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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.31 no.3 Rio de Janeiro set./dez. 2019

http://dx.doi.org/10.33208/PC1980-5438v0031n03A08 

SEÇÃO LIVRE

 

Repensando o caso Lefebvre com Jean Laplanche

 

Rethinking the Lefebvre case with Jean Laplanche

 

Repensando el caso Lefebvre con Jean Laplanche

 

 

Sarug Dagir RibeiroI; Fábio Roberto Rodrigues BeloII

IDoutoranda em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil. sdagir@gmail.com
IIProfessor Adjunto da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil. fabiobelo76@gmail.com

 

 


RESUMO

Propomos uma releitura do caso Lefebvre, de Marie Bonaparte, com o objetivo de redirecionar o vetor de explicação dos fenômenos psíquicos da psicose, que aponta para o descentramento radical da constituição psíquica. Assim, temos como referente a teoria da sedução generalizada, por meio da qual trabalhamos o texto no sentido de fazer render seus elementos que concernem à sedução originária. Iniciamos com uma apresentação geral do caso e das explicações bonapartianas acerca dos principais sintomas psicóticos da paciente; em seguida, com base na teoria tradutiva do recalcamento, apresentamos os possíveis destinos e os fracassos das seduções originárias, tendo como princípio a primazia da sedução do outro nas origens da vida psíquica inconsciente e o ganho de realidade na psicose. O resgate histórico-epistemológico desse caso tem interesse na psicanálise contemporânea justamente porque aponta para o descentramento radical.

Palavras-chave: Lefebvre; psicose; sedução.


ABSTRACT

We propose a re-reading of Marie Bonaparte's Lefebvre case, with the aim of redirecting the vector of explanation of the psychic phenomena of psychosis, which points to the radical decentering of the psychic constitution. Thus, we have as reference the generalized theory of seduction, through which we work the text in order to make it surrender its elements concerning the original seduction. We start with a the general presentation of the case and the Bonapartean explanations about the main psychotic symptoms of the patient; then, based on the translation theory of repression, we present the possible destinations and the failures of the original seductions, having as principle the primacy of the seduction of the other in the origins of unconscious psychic life and the gain of reality in psychosis. The historical-epistemological rescue of this case has an interest in contemporary psychoanalysis precisely because it points to radical decentering.

Keywords:  Lefebvre; psychosis; seduction.


RESUMEN

Proponemos releer el caso Lefebvre, de Marie Bonaparte, con el objetivo redireccionar el vector de explicación de los fenómenos psíquicos de la psicosis, aquel que apunta hacia el descentramiento radical de la constitución psíquica. Así, tenemos como referente la teoría de la seducción generalizada, por medio de la cual trabajamos el texto en el sentido de hacerle rendir sus elementos que conciernen a la seducción originaria. Iniciamos con una presentación general del caso y de las explicaciones bonaparteanas sobre de los principales síntomas psicóticos de la paciente; a continuación, sobre la base de la teoría traductiva de la represión, presentamos los posibles destinos y los fracasos de las seducciones originarias, teniendo como principio la primacía de la seducción del otro en los orígenes de la vida psíquica inconsciente y la ganancia de realidad en la psicosis. El rescate histórico-epistemológico de ese caso tiene interés en el psicoanálisis contemporáneo justamente porque apunta al descentramiento radical.

Palabras clave: Lefebvre; psicosis; seducción.


 

 

Introdução

Propomos um resgate histórico-epistemológico, além de um debate teórico, em torno do caso Lefebvre, considerado um dos primeiros casos de psicose relatados na literatura psicanalítica e a maior contribuição de Marie Bonaparte (1952a) à clínica das psicoses.1 Assim, ousamos pensar no vetor de explicação dos fenômenos psíquicos da psicose, defendidos pelo dossiê bonapartiano, como prioritariamente centrífugo, ou seja, os fenômenos psíquicos partem do Eu2 (interno), de forma muito semelhante ao sentido do vetor dos textos freudianos sobre o assunto (Freud, 1889/1996a, 1911/1969, 1915/1969, 1924[1923]/1996, 1924/1996a); tais ideias ainda influenciam os trabalhos na psicanálise contemporânea, nas suas mais variadas linhas. Desse modo, as metáforas físico-astronômicas empregadas por Laplanche (2008a) na tradução, na interpretação dos textos freudianos e no desenvolvimento da teoria da sedução generalizada serão neste texto referidas pelos termos de forças centrífugas e forças centrípetas. Enfim, nosso objetivo é levar a interpretação bonapartiana do caso Lefebvre a um novo patamar, fazendo trabalhar a teoria da sedução generalizada nos seus argumentos.

A fim de atingir esse propósito, ancoramos nossa metodologia no método laplanchiano de "fazer trabalhar" os textos freudianos (Laplanche, 1988; André, 2016), que levou o autor a formular os novos fundamentos para a psicanálise (Laplanche, 1992), vertendo em sua teoria da sedução generalizada advinda do descentramento radical do sujeito por meio da afirmação da prioridade do outro e do aspecto sexual na constituição psíquica. Desse modo, inverte-se o vetor de explicação dos fenômenos psíquicos, que passam a ser centrípetos. Esse modo singular de tratamento da alteridade interna constitui uma ferramenta teórica pertinente no esquema explicativo das psicoses.

Laplanche (1992) propõe a ideia de confrontação de mensagens sexuais entre o adulto e o bebê na chamada situação antropológica fundamental. Essa situação se refere à dissimetria que caracteriza a condição em que a criança se encontra, submetida pelo adulto a uma dimensão erótica, atulhando-a de mensagens "pré-conscientes-conscientes" (Laplanche, 2015, p. 168), cujas origens e cujos significados ele próprio desconhece.

