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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.32 no.3 Rio de Janeiro set./dez. 2020

http://dx.doi.org/10.33208/pc1980-5438v0032n03a04 

SEÇÃO TEMÁTICA - PSICANÁLISE, CLÍNICA E LITERATURA

 

Schreber escritor

 

Schreber, the writer

 

Schreber escritor

 

 

Renata GrunerI; Amadeu de Oliveira WeinmannII; Priscilla Machado de SouzaIII

IPsicóloga, especialista em atendimento clínico com ênfase em psicanálise pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil. email: renatagruner@gmail.com
IIPsicólogo, Doutor em educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Professor do PPG em Psicanálise, Clínica e Cultura da UFRGS, Porto Alegre, RS, Brasil. email: weinmann.amadeu@gmail.com
IIIPsicóloga e psicanalista, especialista em atendimento clínico com ênfase em psicanálise pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Mestre em Psicanálise, Clínica e Cultura pela UFRGS, Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), RS, Brasil. email: priscillamdesouza@gmail.com

 

 


RESUMO

A autobiografia de Daniel Paul Schreber, intitulada Memórias de um doente dos nervos, publicada em 1903, dá a Freud subsídios para o aprofundamento de seus estudos sobre a paranoia, tendo como resultado a publicação, em 1911, do escrito Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia (dementia paranoides) relatado em autobiografia, obra crucial para a clínica psicanalítica das psicoses. A partir dessa produção, Lacan elabora conceitos fundamentais para uma clínica possível das psicoses. Por meio de uma leitura entremeada das memórias de Schreber e do comentário que Freud lhes dedica, e em diálogo com algumas proposições de Lacan acerca da clínica das psicoses, sugerimos que a obra de Schreber testemunha a potência da escrita como dispositivo na organização de um delírio psicótico. Nesse sentido, sustentamos a hipótese de que Schreber escritor (Schreiber, em alemão) é também Schreber precursor.

Palavras-chave: psicanálise; psicose; paranoia; escrita; Schreber.


ABSTRACT

Daniel Paul Schreber's autobiography, Memoirs of My Nervous Illness, published in 1903, gives Freud further insights into his study of paranoia, resulting in the publication in 1911 of the Psychoanalytic notes on an autobiographical account of a case of paranoia (dementia paranoides), a crucial work for the psychoanalytical treatment of psychosis. Based on this production, Lacan elaborates fundamental concepts for a possible psychosis clinical work. By means of a reading of Schreber's memoirs entwined with Freud's commentary on them, and in dialogue with some of Lacan's propositions about the psychosis clinical practice, we suggest that Schreber's work testifies to the power of writing as a device in the organization of psychotic delusions. In this sense, we hold the hypothesis that Schreber, the writer (Schreiber, in German) is also Schreber, the precursor.

Keywords: psychoanalysis; psychosis; paranoia; writing; Schreber.


RESUMEN

La autobiografía de Daniel Paul Schreber, titulada Memorias de un enfermo de nervios, publicada en 1903, da a Freud subsidios para la profundización de sus estudios sobre la paranoia, teniendo como resultado la publicación en 1911 del escrito Observaciones psicoanalíticas sobre un caso de paranoia (dementia paranoides) autobiográficamente descrito, obra crucial para la clínica psicoanalítica de las psicosis. A partir de esa producción, Lacan elabora conceptos fundamentales para una clínica posible de las psicosis. Por medio de una lectura intercalada de las memorias de Schreber y del comentario que Freud les dedica, y en diálogo con algunas proposiciones de Lacan acerca de la clínica de las psicosis, sugerimos que la obra de Schreber testimonia la potencia de la escrita como dispositivo en la organización de un delirio psicótico. En ese sentido, sostenemos la hipótesis de que Schreber escritor (Schreiber, en alemán) es también Schreber precursor.

Palabras clave: psicoanálisis; psicosis; paranoia; escrita; Schreber.


 

 

Introdução

Em 1903, Daniel Paul Schreber publica seu relato autobiográfico, intitulado Memórias de um doente dos nervos, onde descreve em detalhes aspectos fundamentais de sua história clínica e elementos preciosos que permitem acompanhar a evolução de sua doença. Mediante a análise do texto de Schreber, Freud lança em 1911 seu escrito Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia (dementia paranoides) relatado em autobiografia, aprofundando seus estudos sobre a paranoia. A partir desse trabalho, Lacan (1958/2002) elabora conceitos de primeira ordem para uma clínica possível das psicoses (como será referida por ele no artigo De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose), como a ideia de forclusão para situar a diferença entre as estruturações neurótica e psicótica.

