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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.32 no.1 Rio de Janeiro jan./abr. 2020

http://dx.doi.org/10.33208/PC1980-5438v0032n01A02 

SEÇÃO TEMÁTICA - CLÍNICA DA CRIANÇA

 

Mudanças na capacidade de mentalização na psicoterapia psicodinâmica de crianças

 

Changes in mentalization ability in child psychodynamic psychotherapy

 

Cambios en la capacidad de mentalización en la psicoterapia psicodinámica de niños

 

 

Cibele CarvalhoI; Sonia Liane Reichert RovinskiII; Guilherme Pacheco FioriniIII; Vera Regina Röhnelt RamiresIV

IPsicóloga, Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), São Leopoldo, RS, Brasil. email: cibele.carvalho8@gmail.com
IIPsicóloga, Doutora em Psicologia pela Universidade de Santiago de Compostela, Espanha; Coordenadora do Curso de Especialização em Psicologia Jurídica da Projecto Soluções em Psicologia, Porto Alegre, RS, Brasil. email: soniarovinski@gmail.com
IIIPsicólogo, Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), São Leopoldo, RS, Brasil. email: guilherme.fiorini@outlook.com
IVPsicóloga, Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Professora Titular do Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), São Leopoldo, RS, Brasil. email: vramires@unisinos.br

 

 


RESUMO

A mentalização tem sido considerada um elemento importante no processo de mudança na psicoterapia psicodinâmica. No entanto, há uma escassez de instrumentos disponíveis para avaliar o constructo com a população infantil. O Método de Rorschach tem sido sugerido como um procedimento capaz de avaliar a mentalização. Assim, o objetivo deste estudo foi analisar possíveis mudanças no funcionamento psíquico global e na capacidade de mentalização na psicoterapia psicodinâmica de crianças, de acordo com o Método de Rorschach (Sistema Exner). Foi realizado um estudo descritivo e longitudinal baseado no procedimento de Estudo de Caso Sistemático, do qual participaram três crianças em idade escolar. O Método de Rorschach foi aplicado no início e ao final do tratamento. As crianças apresentaram deficit na capacidade de mentalização no início do tratamento, associado a prejuízos no funcionamento psíquico global. Foi possível identificar mudanças na mentalização, ao final da psicoterapia, que se caracterizaram por avanços e retrocessos. O Método de Rorschach provou ser capaz de identificar mudanças na capacidade de mentalização das crianças analisadas.

Palavras-chave: psicoterapia psicodinâmica; mentalização; pesquisa de resultado; crianças; Rorschach.


ABSTRACT

Mentalization has been considered an important element in the process of change in psychodynamic psychotherapy. However, there is a shortage of available instruments to assess the construct in children. The Rorschach Method has been suggested as a procedure capable of evaluating mentalization. Thus, the aim of this study was to analyze possible changes in the global psychic functioning and in mentalization ability in child psychodynamic psychotherapy, according to the Rorschach Method (Exner System). A descriptive and longitudinal study based on the Systematic Case Study procedure was performed, in which three school-age children took part. The Rorschach Method was applied at the beginning and at the end of the treatment. The children presented impairments in their ability to mentalize at the beginning of the treatment, and it was possible to identify changes in this ability at the end of the psychotherapy. In addition, there was an association between deficits in mentalization and impairments in global psychic functioning. The changes in psychotherapy did not show a steady progress, but were marked by advances and setbacks. The Rorschach Method proved able to detect changes in the mentalization ability of the children.

Keywords: psychodynamic psychotherapy; mentalization; outcome research; children; Rorschach.


RESUMEN

La mentalización ha sido considerada un elemento importante en el proceso de cambio en la psicoterapia psicodinámica. Sin embargo, hay una escasez de instrumentos disponibles para evaluar el constructo con la población infantil. El método de Rorschach ha sido sugerido como un procedimiento capaz de evaluar la mentalización. Así, el objetivo de este estudio fue analizar posibles cambios en el funcionamiento psíquico global y en la capacidad de mentalización en la psicoterapia psicodinámica de niños, de acuerdo con el Método de Rorschach (Sistema Exner). Se realizó un estudio descriptivo y longitudinal basado en el procedimiento de Estudio de Caso Sistemático, en el que participaron tres niños en edad escolar. El método de Rorschach se aplicó al principio y al final del tratamiento. Los niños presentaron déficit en la capacidad de mentalización al inicio del tratamiento, que estuvieron asociados a pérdidas en el funcionamiento psíquico global. Fue posible identificar cambios en la mentalización, al final de la psicoterapia, que se caracterizaron por avances y retrocesos. El Método de Rorschach demostró ser capaz de identificar cambios en la capacidad de mentalización de los niños analizados.

Palabras clave: psicoterapia psicodinámica; mentalización; búsqueda de resultados; niños; Rorschach.


 

 

Introdução

A compreensão da própria mente e da dos outros, ou mentalização, tem sido considerada um elemento importante no processo da psicoterapia psicodinâmica e também um resultado possível após uma intervenção terapêutica. A mentalização é definida como a capacidade de compreender e interpretar o próprio comportamento e o dos outros, em termos de estados mentais subjacentes (sentimentos, crenças, intenções, desejos) (Fonagy, Bateman & Luyten, 2012; Steele, Murphy & Steele, 2015). Trata-se de uma habilidade para construir modelos realistas de por que as pessoas se comportam, pensam e sentem da maneira que o fazem (Steele et al., 2015). Não é uma propriedade fixa da mente mas um processo, uma capacidade ou habilidade, a qual pode estar presente ou ausente em maior ou menor grau (Fonagy et al., 2012).

