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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.32 no.3 Rio de Janeiro set./dez. 2020

http://dx.doi.org/10.33208/pc1980-5438v0032n03a03 

SEÇÃO TEMÁTICA - PSICANÁLISE, CLÍNICA E LITERATURA

 

Sobre intervenções do analista: Uma experiência clínica articulada aos quatro discursos de Lacan

 

About the analyst's interventions: A clinical experience articulated to the four speeches of Lacan

 

Sobre intervenciones del analista: Una experiencia clínica articulada a los cuatro discursos de Lacan

 

 

Maria Lúcia da Silva BuenoI; Carlos Henrique KesslerII

IPsicóloga e Psicanalista, Mestre em Psicanálise: Clínica e Cultura pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil. email: mlubueno@hotmail.com
IIDoutor em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Pós-doutorando em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (USP), Professor Associado do PPG em Psicanálise, Clínica e Cultura e do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, RS, Brasil. email: carloshkessler@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

Este artigo segue a linha de trabalho do grupo de pesquisa no qual os autores estão engajados, que busca investigar a clínica psicanalítica e sua escrita. É importante que o psicanalista tome a seu encargo a tarefa de apresentar e problematizar o material clínico a fim de manter uma postura crítica quanto à especificidade do seu fazer. Ao sistematizar suas investigações e compartilhar seus achados, o psicanalista também pode contribuir para que a psicanálise se fortaleça como teoria, método e técnica. A partir de fragmentos de uma análise já encerrada, procura-se fazer uma releitura clínica com o aporte da teoria psicanalítica, buscando uma compreensão sobre as intervenções do analista e os efeitos produzidos na posição discursiva do analisante. A apresentação do material clínico articulado à teoria dos quatro discursos de Lacan constituiu um ponto central para estudar os movimentos discursivos da analisante, assim como a posição de onde intervém um analista ao operar com seu desejo, seu ato e seu discurso. Finalizando, apontamos a importância da articulação do material clínico com o material teórico a fim de embasar a escrita da clínica psicanalítica e o trabalho do analista, levantando questões para discussão dos efeitos do tratamento.

Palavras-chave: psicanálise; intervenções; discursos.


ABSTRACT

This article follows the line of work of the research group in which the authors are engaged, which seeks to investigate the psychoanalytic clinic and its writing. It is important that the psychoanalyst takes on the task of presenting and problematizing the clinical material in order to maintain a critical stance regarding the specificity of their activity. By systematizing their investigations and sharing their findings, the psychoanalyst may also contribute to strengthening psychoanalysis as theory, method and technique. From fragments of an analysis already closed, a clinical re-reading is attempted with the contribution of psychoanalytic theory, seeking to comprehend the analyst's interventions and the effects on their discursive position. The presentation of the clinical material articulated to the theory of the four discourses of Lacan constituted a central point to study the discursive movements of the analyzer, as well as the position from which an analyst makes their interventions when working with their desire, their act and their discourse. Finally, we point out the importance of the articulation of the clinical material with the theoretical material in order to back the writing of the psychoanalytic clinic and the analyst's endeavor, raising questions to discuss the effects of the treatment.

Keywords: psychoanalysis; interventions; discourses.


RESUMEN

Este artículo sigue la línea de trabajo del grupo de investigación en el cual participan los autores, que busca investigar la clínica psicoanalítica y su escritura. Es importante que el psicoanalista tome a su cargo la tarea de presentar y problematizar el material clínico a fin de mantener una postura crítica respecto a la especificidad de su hacer. Al sistematizar sus investigaciones y compartir sus hallazgos, el psicoanalista también puede contribuir para que el psicoanálisis se fortalezca como teoría, método y técnica. A partir de fragmentos de un análisis ya cerrado, se intenta hacer una nueva lectura clínica con el aporte de la teoría psicoanalítica, buscando una comprensión sobre las intervenciones del analista y los efectos producidos en la posición discursiva del analizante. La presentación del material clínico articulado a la teoría de los cuatro discursos de Lacan se constituyó un punto central para estudiar los movimientos discursivos de la analizante, así como la posición de donde interviene un analista al operar con su deseo, su acto y su discurso. Al finalizar, señalamos la importancia de la articulación del material clínico con el material teórico a fin de basar la escritura de la clínica psicoanalítica y el trabajo del analista, planteando cuestiones para la discusión de los efectos del tratamiento.

Palabras clave: psicoanálisis; intervenciones; discursos.


 

 

Introdução

Esse artigo segue a linha de trabalho do grupo de pesquisa no qual estamos engajados, que busca investigar a clínica e as metodologias de pesquisa próprias da psicanálise. Apostamos que a escrita da clínica nos proporciona uma importante experiência de construção e reflexão sobre nossa práxis, além de abrir um fórum de discussão na comunidade em que estamos inseridos. Para tanto, é mister que esta escrita, assim como o processo analítico, levante questões, lance dúvidas, abra brechas para que possa produzir pensamento, do mesmo modo como propomos ao analisando ao convidá-lo a perguntar-se sobre si mesmo (Meira, 2013).