Se o texto de Freud é a pedra fundamental de uma clínica psicanalítica das psicoses, o relato de Schreber apresenta a riqueza de um testemunho que anuncia a potência da escrita como recurso na organização de um delírio psicótico, além de, por outra via, também apresentar o sistema psiquiátrico vigente na época, material que, a posteriori, pode ser lido na perspectiva da luta antimanicomial. Em alemão, Schreiber significa escritor (Michaelis, 1998). Schreber Schreiber: este é o foco do presente artigo. Tal aproximação permite que pensemos a importante articulação admissível entre a obra de Schreber, as elaborações de Freud e Lacan, a clínica das psicoses e elementos precursores para a criação de um trabalho analítico possível com pacientes psicóticos.

 

A teoria psicanalítica da paranoia antes de Schreber

Em 1894, Freud publica As neuropsicoses de defesa, artigo que inaugura a psicopatologia psicanalítica, organizando-a em torno do conceito de defesa. Nesse escrito, Freud ensaia a análise da modalidade defensiva própria à histeria e às obsessões, no sentido do que virá a ser o conceito de recalcamento. No entanto, interessa-nos, especialmente, a modalidade defensiva própria à confusão alucinatória, muito mais enérgica e exitosa, na medida em que rechaça, psiquicamente, representação e afeto, sem deixar vestígios mnêmicos. Para essa forma de defesa, Freud usa a palavra Verwerfung - conceito frequentemente traduzido por rejeição e que, mais tarde, será retomado por Lacan na elaboração do conceito de forclusão. Sobre a Verwerfung, escreve Freud (1894/1996):

Em ambos os casos até aqui considerados, a defesa contra a representação incompatível foi efetuada separando-a do seu afeto; a representação em si permaneceu na consciência, ainda que enfraquecida e isolada. Há, entretanto, uma espécie de defesa muito mais poderosa e bem-sucedida. Nela, o eu rejeita a representação incompatível juntamente com o seu afeto e se comporta como se a representação jamais lhe tivesse ocorrido. Mas a partir do momento em que isso é conseguido, o sujeito fica numa psicose que só pode ser qualificada como "confusão alucinatória". (p. 64)

É importante considerar o nome escolhido para esse texto: as neuropsicoses de defesa. No campo da psicopatologia, Freud faz um recorte: interessam-lhe as neuroses e psicoses que são efeito de uma defesa psíquica. O termo neuropsicose consiste em uma aglomeração típica da língua alemã, na qual se formam palavras a partir da junção de outras. Como conceito, ele expressa o modo como a medicina do século XIX partilha o campo que hoje denominamos psicopatologia. De acordo com os pressupostos da época, as neuroses seriam transtornos funcionais do sistema nervoso que, ainda que eventualmente inviabilizassem a vida de um sujeito, não o colocavam em posição de antagonismo com a sociedade. Esses pacientes eram encaminhados para o consultório do neurologista (era o caso, salvo exceções, dos pacientes atendidos por Freud). Em contrapartida, o termo psicose aludia às doenças mentais, uma categorização fraca, do ponto de vista conceitual, mas bastante operante do ponto de vista prático; os pacientes psicóticos eram socialmente perigosos e, por isso, destinados aos manicômios e submetidos a tratamento psiquiátrico. Roazen (citado por Aguiar, 2016, p. 120) ressalta a importância de situar o período em que Freud realizou sua trajetória acadêmica em Viena: "havia uma diferença entre os casos que um neurólogo, especialista [como ele], podia tratar e os pacientes de outra maneira mais perturbados, agora chamados de psicóticos, que acabavam nos serviços hospitalares onde trabalhavam psiquiatras".