Peter Fonagy e colegas propuseram uma teoria para o desenvolvimento da mentalização (Fonagy, Gergely, Jurist & Target, 2002) que integra ideias da psicanálise, da teoria da mente, da psicologia do desenvolvimento e da neurociência cognitiva (Fonagy et al., 2012). Do ponto de vista conceitual, trata-se de um constructo multidimensional, que pode ser descrito em torno de quatro dimensões ou polaridades. A primeira, relacionada a dois modos de funcionamento, automático (implícito) e controlado (explícito); a segunda, relacionada a dois recursos, interno e externo; a terceira, relacionada a dois objetos, eu e o outro; e a quarta, relacionada a duas dimensões, cognitiva e afetiva, no que diz respeito a seu conteúdo e processo (Fonagy et al., 2012).

A mentalização explícita refere-se a um processo relativamente lento, tipicamente verbal e requer reflexão, atenção, intenção, consciência e esforço, pois envolve a atividade de pensar reflexivamente sobre as próprias ações e as dos outros (Fonagy & Luyten, 2009; Fonagy et al., 2012). A mentalização implícita envolve um processo rápido, reflexivo e requer pouca ou nenhuma atenção, intenção, consciência e esforço (Fonagy et al., 2012). Os recursos internos dizem respeito a processos mentais interiores, de si mesmo e dos outros (pensamentos, sentimentos, experiências) e implicam processos mais ativos e controlados. Já os recursos externos referem-se a processos mentais que dependem de características físicas e visíveis das ações de si e dos outros (expressões faciais, postura corporal). Implicam processos menos controlados e reflexivos (Fonagy & Luyten, 2009; Fonagy et al., 2012). Fundamentalmente, os dois objetos, o eu e o outro, mentalizam de forma interativa. O processo de imaginar os próprios pensamentos e sentimentos potencialmente determina a ideia de que eles estão em outra mente e vice-versa. Assim, o entendimento do interior mental dos outros implica o reconhecimento de que os outros têm mentes com desejos, pensamentos e sentimentos que podem ser diferentes dos próprios (Fonagy et al., 2012).

Com relação aos aspectos cognitivos e afetivos, a capacidade de mentalização requer uma variedade de habilidades cognitivas intactas que permitam aos indivíduos imaginar e raciocinar sobre os estados mentais com plausibilidade, flexibilidade e complexidade. Isso acontece por meio de processos mais controlados (cognitivos), mas de forma otimizada essa esfera cognitiva deve se integrar com a emoção, que compõe a base afetiva de tais raciocínios (Fonagy et al., 2012).

A integração de todas essas dimensões é compreendida como mentalização completa. Fonagy et al. (2012) sugeriram que diferentes formas de psicopatologia podem ser distinguidas em termos de inibição, desativação ou, simplesmente, disfunção de um ou de ambos os polos da mentalização, em uma ou várias das dimensões descritas.

Trata-se de uma capacidade desenvolvida nos primeiros anos de vida da criança e depende da qualidade da interação emocional estabelecida com os cuidadores, no contexto dos relacionamentos de apego. Seu desenvolvimento é crucial para a autorregulação, a regulação do afeto e o funcionamento interpessoal (Bateman & Fonagy, 2006).

Diversos estudos com a população adulta já evidenciaram a relação entre deficits na mentalização e diferentes desordens emocionais (Fonagy, Bateman & Bateman, 2011), como transtornos alimentares, depressão, ansiedade e transtornos de personalidade (Fonagy et al., 2002; Fonagy & Target, 2007). Na infância, embora em menor número, alguns estudos já demonstraram uma capacidade de mentalizar prejudicada em crianças com transtorno do espectro autista (Goodman, Reed & Athey-Lloyd, 2015), depressão (Ramires, Schwan & Midgley, 2012) e que vivenciaram traumas (Ensink et al., 2014; Ramires & Godinho, 2011).

A mentalização também tem sido considerada um fator importante para entendimento do processo e resultado das psicoterapias, independente da abordagem teórica (Bateman & Fonagy, 2004; Allen, Fonagy & Bateman, 2008). Bateman e Fonagy (2004) sugeriram que "a eficácia potencial de todos os tratamentos não depende tanto da sua estrutura, mas da sua capacidade de aumentar a capacidade de um paciente para mentalizar" (p. 46). Allen et al. (2008) conceitualizaram o processo de mudança terapêutica como o desenvolvimento da capacidade de refletir conscientemente sobre o funcionamento da própria mente, em toda a sua complexidade, pensando seriamente sobre a própria experiência e a dos outros. Melhoras na capacidade de mentalização foram relacionadas aos pacientes conseguirem observar as suas próprias emoções, identificar e compreender seus estados emocionais e os do outro e entender o aspecto consciente e inconsciente das relações entre seu comportamento e seus estados internos.

As pesquisas avaliando a mentalização na população infantil são, ainda, muito raras. No contexto brasileiro, alguns estudos evidenciaram mudanças nessa capacidade, com crianças que sofreram maus tratos (Ramires et al., 2012; Ramires & Godinho, 2011). Os estudos revelaram que baixos níveis de mentalização foram encontrados no início do tratamento e, após seis meses de psicoterapia, foram identificadas mudanças importantes na capacidade de mentalização e nos sintomas clínicos das crianças avaliadas. Em parte, o baixo número de estudos com esse foco reflete a escassez de instrumentos, adaptados e validados para a população brasileira, que possibilitem a avaliação do constructo.