O exercício de pesquisar e escrever sobre a experiência clínica coloca-nos frente às vivências de nosso ofício e possibilita-nos pensar sobre nossas intervenções, nossa posição de analista e sobre o percurso realizado pelo analisante, além da reflexão teórica necessária para proceder à releitura clínica. No momento da análise, trabalhamos com a escuta do significante, a atenção flutuante, o deixar-se levar pelas palavras do sujeito, ao mesmo tempo atentos ao seu dizer para ouvir os não-ditos, colocando-se na posição de nada saber para que esse lugar possa ser preenchido pelo saber do analisante. Lacan, ao se perguntar sobre "que deve saber, na análise, o analista?", responde de imediato: "O que o psicanalista deve saber: ignorar o que ele sabe" (Lacan, 1966/1988b, p. 351).

Já no momento da escrita do material clínico, o analista, como pesquisador, se debruça sobre suas indagações buscando uma compreensão teórica sobre o processo analítico e as mudanças de posição discursiva da analisante; trata-se de uma construção a posteriori, com o desenrolar de uma outra cena composta dos relatos e anotações do analista. Desse modo, mesmo com a singularidade de cada caso como marca da psicanálise, cremos que falar sobre a posição de onde intervém um analista pode ser um ponto articulador entre a especificidade desta práxis e a possibilidade de discussão dos efeitos de uma análise.

Para apresentação dessa discussão clínica, trabalharemos com alguns pontos teóricos de Lacan sobre as intervenções do analista e, em especial, sobre a proposição dos quatro discursos como ferramentas para embasar o percurso clínico realizado. Segundo Castro (2009), a teoria lacaniana dos discursos nos ajuda a pensar a clínica psicanalítica, já que, através dos lugares, funções e elementos determinados pelos matemas1, podemos abordar "o sujeito pelo viés discursivo por ele utilizado" e as "perspectivas de mudanças ou ao menos de influência/interferência de cada um dos discursos sobre os demais" (Castro, 2009, p. 257).

Lacan coloca que "O sujeito do discurso não se sabe como sujeito que sustenta o discurso. Que ele não saiba o que diz, ainda passa, sempre se o supriu. Mas o que diz Freud é que ele não sabe quem o diz." (Lacan, 1991/1992, p. 66). No texto Função e campo da fala e da linguagem (1953), ele escreve:

É sempre, portanto, na relação do eu do sujeito com o [eu] de seu discurso que vocês precisam compreender o sentido do discurso, para desalienar o sujeito. [] Mas, vocês não conseguirão chegar a isso, caso se ativerem à ideia de que o eu do sujeito é idêntico à presença que lhes fala. (Lacan, 1966/1998a, p. 305)

O que essas palavras nos dizem? Que para o analista importa o discurso do sujeito do inconsciente, paralelo ao discurso manifesto do eu, pois o inconsciente evidencia-se como tropeço, rachadura e provoca uma descontinuidade no discurso do analisante; portanto, é em um movimento de abertura e fechamento que o sujeito do inconsciente faz-se presente, produzindo efeitos na cadeia discursiva.

Para desenvolver esse tema, este artigo trará alguns fragmentos de uma análise já encerrada buscando construir articulações teóricas com a prática clínica, apoiada nas observações e anotações da analista sobre o tratamento da analisante. Citamos algumas interrogações que nos guiaram na elaboração deste estudo: O que se produziu nessa análise? Algo mudou no discurso da analisante? Foi possível identificar alguns desses efeitos a partir das intervenções da analista?

Iniciaremos esse percurso trazendo as questões teóricas que entendemos serem norteadoras para nossa leitura clínica; no segundo momento, trabalharemos com alguns fragmentos do material clínico selecionado para fazer sua articulação com os apontamentos teóricos apresentados; e, na terceira parte, faremos uma discussão sobre o trabalho realizado nesta releitura clínica.

 

Sobre as intervenções do analista: alguns apontamentos teóricos

No texto "Tratamento psíquico (ou anímico)", Freud (1890/1996) afirma que o tratamento pelas palavras só é possível desde que se devolva a elas o seu feitiço originário, ou seja, esse efeito "mágico" das palavras que está em jogo na escuta das associações livres do analisante e que nos direciona para nosso real interesse: o sujeito do inconsciente, o sujeito que emerge nas entrelinhas do seu discurso manifesto.

A clínica psicanalítica, legitimada pelo inconsciente e pelo método livre-associativo, leva o sujeito a se deparar com a falta constituinte de seu discurso e com "a inconsistência da criação de sentido que o neurótico tenta constantemente encobrir" (Ferreira et al., 2014, p. 74). Dessa forma, a análise provoca as condições para que o sujeito se encontre com o estranho e não-sabido que o habitam para, a partir disso, produzir um conhecimento que dê conta dessa experiência.

No seminário sobre o ato psicanalítico, Lacan enuncia que "o que é próprio do analítico é que alguém possa fundar uma experiência sobre pressupostos que ele mesmo ignora profundamente" (Lacan, n/d, p. 25), e complementa com as seguintes palavras: "Interpretação e transferência estão implicadas no ato pelo qual o analista dá suporte e autorização a esse fazer. É feito para isso. É de qualquer forma, dar algum peso à presença do ato, mesmo se o analista não faz nada" (Lacan, n/d, p. 65).

O analisante, ao fazer análise, coloca sua linguagem em curso e - a partir das intervenções do analista - implementa uma experiência de transformação pelo fato de escutar a si mesmo, ter novas percepções, podendo então abrir questionamentos sobre sua posição subjetiva. Portanto, como diz Nogueira (2004), a análise é uma causação psíquica, que envolve processos de identificação, alienação e de transferência, ou seja, um movimento dialético que requer uma mediação complexa, de reflexão, de idas e vindas.