Em janeiro de 1895, Freud (1895/1986) envia a Fliess o Rascunho H. Paranoia, texto no qual dava notícia de uma tentativa de elucidação do fenômeno da paranoia, apresentando-a como uma neurose de defesa que contaria com a projeção como principal mecanismo. Freud utiliza um material clínico, que não será abordado em detalhes neste artigo, para esclarecer como opera a paranoia. O autor conduz o leitor pela história de uma paciente: a mulher recalcava a lembrança do incidente central da razão de seus surtos de paranoia por não querer lembrar-se, ou seja, por defesa: "não havia a menor dúvida quanto à defesa, mas ela poderia, da mesma forma, ter adquirido um sintoma histérico ou uma ideia obsessiva. Qual seria a peculiaridade da defesa paranoide?" (p. 110). E o fundador da psicanálise prossegue:

Ela se estava poupando de algo; algo fora recalcado. Podemos imaginar o que tenha sido. Provavelmente, de fato ficara excitada com o que vira e com a lembrança disso. Portanto, aquilo de que se estava poupando era uma reprimenda por ser uma "mulher depravada". Passou então a ouvir essa mesma reprimenda vinda de fora. Portanto, o conteúdo factual permaneceu inalterado; o que se alterou, porém, foi algo no posicionamento da coisa toda. Antes, tratava-se de uma autorrecriminação interna, e agora era uma imputação vinda de fora: as pessoas diziam aquilo que, de outra maneira, ela diria a si mesma. Havia um lucro a retirar disso. Ela teria sido obrigada a aceitar essa condenação, se proferida de dentro; mas poderia rejeitar a que lhe vinha de fora. Desse modo, a condenação, a censura, era mantida longe do ego. A finalidade da paranoia, portanto, é rechaçar uma ideia incompatível com o ego, projetando seu conteúdo no mundo externo. (p. 110, grifos do autor)

No ano de 1896, é publicado o artigo Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa, no qual Freud mantém essa proposição, a qual retornará na análise do caso do presidente Schreber. Em 1911, 15 anos após a publicação do segundo artigo de Freud a respeito das neuropsicoses de defesa, ele volta a discutir a paranoia em Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia (dementia paranoides) relatado em autobiografia, uma produção que se dá não a partir de um caso clínico de Freud, mas do relato autobiográfico de Daniel Paul Schreber, lançado em 1903 e intitulado Memórias de um doente dos nervos. O motivo de Freud debruçar-se sobre um livro para produzir seu estudo central sobre a paranoia é, por um lado, de ordem prática: "a investigação psicanalítica da paranoia oferece dificuldades especiais para nós, médicos não ligados a instituições públicas" (Freud, 1911/2010, p. 14). Por outro lado, é também uma razão de ordem clínica.

Em Sobre a psicoterapia, Freud (1905/1996) propõe que, para se submeter ao processo de análise, o paciente deve atender a certos critérios:

Afora a doença, deve-se reparar no valor da pessoa em outros aspectos e recusar os pacientes que não possuam certo grau de formação e um caráter razoavelmente digno de confiança. [] Tampouco é aplicável às pessoas que não sejam levadas à terapia por seu próprio sofrimento, mas antes se submetem a ela apenas pela ordem autoritária de seus familiares. (p. 250)

Sobre as psicoses, especificamente, afirma que tanto elas quanto "os estados confusionais e a depressão profundamente arraigada [] são impróprios para a psicanálise, ao menos tal como tem sido praticada até o momento" (p. 250). Portanto, não se trata mais da velha partilha do século XIX entre neurologia e psiquiatria. Por ocasião do caso Schreber, trata-se da inanalisabilidade da psicose - conceito intimamente ligado à experiência clínica, mas que, a partir da leitura de Memórias de um doente dos nervos, recebe um fundamento teórico: narcisismo.

 

A leitura freudiana das Memórias

Freud toma conhecimento do livro de Schreber em 1910 e, durante a segunda metade daquele ano, trabalha com intensa dedicação o texto que vem a publicar em 1911. A análise que o autor faz da autobiografia do presidente Schreber tem como modelo a leitura de Gradiva: uma fantasia pompeiana, obra literária do escritor Wilhelm Jensen, publicada em 1903. Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen, de 1907, é a primeira análise de um texto literário feita por Freud, com exceção de suas ponderações sobre Édipo Rei e Hamlet, em A interpretação dos sonhos, de 1900.