Há algumas décadas, o Método de Rorschach tem sido utilizado para avaliar mudanças na psicoterapia (Exner & Andronikof-Sanglade, 1992; Nygren, 2004) e, recentemente, foi apontado como um instrumento capacitado para pesquisar e avaliar clinicamente uma série de processos psicológicos que envolvem a mentalização (Conklin, Malone & Fowler, 2012; Zevalkink, 2008). Zevalkink (2008), ao abordar teoricamente o tema da avaliação da capacidade de mentalização na infância, sugere o Método de Rorschach como um instrumento capaz de avaliar o constructo com essa população. Conklin et al. (2012) realizaram uma extensa revisão da literatura e propuseram, conceitualmente, que as variáveis de textura (T) poderiam refletir a capacidade de um indivíduo para estabelecer vínculos de apego com outras pessoas; respostas de movimento humano (M) estariam relacionadas com a capacidade empática; e a qualidade da resposta humana (GHR vs. PHR) poderia ser ligada à relação com a precisão das percepções sobre as pessoas, o que se relaciona ao constructo da mentalização.

A partir disso, Conklin et al. (2012) propuseram três perfis que descrevem níveis diferentes da capacidade de mentalizar, cada um deles baseados em combinações específicas de resultados das variáveis do Rorschach. O perfil 1 (T = 1, M+ 3, M- 1, GHR-PHR 1 com H 3) descreve um sujeito com capacidade de mentalização adequada. Evidencia uma percepção acurada de si mesmo e do outro, com capacidade empática, e exibe habilidade para compreender e refletir sobre seus próprios estados mentais e os dos outros. O perfil 2 (T > 1, M- > 1 ou M+ < 3, GHR-PHR < 1 com H 3) descreve um sujeito com falhas na mentalização. Apresenta capacidade empática deficiente e representações de si e do outro distorcidas e negativas, o que indica prejuízos significativos na habilidade de compreender e refletir sobre os próprios estados mentais e os dos outros. O perfil 3 (T = 0, M- > 1 ou M+ < 3, H < 2 ou GHR-PHR < 1) descreve um sujeito com capacidade de mentalização comprometida, caracterizada por uma forte evitação de compreender a própria mente e a dos outros, com limitado interesse nas pessoas e restrita capacidade empática.

Os perfis elaborados por Conklin et al. (2012) fornecem um ponto de partida para a utilização do Método de Rorschach para avaliar a mentalização. No entanto, até o momento, nenhum estudo empírico foi realizado para avaliar o constructo, tanto em adultos quanto em crianças. Estudos já questionaram o significado da variável T no contexto do apego, evidenciando resultados discrepantes dos sugeridos por Conklin et al. (2012) (Cassella & Viglione, 2009; Weber, Meloy & Gacono, 1992). Além disso, é necessário cautela com relação à utilização dos valores sugeridos nas variáveis em cada perfil, levando em consideração o contexto cultural, os níveis de desenvolvimento e os dados normativos para cada população, que têm se mostrado diversos em diferentes nacionalidades (Conklin et al., 2012).

Tendo em vista a importância da capacidade de mentalização para o desenvolvimento infantil, sua relação com as psicopatologias e sua possível contribuição para o processo psicoterapêutico, são necessárias pesquisas que focalizem possíveis mudanças na habilidade de mentalizar em crianças como resultado da psicoterapia, e o quanto essas mudanças podem estar relacionadas a melhoras no quadro geral desses pacientes. Nesse sentido, este estudo teve como objetivo avaliar mudanças no funcionamento psíquico global e na capacidade de mentalização na psicoterapia psicodinâmica de três crianças em idade escolar, utilizando o Método de Rorschach.

 

Método

Delineamento

Foi realizado um estudo descritivo, longitudinal, com uso de medidas repetidas, que adotou o procedimento de Estudo de Caso Sistemático (Edwards, 2007), que se caracteriza por ser um estudo idiográfico, longitudinal e intensivo.

Participantes

Participaram deste estudo três crianças em idade escolar (dois meninos e uma menina, com idades de sete a oito anos no início das psicoterapias) e suas terapeutas. Os tratamentos foram buscados pelos pais das crianças e ocorreram em consultórios particulares. Uma breve apresentação de cada caso será realizada em seguida.

Pacientes1

Walter - sete anos de idade. Os pais procuraram atendimento devido às suas dificuldades de relacionamento na escola. O menino era filho único e, segundo os pais, não tinha amigos. Os colegas debochavam e implicavam com ele. Walter foi diagnosticado com Transtorno Disruptivo da Desregulação do Humor, segundo o DSM-5 (APA, 2013). O tratamento teve duração de 44 meses. A psicoterapia começou com sessões semanais, que depois foram aumentadas para duas vezes por semana durante dois anos e meio.

No início do processo psicoterápico, Walter exibia comportamentos dependentes em suas sessões, associados a comportamentos dominantes em direção à terapeuta. Tentava dar ordens e fazia uma série de demandas. Ao longo da psicoterapia, costumava expressar fortes sentimentos de irritação, comportamentos agressivos e explosões de raiva. Atirava objetos e brinquedos no consultório e mostrava resistência quando a terapeuta tentava explorar sua raiva e sentimentos de irritação. Ao longo do processo, Walter mudou de escola, teve acompanhamento psicopedagógico e psiquiátrico. O término do tratamento foi trabalhado a partir do consenso entre a terapeuta, o paciente e seus pais, com base no alcance dos objetivos do tratamento e na evolução significativa de Walter ao longo do processo.