Desse modo, quando o analisante associa livremente, já está construindo sua realidade inconsciente e produzindo alguma coisa nova, e não apenas reproduzindo seu passado. Nesse sentido, o que interessa ao psicanalista? A maneira como o paciente relata o que lhe acontece, as palavras que emprega ou as metáforas que ele inventa, assim como os lapsos, erros ou equívocos que surjam no relato de seu mal-estar. Podemos dizer que, ao interpretar um sintoma-significante, o analista possibilita sua substituição por outro significante, favorecendo sua renovação para que um dado significante não se cristalize nesse lugar.

Como destacam Froemming e Oliveira (2013), o significante surge na associação livre e tem uma função primordial de representar o sujeito do inconsciente; igualmente ressaltam que existe uma determinação no surgimento dos significantes, pois eles emergem em cadeias que seguem uma ordem, com uma gramática própria, que pode aparecer nas repetições de expressões, sequências fonéticas ou letras. Nesse sentido, Froemming (2002) escreve:

O psicanalista terá que escutar a modulação contida na diferença entre o que o paciente diz e o que o paciente lhe diz, isto é, o que ele quer lhe dizer nisso que ele profere com tais palavras a ele endereçadas. A ambiguidade constitutiva da própria linguagem, que se presta para a produção e para os chistes, tanto mais se evidencia nessa fala "guiada" pela regra fundamental. (Froemming, 2002, p. 46)

No momento em que o analista produz um corte na cadeia associativa de seu analisante, essa intervenção propicia o surgimento de outras vias de associações até então não cogitadas, e é desse material que o analista, pela interpretação, extrairá o metal precioso do seu trabalho.

Ao falar sobre a análise, Lacan pergunta: "O que é que se passa quando o sujeito começa a falar com o analista? - ao analista, quer dizer, ao sujeito suposto saber, mas do qual é certo que ele não sabe nada ainda" (Lacan, 1986/2008, p. 260). Ao analista é oferecido algo que se formará como um pedido que deve ser frustrado, pois o analista dirige o tratamento para que o sujeito possa saber que "quaisquer que sejam seus apetites, quaisquer que sejam suas necessidades, nenhum encontrará satisfação ali, senão, no máximo, a de organizar seu menu" (Lacan, 1986/2008, p. 261). Seguindo essa orientação, devemos, na posição de analista, estar atentos para o discurso manifesto, mas operar a partir da escuta dos significantes, ou seja, aquilo que é dito nas entrelinhas: um ato falho, um lapso ou uma palavra que se repete.

Lacan comenta que a interpretação não é aberta a todos os sentidos, mas deve ser uma interpretação significativa para o que seria o advento do sujeito: "O que é essencial é que ele veja, para além dessa significação, a qual significante - não-senso, irredutível, traumático - ele está, como sujeito, assujeitado" (Lacan, 1986/2008, p. 243). Já no texto "O Aturdito" (1972), ao reportar-se à interpretação, Lacan escreve que "todos os lances são permitidos" (Lacan, 1972/2003, p. 493), postulando que há três formas de ação analítica, a saber: a estratégia, a tática e a política. A transferência é uma estratégia que está do lado do analisante, e o analista deve conhecer em que lugar o analisante o coloca antes de poder operar a sua tática, que é a interpretação. Lacan retoma a proposição de que "a interpretação incide sobre a causa do desejo" (Lacan 1972/2003, p. 474), e acrescenta que "o dito não vai sem o dizer" (Lacan, 1972/2003, p. 451).

No mesmo escrito, Lacan apresenta outro modo de interpretação: o equívoco. Esta forma de interpretação se utiliza da pluralidade dos sentidos, da polissemia, para abertura da via para vários sentidos, pois é um instrumento que não sugere, não impõe a maneira de pensar do analista para que o próprio analisante escolha o sentido que quiser atribuir àquele dito. Lacan menciona três tipos de equívoco: o da homofonia, o da gramática e o da lógica, fazendo aparecer, respectivamente, no nível da língua, da linguagem e da lógica, o impossível de tudo dizer (Lacan, 1972/2003).

No seminário sobre "O Avesso da Psicanálise" (1969-1970), Lacan já situara a interpretação entre o enigma e a citação. O enigma é a enunciação de saber latente, presentificando o ato da enunciação, ou seja, um dizer semidito. Já a citação consiste em sublinhar algo que foi enunciado no discurso do analisante, correspondendo ao procedimento de pôr aspas, "trata-se do sólido apoio que encontram no nome do autor" (Lacan, 1991/1992, p. 34). Dessa forma, temos no enigma a verdade com o saber latente; por outro lado, na citação, um saber com a verdade latente, havendo em ambas as situações um semidizer. Dessa maneira "um enunciado é colhido na trama do discurso do analisante" (Lacan, 1991/1992, p. 35), e então, por ter sido recortado dessa trama, esse enunciado pode se tornar um enigma e fazer surgir algo para além do dito.

Sobre esse assunto, Martinho (2012) entende que o analista, ao pontuar um texto do analisante - colocando uma vírgula, uma exclamação, uma interrogação -, marca um sentido determinado, como nas expressões, "Como assim?" ou "É mesmo". Já o corte - outro modo de intervenção - é oposto à pontuação, pois ele é o não-sentido, o non-sense. "Quando o analista corta o paciente no meio da frase, ele impede a pontuação. Ele faz surgir o intervalo entre os significantes, apontando para o não-sentido e para a falta no Outro", o que, geralmente, provoca um efeito de perplexidade e desagrado no analisante (Martinho, 2012, 11º§). Assim, "ao manejar a sua tática, que é a da interpretação, o analista obtém o efeito inverso ao de dar uma resposta. Opera no nível da falha do saber suposto" (Martinho, 2012, 4º§).

