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Psicologia Clínica

Print version ISSN 0103-5665On-line version ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.32 no.2 Rio de Janeiro MayAug. 2020

http://dx.doi.org/10.33208/PC1980-5438v0032n02R01 

RESENHA

 

E o mundo parou!

 

And the world stopped!

 

Y el mundo se detuvo!

 

 

Esther Maria de Magalhães ArantesI; Paulo Armando Esteves Martins VianaII

IDoutora em Educação pela Boston University, MA, USA, com Pós-doutorado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Professora do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPFH-UERJ); Professora aposentada da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Rio de Janeiro, RJ, Brasil. email: arantes@puc-rio.br
IIDoutorando do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPFH-UERJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil. email: pauloarmando83@yahoo.com.br

 

 

Resenha

Ideias para adiar o fim do mundo, de Ailton Krenak (1ª ed., 2019). São Paulo: Companhia das Letras, 85p.1

O que mais dizer deste importante livro e já comentado por muitos? Desnecessária, portanto, uma resenha? Talvez - não fosse este livro fonte inesgotável de reflexão, e não tivesse a pandemia da COVID-19 colocado em xeque, de maneira dramática, o nosso modo de vida dito civilizado.

A COVID-19 surgiu e/ou foi detectada na China no final de 2019, espalhando-se rapidamente por outros países a partir do início de 2020. Com o número crescente de doentes e de óbitos, e na falta de uma vacina e de medicamentos eficazes e adequados para tratar a infecção, em março de 2020 a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou estarmos atravessando uma pandemia.

Não é que não soubéssemos que havia um rastilho de pólvora sendo aceso, podendo resultar no "fim do mundo" ou, pelo menos, no "fim de um mundo". Com insistência temos sido alertados por estudiosos, cientistas, ecologistas, povos originários e o próprio Papa Francisco sobre as mudanças climáticas em curso, sobre a destruição das florestas, a contaminação dos alimentos, a poluição do solo, das águas e do ar que respiramos.

Grandes debates foram e têm sido travados, com ponderações diversas, desde os que insistem em acelerar o processo de devastação da Terra, apostando ser melhor habitar um mundo com tudo fabricado pela técnica, até os que acreditam não mais haver condições de deter o processo que levará irremediavelmente ao fim dos humanos, sobrevivendo a Terra por sua enorme capacidade de se refazer e se reinventar - ou seja: "um mundo sem nós".

Dentre as vozes que se apresentam na defesa da mãe Terra, Ailton Krenak, autor do livro aqui resenhado e uma de nossas maiores e mais queridas lideranças indígenas - na boa companhia do cacique Caiapó Raoni Metuktire e o xamã Yanomami Davi Kopenawa, dentre tantas outras lideranças -, destaca-se tanto pela clareza e contundência de seu pensamento e apreço pela diversidade, como pela gentileza, alegria e suavidade de sua fala.

A ideia de nós, os humanos, nos descolarmos da terra, vivendo numa abstração civilizatória, é absurda. Ela suprime a diversidade, nega a pluralidade das formas de vida, de existência e de hábitos. Oferece o mesmo cardápio, o mesmo figurino e, se possível, a mesma língua para todo mundo. (p. 22-23)

Ailton, como pessoa pública e liderança indígena é, sobretudo, fala e presença. Não por outro motivo, o livro aqui resenhado é constituído de transcrições de uma entrevista (A humanidade que pensamos ser) e duas palestras (Ideias para adiar o fim do mundo e Do sonho e da Terra) que tiveram lugar em Portugal, entre os anos de 2017 e 2019 (p. 85). Assim, é fundamental ler o livro, mas acreditamos indispensável vê-lo e ouvi-lo sempre que possível.