Com o texto sobre a Gradiva, Freud inaugura uma análise do discurso escrito, isto é, um método clínico que está para além da clínica (stricto sensu). Se, em A interpretação dos sonhos (Freud, 1900/1996) e em Psicopatologia da vida cotidiana (Freud, 1901/1996), não se trata de ditos de pacientes, ainda assim não se prescinde das associações do sonhador ou de quem cometeu um lapso ou ato falho. No caso de uma obra escrita, qual o lugar das associações? Em sua leitura das Memórias de um doente dos nervos, Freud (1911/2010) justifica, clinicamente, sua decisão:

Dado que os paranoicos não podem ser impelidos a vencer suas resistências internas e, de toda forma, dizem apenas o que querem dizer, precisamente no caso dessa afecção o relato escrito ou a história clínica impressa pode funcionar como substituto do conhecimento pessoal do doente. (p. 14)

Além disso, o fundador da psicanálise explicita o método dessa leitura:

Não raro é ele próprio [Schreber] quem nos fornece a chave, ao acrescentar a uma afirmação delirante, como que casualmente, um comentário, citação ou exemplo, ou contestar expressamente uma analogia que ocorreu a ele mesmo. Nesse último caso basta ignorar o invólucro negativo, como estamos habituados a fazer na técnica psicanalítica, tomar o exemplo como algo real, a citação ou prova como fonte, e nos acharemos de posse da tradução que buscávamos do modo de expressão paranoico para o normal. (p. 47-48)

A "escuta" de um texto escrito, assim como fora feito em relação à Gradiva, assinala os nexos associativos entre os elementos textuais, os quais produzem distintos efeitos de sentido (ideia que Freud já havia trabalhado no caso do Homem dos Ratos, nomeando-a "ponte verbal", o que, mais tarde, Lacan tomará como "significante"). A chave de interpretação de uma tese delirante às vezes se apresenta não em outra parte importante do texto, mas justamente nos detalhes mais despretensiosos - assim na clínica como na arte, conforme notado em Moisés de Michelangelo, de 1914. No entanto, o horizonte da leitura freudiana das Memórias do presidente Schreber é a teoria do recalque - pedra fundamental da teoria psicanalítica. Sua "tradução" do discurso delirante de um paciente paranoico, ao converter-se em interpretação, pode tornar-se apelativa ao desencadeamento psicótico - vide o relato clínico do Rascunho H, de 1895.

A fim de analisar a incidência do texto schreberiano sobre a escuta freudiana, comentaremos, de forma intercalada, alguns trechos de Memórias de um doente dos nervos e de Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia (dementia paranoides) relatado em autobiografia. Antes de tudo, é importante assinalar que Freud (1911/2010) pouco sabia acerca de Schreber:

Sobre os antecedentes e as circunstâncias de vida do paciente, nem seus escritos nem os pareceres médicos a eles agregados informam suficientemente. Eu não poderia sequer dizer qual a sua idade no momento em que adoeceu, embora a elevada posição que alcançou na Justiça, antes de adoecer pela segunda vez, garanta um certo limite inferior. (p. 17)

Se tomamos como base a época de ocorrência das crises psíquicas de Daniel Paul Schreber e os respectivos intervalos entre elas, sua história clínica pode ser dividida em cinco períodos: até 1884 (42 anos: primeira crise psíquica); de 1885 a 1893 (43 e 51 anos, respectivamente: período de intervalo entre a primeira e a segunda crise); novembro de 1893 a dezembro de 1902 (51 e 60 anos, respectivamente: segunda crise psíquica); de 1902 a 1907 (60 e 65 anos, respectivamente: intervalo entre a segunda e a terceira crise); e, por fim, novembro de 1907 a abril de 1911 (65 e 68 anos, respectivamente: internação no Sanatório de Dösen, em Leipzig-Dösen, até sua morte, em 14 de abril de 1911).

Schreber (1903/2006), em sua obra - elaborada antes de um terceiro episódio -, atribui a incidência das duas doenças nervosas à excessiva fadiga intelectual:

A primeira vez por ocasião de uma candidatura ao Reichstag [], a segunda vez por ocasião da inusitada sobrecarga de trabalho que enfrentei quando assumi o cargo de presidente da Corte de Apelação de Dresden, que me tinha sido então recentemente transmitido. (p. 53)

A família Schreber carregava as marcas da tradicional família burguesa alemã, de classe média alta, erudita e com histórico de méritos profissionais - profissionais da área jurídica, com altos cargos, e médicos (como o pai de Schreber), por exemplo -, fazendo-os célebres por seu sucesso, tendo muitos de seus antepassados deixado obras escritas sobre Direito, Economia, Pedagogia e Ciências Naturais (Carone, 2006). Nessa perspectiva, a derrota vergonhosa de Schreber nas eleições ao cargo de representante no Reichstag (assembleia regional) ganha importância ainda maior, especialmente após um jornal da Saxônia publicar, em tom irônico: "quem conhece esse tal Dr. Schreber?" (p. 12).