Freire (2003) também aponta que a intervenção se apresenta como escansão, seja o corte de uma sessão, a solicitação de uma associação, a interpretação ou a pontuação. O analista, ao reconhecer o analisante como sujeito de sua fala, propicia a ele escutar os fonemas que produziu ou até mesmo questionar o sentido daquilo que disse. Dessa forma, podemos enfatizar o que foi dito, repeti-lo ou escandi-lo. Mas, além de o analista intervir e realizar incidências sobre a fala de seu paciente, é necessário também que o "sujeito ali compareça com seu trabalho, com seu reconhecimento, com sua responsabilidade, com seu ato" (Freire, 2003, p. 75), para que se possa recolher um efeito analítico dessas intervenções.

A partir desse entendimento, podemos destacar que a intervenção analítica produz o sujeito com o qual trabalhamos na psicanálise, pois "esse sujeito não está lá desde sempre embora seja suposto. A função analítica supõe um sujeito, aposta que um sujeito esteve ali, portanto produz o sujeito como aquilo que é efeito" (Freire, 2003, p. 76). Ressaltamos que é necessário que o analisante se posicione acerca de seu dito para, a partir desse outro lugar enunciativo, libertar-se um pouco, pelo menos, do assujeitamento ao Outro.

Santos (2002) aponta que o trabalho da análise propicia que os significantes trazidos pelo discurso do analisante circulem mais vezes para que a repetição seja analisada e o sujeito possa abandonar a posição de submissão diante desses termos. Citamos suas palavras:

() é a partir das notícias do impossível de tudo dizer, do impossível de se dizer o que se é, e, portanto, do caráter contingente das significações, que temos efeitos de escrita da incompletude do Outro. Portanto, esta expressão - "a produção do analisante" - cujo duplo sentido remete, primeiro, ao analisante como aquilo que o analisante produz, ou seja, a produção fervilhante de S1 -, será mais bem entendida na condensação dos dois sentidos, ou seja, o analisante é instituído pela experiência clínica e ele é o seu trabalho. (Santos, 2002, p. 245)

Um importante aporte teórico, do qual nos valeremos na apresentação do material clínico, é a proposição dos Quatro Discursos apresentada por Lacan no seminário "O Avesso da Psicanálise" (1969-1970). Aqui, ele relança a noção do par significante S1-S2, do e do objeto a. A partir da rotação destes quatro elementos por quatro lugares, determinam-se os quatro discursos: Discurso do Mestre, Discurso da Histérica, Discurso Universitário e Discurso do Analista. Os movimentos que acontecem a cada quarto de giro - permutação cíclica - marcam a posição do sujeito na estrutura linguageira, já que o elemento gerador, que ocupa o lugar de agente, torna-se responsável pelo efeito do enunciado em cada discurso. Apresentamos, abaixo, as fórmulas trabalhadas nesse seminário (Lacan, 1991/1992, p. 37):

Na definição dos lugares e dos elementos, salientamos que os termos são significantes que adquirem diferentes significações dependendo da posição ocupada e da relação com os outros elementos (Castro, 2009, p. 249).

Termos:

S1 - o significante-mestre, o significante pelo qual os outros significantes são ordenados;

S2 - o saber constituído enquanto cadeia significante;

a - objeto a, mais-de-gozar, condensador de gozo e causa-do-desejo;

- o sujeito barrado pelo significante.

Lacan (1991/1992) aponta que o discurso do analisante - chamado de discurso da histérica - é o discurso proferido efetivamente na experiência analítica, distinguindo-se do discurso do analista. Acrescenta que o analista é que institui a histerização do discurso do analisante a partir de suas intervenções. No início de uma análise, se o analista propicia que a demanda se transforme em uma demanda de análise, o sujeito se situa como a histérica com seu sintoma, ou seja, fala de seu sintoma, mas ignora sua razão e dirige ao outro - a quem atribui o saber - a interrogação sobre seu sofrimento. Desse modo, é importante, como mencionado anteriormente, evitar dar explicações e injeções de sentido ao que surge deslocado, fora de ordem no discurso do analisante, pois são essas manifestações que orientam a intervenção analítica e abrem a possibilidade de um sujeito ali se implicar em seus tropeços e seu sofrimento.

Nesse sentido, no processo analítico, o analista, em vez de dar uma resposta, um saber, um conhecimento científico, vai abrir questões para que o analisante comece a investigar seu sofrimento e mudar de posição em relação a sua queixa. É o próprio analisante que traz em si as razões de seus sintomas; portanto, é ele que pode - a partir do tratamento conduzido pelo analista - investigá-los e superá-los naquilo que for possível. A arte, o ofício do analista situa-se nas estratégias utilizadas para dirigir a análise de forma que o analisante se depare com o modo singular da sua relação com o Outro. O analista comparece aí com seu desejo, ou seja, um ato de descortinar o saber que o analisante traz. E nesse processo, é o desejo do analista que mobilizará o analisante a se colocar como um investigador de si mesmo.