Pedro - oito anos de idade. Os pais buscaram atendimento, pois Pedro não realizava as atividades escolares e também demonstrava sinais de ansiedade. Pedro era filho único, não tinha amigos e evidenciava um medo significativo quando os pais não estavam junto dele, acreditava que algo muito ruim poderia acontecer com os pais nessas ocasiões. O casal havia se separado recentemente, e os sintomas de Pedro foram notados nessa época. Foi diagnosticado com Síndrome de Asperger, segundo o DSM-IV-TR (APA, 2000) e posteriormente com Transtorno do Espectro Autista, nível 1, sem prejuízo da linguagem e intelectual concomitantes, segundo o DSM-5 (APA, 2013). A psicoterapia teve duração de 43 meses. O tratamento se iniciou com sessões semanais, que foram aumentas para duas vezes por semana durante um ano e meio.

No início da psicoterapia, Pedro mostrava-se bastante retraído e contido. Escolhia jogar sempre o mesmo jogo, e jogava da mesma maneira. A interação com a terapeuta era muito pobre, respondendo às suas intervenções sempre com um "não sei". Ao longo do processo, Pedro foi lentamente se abrindo para a experiência da terapia, passando a identificar e expressar sentimentos, desde os de desconfiança, frustração, medo, até sentimentos de alegria, satisfação e confiança. O término da psicoterapia foi trabalhado após Pedro começar a evidenciar o desejo de encerrar o tratamento.

Alice - oito anos de idade. A mãe buscou atendimento, encaminhada pela neuropediatra da filha, por Alice estar apresentando dores de cabeça e estômago sem causas orgânicas identificadas. O pai da menina faleceu de modo repentino meses antes, a família estava enfrentando dificuldades financeiras e, em função disso, a menina necessitou mudar de escola. Alice não conseguia se adaptar à nova escola. A mãe e a professora descreveram a menina como uma criança carinhosa, perfeccionista e que não tolerava errar, ficava ansiosa quando chamavam sua atenção. Foi diagnosticada com Transtorno de Adaptação, segundo o DSM-5 (APA, 2013). A psicoterapia teve duração de 15 meses.

Desde o início do tratamento, Alice demonstrava capacidade de reflexão e criatividade nas brincadeiras, usando o jogo simbólico. O tratamento teve diversas interrupções em função de férias e da licença maternidade da terapeuta, que totalizaram 4 meses. Durante a licença maternidade, a família passou a enfrentar novas dificuldades financeiras, a avó que cuidava de Alice adoeceu e o transporte da paciente para os atendimentos ficou impossibilitado. O desejo de encerrar a psicoterapia partiu da mãe da menina, motivada por questões financeiras.

Terapeutas

Participaram do estudo três psicoterapeutas do sexo feminino. A terapeuta de Walter tinha formação em psicoterapia psicanalítica e mestrado em psicologia clínica, com 23 anos de experiência no início do tratamento. A terapeuta de Alice tinha formação em psicoterapia psicanalítica, mestrado e doutorado na área clínica, com 10 anos de experiência no início do atendimento. A terapeuta de Pedro tinha mestrado em psicologia clínica e um ano de experiência no início do tratamento. Todas as terapeutas realizaram supervisão dos casos atendidos com uma psicóloga, especialista em psicoterapia psicanalítica, com mais de 30 anos de experiência clínica.

Instrumento

Método de Rorschach - instrumento projetivo composto de um conjunto de 10 lâminas contendo manchas de tinta. Para cada lâmina é solicitado que o participante descreva o que vê nas manchas. Foi aplicado, codificado e interpretado com base no Sistema Compreensivo de Exner (2003). Estudos brasileiros desenvolvidos com a finalidade de verificar a validade e precisão entre avaliadores encontraram que a maioria das variáveis apresentou valores de Kappa que indicam precisão substancial ou excelente, com índices entre 0,70 e 0,90 (Duarte, 2000; Santoantonio, 2001).

Procedimentos

Os pais das crianças buscaram atendimento e foi iniciado o processo de avaliação psicológica. O diagnóstico foi baseado em entrevistas com as crianças e seus pais, no Método de Rorschach, Sistema Compreensivo (Exner, 2003), e no Child Behavior Checklist - CBCL (Achenbach, 1991), respondidos pelas mães, pelos pais e pelos professores. As entrevistas e o CBCL foram utilizados apenas na fase de avaliação psicológica, para auxiliar no psicodiagnóstico das crianças. A avaliação das mudanças no funcionamento psíquico e na capacidade de mentalização foi realizada com base no Método de Rorschach.

Confirmadas a necessidade e o desejo de iniciar a psicoterapia, as terapeutas informaram aos pais e às crianças sobre a pesquisa, convidando-os a participar. Todas as recomendações éticas para a participação na pesquisa foram seguidas. Ao concordarem, os pais assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Este estudo faz parte de um projeto maior, cujo objetivo é analisar as características do processo terapêutico e os resultados de psicoterapias psicodinâmicas com crianças. Antes da pesquisa começar, o projeto maior foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade à qual as autoras estão vinculadas.

