe", mas o mesmo não pode ser dito sobre seu desejo. Falta ao feminino o significante que formaria a classe das mulheres; porém, no que tange ao desejo, há o radicalmente singular, o uma a uma de cada mulher. Os movimentos feministas atuais parecem afirmar algo disso: não se trata de pretender ditar qual é o objeto a (o que só promoveria a inversão dos lugares no fantasma, como no filme citado), mas sim fazer lembrar que ele não é nominável no campo feminino, ele é não-todo efeito da proposta masculina.

 

Referências

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Recebido em 15 de maio de 2018
Aceito para publicação em 06 de agosto de 2018

 

 

A autora Lúcia Alves Mees é bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). A autora Maria Cristina Poli é bolsista de produtividade em pesquisa 2 do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico).
1 Conforme afirmam Cossi & Dunker (2017, p. 1): "Ao criticar o biologismo naturalizante de Freud e valorizar a dimensão da linguagem inerente aos processos simbólicos de subjetivação e de sexualização, Lacan recolocou a psicanálise no debate, emergente nos anos 1970, sobre o caráter ético-político das identidades, dos discursos e das práticas sexuais". Apesar desse assinalamento, é muito difícil encontrar autores que se dediquem a indicar o impacto do movimento feminista nas formulações psicanalíticas, enquanto o contrário - a reação das feministas às formulações da psicanálise - é bem mais habitual e, diríamos até, hegemônico.
2 Recentemente, meninas de outra escola, desta vez no Rio de Janeiro, fizeram uma manifestação semelhante (reportagem de Maurício Ferro, em abril de 2018). E, antes disso, também no Rio, o vestuário escolar também foi pauta de protesto, dessa vez em apoio a estudante transgênero (reportagem de Diego Iraheta, em setembro de 2014).
3 Leia mais em: https://www.change.org/p/col%C3%A9gio-anchieta-vai-ter-shortinho-sim
4 O quadro da sexuação busca ir além do Complexo de Édipo freudiano, tanto por substituir a novela pela lógica, esvaziando seus aspectos imaginários, como ao inscrever o não-todo fálico. Porém, principalmente, nas considerações sobre o masculino, que Freud descreveu tão bem, as referências edípicas são fundamentais para a compreensão do Quadro, além de situar as formulações psicanalíticas anteriores a ele.
5 O termo fantasma como tradução do francês fantasme é preferido aqui porque inclui acepções mais abrangentes para o termo freudiano de "fantasia". Este está sobrecarregado da noção de imaginação e devaneio, enquanto que o aquele, consagrado nas traduções do francês (Tyszler, 2014), retrata melhor a especificidade do conceito em questão e que será mais bem trabalhado adiante. Em algumas citações de autores consta a palavra fantasia na mesma acepção de fantasma, revelando que não há unanimidade terminológica entre os lacanianos, mas sim conceitual.
6 Sobre essa dinâmica do olhar e da veste do objeto, remetemos o leitor ao texto de Lacan sobre o romance Le Ravissement de Lol V. Stein, de Marguerite Duras, onde se lê: "Não bastaria isso para reconhecermos o que aconteceu com Lol, e que revela o que acontece com o amor, ou seja, com essa imagem, imagem de si de que o outro reveste você e que a veste, e que, quando desta é desinvestida, a deixa?" (Lacan, 1964/2003, p. 201)

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