Seguindo nosso objetivo de escrever sobre a clínica psicanalítica, passamos a questionar de que maneira poderíamos articular os pontos teóricos, como até aqui apresentados, com o material clínico que desejávamos estudar. Seria possível elaborar uma releitura utilizando as ferramentas teóricas elencadas? É a questão que nos propomos desenvolver no tópico seguinte - a partir de pequenos fragmentos de uma experiência clínica já encerrada - trazendo algumas considerações sobre as intervenções da analista e seus efeitos na posição discursiva da analisante naquilo que designamos como a condução do tratamento.

 

O material clínico: a analisante H.

H. era uma mulher que mantinha uma relação muito conturbada com seu parceiro e, devido à última briga do casal, buscou atendimento por sentir extrema angústia, chorando compulsivamente, sem poder trabalhar, com fortes dores no estômago e sem se alimentar. Constantemente, usava seu tempo de análise para falar sobre o namorado, alternando queixas e indignações, por ele não fazer o que ela esperava, com momentos de submissão aos desejos dele.

Nas entrevistas iniciais, a demanda de H. era que a analista apresentasse a solução para seu sofrimento, trazendo para a cena analítica a questão de como transformar a demanda em pedido de análise e quais as possibilidades de intervenção. Não havia nessa paciente a especificidade do sintoma que produz perguntas, mas sim uma posição que impõe ao outro o dever de atender às suas demandas. Apesar dessa posição de mestria, o sofrimento manifesto pela paciente fez a analista considerar ser possível abrir uma brecha, uma fenda nesse discurso impositivo e alienante, para que surgisse o sujeito dividido capaz de questionar, nesse sofrer, a parte que lhe cabia, como proposto por Lacan na histerização do discurso do analisante.

Com o decorrer do tratamento, surgiram narrativas da infância, de seus pais e, assim, uma história pessoal foi sendo descortinada. H. foi fruto de uma relação casual do pai com a mãe - mulher pobre e de pouca instrução - sendo criada, desde o nascimento, pelo pai e avó paterna. Segundo seu relato, além da separação da mãe, também sofreu maus tratos físicos e psicológicos por parte da madrasta, enquanto o pai mantinha uma postura de nada querer saber sobre essa situação. A analista entendia que a falta da mãe ficou como um enorme vazio e sentimento de abandono com os quais não podia fazer contato, e o tamanho dessa falta era o tamanho de sua exigência de ser amada, de afeto, de reconhecimento, "de ter tido uma família como as outras pessoas, de poder caminhar na praça de mãos dadas com meus pais". Frente aos abandonos, H. posicionou-se de forma reivindicatória em relação aos outros, pois era a partir da marcação da falta no outro que ela encobria a sua falta; é o outro que estava em dívida com ela e que precisava lhe dar o que ela não tinha, e assim ela evitava lidar com sua própria castração.

Ao questionar essa família idealizada, a analista pôde provocar a analisante a falar sobre seus relacionamentos atuais com seu parceiro, com os familiares "reais", já que H. tinha voltado a ter contato com a mãe, o pai, o irmão materno e as irmãs paternas, procurando ressignificar os laços afetivos com essas pessoas.

Ao longo de seu percurso de análise, surge um movimento importante quando H. toma a iniciativa de mudar de atividade profissional e se inscreve para realizar três testes em diferentes setores. Para sua surpresa, é aprovada nos três e se vê na inusitada situação de poder escolher em que local trabalhar. É importante considerar que, nessa situação específica, a postura reivindicatória se deslocou, pois em vez de exigir que o outro atendesse a suas demandas, ela se coloca em cena, valorizando sua competência e conhecimentos profissionais como moeda de troca; algo de valor pôde ser oferecido ao outro nessa ascensão profissional.

Para fazer a articulação da análise de H. com os discursos propostos por Lacan, procederemos agora a uma leitura dos movimentos da analisante seguindo essa proposição. Podemos dizer que, inicialmente, H. se colocava como agente (S1) de um discurso que se dirigia ao Outro Supostamente Saber (S2) do qual esperava obter um produto (a) que, sendo do Outro, a mantivesse afastada da divisão de quem fala ( ), caracterizando o discurso do mestre. Para que um discurso assim fosse interrompido, era necessário que a analista provocasse H. a pensar sobre seu sofrimento, como por exemplo, "Por que eu tenho que sofrer deste sintoma?" "Por que sempre acontecem as mesmas coisas comigo?" e, dessa forma, levar a paciente a entrar em análise. O discurso de H. era alienado porque somente queria saber o que fazer para agradar ao seu parceiro, qual "tipo" de mulher ele desejava, como deveria falar e agir para mantê-lo ao seu lado.

Observamos que o Outro como lugar da fala, como aquele a quem se dirige a demanda, passa a ser também o lugar onde deve ser descoberto o desejo em sua formulação possível. É aí que se exerce a todo instante a contradição, porque esse Outro é possuído por um desejo, um desejo que, inaugural e fundamentalmente, é estranho ao sujeito. Conforme a ênfase seja colocada na insatisfação do desejo, temos o modo como a histérica aborda seu campo e sua necessidade. Com efeito, o desejo da histérica não é o desejo de um objeto, mas o desejo de um desejo, um esforço de se manter em frente ao ponto no qual ela convoca o desejo, o ponto onde está o desejo do Outro (Lacan, 1998/1999).