As sessões com as crianças foram semanais, com duração de 50 minutos cada. Nos casos de Walter e Pedro, houve um período do tratamento em que as sessões foram duas vezes por semana. Nenhuma das crianças acompanhadas fez uso de medicação psiquiátrica ao longo do processo terapêutico. As três psicoterapeutas utilizaram a abordagem psicodinâmica, mais especificamente, a teoria das relações objetais, com foco em autores pós-kleinianos ou neo-kleinianos e teóricos da vertente psicanalítica da teoria do apego. As psicoterapias não tiveram limitação de tempo, e os términos foram determinados com base no progresso em direção aos objetivos terapêuticos para cada caso, mudanças de vida e decisões das famílias dos pacientes. O Rorschach foi aplicado no início e ao término dos tratamentos pela mesma psicóloga, treinada para a aplicação do procedimento. Os protocolos foram codificados por dois juízes independentes e posteriormente comparados. O coeficiente de correlação intraclasse variou entre 0,977 e 0,997 (média 0,989). Após a codificação independente, os juízes discutiram as discordâncias e geraram uma classificação final. As análises estatísticas foram realizadas utilizando o SPSS 23.0.

Para a análise da significância das mudanças, foi utilizado um dos critérios propostos por Jacobson e Truax (1991). De acordo com os autores, dois critérios devem ser considerados para a definição de uma mudança clinicamente significativa: (1) o paciente deve passar de um funcionamento correspondente a uma população teoricamente disfuncional ao de uma população funcional; (2) a mudança deve ser suficientemente grande para ser atribuída a uma mudança "real" e não a erros de medida. Neste estudo, foi utilizado o primeiro critério, de acordo com a proposta de Nietzel e Trull, 1988 (conforme citado por Ogles, Lambert & Masters, 1996), segundo a qual se deve adotar como ponto de corte um desvio padrão acima da média de uma amostra considerada funcional. Foram utilizados os dados normativos publicados por Ribeiro, Semer e Yazigi (2012), com amostra de crianças brasileiras, para interpretação das variáveis.

 

Resultados

Os resultados das avaliações do funcionamento psíquico global e da mentalização no início e ao final do tratamento, dos três casos, com base no Rorschach, estão sintetizados na tabela 1, 2 e 3. Os casos serão descritos no contexto da dinâmica particular de cada caso.

Walter

No início do tratamento, Walter exibia recursos internos limitados para lidar com estressores cotidianos, pouca sensibilidade às suas próprias necessidades e limitações para identificar a tensão interna, indicando dificuldades de autocontrole (EA, es, CDI, D Ajustada). Tais prejuízos manifestavam-se, principalmente, na esfera interpessoal, na dificuldade em estabelecer vínculos positivos, em relacionar-se de modo superficial, dependente e menos sensível às necessidades e interesses do outro, tornando-o vulnerável à rejeição por parte das pessoas com as quais convivia (CDI, Fd, M, COP, Conteúdo Humano).

Exibia falta de confiança em si mesmo, associado a uma imagem pessoal claramente desvalorizada e uma importante distorção na sua imagem corporal [3r+(2)/R, H:(H)+Hd+(Hd), An+Xy, MOR, FQ-]. Na esfera afetiva, Walter demonstrava uma forte negação dos afetos, associado a comportamentos hostis, com oposição e negativismo acentuados (EB, FM, V, T, Y, FC:CF+C, FD, Afr).

Havia uma tendência à simplificação perceptiva, que indicava um estilo defensivo, produzindo dificuldades no manejo da estimulação emocional complexa e levando a atuações (acting-out) bruscas, não moduladas e desconectadas do resto do seu funcionamento. Walter não apresentava prejuízos na esfera cognitiva; no entanto, não exibia maiores esforços criativos e evitava atividades cognitivas mais complexas (Lambda, Mistas, WDA%, XA%, X+%, X-%, Xu%, DQ+, Zd).

A integração das variáveis do Sistema Compreensivo do Rorschach permitiu identificar prejuízos importantes na capacidade de mentalizar de Walter, no início do tratamento. O menino evidenciou uma capacidade empática comprometida e representações de si mesmo e do outro confusas e distorcidas. Tais prejuízos indicavam limitações significativas na habilidade de compreender e refletir acuradamente sobre o próprio funcionamento mental e o do outro, principalmente no que diz respeito à integração dos processos cognitivos à base afetiva das experiências, dificultando a compreensão das nuances dos relacionamentos próximos, para além dos comportamentos explícitos [Lambda, H:(H)+Hd+(Hd), M, GHR, PHR].

Ao final do tratamento, Walter exibiu maior abertura para a experiência, associado ao aumento de esforços criativos e uma atividade cognitiva que envolvia maior complexidade ao processar as informações (R, Lambda, Mistas, WDA%, XA%, X+%, X-%, Xu%, DQ+, Zd). Houve um aumento significativo em seus recursos internos, que revelavam melhores condições para enfrentar situações estressantes de modo adaptativo (EA, es, CDI, D Ajustada).

A percepção de si mesmo era mais valorizada e menos distorcida, refletindo maior autoconfiança e um aumento de interesse pelo mundo externo. As habilidades empáticas aumentaram e houve melhora na qualidade de seus relacionamentos interpessoais, embora ainda evidenciasse um deficit relacional (R, Lambda, An+Xy, MOR, CDI). Na esfera afetiva, Walter ainda evidenciava controle das emoções, mas demonstrou melhora no processamento da estimulação emocional, integrando-a mais adequadamente aos processos cognitivos, refletindo respostas afetivas mais moduladas e uma diminuição da imprevisibilidade da sua conduta (Afr, FC: C+CF, WSumC, Lambda).

Ao final do tratamento houve melhoras na capacidade de mentalização. Walter exibiu um aumento significativo em sua capacidade empática e uma visão mais precisa de si mesmo e do outro. Tais mudanças refletiram melhores condições internas para compreender e refletir sobre o próprio funcionamento mental e o do outro, revelando maior compreensão das nuances dos seus relacionamentos interpessoais [Lambda, H:(H)+Hd+(Hd), M, GHR, PHR].