Tarelho (2017) esclarece que nessa dissimetria se encontra a base do que a teoria laplanchiana nomeia de enigma. Então, "é justamente devido a esse aspecto enigmático da mensagem adulta que a criança é incitada a desenvolver uma atividade insólita de tradução" (Laplanche, 2015, p. 61). O modelo da tradução, mais exatamente do fracasso da tradução, é muito importante para o entendimento de determinadas patologias psicológicas, bem como para nossa leitura do caso Lefebvre. Então, é pelo destino das mensagens enigmáticas ou o destino das mensagens não traduzidas, logo não recalcadas porém ativas, que desenhamos outro modo explicativo sobre a afirmação da condição psicótica de Lefebvre. Desse modo, não ingressamos nos argumentos bonapartianos que recentram o Eu, mas buscamos a primazia da sedução do outro nos fundamentos do Eu.3

Com tal objetivo, subdividimos este ensaio em quatro partes. Na primeira parte, apresentamos dados biográficos de Lefebvre, esclarecendo aspectos desde sua infância à vida adulta. Focalizamos os fatos cujas dimensões se relacionam mais diretamente com a interpretação realizada por Bonaparte (1952a) no que diz respeito tanto à classificação nosológica do caso quanto ao entendimento da dinâmica do homicídio (assassinato da nora) cometido pela paciente.

Na segunda parte, expomos a hipótese bonapartiana da psicose raciocinante ou de revindicação (Capgras & Sérieux, 1909) de Lefebvre. Em seguida, apresentamos os argumentos da autora que cotejam o erotismo anal (Freud, 1908/1976a) na hipocondria e na avareza da paciente, assim como a compreensão da suposta configuração edipiana do crime.

Na terceira parte, fazemos trabalhar a teoria de Laplanche (1992) na interpretação bonapartiana do caso Lefebvre, primeiro entendendo como a autora preconiza a sedução (Lanouzière, 1991), geralmente pensada de modo restrito, episódico ou ocasional, para em seguida expandir esse horizonte para o que Laplanche (1992) postula por teoria da sedução generalizada, paradigma que traz a dimensão do primado da alteridade do outro e do sexual, e se baseia no modelo tradutivo do recalcamento (Laplanche, 2015; Tarelho, 2017), o que vai propiciar ao caso Lefebvre o ganho de aportes na teoria psicanalítica contemporânea.

Na quarta parte, continuamos a abordar a psicose de Lefebvre por meio do modelo tradutivo do recalcamento e dos destinos dos enclaves, ou seja, daquilo que não pode ser metabolizado ou traduzido na história da paciente. Além disso, apresentamos a ideia do ganho de realidade na psicose (Carvalho, 1996, 2003), contrapondo-a à ideia freudiana clássica da perda da realidade (Freud, 1924/1996a).

 

Lefebvre: sobre sua vida e sobre o crime

Vale esclarecer alguns pontos do caso, cujas informações biográficas colhidas na história da paciente, bem como os detalhes do crime e do estado mórbido que serão explanados a seguir, foram coletadas pela própria Bonaparte.4

Sobre a infância de Lefebvre5, o que mais chama nossa atenção em seu relato é a descrição da sua brincadeira infantil preferida: ela brincava no jardim com seu irmão, deixando de fora sua irmã caçula. A brincadeira consistia em ritos religiosos ligados aos funerais das pequenas aves (pintinhos) que ela própria matava e enterrava dentro das caixas de charutos do pai, em um cemitério improvisado com esse propósito. Seu irmão proferia as bênçãos solenes, e sobre as covas eles colocavam pequenas cruzes ornamentadas com coroas de margaridas. Na adolescência, ela começa a ter problemas de saúde e é acometida por uma diarreia que a atormenta sem cessar. Nessa época, seu equilíbrio nervoso foi fortemente perturbado. Tornava-se triste sem causa visível e tinha, por razões fúteis, crises de choro: "[...] por uma simples observação feita por mamãe" (Bonaparte, 1952a, p. 7, tradução nossa). Na vida adulta, ela arranja um casamento de conveniência e afirma que aborda o casamento num estado de ignorância completa da realidade da vida íntima de um casal. Bonaparte (1952a) chega a atribuir-lhe a condição de mulher frígida, assunto de muito interesse investigativo da autora (Bonaparte, sob o pseudônimo Narjani, 1924, 1967, 1952b), mas não tomamos como nossa tarefa no presente artigo o desenvolvimento desse ponto, por extrapolar nosso propósito.

Lefebvre diz que sofreu muito durante as duas gestações que teve, principalmente de dor nos rins. Em 1890, tem seu primeiro filho, André, e em 1892, seu segundo, Charles. Com a proximidade da menopausa, apresenta os mesmos males que a afligiam na adolescência, só que com mais intensidade, ou seja, perturbações nervosas difusas e diversas, diarreia, contrações do estômago e toda sorte de sensações dolorosas, como acontece com os hipocondríacos em geral (Freud, 1914/1969). Seu filho Charles não se casa e permanece morando na casa de seus pais. Já André, aos 34 anos, conhece Antoinette Mulle, de 30 anos, e com ela se casa, contra a vontade da sua mãe.