Em outubro de 1884, com a queixa principal de forte insônia, passa algumas semanas no Schloss Sonnenstein, sanatório público sob a direção do Dr. Weber. Posteriormente, é internado, pela primeira vez, na Clínica Psiquiátrica da Universidade de Leipzig, com direção do prof. Flechsig, onde recebe o diagnóstico de hipocondria grave. Após cerca de meio ano em internação, ganha alta em junho de 1885. Ao fim desse período, Schreber (1903/2006) relata:

O essencial foi que eu fiquei finalmente curado [] e portanto só podia estar cheio de sentimentos de viva gratidão para com o professor Flechsig, os quais expressei também através de uma ulterior visita e de honorários, na minha opinião, adequados. Ainda mais profunda talvez foi a gratidão sentida por minha esposa, que realmente reverenciava no professor Flechsig aquele que lhe devolveu seu marido e, por esse motivo, conservou durante anos seu retrato sobre sua escrivaninha. (p. 54)

Ainda sobre a fase anterior à segunda crise psíquica, o autor relata ter vivido anos felizes, ricos em realizações pessoais e profissionais, afetados apenas pela frustração da expectativa de ter filhos. Em junho de 1893, Schreber recebe a notícia de sua nomeação para a presidência da Corte de Apelação da Saxônia, ou seja, para assumir o cargo de juiz-presidente (Senatspräsident), grande honraria no contexto alemão da época, cuja nomeação era feita pelo Imperador e cuja recusa consistiria em crime de lesa-majestade. Schreber toma posse do cargo em outubro do mesmo ano e revela que, algumas semanas depois, já se sentia intelectualmente estafado.

Freud (1911/2010) observa que, no período entre a nomeação e a posse, Schreber já dava sinais de estar entrando em crise - a antessala do surto -, quando sonha algumas vezes com o retorno da doença. O sofrimento era tamanho que "ficava naturalmente tão infeliz quanto me sentia feliz ao despertar, pelo fato de que não passava de um sonho" (Schreber, 1903/2006, p. 54). Ademais, certa feita, entre o sono e a vigília, sente-se perturbado pela ideia de que "deveria ser realmente bom ser uma mulher se submetendo ao coito" (p. 54).

Schreber assume o cargo e, com um mês e meio de trabalho, em novembro de 1893, entra em colapso e busca a clínica de Flechsig, onde teve seu estado agravado rapidamente. A doença tem começo com episódios recorrentes de insônia e, em seguida, com uma crise hipocondríaca, culminando no quadro de uma psicose alucinatória aguda. Em seu informe elaborado para o processo judicial movido por Schreber para recebimento de alta (entre 1900 e 1902), o Dr. Weber (citado por Freud, 1911/2010) reporta, sobre essa internação:

No início da internação manifestava várias ideias hipocondríacas, queixava-se de sofrer um amolecimento cerebral, de que morreria logo etc., mas logo em seguida se acrescentaram ao quadro mórbido ideias de perseguição derivadas de alucinações, que no início ainda se manifestavam esporadicamente [] Mais tarde se tornaram mais frequentes as alucinações auditivas e acústicas ao lado de distúrbios sensoriais comuns, acabaram por dominar sua sensibilidade e seu pensamento: considerava-se morto e apodrecido, doente de peste, supunha que seu corpo fosse objeto de horríveis manipulações de todo tipo []. As ideias delirantes absorviam a tal ponto o doente que ele ficava horas e horas completamente rígido e imóvel (estupor alucinatório). [] Pouco a pouco as ideias delirantes assumiram um caráter místico e religioso. (p. 18-19)

Em junho de 1894, Schreber é transferido para o sanatório de Sonnenstein, dirigido pelo Dr. Weber (antes faz breve passagem por Lindenhof, asilo particular do Dr. Pierson). Freud indica algo fundamental para a análise do caso: muito gradualmente, Schreber começa a organizar um delírio e é por meio dessa construção que se torna possível a saída desse estado de psicose alucinatória aguda. Freud, que reconhece o valor das descrições do Dr. Weber, começa a sua argumentação justamente por uma divergência em relação a algumas de suas afirmações. O Dr. Weber (citado por Freud, 1911/2010) afirma que Schreber "considera-se encarregado de salvar o mundo e devolver a ele a perdida beatitude. Mas é algo que ele só pode realizar se se transformar de homem em mulher" (p. 22). Tratar-se-ia de um típico delírio paranoico de tipo místico. Delírio de redenção. Um delírio de redenção no qual o delírio de emasculação, ou seja, a transformação em mulher, seria o meio para realizar um fim - a salvação da humanidade. Freud (1911/2010), então, propõe uma primeira torção fundamental: o delírio de emasculação é primário e é a única peça do delírio que está presente do início ao fim, sendo tardio o delírio místico, de redenção:

Embora isto possa apresentar-se assim na configuração final do delírio, o estudo das Memórias nos impõe uma concepção bem diferente. Vemos que a transformação em mulher (emasculação) era o delírio primário, que ela foi considerada inicialmente um ato que acarretaria grave dano e perseguição, e que apenas secundariamente veio a ligar-se ao papel de Redentor. Também se torna claro que antes ela deveria ocorrer para fins de abuso sexual, e não a serviço de propósitos elevados. Colocando de maneira formal, um delírio de perseguição sexual foi posteriormente transformado, para o paciente, em delírio de grandeza religiosa. O perseguidor era inicialmente o prof. Flechsig, o médico que o tratava, depois substituído pelo próprio Deus. (p. 19)

Freud propõe uma divisão do delírio de Schreber em três tempos. O primeiro tempo é o de delírio persecutório de caráter especificamente sexual, durante o qual o paciente alega ter alguém tramando o seu "almicídio" (assassinato de alma). Diz Schreber (1903/2006):

Deste modo foi preparada uma conspiração dirigida contra mim (em março ou abril de 1894), que tinha como objetivo, uma vez reconhecido o suposto caráter incurável da minha doença nervosa, confiar-me a um homem de tal modo que minha alma lhe fosse entregue, ao passo que meu corpo - numa compreensão equivocada da citada tendência inerente à Ordem do Mundo - devia ser transformado em um corpo feminino e como tal entregue ao homem em questão para fins de abusos sexuais, devendo finalmente ser "deixado largado", e portanto abandonado à putrefação. (p. 67)

Este "homem", que não é especificamente nomeado, é, por dedução de Freud, o prof. Flechsig. Aos poucos, o delírio persecutório sexual começa a enlaçar outros elementos e a tornar-se mais complexo, assumindo outro caráter e dando forma a um segundo momento, que consiste em um delírio persecutório sexual articulado a pensamentos religiosos e megalomaníacos. Salta para o primeiro plano a expressão "Ordem do Mundo" - que, na perseguição sexual, está sendo contrariada - e também é introduzida no delírio a ideia de Deus. Em dado momento, Schreber estende o caráter persecutório a Deus e, na medida em que passa a ser perseguido não apenas por um mortal, mas também por Deus (cúmplice ou mandante), o delírio de Schreber assume não só um caráter religioso, mas também megalomaníaco.

O Deus de Schreber (1903/2006) é responsável por fazer os homens a partir de uma porção de seus próprios nervos, mantendo-se à distância deles enquanto vivem e, na ocasião de sua morte, retornando esses nervos a si:

Relações regulares entre Deus e as almas humanas, de acordo com a Ordem do Mundo, só ocorriam depois da morte. Deus podia, sem perigo, se aproximar dos cadáveres para, graças à energia dos raios, extrair do corpo e atrair para si os nervos, nos quais a autoconsciência não se tinha extinguido, mas apenas repousava, despertando-os assim para nova vida celeste; a autoconsciência voltava por efeito dos raios. (p. 36)

No entanto, esse Deus também é vulnerável; sua existência é ameaçada por humanos com nervos superexcitados: "os nervos de homens vivos, sobretudo em estado de uma excitação muito intensa, possuem uma tal força de atração sobre os nervos de Deus que Deus não poderia mais se livrar deles, ficando portanto ameaçado em sua própria existência" (p. 36).