É pela força desta fala/escrita/presença, certeira como flecha mirando o alvo, que ele nos convida - a nós, os brancos, se assim o desejarmos - a habitar o mundo de outra maneira. Para isto, é necessário que o entendimento de nós mesmos não possa se dar mediado pela mercadoria, ou não apenas por ela, exigindo um voltar-se para as produções subjetivas possibilitadas a partir de nossas relações com humanos e não humanos, que é o canteiro, segundo Ailton, que pode criar mundos (Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ, 2019).

E é por estarmos andando por aí tão desavisados desse organismo vivo que é a Terra e tão descuidados dos nossos parentes indígenas, que muitos de nós, talvez, não nos damos conta de como o povo Krenak, que vive à margem do rio Doce, foi atingido de maneira radical pelo rompimento da barragem do Fundão, da mineradora Samarco, em novembro de 2015.

O despejo de toneladas de material tóxico no rio Doce colocou o povo Krenak "na real condição de um mundo que acabou" (p. 42) - uma vez que habitar uma terra sagrada não é o mesmo que habitar um território qualquer.

O rio Doce, que nós, os Krenak, chamamos de Watu, nosso avô, é uma pessoa, não um recurso, como dizem os economistas. Ele não é algo de que alguém possa se apropriar; é uma parte da nossa construção como coletivo que habita um lugar específico, onde fomos gradualmente confinados pelo governo para podermos viver e reproduzir as nossas formas de organização (com toda essa pressão externa). (p. 40)

Ailton nos lembra que ao nos deslocarmos constantemente de um lugar a outro, sem nenhum sentido de pertencimento, tomando todas as coisas apenas como recursos ou mercadorias, nos afastamos desse organismo vivo que é a Terra e nos colocamos "num dilema em que parece que a única possibilidade para que comunidades humanas continuem a existir é à custa da exaustão de todas as outras partes da vida" (p. 46). Assim:

Do nosso divórcio das integrações e interações com a nossa mãe, a Terra, resulta que ela está nos deixando órfãos, não só aos que em diferentes graduações são chamados de índios, indígenas ou povos indígenas, mas a todos. (p. 49-50)

Com o advento da pandemia da COVID-19, Ailton Krenak recomenda que aproveitemos este momento para fazermos uma pausa e uma correção de rumos: "Tomara que, depois de tudo isso, não voltemos à chamada 'normalidade', pois se voltarmos é porque não valeu nada a morte de milhares de pessoas no mundo inteiro. Aí, sim, teremos provado que a humanidade é uma mentira." (Intercept Brasil, 2020)

Para estarmos à altura desse desafio, para não retornarmos à "normalidade vigente", o livro se torna um valioso companheiro, oferecendo ferramentas para pensarmos de maneira crítica as noções de Humanidade, Natureza, Terra e Mundo, na medida em que nos ajuda a entender que esta humanidade, da qual fazemos parte e reproduzimos, endossamos e reconhecemos como vida, é uma abstração, forjada, dentre outros motivos, para subjugar e explorar aqueles povos, sujeitos e organizações sociais que não tomam a experiência da vida como um extrativismo acelerado dos recursos naturais e nem têm como projeto essencial a produção e reprodução infindável de mercadorias que marcam e fundamentam as relações sociais.

Nesta humanidade, compreendemos a natureza como cindida da nossa própria vida e, partindo dessa constatação, passamos a tomar esse humano que chamamos de "nós" como uma entidade superior, autorizada a intervir na natureza como recurso e sobre os outros humanos como humanos menores, desumanos, inumanos, como aqueles que não seguem o coro e atrapalham o "progresso" da humanidade normal e afinada.

Isso que chamamos de humanidade, como diz Ailton, nos produz ausências: dos sentidos de viver em sociedade, de se relacionar com o outro, de experimentar formas subjetivas que nos garantam oxigenação, liberdade e prazer. Suspender o céu, seguindo a proposta do livro de Davi Kopenawa, se torna, então, uma aposta imprescindível: aposta na ampliação das experiências subjetivas. (Kopenawa & Albert, 2015)

Empurrar o céu dançando, cantando, sonhando e contando sempre mais uma história, uma nova narrativa que contemple a diversidade e as alianças com o outro, os outros, humanos e não humanos, com a Terra. Tudo isso se torna fundamental para lutarmos contra esse modo de subjetivação "zumbi", que insiste em ser acionado por essa humanidade cindida, abstrata, extrativista, autocentrada, racista e colonizadora.