A partir de então, surgem os sintomas mentais em Lefebvre, que culminarão no assassinato da nora. Assim, oito dias depois do casamento, explode a primeira cena de ciúmes: na igreja, Lefebvre se aproxima de Antoinette e lhe fecha acentuadamente a passagem numa atitude clara de monopolização do automóvel da família, ou seja, não queria que a nora fosse passear com seu filho. Então, com a gravidez de Antoinette, em junho de 1925, Lefebvre tem a primeira ideia de comprar um revólver. Em seguida, segue-se a situação do crime: durante um passeio de automóvel com o filho e a nora, esta lhe diz uma frase que ela cita muitas vezes durante a entrevista e que caracteriza uma das sintomatologias de sua psicose. Então, ela alega sofrer uma terrível ofensa, uma profunda falta de respeito e de grave injúria por parte da nora, que lhe disse: "Você me tem. Bem, agora, de fato conte comigo" (Bonaparte, 1952a, p. 11, tradução nossa). Durante o passeio, de modo repentino, Lefebvre solicita ao filho que pare o carro sob o pretexto de satisfazer uma necessidade fisiológica. Quando o automóvel para, ela pega o revólver, se coloca à direita da nora e com implacável segurança dispara a bala, que lhe atravessa o crânio de um lado a outro. O crime causou na época intensa comoção pública na França e foi divulgado amplamente na mídia local. A assassina, já bastante idosa, foi julgada no ano seguinte ao crime, em 1926, no tribunal de Douai e condenada à morte.

 

Lefebvre: psicose de revindicação e crime edipiano

O propósito principal do dossiê elaborado por Bonaparte (1952a) sobre o caso criminal Lefebvre é defender a ré como um caso de psicose, contrariando o exame mental dos peritos de acusação, que concluíram que a assassina tinha uma espécie de característica "um pouco particular" (p. 14, tradução nossa), que teve inteira e plena responsabilidade sobre o crime, e que o diagnóstico de psicose estava descartado. Assim, a autora realiza uma entrevista de avaliação nosológica e de compreensão psicodinâmica da personalidade de Lefebvre, discriminando indicadores relevantes para a avaliação psicopatológica da entrevistada.

O ponto de vista bonapartiano é que "Madame Lefebvre tem uma constituição paranoica, sob a qual se desenvolveu uma psicose de revindicação" (Bonaparte, 1952a, p. 14, tradução nossa). Trata-se de um tipo de psicose estudada e caracterizada por Capgras e Sérieux (1909)6 como um tipo de delírio de interpretação, em que os doentes conservam a memória, a faculdade intelectual, "mas em um ponto sua razão é perturbada, neste que toca a faculdade dita de julgamento" (Bonaparte, 1952a, p. 14, tradução nossa). Uma ideia prevalente é tomada de um efeito poderoso que se estabelecerá e se tornará dominante. De fato, Lefebvre foi incapaz de dizer de um agravo sério cometido pela nora contra ela, pois das palavras mais insignificantes proveio, segundo ela, o mais grave agravo.

De acordo com Capgras e Sérieux (1909), o fato que caracteriza a impressão de anormal é justamente a maneira como as ideias se desenvolvem com precisão e se fixando num ponto em que

O delírio de reivindicação pode definir uma psicose sistemática crônica, caracterizada por uma predominância exclusiva de uma ideia fixa que se impõe ao espírito de uma maneira obsessiva, orienta toda a atividade no sentido manifestadamente patológico e se exalta em razão dos obstáculos encontrados (Capgras & Sérieux, 1909, p. 246, tradução nossa).

Trata-se de um estado psíquico de monoideísmo de prevalência mórbida que em nada se assemelha à demência. Nesse tipo de psicose, a ideia obsessiva é como um tirano que não deixa o doente um só instante em repouso e, de acordo com Bonaparte (1952a), Lefebvre apresenta as características próprias do delírio de reivindicação.

Por outro lado, com relação ao crime, a autora se questiona: teria Lefebvre cometido um crime edipiano? Para Bonaparte (1952a, p. 13, tradução nossa), "ela tinha, de fato, cometido um crime de um horror antigo: matar por amor de um filho como outros matam por amor de um amante; um aroma de incesto exala em torno do crime".

Sabemos que, para Freud (1924/1996b), o complexo de Édipo é um estado de sentimento em que a criança direciona amor sexual ao genitor do sexo oposto e, em contrapartida lógica, deseja a morte ao genitor do mesmo sexo, considerado um rival. "Esse complexo, vivido em toda a sua realidade sexual, existe também nos pais, mas de maneira atenuada, ensurdecido pela longa corrente da censura moral" (Bonaparte, 1952a, p. 15, tradução nossa), em que o pai prefere a filha, e a mãe prefere o filho.

[...] no caso Lefebvre, é o crime edipiano ao contrário, ou seja, não de Édipo, mas de Jocasta [...] um amor carnal entre a mãe e seu filho [...] e expressou de um modo cruel e simplista esta verdade que Lefebvre é a Jocasta que matou (Bonaparte, 1952a, p. 15, tradução nossa).

Portanto, a autora justifica os motivos pelos quais o crime de Lefebvre muito repercutiu e repercute na mente e na opinião das pessoas justamente porque "em toda mãe, no fundo do inconsciente, há, inexprimido, um pouco de Jocasta e de Lefebvre" (Bonaparte, 1952a, p. 15, tradução nossa).