Outra característica marcante do Deus de Schreber é a comunicação feita através da chamada "língua fundamental", um "alemão algo arcaico, mas ainda vigoroso, que se caracteriza principalmente por uma grande riqueza de eufemismos" (p. 37). O que Freud (1911/2010), no entanto, mais salienta acerca da relação de Schreber com Deus é que, se, por um lado, ela envolve temor, respeito, reverência, por outro, gera uma profunda revolta:

O instinto de autoconservação de Deus foi despertado, e viu-se que Ele estava muito longe da perfeição que lhe atribuem as religiões. Todo o livro de Schreber é permeado pela amarga queixa de que Deus, habituado ao trato com os mortos, não compreende os vivos. (p. 23)

Em 1894, Schreber é transferido para Sonnenstein, aos cuidados do Dr. Weber, onde permanece até a alta. É no momento dessa internação que tem início o terceiro e último tempo do delírio, o de redenção ou místico (dado o papel que Schreber assume de responsável pela redenção da humanidade). Freud denomina-o "tempo da reconciliação", referindo-se à reconciliação (Versöhnung) de Schreber com o instante em que rechaçou a ideia de como seria bom ser uma mulher no coito. Schreber identifica esse período como sendo o da revelação ou da sua descoberta de que Deus tinha para ele um projeto maior, que aquilo que Deus impunha a ele não era contrário à Ordem do Mundo, mas de acordo com ela. Tratava-se de um projeto de salvação da humanidade.

O dano narcísico, implicado na posição feminina diante do pai, é compensado com o êxtase narcísico decorrente de ser o redentor da humanidade. Nessa perspectiva, o delírio de redenção consiste em uma realização de desejo:

[] Deus exige um gozo contínuo, correspondente às condições da existência das almas, de acordo com a Ordem do Mundo; é meu dever proporcionar-lhe esse gozo, na forma de um abundante desenvolvimento de volúpia de alma, à medida que isso esteja no domínio da possibilidade, dada a situação contrária à Ordem do Mundo, que foi criada; se, ao fazê-lo, tenho um pouco de prazer sensual, sinto-me justificado a recebê-lo, a título de um pequeno ressarcimento pelo excesso de sofrimentos e privações que há anos me é imposto. (Schreber, 1903/2006, p. 219)

Ao longo da internação em Sonnenstein, Schreber passa a redigir suas memórias, o que parece ter sido de primordial função para que o autor pudesse dar materialidade e forma àquilo de que as palavras não dão conta. Schreber, um homem muito culto, tem uma relação profunda com a linguagem e encontra na escrita uma forma de plasmar o seu delírio, isto é, de produzir um testemunho organizador, a ponto de poder mover um processo no sentido de suspender sua interdição. O embate jurídico se dá entre sua argumentação e a contra-argumentação do Dr. Weber, com quem estabelecera uma relação de muita relevância. O parecer do psiquiatra, citado por Freud (1911/2010), dá um panorama da convivência dos dois homens:

O signatário há nove meses, durante as refeições cotidianas em sua casa, tem tido farta oportunidade de conversar com o sr. presidente Schreber sobre todos os assuntos possíveis. Qualquer que fosse o tema da conversa - naturalmente com exceção de suas ideias delirantes -, os problemas da administração do Estado e da Justiça, política, arte e literatura, vida social, ou o que quer que fosse, sobre qualquer coisa, o dr. Schreber revelava vivo interesse, conhecimentos profundos, uma boa memória, um julgamento pertinente e, mesmo do ponto de vista ético, uma concepção que não se poderia deixar de subscrever. Mesmo nas conversas amenas com as senhoras presentes, ele se mostrava cortês e amável, e, ao tratar certos temas de modo humorístico, sempre revelou tato e decência, nunca trazendo para a inocente conversa à mesa temas que não deveriam ser tratados ali, mas sim nas visitas médicas. (p. 15)

De 1900 a 1902, Schreber escreve suas memórias e impetra uma ação judicial para receber alta do sanatório - e vence a causa. De dezembro de 1902 a novembro de 1907, segue vivendo com sua esposa, atua como advogado (de forma mais restrita, assumindo menos compromissos) e permanece certo de estar se transformando em uma mulher com todas as características femininas. No mesmo intervalo de tempo, o casal adota uma menina de 10 anos. No início de 1907, falece a mãe de Schreber.

A terceira doença se dá ao final de 1907. Segundo Carone (2006), tradutora das Memórias e pesquisadora da vida de Schreber, estudiosos atribuíram, por muito tempo, a última internação de Schreber exclusivamente ao derrame cerebral sofrido por sua mulher. No entanto, há algumas décadas, uma nova hipótese passou a ser considerada, que diz respeito a um evento situado em novembro do mesmo ano. Schreber é procurado por representantes das Associações Schreber (organizações ligadas a projetos do pai) para solicitar o reconhecimento de sua legitimidade, de modo que o nome Schreber não pudesse ser utilizado de modo ilegítimo. É ainda uma questão em aberto qual teria sido o fator que desencadeou a crise, mas fato é que Schreber passa a ter, novamente, crises de insônia e angústia, e que no mesmo mês é internado, pela terceira e última vez, tendo seu caso sido considerado muito grave, desde o princípio.