Pedro

No início da psicoterapia, Pedro era um menino retraído e resistente. Tendia à simplificação perceptiva e uso extensivo do controle intelectual (R, Lambda). Exibia limitados recursos internos para identificar as próprias necessidades e compreender de modo adequado as informações sobre a realidade externa, resultando em dificuldades para lidar com situações estressantes (EA, es, WDA%, XA%, X-%, X+%, Xu%, FM).

Apresentava uma visão distorcida de si mesmo e do ambiente social, bem como dificuldades com os processos de identificação. Era cauteloso e reservado, exibia um autocentramento maior que o habitual e um interesse reduzido no mundo externo, com dificuldades para perceber as situações a partir de outras óticas e, também, para se colocar no lugar do outro [3r+(2)/R, M, H:(H)+Hd+(Hd)]. Suas dificuldades de autopercepção estavam intimamente relacionadas a prejuízos no processamento afetivo, que indicavam limitações significativas para reconhecer e expressar suas emoções, interiorizando excessivamente seus afetos, o que aumentava a sua tensão interna e o fazia retrair-se emocional e socialmente (SumC':WSumC, FC:CF+C). Tais prejuízos manifestavam-se nas posturas imaturas e regressivas em seus relacionamentos, evidenciando limitações para estabelecer vínculos positivos [H:(H)+Hd+(Hd), CDI, COP].

Neste caso, foi possível identificar falhas significativas na capacidade de mentalização, no início do tratamento. Pedro demonstrou um interesse restrito nas pessoas, com uma forte evitação para compreender o próprio comportamento e o do outro, e uma capacidade empática comprometida. Apresentou representações de si mesmo e do outro distorcidas, confusas e negativas e uma ausência de interesse em entender a mente humana de modo geral, levando a um retraimento afetivo e social [Lambda, H:(H)+Hd+(Hd), GHR, PHR, M].

Ao final do tratamento, Pedro exibiu maior abertura para a experiência e passou a integrar as emoções ao processamento cognitivo (R, Lambda). Demonstrou maior capacidade para identificar e expressar seus sentimentos, o que resultou no aumento de trocas afetivas e na diminuição da tensão interna (SumC':WSumC, FC:CF+C, EB). Melhorou sua capacidade de controle e tolerância ao estresse, embora ainda exibisse uma deficiência para perceber as suas necessidades (EA, es, D ajustada, FM).

Nessa etapa, Pedro demonstrou uma visão mais real e integrada de si mesmo e do outro, associada a um maior interesse pelo mundo externo e o estabelecimento de relações mais próximas e menos superficiais [3r+(2)/R, M, H:(H)+Hd+(Hd), GHR, CDI]. Houve melhoras no ajustamento perceptivo da realidade, indicando a busca de uma percepção mais convencional e o aumento da habilidade de discriminar o mundo interno do externo (WDA%, XA%, X-%, P). No entanto, tendia a processar as informações sem maiores esforços criativos e reflexões cognitivas mais complexas (DQ+, DQv, Zd, Zf).

Em síntese, ao final do tratamento, houve melhoras na capacidade de mentalização de Pedro. O menino exibiu maior abertura e interesse em compreender a própria mente e a do outro, demonstrou uma percepção de si mesmo e do outro mais integrada, com representações de objeto mais reais e positivas. No entanto, ainda apresentava uma capacidade empática limitada. Exibiu mais capacidade para refletir sobre as próprias experiências, integrando os processos cognitivos à base afetiva destas [Lambda, H:(H)+Hd+(Hd), M, GHR, PHR].

Alice

No início do tratamento, Alice exibia um desajuste perceptivo, com dificuldades para discriminar entre informação importante e acessória, deixando-se invadir facilmente pela estimulação emocional (R, Lambda). Demonstrava um trabalho cognitivo sofisticado e complexo, associado a um autoexigência excessiva, características perfeccionistas e um alto grau de convencionalidade (WDA%, XA%, X-%, X+%, Xu%, DQ+, Zf, Zd, P). Tais características refletiam dificuldades da menina de identificar as próprias necessidades e, também, funcionavam como um mecanismo de defesa para lidar com o temor de se desorganizar e um grande desconforto e tensão interna (FM, EA, es, D ajustada).

Esse funcionamento era reforçado pelas limitações no processamento emocional, com capacidade limitada para identificar e lidar com os afetos, exibindo um importante controle destes, o que resultava em um estado de sobrecarga emocional, compatível com as queixas psicossomáticas apresentadas por Alice (FC:CF+C; Afr; SumC':WsumC). Além disso, tendia a um maior autocentramento, com um interesse reduzido pelo mundo exterior e pelo contato com o outro [3r+(2)/R, H:(H)+Hd+(Hd), H Puro].

Nesse caso, foi possível identificar que Alice, no início do tratamento, exibia capacidade para compreender e refletir sobre o seu funcionamento mental e o do outro. No entanto, tendia a focar exclusivamente no conteúdo cognitivo dos estados mentais, sem associar o afeto a tal raciocínio. Tal funcionamento evidenciou prejuízos importantes na dimensão afetiva da capacidade de mentalização, resultando em um contato pobre da menina com o núcleo afetivo das suas experiências, o que implicava dificuldades na compreensão destas de modo mais acurado [Lambda, H:(H)+Hd+(Hd), GHR, PHR, M].