No dossiê bonapartiano consta que a mãe de Lefebvre foi muito avarenta na época de sua infância e apresentava muitos sintomas hipocondríacos ligados a vários distúrbios de ordem intestinal. Esses sintomas também acometerão Lefebvre muito fortemente na época de sua primeira menstruação e reaparecerão na época da menopausa. A autora questiona se haveria um elo de identificação de Lefebvre com a mãe, conotado tanto pela hipocondria como pela avareza.7

Quanto ao último sintoma, observemos que Bonaparte (1952a), seguindo a via interpretativa proposta por Freud (1908/1976a) e Abraham (1924), afirma que o gasto de dinheiro por parte da nora era sentido com intensa dor por Lefebvre justamente porque "todo dinheiro gasto é um dom, um dom transposto, sob o modo da regressão anal" (Bonaparte, 1952a, p. 21, tradução nossa) e que "nos produtos do inconsciente - ideias espontâneas, fantasias e sintomas - os conceitos de fezes (dinheiro, dádiva), bebê e pênis mal se distinguem um do outro e são facilmente intercambiáveis" (Freud, 1917/1996, p. 160).

Segundo Bonaparte (1952a), o erotismo anal é reanimado em certos tipos de psicopatas, e deveríamos tomar como exemplo o caso Lefebvre, em que a hipocondria, além da avareza, é testemunha desse retorno aos estados pré-genitais da libido. Para Freud (1914/1969), a hipocondria exprime um retorno da libido sobre o próprio sujeito como uma "neurose narcísica atual" expressa na linguagem orgânica. Então, a hipocondria é um estado preliminar das psicoses paranoicas. Segundo a interpretação bonapartiana, o caso Lefebvre corrobora as teses freudianas.

Outro aspecto importante no dossiê bonapartiano é a afirmação de que Lefebvre relata que se sentiu completamente incomodada e ressentida com a aparência da mãe gorda quando estava grávida da filha caçula, considerada sua arquirrival edipiana. Esses sentimentos, segundo Bonaparte (1952a), muito provavelmente foram revividos na ocasião da gravidez da nora e numa leitura laplanchiana, como veremos adiante, podem ser entendidos pela reabertura do processo de fracasso de tradução do enigma das mensagens de cunho sexual vindas do outro e que não são metabolizadas, os chamados enclaves psicóticos (Laplanche, 2008c).

De acordo com Bonaparte (1952a), Lefebvre desejava matar a mãe quando esta estava grávida de sua pequena irmã, e o crime contra a nora foi a repetição dessa reação primitiva muito antiga, provavelmente o desejo edipiano de morte contra a própria mãe, para poder tomar o lugar da mulher do pai. A autora faz clara menção às ideias freudianas sobre o complexo de Édipo na menina (Freud, 1924/1996b, 1931/1996).

Na próxima seção faremos trabalhar a teoria da sedução generalizada como meio de aprofundar a elaboração dessas questões.

 

Gravidez e sedução: os destinos das mensagens

Levando em consideração as indicações do estudo de Lanouzière (1991) relativo ao caminho que a noção de sedução traça no pensamento bonapartiano, podemos distinguir três tipos de agentes de sedução: a sedução maternal, a sedução pelos adultos e a sedução pelos pares. Sucintamente, temos o seguinte entendimento: a sedução maternal está relacionada aos cuidados com a higiene do bebê e é de natureza involuntária ou inconsciente. Bonaparte (1967) defende que, nos cuidados com a toalete, as carícias são provedoras essenciais de excitações sexuais na criança e geralmente ocorrem nos momentos em que ela é "lavada, limpa, acariciada" (p. 117, tradução nossa).

Já a sedução pelos adultos é aquela considerada como sedução sexual propriamente dita, de natureza intencional, que provoca a excitação direta das partes do corpo da criança, geralmente provocada por adultos pedófilos ou perversos. E é neste tipo de sedução que a autora também localiza aquelas seduções provocadas pela visão e audição, por parte da criança, de cenas sexuais entre adultos. Isso significa que a criança é testemunha de cenas sexuais reais, chamadas de cena primária (Bonaparte, 1952c; Freud, 1899/1996b). Então, além das confabulações de suas teorias sexuais infantis (Freud, 1908/1976b), é despertada na criança a masturbação (Lanouzière, 1991, p. 141), que na fase fálica ou genital está repleta de fantasias edípicas. Na teoria freudiana clássica, o menino deseja se deitar com a mãe e rivaliza com o pai, e a menina abandona a mãe como objeto de amor, disputando com ela o amor pelo pai, de quem espera um dia ter um filho, como forma de compensação da falta anatômica do pênis, mas percebe que o pai ama a mãe, por isso é acometida por uma grande decepção amorosa, que marca seu psiquismo de maneira inequívoca (Freud, 1924/1996b, 1931/1996).

Por fim, na manifestação da sedução pelos pares, os postulados bonapartianos (Bonaparte, 1967) se referem aos jogos sexuais entre crianças ou entre irmãos de mesma idade ou idades próximas. Geralmente as crianças imitam os jogos sexuais dos adultos e se masturbam ou evoluem para o coito completo. De maneira geral, para o pensamento bonapartiano, a sexualidade reside na articulação desses três fenômenos preparatórios: a sedução, a masturbação e os devaneios edipianos.

Por outro lado, Laplanche (1992, 1985) se opõe à noção de sedução restrita, acidental ou conjectural, que tão costumeiramente aparece nos textos bonapartianos e freudianos. A teoria laplanchiana vem ampliar a noção de sedução reconhecendo que os inelutáveis encontros do bebê com a mãe e/ou o pai (o mundo dos adultos), que estão permeados de sexualidade e, seguindo modalidades diferentes de mensagens a ele endereçadas, vão enchendo seu corpo de materiais discursivos e não discursivos, que estão comprometidos com o inconsciente do adulto. Essas mensagens provocam um efeito traumático no bebê por causa da sua imaturidade na organização psíquica, que o impede de traduzir ou tratar o excesso de excitação. Esses excessos traumáticos serão esquecidos e farão parte de seu inconsciente pelo efeito do recalcamento originário. Cabe alertar o leitor que a teoria da sedução generalizada não se confunde com a generalização ou a banalização da sedução (dos abusos sexuais na infância), mas trata-se de explicar as origens da vida psíquica inconsciente (Laplanche, 1985).