A analista, ao não responder à demanda de H., ocasionou a destituição deste Outro suposto saber, fazendo surgir, no lugar de agente, o sujeito dos sintomas ( ). É a histerização do discurso provocada pelo analista, através de seu ato, que faz do Outro um não-todo, propiciando a mudança do para o lugar de agente no discurso da histérica. Nesta posição, com como agente do discurso, Bataille (1987/1988) comenta que a analisante se dirige à analista como a um médico a quem ela faz um pedido de socorro, um saber que lhe diga o que fazer para salvá-la de seu sofrimento. Embora ela deseje que a analista trabalhe para ela, já há a aparição do sujeito dos sintomas; portanto, o analista passa a se interessar pelo sintoma, fazer a analisante falar sobre ele, em vez de querer curá-lo. Desse modo, foi possível implicar a analisante em suas próprias queixas e situações que produziam angústia e fazê-la trabalhar no sentido de construir um saber sobre si a partir de sua posição de sujeito dividido ( ).

Portanto, H. foi sensibilizada por algo do discurso do analista - um ato fruto de sua posição de, tendo sido analisante, estar atravessado por marcas dessa experiência que possibilitou tal inflexão - que provocou o surgimento de algo novo, que não estava lá, um ato devido ao desejo do analista que produz uma rotação no discurso da analisante. Pela eficácia deste ato, no lugar do Outro aparece a barra do sujeito ( ) fazendo do Outro um não-todo (Lacan, n/d).

Bataille (1987/1988) escreve que, no discurso do analista, a pergunta "o que é que eu quero?" pode ser formalizada por (agora no lugar do trabalho) em relação ao objeto a, abrindo caminho para a produção de formações do inconsciente e significantes primordiais, sob a forma de sonhos, teorias, ou seja, sobre S1 (Bataille, 1987/1988, p. 103). Já o analista passa a ocupar - como semblante - o lugar de agente do discurso. Lacan nos indica que, ao se apresentar como objeto a, ou seja, como causa de desejo e "se o analista não toma a palavra, o que pode advir dessa produção fervilhante de S1? Certamente muitas coisas" (Lacan, 1991/1992, p. 33), pois o caráter subversivo do discurso do analista é "não pretender nenhuma solução" (Lacan, 1991/1992, p. 66).

Como diz Amigo (2001), no momento em que o analista institui seu ato, é o discurso do analista que está dirigindo o tratamento, mas logo em seguida haverá outra rotação e aparecerá novamente o discurso do inconsciente, que é o discurso do mestre, ou o discurso do fazer desejar, que é o da histérica, ou o discurso do saber, que é o universitário, sendo que "o discurso do analista é um discurso que aparece num momento puntiforme e que comanda a produção possível do ato analítico" (Amigo, 2001, p. 79). Lacan, no seminário 20, mais, ainda, dirá que "é preciso prestar atenção à colocação em prova dessa verdade de que há emergência do discurso analítico a cada travessia de um discurso a outro." (Lacan, 1975/1985, p. 27).

Como ressaltado em Kessler (2008), no discurso do analista há uma mudança de posição de um sujeito que fala a partir de um lugar de saber ou de buscar um saber sobre si (S2 no comando), para outra na qual ele - como sujeito do inconsciente - é causado (a no comando), ou seja, "tomar o objeto a como agente do discurso, suspendendo o saber consciente (S2) sobre si e fazendo o sujeito, dividido ( ), trabalhar de forma que, assim, se produzam os significantes (S1) que lhe são constitutivos" (Kessler, 2008, p. 30).

Kessler (2009) comenta que é no lugar de semblante de objeto a - objeto perdido no momento mesmo que se constitui o sujeito, resto que resiste à assimilação significante e que segue, desde então, como causa de seu desejo - que o analista deverá se manter para escutar dali a demanda do analisante - seja um saber, seja uma mestria - visando a uma torção nesse discurso. Desse modo, face às inúmeras possibilidades de intervenção, tendo sido analisante, o analista pode sustentar a posição de semblante de a, pondo a no comando como agente do discurso, agente causa do desejo.

O discurso do analista é o único que apresenta o sujeito ( ) no lugar do outro, pois no discurso do mestre o outro é colocado como escravo (S2), no discurso da histérica o outro é tratado como mestre (S1), e no discurso universitário o outro é considerado objeto (a). Tratar o outro como sujeito é possibilitar que ele se manifeste com a singularidade de seu S1; porém, devemos lembrar que o sujeito considerado pela psicanálise é o - sujeito barrado do inconsciente - que, ao tomar a palavra, não pode dizer tudo (pois a verdade é um semidizer). Assim, o que aparecerá são seus equívocos, seus tropeços, o mal-entendido, já que o ato analítico trata justamente de apontar uma descontinuidade, o sem-sentido que desconserta o sujeito, podendo causar uma estranheza como a fala "não pensei nisso antes" ou "fiquei pensando no que você me falou na sessão passada".

No material clínico trabalhado, as intervenções da analista ressaltavam o equívoco, o enigmático colhido da trama da analisante, abrindo novas perguntas às suas colocações e não um saber teórico e racional para ser devolvido como uma verdade. O discurso de H. sustentava-se no saber das estatísticas, das normas, das idealizações, das afirmações categóricas e, para fazer frente a esse discurso, a analista sinalizava qualquer movimento da paciente que pudesse marcar uma singularidade, algo de si própria, diferentemente desse saber imperativo ao qual se submetia, como por exemplo: "todo homem que ama uma mulher manda flores para ela". A analista procurava "quebrar" essas certezas introduzindo perguntas ou dúvidas para que H. pudesse questionar esses ditos categóricos e genéricos para produzir um efeito de corte na fala alienante da paciente; às vezes, um apontamento como: "será que vai haver flores para todos os homens que quiserem comprar?". O agente do discurso do analista ao operar como objeto implica "ser o agente causa de desejo" (Lacan, 1991/1992, p. 168), ou seja, provocar o desejo de saber no outro.