Ao final do tratamento, Alice exibiu melhoras na capacidade de identificar e expressar seus sentimentos, revelando maior contato com o núcleo afetivo de suas experiências (FC:CF+C; Afr; SumC':WsumC). Tal mudança contribuiu, possivelmente, para que a menina aumentasse sua habilidade para postergar respostas, passando a considerar mais os estímulos do ambiente antes de responder a eles, o que indica um processamento melhor da emoção aos processos cognitivos (Zd, EB, Afr). No entanto, Alice ainda apresentava características autoexigentes, perfeccionistas e hipermaduras, condizentes com uma conduta mais obsessiva. Associado a isso, evidenciou elementos importantes de sobrecarga emocional e uma tendência a perceber as situações de modo menos convencional, o que, possivelmente, a fazia recorrer a um estilo evitativo em situações emocionalmente intensas (R, Lambda, An+Xy, P, WDA%, XA%, X+%, X-%, FM). Tal funcionamento implicava em dificuldades relacionais que permaneceram ao final do tratamento [H:(H)+Hd+(Hd), PHR].

Em síntese, ao final da psicoterapia, Alice exibiu melhoras na dimensão afetiva da capacidade de mentalização, integrando melhor o afeto aos processos cognitivos ao refletir sobre suas experiências, embora ainda predominasse uma reflexão mais intelectualizada. No entanto, a menina evidenciou uma tendência a perceber o outro de modo mais distorcido e negativo, mostrando, ainda, dificuldades na compreensão das nuances dos relacionamentos próximos [Lambda, H:(H)+Hd+(Hd), GHR, PHR, M].

 

Discussão

Este estudo, até onde pudemos identificar, foi o primeiro a utilizar o Método de Rorschach para analisar mudanças na capacidade de mentalização em crianças, no decorrer da psicoterapia psicodinâmica. Os resultados evidenciaram que houve melhoras clinicamente significativas nos casos de Walter e Pedro. No caso de Alice houve avanços e retrocessos. Além disso, mudanças na habilidade de mentalizar estiveram associadas a mudanças no funcionamento psíquico global dos pacientes.

Walter e Pedro apresentaram melhoras significativas na capacidade de mentalização. Tais mudanças indicavam um aumento de recursos internos para compreender e refletir sobre as situações, cognitivamente e de modo integrado ao núcleo afetivo das experiências, com representações de si e do outro mais diferenciadas e integradas. Associado a isso, ao final da psicoterapia, ambos tornaram-se mais capazes de expressar seus sentimentos, pensamentos, desejos, e possuíam uma autoimagem mais integrada e positiva e melhora na qualidade dos seus relacionamentos interpessoais. No caso de Pedro, salienta-se, também, a abertura para o mundo externo, caracterizado por um maior interesse e busca de maior proximidade com o outro.

Alice exibiu melhoras na dimensão afetiva da capacidade de mentalização, no que diz respeito à maior integração do afeto ao processamento cognitivo. No entanto, ao final da psicoterapia, evidenciou a permanência de características de uma criança hipermadura, com funcionamento obsessivo, com uma percepção mais distorcida e negativa do outro, o que estava associado à permanência das suas dificuldades interpessoais.

Os resultados evidenciaram que Walter e Pedro, que exibiam os maiores deficits na capacidade de mentalização, no início do tratamento, apresentaram melhoras clinicamente mais significativas ao final. Crianças com problemas externalizantes como Walter possuem dificuldades em regular suas respostas afetivas a estímulos negativos, como resultado de falhas na regulação implícita da emoção (Hoffman, Rice & Prout, 2016) e exibem falhas no funcionamento reflexivo, em maior grau, nos seus aspectos afetivos. Crianças com transtorno do espectro autista como Pedro tendem a apresentar mentes fechadas, impenetráveis e refratárias, e não evidenciam consciência dos seus sentimentos, nem os dos outros, apresentando prejuízos significativos na capacidade de mentalizar, o que foi confirmado neste caso (Pozzi, 2003).

Desse modo, é possível afirmar que a psicoterapia possibilitou a Walter e Pedro um espaço no qual puderam explorar seu mundo interno, compreender e distinguir os estados mentais e as emoções que os habitavam, e desenvolver uma percepção de si e uma identidade mais coerentes (Fonagy, Gergely & Target, 2007). Esse dado indica que a psicoterapia psicodinâmica pode ser indicada para pacientes mais comprometidos psiquicamente e mudanças nos estados da mente são fatores inerentes a esses tratamentos (Verheugt-Pleiter, Zevalkink & Schmeets, 2008).

Por outro lado, crianças com problemas internalizantes tendem a mentalizar de modo hipervigilante, com maior ênfase na compreensão cognitiva das experiências e sem conexão com seu núcleo afetivo. Desse modo, é comum atribuírem inadequadamente avaliações negativas e ameaçadoras a eventos sociais (Banerjee, 2008), o que toma maiores proporções quando estão inseridas em contextos altamente conflitivos, como foi identificado no caso de Alice. Nesse sentido, é possível afirmar que a melhora que Alice exibiu na dimensão afetiva da mentalização pode ser considerado uma mudança clinicamente significativa.

No entanto, para analisar mudanças na psicoterapia de crianças, é necessário considerar o ambiente familiar, escolar, social em que elas estão inseridas, pois contribuem para produzir efeitos, nos dois sentidos. Isso tem especial relevância ao avaliar a mentalização, por tratar-se de um processo e não uma propriedade fixa da mente (Fonagy et al., 2012; Steele et al., 2015). Desse modo, a criança estar inserida em um contexto seguro, sensível e que atenda às suas necessidades é fundamental, tanto para que ela desenvolva essa capacidade, como para que consiga mantê-la.