Como mencionado anteriormente, na situação antropológica fundamental, em que o bebê depende de ser cuidado pelo adulto, são transmitidas a ele mensagens conscientes e pré-conscientes (de amor, ódio, raiva, entre outras), que vão aos poucos colonizando seu corpo com afeto. Segundo Laplanche (2008b), essas mensagens podem ser endereçadas via "implantação", que são aquelas mensagens que ocorrem corriqueiramente e passarão por algum processo de tradução, ou via "intromissão", que são aquelas de cunho mais violento e que muitas vezes permanecem no inconsciente como restos não metabolizados ou não traduzidos. Esses jogos de mensagens são seduções que partem do outro e, como assinalamos acima, o modelo de tradução dessas mensagens é uma das chaves da teoria da sedução generalizada (Laplanche, 1992) e de nosso entendimento sobre as psicoses. Isso significa que a "intromissão" de mensagens implica para o Eu um fracasso radical de tradução, o que se deve, entre outros aspectos, "ao fato de que tais mensagens já se apresentam como não metabolizadas no próprio outro" (Cardoso, 2017, p. 89). E é isso que na teoria laplanchiana nomeamos de enclave psicótico. Segundo Laplanche (2008c), os enclaves correspondem às impressões não traduzidas de mensagens advindas do outro cujo ingresso no psiquismo se deu via "intromissão". Esses enclaves se mantêm como marcas traumáticas e tendem a reaparecer na vida psíquica de maneira quase imutável. Então, tais mensagens ficarão "encravadas" no psiquismo (Laplanche, 2015).

Fazendo trabalhar a teoria da sedução generalizada nas elaborações bonapartianas no dossiê clínico sobre Lefebvre, podemos avançar na interpretação bonapartiana mudando o vetor de explicação que, por exemplo, esclarece a raiva sentida por Lefebvre quando a mãe estava grávida da filha caçula. Sabemos que a gravidez soa para o mundo infantil como enigma, cujas confabulações ou teorias sexuais encontrarão várias explicações (Freud, 1907/1996, 1908/1976b), como a história da cegonha que, voando pelos céus, traz os bebês para as mães, entre outras crenças. Mas o que nos interessa aqui é o enigma (da mensagem do outro) no jogo do processo tradutivo (Laplanche, 1985, 2015), que funciona como o elemento focal do desenvolvimento psicossexual. Dessa maneira, entendemos que com o desenvolvimento do bebê vai ocorrendo a formação das representações mentais, as quais darão sentido a algumas das mensagens a ele endereçadas (implantações), cujo processo tradutivo tem como base as informações recebidas do ambiente, do seu meio social mais próximo (tios, tias, avós, primos, vizinhos, dentre outros). Esses valores e essas crenças, por exemplo, lhe fornecerão o sentido do que é ser homem ou mulher e, então, a criança dará conta da introjeção e/ou identificação com o objeto.8 Esses valores e essas crenças darão sentido ao enigma da gravidez ou à chegada de um(a) irmãozinho(a). Já as mensagens designadas "intromissões", de cunho mais violento, como dito anteriormente, permanecerão sem tradução e constituirão parte do inconsciente da criança como enclaves ou encravada (Laplanche, 2008b, 2015). Em outros termos, "a intromissão de mensagens implica para o ego um fracasso radical de tradução [...] Isso poderia ser devido [...] ao fato de que tais mensagens já se apresentariam como não metabolizáveis no próprio outro, já são enclaves no adulto" (Cardoso, 2017, p. 89).

Assim, pensamos, por exemplo, na gravidez da mãe de Lefebvre como uma mensagem, que pode ter sido endereçada de forma rude e severa, fato que nos faz pensar numa possível qualidade de mensagem que a fez fracassar na tradução, inundando-a de raiva. Lefebvre afirma que "ressentia-se brutalmente com a gravidez de sua mãe, gravidez de sua pequena irmã" (Bonaparte, 1952a, p. 16, tradução nossa). Portanto, a mensagem da gravidez "é aquilo que perdeu a ligação de sentido e que assim, estará sempre escapando a esta tentativa de significação, de criação de sentido" (Tarelho, 2017, p. 29). Cabe lembrar que o esforço tradutivo do sujeito para integrar o sexual que veio de fora é a chave da compreensão da constituição psíquica de forma geral (Tarelho, 2016), inclusive, que levará o sujeito à psicose. Assim, pela teoria da sedução generalizada a direção do vetor é centrípeto, do sexual que vem de fora, do outro e não do interior do Eu como se apresenta nos argumentos bonapartianos. Assim, a gravidez da mãe de Lefebvre, entendida como uma mensagem a ela endereçada, escapou de uma ligação de sentido e a fez ter uma reação tradutiva mortífera, como expressa em sua brincadeira predileta de infância de matar os pintinhos e enterrá-los no quintal.