Como já dito, Ailton nos alerta que esse divórcio da Terra está nos deixando órfãos: sem ar, sem mar, sem rio Essa cisão nos aproxima do fim e aciona a insustentabilidade de afirmar tal humanidade.

No primeiro episódio da série Guerras do Brasil (Bolognesi, 2019), Ailton diz ao entrevistador: "Nós estamos em guerra". Precisamos reconhecer essa guerra. Precisamos assumir a insustentabilidade desse modo de produção. Precisamos nos implicar fortemente nesse processo a que todos estamos submetidos: de colonização, folclorização e subjugação daqueles que não respondem à lógica de mercantilização da vida.

Assumir a existência dessa guerra é acessar a responsabilidade que temos pela devastação progressiva da Terra e de tudo aquilo que nela pode diferir.

Assumir a existência dessa guerra é, também, paradoxalmente, poder contar uma outra história e suspender o céu, para que ele não nos achate. É poder expandir o espaço do ar que respiramos, prolongar um pouco mais a oxigenação e nos livrarmos processualmente da claustrofobia de vivermos aprisionados ao individualismo predador que nos constitui.

Dessa maneira, Ailton Krenak, em seu livro, nos ensina que os povos indígenas se constituem como sujeitos coletivos que não protocolam e nem normatizam a vida. Ao contrário, contemplam a diversidade como forma de conhecer o mundo, tendo no sonho um caminho para a aprendizagem que permite a emergência de cantos, danças e inspirações. O sonho como conhecimento da realidade e ponte para interagir com pessoas e com a Terra. Poder sonhar e contar outra história é uma via para adiar o fim do mundo.

Quando eu sugeri que falaria do sonho e da terra, eu queria comunicar a vocês um lugar, uma prática que é percebida em diferentes culturas, em diferentes povos, de reconhecer essa instituição do sonho não como experiência cotidiana de dormir e sonhar, mas como exercício disciplinado de buscar no sonho as orientações para as nossas escolhas do dia a dia. (p. 51-52)

() Não o sonho comumente referenciado de quando se está cochilando ou que a gente banaliza "estou sonhando com o meu próximo emprego, com o próximo carro", mas que é uma experiência transcendente na qual o casulo do humano implode, se abrindo para outras visões da vida não limitada. Talvez seja outra palavra para o que costumamos chamar de natureza. (p. 65-66)

O livro Ideias para adiar o fim do mundo é isso e muito mais, e pode ser acompanhado pelas inúmeras entrevistas e palestras disponibilizadas na internet.

 

Referências

Livros

Kopenawa, D.; Albert, B. (2015). A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Krenak, A. (2019). Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Vídeos

Bolognesi, Luiz (dir.) (2019). Guerras do Brasil.doc, episódio 1 (indígenas). Nossa História Viva. https://www.youtube.com/watch?v=VeMlSgnVDZ4&t=873s        [ Links ]

Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ (2019). Constelações insurgentes: fim do mundo e outros mundos possíveis. Conversa com Ailton Krenak e Sueli Rolnik, mediada por Tatiana Roque, em 11 de outubro de 2019. https://www.youtube.com/watch?v=k5SP0GHjWfw        [ Links ]

Intercept Brasil (2020). A terra inabitável. Ailton Krenak e Leandro Demori conversam sobre a crise do coronavírus. https://www.youtube.com/watch?v=6XoRg3nj1Ws        [ Links ]

 

 

Recebido em 15 de abril de 2020
Aceito para publicação em 17 de abril de 2020

 

 

1 Todas as citações com apenas os números das páginas são da obra resenhada.

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