Ao enfrentar situações emocionalmente estressantes e perturbadoras, é possível não conseguir manter a capacidade de mentalizar, ou até causar um verdadeiro colapso, mesmo que momentaneamente (Bateman & Fonagy, 2006). Embora todos os casos estivessem inseridos em ambientes altamente conflitivos, no início do tratamento, Alice teve essa realidade intensificada ao longo do processo. Houve o adoecimento da avó, a sobrecarga emocional e financeira da mãe e o aumento de problemas financeiros na família. Tais fatores estiveram relacionados ao pedido de alta para a menina e à necessidade de interrupção do tratamento e, consequentemente, o rompimento do vínculo com a terapeuta. Essa situação pode ter contribuído para acentuar um funcionamento mais obsessivo da menina, como forma de lidar com esse contexto emocionalmente conflituoso. Esse contexto também pode ter favorecido uma maior indisponibilidade emocional da mãe e da avó para atender às necessidades da menina, influenciando a percepção mais distorcida e negativa que ela demonstrava em relação aos outros. Além disso, também é possível supor que esse resultado pode ser um efeito do processo terapêutico, ao propiciar um maior contato com a realidade afetiva das suas experiências e das suas relações que, nesse momento, tinham características mais negativas do que positivas. Esse maior contato com a realidade, de modo integrado, pode ter despertado, num primeiro momento, uma percepção mais negativa do ambiente externo.

A literatura sobre tratamentos psicodinâmicos de longo prazo sustenta que são esperadas alterações frequentes ou exacerbações de sintomas antes do início da melhora (Tang, Luborsky & Andrusyna, 2002). Nesse sentido, é possível que a psicoterapia estivesse auxiliando Alice a enfrentar a realidade complexa em que ela estava inserida. Contudo, a necessidade de interrupção do tratamento deixou lacunas em aberto.

O presente estudo evidenciou que a mentalização forneceu um enquadramento útil para a compreensão de mudanças na psicoterapia psicodinâmica (Sharp, 2008). Além disso, falhas nessa capacidade foram associadas a prejuízos no funcionamento psíquico global, principalmente a problemas de autorregulação, regulação emocional e dificuldades interpessoais (Fonagy & Target, 2006). Nesse sentido, a conscientização sobre o mundo interno e o quanto isso contribui para a percepção das experiências, as emoções, a autopercepção e a capacidade de se relacionar com outras pessoas foi sugerido como um mecanismo potencial de mudança em psicoterapia (Allen et al., 2008).

 

Conclusão

Este estudo corroborou a hipótese de que a mentalização pode ser um elemento importante para a compreensão de mudanças na psicoterapia psicodinâmica com crianças. Deficits nessa capacidade são subjacentes a prejuízos na percepção e no processamento das experiências, na autoimagem, no afeto e nas relações interpessoais e em dificuldades para lidar com situações emocionalmente intensas, enquanto melhoras na mentalização estão associadas a melhoras no funcionamento psíquico global.

O delineamento longitudinal e o procedimento de estudos de caso sistemáticos são ideais para o estudo do processo psicodinâmico em profundidade e possibilitaram, neste estudo, a análise de três casos heterogêneos e com diferentes evoluções ao longo da psicoterapia, sem intenção de compará-los ou generalizar os resultados encontrados. As diferentes psicopatologias contempladas, associado aos distintos tempos de tratamento e aos níveis de experiência clínica diferentes de cada terapeuta demonstraram a complexidade e a não linearidade dos tratamentos estudados, evidenciando a trajetória única de cada díade. Embora esse tipo de delineamento seja limitado em sua validade interna, ele se beneficia de uma validade externa substancial, pois reflete com mais precisão a realidade do trabalho clínico com crianças. No entanto, sugere-se que futuros estudos contemplem, além da avaliação dos resultados dos tratamentos, a análise das características dos processos psicoterápicos, com diferentes díades, aprofundando a contribuição das psicopatologias, o papel do terapeuta e da relação terapêutica para o processo terapêutico.

O Método de Rorschach mostrou-se adequado para avaliar a capacidade de mentalização de uma perspectiva implícita, assim como mudanças nessa capacidade, ao longo da psicoterapia. Futuros estudos podem associar a utilização do Método de Rorschach a outros instrumentos desenvolvidos para avaliar a mentalização e, desse modo, validá-lo para tal finalidade.

Pode ser considerada uma limitação do estudo a utilização do mesmo instrumento para avaliar tanto mudanças na capacidade de mentalização como no funcionamento psíquico global do pacientes. Outra limitação refere-se à utilização da média normativa para a população de crianças brasileiras do estudo de Ribeiro et al. (2012), pois a amostra do estudo das autoras compreende crianças entre 7 e 10 anos e, no presente estudo, dois pacientes tinham 11 anos ao final da psicoterapia. No entanto, não foi encontrada outra referência que comparasse o padrão normativo a cada ano.

Para finalizar, este estudo buscou identificar evidências sobre a importância da mentalização na psicoterapia psicodinâmica com crianças. Constatou-se que a psicoterapia psicodinâmica propicia um enquadramento fundamental para facilitar o desenvolvimento da mentalização nessa faixa etária.

 

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Recebido em 14 de junho de 2018
Aceito para publicação em 07 de junho de 2019

 

 

Os autores agradecem ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo financiamento do projeto de pesquisa e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela bolsa de Doutorado da primeira autora e pela bolsa de Mestrado do terceiro autor.
1 Os nomes das crianças participantes deste estudo são fictícios, para preservar suas identidades.

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