Quando Bonaparte (1952a) afirma que "é a gravidez de sua nora que o inconsciente de Mme. Lefebvre não pode suportar" (p. 35, tradução nossa), precisamos interpretar que não é o inconsciente de Lefebvre que não pode suportar a gravidez da nora, mas sim seu Eu. Os elementos, no caso, sugerem que a própria gravidez é que produz o ataque de angústia. Vale lembrar que a descrição dos sintomas hipocondríacos se assemelha ao peso de uma gravidez e às dores do parto. E inverso à direção do vetor (centrípeto), o sexual que vem do outro nas cenas de sedução às quais Lefebvre foi submetida na sua infância, da "mensagem do outro, sexual-pré-sexual, enigmática" (Laplanche, 1999, p. 35, tradução nossa) nos seus aspectos mais violentos ou de desligamento do funcionamento psíquico nos permitem conceber o ataque da mensagem da mãe grávida. E a posteriori, ao ver a nora grávida, sua memória traumática é ativada, o que a faz repetir a reação primitiva mais antiga da época em que sua mãe estava grávida de sua irmã caçula.

A interpretação bonapartiana da psicose da paciente é semelhante à teoria sobre as psicoses da tese clássica de Freud (1911/1969), que via um movimento centrífugo comandando o sintoma psicótico: algo interno intolerável é projetado para fora e retorna como se viesse do exterior. Mas, tomando as indicações do caso Lefebvre de Bonaparte (1952a) para ilustrar a teoria da sedução generalizada, reconhecemos nossos limites na explicitação do vetor sexual que vai da mãe de Lefebvre à própria Lefebvre, exemplificada quando narra a raiva e o medo que sentia da mãe, principalmente quando estava grávida da filha caçula.

Conforme a teoria da sedução generalizada, esses afetos já são resposta às "intromissões" sofridas pela criança Lefebvre. A crítica de Laplanche (1999) às teorias freudianas sobre a psicose visa destacar que há um movimento centrípeto (do outro ao Eu) anterior à defesa projetiva. A sedução vem primeiro do outro externo, o sexual é intrometido no sujeito e só então ele encontra alguma tradução e pode ser projetado para, mais uma vez, retornar vindo de fora.

A gravidez da mãe entra na mesma lógica afetiva de desprezo e violência por meio da qual Lefebvre fora tratada por ela. Uma reação da menina na época foi justamente matar os pintinhos (pequenas aves) como uma tentativa de simbolizar uma tradução das mensagens que a mãe endereçava à criança Lefebvre. Era ela também a menina enterrada e morta pelo ódio da mãe. Sua saída cruel ativa traduz a passividade brutal à qual é submetida. Quando se depara com a nora grávida, temos novamente uma cena sexual que lhe é endereçada. Tal cena reabre a situação originária: antes de edipianizar a cena, dizendo que o filho da nora é o filho que ela gostaria de ter com o próprio filho, insistimos que o que é perturbador são os efeitos sexuais internos produzidos pela cena da gravidez.

Veremos na seção seguinte como a insistência da literalidade da memória traumática de Lefebvre é correlativa à má delimitação das fronteiras do seu Eu.

 

A primazia da sedução do outro nos fundamentos do Eu e o ganho de realidade na psicose

Para Bonaparte (1952a, p. 36), os mecanismos psíquicos do Eu de Lefebvre só lhe permitem amar o marido e os dois filhos, não admitindo a entrada de ninguém mais no seio familiar; por isso, ela considerava a nora uma intrusa, alguém que perturbava a ordem e a harmonia familiar. Sobre esse ponto podemos pensar que "o Eu é uma realidade criada e mantida pelo investimento libidinal. O Eu deve ser considerado como uma experiência contínua do psiquismo, cujos contornos modificam-se" (Carvalho, 2003, p. 45). As modificações dos contornos do Eu incluem a despersonalização, a alienação e o estranhamento. Isso implica pôr em evidência a vulnerabilidade do Eu e dizer que o Eu do psicótico é modificado e, no caso Lefebvre, "um Eu com as fronteiras encolhidas, esbarrando com o órgão doente" (Carvalho, 2003, p. 47) e um Eu que fazia ligações libidinais apenas com seu pequeno grupo familiar. Portanto, segundo Carvalho (2003), as elaborações sobre as fronteiras do Eu e a realidade dos fenômenos psicóticos não são "a perda da realidade, mas o ganho de realidade daquilo que, anteriormente, era meramente pensamento" (p. 49).

Por conseguinte, com base na ideia de que a psicose se caracteriza pelo "ganho de realidade dos conteúdos inconscientes" (Carvalho, 1996, p. 239, tradução nossa), é possível propor a compreensão da regressão a um estado do Eu passado como a atualização de uma situação de sedução originária.

O surgimento da psicose tem uma relação decisiva com exigências pulsionais que se apresentam como enigmáticas e ameaçadoras na justa medida de sua incompatibilidade com o que pode ser reconhecido como pertencente ao eu, ou seja, na medida de sua alteridade (Ribeiro, 2001, p. 123).

Segundo Laplanche (1999, p. 52), "a 'realidade psíquica' não é criada pelo Eu, ela é invasiva".9 É no movimento centrípeto, vetor que vai do outro para o interior do sujeito, que se encontra nosso ponto de partida. Lembramos ao leitor que essa perspectiva é bem diferente daquela dos postulados freudianos sobre a psicose, que se diferencia da neurose pelo fato que o "[...] ego, a serviço do id, se afasta de um fragmento da realidade" (Freud, 1924/1996a, p. 229), cujo reparo da perda da realidade se dá de maneira autocrática, com a criação de uma nova realidade, seja por meio do delírio, da alucinação, seja por meio de uma infeliz ideia mórbida. Por conseguinte, a noção de ganho de realidade na psicose nos ajuda a entender de outro modo o respectivo caso, na medida em que sua sintomatologia (a hipocondria, o delírio e o ato homicida) está intimamente interligada a um Eu que aparece mal delimitado em suas fronteiras internas ou externas. E equacionado a um processo sedutivo marcado por injunções paradoxais que a levaram à subsequente falha radical de tradução (clivagem), cujos conteúdos inconscientes alcançaram um ganho de realidade: minha nora me insultou, então, é meu dever eliminá-la como "se tira uma erva daninha do jardim" (Bonaparte, 1952a, p. 28, tradução nossa), num tipo de reabertura de cenas originárias, a cena da mãe grávida considerada ofensa.