Consideramos que os fragmentos clínicos apresentados reforçam o pensamento que na análise trabalhamos com as palavras, como o sujeito enuncia seu discurso e de que forma se implica (ou não) em sua enunciação. Assim, lidamos com a dimensão da linguagem, com o dito e o não-dito, com o que se esconde e o que aparece, com o que soa fora do curso, o dis-curso. O diferencial é que não se trata de atender à demanda ou dar conselhos ou orientações de como fazer ou se posicionar, mas sim de fortalecer um desejo próprio da analisante para experimentar seu saber-fazer, estabelecendo referências singulares em consonância com seu desejo.

Como ressaltado anteriormente, não há uma produção linear dos discursos, mas a emergência de um ao outro provocada pelo discurso do analista, por meio de seu ato. Entendemos que, se há giro nas posições dos discursos, também há circulações pelos quatro discursos em diferentes tempos da análise até que o próprio analisante - assumindo ou não sua posição de analista - possa produzir a leitura e a rotação de seus discursos. Assim, passa a fazer elaborações sobre situações que antes o dominavam, por estar advertido de sua posição de ter sido analisante.

Nas muitas voltas realizadas durante os três anos em que H. permaneceu em análise, acreditamos que os efeitos que pudemos observar foram as questões que a própria analisante produziu sobre si mesma, sobre seu estilo pessoal, sobre o desejo de se encontrar com sua feminilidade, construindo seu espelho subjetivo próprio e não mais se referenciando apenas pelo olhar e desejo do companheiro, o que ocasionou mudanças na relação com seu parceiro. Além desses pontos, o efeito de afirmação profissional também influenciou e lhe trouxe mais segurança em suas colocações e opiniões. Outro ponto importante foi a abertura de comunicação na relação com o outro e um deslocamento de sua posição rígida de exigências. H. iniciou um processo de considerar o outro procurando estabelecer interações no convívio com colegas, amigas e familiares, mesmo ainda com dificuldades para se colocar mais próxima afetivamente. Com seu parceiro, passou a falar mais sobre o que concordava ou não, procurando ouvir e ser ouvida, numa tentativa de entendimento e diálogo conjugal.

A analista, ao longo do tratamento, apostou que haveria outras possibilidades de H. se posicionar em relação ao Outro e com isso construir uma nova versão de si mesma e de sua vida, pois como diz Lacan, no seminário do Ato Psicanalítico, "Os efeitos da interpretação são recebidos no nível da estimulação que ela fornece à inventividade do sujeito." (Lacan, n/d, p. 59).

Embora houvesse outras questões a serem trabalhadas, H. optou por suspender seu tratamento, por considerar que seria importante experienciar seu saber fazer em relação à sua vida. Muitas perguntas continuaram sendo necessárias, mas só podemos conjecturar sobre o acontecido durante o tempo da análise. E, como disse Lacan (1975): "Uma análise não tem que ser levada demasiado longe. Quando o analisante pensa que é feliz por viver é suficiente." Ou até que surja um novo pedido de análise.

Assim, entendemos que os giros propostos pelos Quatro Discursos tanto nos auxiliam a estudar os movimentos que acontecem no processo de análise, como também trazem um direcionamento para a condução do tratamento, já que os dispositivos apresentados por Lacan nessa proposição convocam e precipitam o surgimento do discurso analítico.

 

Considerações finais

Trabalhamos na análise para que o sujeito do inconsciente do desejo possa advir. Para tanto, é necessário que o analista, com sua escuta e intervenções, possibilite ao analisante produzir mudanças em sua posição discursiva que tragam efeitos em sua vida cotidiana. Nesse sentido, o ato analítico tem o efeito de desconstruir certezas, questionar mandados que vêm do Outro, introduzindo um espaço de dúvida que permita novas reflexões para despertar o sujeito do adormecimento que ele crê ser sua vigília.

Vicente (2004) escreve que a análise acontece passando do standard, enquanto necessário, ao ato analítico, enquanto contingente. É somente na contingência de cada experiência e de momentos singulares de análise que o analista poderá saber quando e de que forma intervir, já que a priori ele nada sabe sobre o inconsciente do analisante.

Entendemos que, como diz Lacan (1966/1998c) no texto "A direção do tratamento e os princípios de seu poder", se referindo ao jogo de bridge, o analista deve ocupar o lugar do "morto" nas cartas do baralho, ou seja, não jogar, mas direcionar o tratamento para que o sujeito possa fazer a avaliação de suas jogadas e também descobrir outras possíveis. Podemos dizer que, muitas vezes, o analisante fica preso à repetição de uma única jogada, enquanto que, no universo das cinquenta e duas cartas do baralho, muitas outras opções poderiam ser experimentadas. É interessante pensar nas cartas como os significantes trazidos por cada um em sua história; enfim, não é prescindir das regras - que são as mesmas para todo e qualquer sujeito inserido num laço social - mas se autorizar a criar novas jogadas em sua relação com o outro. Consideramos pertinentes as palavras de Vicente (2004) sobre os movimentos do tratamento psicanalítico:

Deciframento do inconsciente, saber sobre a causa do desejo, transformação da posição subjetiva, mudança na relação ao gozo, são algumas das expressões utilizadas para dizer os efeitos da experiência analítica. Dessa forma, saber e mutação estão nesse horizonte, implicando uma desestabilização das âncoras do sujeito nas suas certezas, uma ruptura com a perenidade de suas repetições. Nesse sentido, é preciso pensar o que fazemos como ato, pelo ponto de vista da transformação, pois, ainda que uma análise passe várias vezes pelo mesmo lugar, ao fim, há uma mudança da posição do sujeito. (Vicente, 2004, p. 3)

No entendimento de Brounstein (2017), a verdade de uma análise não se lê no discurso daquele que a narra, por mais detalhado que esse seja, mas sim "pela mudança de posição subjetiva do analisante no momento em que opera a destituição do sujeito suposto saber representado por seu analista" (Brounstein, 2017, p. 107). Segundo o autor citado, o essencial no processo psicanalítico não reside nos registros das experiências conscientemente vividas na cena analítica, nem tampouco nas palavras ditas, por mais fiel que sua reprodução seja. Embora as histórias de casos, assim como os relatos das análises, sejam ficções elaboradas a partir do que foi produzido nas sessões, elas manifestam e põem em relevo a experiência analítica, e funcionam como testemunho dessa prática. Portanto, o conjunto dos testemunhos sobre uma prática serve para ressaltar que o essencial é a transmissão de um savoir-faire na direção da cura (Brounstein, 2017).

Kessler (2009) corrobora a ideia de que cada analista deve inventar seu próprio estilo de intervenção e agenciar isto a seu próprio modo, a fim de poder autorizar-se por suas decisões, mesmo que ainda de uma forma incipiente.

Como coloca Safouan (1975), o desejo do analista se manifesta naquilo que traduzimos como agarrar a oportunidade, aproveitar a ocasião em que o ato, como no clarão de um relâmpago, se apresenta, tendo em vista que sejamos prevenidos a partir da marca deixada pela experiência de ter sido analisante; e correndo o risco que o ato implica, seja em uma análise, como também na supervisão. Não hesitar, conforme indicado por Hoffmann. Enfim, como pronunciou Lacan, ter um desejo decidido. (Kessler, 2009, p. 41)

Assim também Bataille (1987/1988, p. 91): "Lacan nunca deu receitas, nem jamais aconselhou uma maneira qualquer de praticar; ele achava essencial que cada um forjasse sua prática a partir daquilo que integrava na teoria, e à luz de sua própria experiência". Por esse motivo, é imprescindível que cada analista encontre seu estilo de trabalho com uma postura ética frente à sua posição de analista. Seguindo essa linha de pensamento, consideramos que os fragmentos do material clínico que apresentamos reafirmam a posição ética do analista de dirigir o tratamento e não o analisante, como colocado por Lacan (1966/1998c).

Acompanhamos o pensamento de Castro (2006), de que a formação do analista precisa passar pela destituição de algumas de suas identificações e certezas subjetivas, bem como de alguns ideais do eu e do Outro. Essa destituição pode ser entendida como o que abriria a sua escuta e afiaria os seus atos durante a direção do tratamento/cura. Tal ensinamento é a base para que o analista nada deseje para o psicanalisante e não imponha a ele qualquer ideal de curabilidade ou de normalidade subjetiva, ou seja, manter a essência vazia do desejo do psicanalista. Dessa forma, contendo a influência sugestiva de seus próprios ideais, o psicanalista, ao não responder às demandas, propicia que o desejo do sujeito possa se construir ao deslizar pela cadeia significante (associação de ideias). "E essa direção é nitidamente marcada pela posição em que o psicanalista se coloca: destituído como sujeito e, por isso mesmo, aberto para ser tomado como objeto causa do desejo" (Castro & Ferrari, 2013, p. 68).

Parece-nos que o ensino com o qual Lacan se ocupou ao longo de sua vida buscava justamente tratar da questão de como o psicanalista poderia enfrentar o desafio de fazer valer seu discurso na especificidade da ética que ele porta, o que também nos leva ao encontro da discussão sobre a possibilidade de transmissão da psicanálise e da formação do psicanalista. Mesmo lidando com o singular de cada análise, é importante assumirmos a responsabilidade de continuar a debater a questão sempre atual de como trabalha um psicanalista e como dar testemunho dos efeitos de sua prática.

Finalizando, essa escrita teve por objetivo nos incluirmos na discussão sobre a clínica psicanalítica, além de trazer questões que nos levem a novos entendimentos sobre o exercício de nossa prática pelo diálogo com nossos pares, com colegas de outras áreas e com todos aqueles que se interessam pela psicanálise. Nesse sentido, a posição do analista como pesquisador tem todo o interesse na elaboração a posteriori do material clínico.

 

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Recebido em 27 de fevereiro de 2019
Aceito para publicação em 27 de julho de 2019

 

 

1 Lacan criou esse termo em 1971 para designar um conjunto de escritas de aspecto algébrico que têm por finalidade explicar conceitos-chave da teoria psicanalítica em termos estruturais, que transcendem o emprego das palavras comumente usadas, de modo que matema se constitui como a escrita do que não pode ser dito, mas que pode ser transmitido. Ele tomou emprestado esse conceito da linguística, que dispõe, numa forma de equação algébrica, as relações entre significantes e significados. (Zimerman, 2001, p. 262)
Este trabalho faz parte do projeto de pesquisa "A pesquisa clínica em transferência", da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Não foram recebidos recursos de fonte alguma para a produção deste artigo.

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