Conforme a teoria da sedução generalizada, a realidade psíquica está relacionada à realidade da mensagem sexual do outro. Quanto ao delírio de Lefebvre, ele é retirado da frase mais banal, que encerra a essência daquilo que se transformará em sua loucura. Ou seja, da fala corriqueira: "Você me tem. Bem, agora, de fato conte comigo" (Bonaparte, 1952a, p. 11, tradução nossa), que aos ouvidos de Lefebvre soa como ofensa moral ou sexual. E quanto à gravidez da nora, nossa interpretação nos faz levar em conta que essa gravidez endereçou a Lefebvre mensagens sexuais da mãe, cujo caráter sedutor e sexual é velado e só pode ser deduzido a posteriori, quando colocada lado a lado com a nora grávida. Desse modo, a gravidez da nora atualiza uma situação de sedução mais antiga, a sedução da mensagem da gravidez da mãe. É nessa cadeia associativa que liga a mãe à nora, em que "a regressão a um estado passado do Eu deve ser compreendida como a atualização de uma situação de sedução" (Carvalho, 2003, p. 56), que percebemos o ganho de realidade de conteúdos inconscientes pelo Eu de Lefebvre.

A fixação da ideia sobre a suposta ofensa da nora, repetida monotonamente, marca um modo explosivo e um ponto de fixidez da realidade da mensagem sexual intrometida em seu psiquismo pelo enigma da gravidez. Segundo Laplanche (1999), "o primado do outro e seu enigma não se 'fecha' necessariamente quando desaparece a relação concreta adulto-bebê" (p. 5, tradução nossa), o que o autor chamará de abertura à inspiração. No que tange ao estudo das psicoses, as asserções seduzir, perseguir e revelar são os verbos ativos da ação do outro sobre o Eu (da criança), e essas ações merecem ser interrogadas no estudo das psicoses.

Para Laplanche (1999), "[...] sustentar 'a realidade da sedução' é afirmar sua prioridade, sua primazia com relação aos outros cenários ditos originários" (p. 10, tradução nossa). Nas cenas de sedução está a realidade psíquica do inconsciente, em que entre o adulto e o bebê "se postula uma comunicação imaterial de inconsciente a inconsciente, de fantasia a fantasia, isso postulado de maneira totalmente injustificada, a preexistência de uma fantasia e de um inconsciente no bebê" (p. 12, tradução nossa).

Na teoria de Freud (1911/1969), assim como na de Bonaparte (1952a), esses traços no psiquismo estão funcionando como um resíduo da "revivescência [do ódio] das meninas que foram suas amigas na infância, ou das irmãs, que foram suas rivais verdadeiras" (Freud, 1911/1969, p. 87). Para Laplanche (1999), seria interessante pensar no ódio como, primariamente, proveniente do outro: só então o percurso prosseguiria: (1) eu sou odiada; (2) odeio minha agressora/rival; (3) eu me culpo pelo meu ódio; (4) projeto meu ódio para a agressora, invertendo-o: sou odiada/perseguida. Talvez a diferença do ponto (1) para o ponto (4) seja o caráter persecutório, que ganha o ódio proveniente da projeção, o que não está presente no ódio inicial, proveniente do outro da situação originária. Portanto, Laplanche (1999) situa essa suposição de inversão do ódio em perseguição justamente na inversão do movimento do vetor, que, em vez de ser centrífugo, tem seu ponto de partida no exterior, "como movimento que toma sua origem no outro" (p. 54, tradução nossa). Assim, perseguir aparece como um retorno da passividade originária em atividade no que concerne à vetorização centrípeta, da intervenção do outro, pela qual o sujeito toma ser a origem daquilo que primeiramente o submete.

Freud (1911/1969) explica o delírio ou, mais precisamente, sua forma persecutória como se fosse provocada por "uma percepção interna suprimida, e seu conteúdo, após sofrer certo tipo de deformação, ingressa na consciência sob a forma de percepção externa" (p. 89). Vemos claramente a direção do vetor (centrífugo) na explicação da psicose, tal como no texto bonapartiano sobre Lefebvre. Mas, conforme a teoria da sedução generalizada, invertemos esse vetor: o que importa são as mensagens que vêm de fora, do outro, em que na situação antropológica fundamental "o infans, por sua imaturidade de base, seu desamparo, passa um bom tempo girando em torno desse astro-rei, o adulto com seu calor, que aquece e é a fonte de vida, mas que não deixa também de queimar" (Tarelho, 2017, p. 19). E é desse modo que a sexualidade pulsional chega à criança. Assim, compreendemos que a projeção, essencial à paranoia, está relacionada à dimensão tradutiva da metabolização das mensagens endereçadas à criança pelo adulto. Então, essa defesa psicótica se efetua pela via da projeção. Em vez de se pensar numa sensação interiormente suprimida pelo exterior, o delírio faz proeminência como alteridade irredutível, levando Lefebvre a ter feito seu dever de matar.

"Quando eu falo de um descentramento originário, de um copernicanismo de base, eu não falo em geral, mas especificamente no domínio sexual" (Laplanche, 1999, p. 52, tradução nossa). No texto bonapartiano há uma confusão do sexual (da sedução) e da autoconservação (uma visão endógena do sexual), em que o simbolismo exagerado nas interpretações do caso Lefebvre a fez silenciar a origem alteritária do Eu.

 

Para concluir

Vimos que, esquematicamente, o dossiê clínico Lefebvre de Bonaparte (1952a) se compõe de duas partes: uma concernente aos sintomas hipocondríacos e às fases pré-genitais da libido, demonstrando a origem de sua avareza e a especificidade da folie raciocinante, e outra concernente ao conteúdo edípico do crime e sua dinâmica.

De certa maneira, constatamos que há continuidade da psicopatologia freudiana das psicoses nas ideias bonapartianas. E o resgate desse caso se mostra importante nos dias de hoje por mostrar como essas ideias sobre a psicose, de certa maneira, ainda predominam na psicanálise contemporânea, que muitas vezes a relaciona aos fenômenos internos ao Eu. Um dos méritos desta pesquisa é recuperar o fazer teórico em psicanálise ao mostrarmos como o movimento centrífugo recalca as origens alteritárias do Eu e como isso se traduz do ponto de vista teórico. Nosso esforço, ao contrário, é pensar o descentramento radical na teoria das psicoses com base na teoria da sedução generalizada.

Nosso caminho foi, então, priorizar o domínio da mensagem do outro, do sexual, movimento centrípeto e não centrífugo, pois, "a 'realidade psíquica' não é criada pelo Eu, ela é invasiva" (Laplanche, 1999, p. 52, tradução nossa). No que tange ao caso, repetimos, a realidade da mensagem da nora grávida reabre em Lefebvre o efeito da sedução do outro (a mãe), efeito sexual disruptivo, que exige a passagem ao ato - matar a nora - como uma maneira de tradução das "intromissões" da mãe.

Finalizamos reconhecendo o conhecimento profundo do texto freudiano que o texto de Bonaparte (1952a) testemunha, mas é pela ideia da realidade da sedução, vetor centrípeto que mantém essa discussão no campo próprio da psicanálise. Ao realizarmos este estudo, pensamos ter aberto novas possibilidades de pesquisas e de descobertas no pensamento bonapartiano, que, de fato, se mostrou um campo fecundo a ser explorado.

 

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Recebido em 21 de fevereiro de 2018
Aceito para publicação em 22 de junho de 2018

 

 

Este estudo teve apoio e financiamento da FAPEMIG (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais). O autor Fábio Belo é bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), nível 2.
1 Cabe destacar que Lefebvre nunca foi analisada por Bonaparte. Essa publicação é fruto de uma entrevista clínica realizada na prisão onde a assassina cumpria sua pena. O dossiê gera mais tarde, por parte da autora, uma série de estudos sobre os tratamentos psiquiátricos de criminosos e assassinos notórios, em que ela se posiciona veementemente contra a pena de morte. Portanto, é crível que seu interesse por Lefebvre se dê pela crença de que seu diagnóstico como psicótica pudesse salvá-la da pena de morte.
2 Usamos inicial maiúscula na grafia de 'Eu' para denotar que se trata da instância metapsicológica do aparelho psíquico, e não do pronome pessoal (eu) da primeira pessoa.
3 Em linhas gerais, o que está em jogo é a questão da "centração", que, segundo Laplanche (2008a), começou com a mudança do centro da astronomia da Terra para o Sol, o que abre caminho para consequências bem mais drásticas, considerando a imensidão do universo e seus infinitos sistemas, que significa a abertura para a ausência de centro, porque o centro do universo passa pela noção de infinito. E, na psicanálise, se refere à descentração do nosso Eu.
4 Em entrevista com a assassina na penitenciária de Lille, em 14 de janeiro de 1927, com duração aproximada de quatro horas. Acreditamos que nessa situação a paciente não foi um objeto passivo da observação da pesquisadora (Marie Bonaparte), mas que ambas se influenciaram mutuamente, o que não pode ser desconsiderado no tratamento do texto bonapartiano. A entrevistadora também se valeu dos detalhes do dossiê médico-legal realizado pelos médicos Dr. Raviart, Dr. Rogues de Fursac e Dr. Logre, além dos documentos jurídicos disponíveis na época. Como mencionado anteriormente, a autora era veementemente contra a pena de morte e militava nessa causa.
5 Madame Lefebvre, nascida Marie-Félicité-Elise Lemaire, nasceu em Fromelles, no norte da França, em 13 de novembro de 1864. Ela pertencia a uma honorável família de grandes lavradores. Seu pai, Charles-François Lemaire, cultivava extensos hectares de terras. Sua mãe, Nathalie-Sidonie Waymel, era de uma família comum. Dois anos após seu nascimento, veio o irmão Charles-François e, dezoito meses mais tarde, a irmã caçula Nelly.
6 Atualmente esse tipo de psicose é caracterizado como transtorno delirante inespecificado (Sadock & Sadock, 2008, p. 183).
7 Não perfilhamos como nossa empreitada no presente artigo o desenvolvimento do tema da relação entre a identificação e a sedução originária, mas remetemos o leitor aos trabalhos de Ribeiro (2000, 2007).
8 Isso gerará em termos da formação do aparelho psíquico o ideal do eu e eu ideal, e todo o processo da identificação. Ao leitor que deseje se aprofundar nesse assunto sugerimos a leitura dos textos de Sigmund Freud (1914/1969, 1921/1996, 1924/1996b).
9 "La 'réalité psychique' n'est pas créée par moi, elle est invasive" (Laplanche, 1999, p. 52).

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