 

O legado de Schreber escritor a Freud

A respeito de sua premissa sobre a paranoia, Freud (1911/2010) observa:

Partindo de uma série de casos de delírio de perseguição, eu e outros estudiosos achamos que a relação entre o doente e seu perseguidor pode ser resolvida mediante uma fórmula simples. A pessoa a que o delírio atribui tamanho poder e influência, para cujas mãos convergem todos os fios do complô, seria, no caso de ser expressamente nomeada, a mesma que antes da doença tinha significado igualmente grande para a vida afetiva do paciente, ou um substituto facilmente reconhecível. A importância afetiva é projetada para fora, como poder externo, e o tom afetivo é transformado no oposto; aquele agora odiado e temido, por sua perseguição, seria alguém amado e venerado anteriormente. A perseguição registrada no delírio serviria, antes de tudo, para justificar a mudança afetiva no doente. (p. 37)

Há, desse modo, uma dupla transformação no lugar atribuído ao perseguidor (Flechsig): na fonte dos sentimentos (era eu, agora é ele) e no tom do sentimento (era amor, agora é ódio). É a partir dessa premissa que Freud faz a análise do caso. Primeiramente, recapitula o histórico do relacionamento de Schreber com Flechsig, partindo da primeira crise nervosa do paciente, entre 1884 e 1885. Ato contínuo, detém-se no período de incubação da doença manifestada em 1893. Schreber tem sonhos a respeito da reincidência da enfermidade e, em seguida, a sensação de que seria bom ser uma mulher durante o coito. Temos, aqui, o desejo de reencontrar seu antigo médico. A ordem dos acontecimentos durante a incubação da doença é primordial; há uma relação temporal (sucessão) entre os dois enunciados.

Nessa perspectiva, a hipótese de Freud (1911/2010) é de que tanto o sonho de que a doença retorna quanto o devaneio de ser bom ser uma mulher no coito já dissessem respeito a Flechsig, estando ele em questão desde as primícias da crise. Nesse caso, o que está em jogo é o amor de transferência:

O sentimento de simpatia para com o médico pode muito bem se originar de um "processo de transferência", pelo qual um investimento afetivo do doente foi transposto, de alguém que lhe é importante, para a pessoa - indiferente, na realidade - do médico; de modo que este aparece escolhido como substituto, como sucedâneo de alguém muito mais próximo ao doente. Falando de modo mais concreto, o doente foi lembrado, pelo médico, da pessoa do irmão ou do pai; reencontrou nele o irmão ou o pai, e então já não surpreende que, em determinadas circunstâncias, o anseio por esse substituto reapareça nele e opere com uma veemência que pode ser entendida apenas por sua proveniência e importância original. (p. 42)

Partindo do pressuposto de que os eventos relatados endereçavam-se a Flechsig e expressavam um desejo de Schreber de rever seu médico, por qual razão acontece a passagem de amado para perseguidor? Para falar da mudança de lugar de Flechsig na subjetividade de Schreber, Freud (1911/2010) evoca o "protesto masculino":

[] talvez o sonho de que a doença retornara tivesse o significado de um anseio: "Gostaria de ver Flechsig novamente" []. Talvez restasse [] uma terna devoção ao médico, que - por razões desconhecidas - intensificou-se a ponto de chegar a uma inclinação erótica. Imediatamente, verificou-se uma indignada rejeição da fantasia feminina, ainda vista como impessoal - um verdadeiro "protesto masculino", nas palavras, mas não no sentido, de Alfred Adler. (p. 37)

Se, por um lado, o conceito de projeção dá conta do mecanismo dessa transformação, é o conceito de protesto masculino - ou, em termos freudianos, a castração - que nos ajuda a entender o que a impulsiona.

Ao considerar a suposição de que o amor de Schreber por seu médico é amor de transferência, há que se pensar que Flechsig substitui uma ou mais pessoas, visto que o conceito de transferência implica substituição:

[] pareceu-me que valia a pena descobrir se o pai do paciente ainda vivia na época de sua doença, se havia um irmão e se este contava entre os vivos ou entre os "beatos", na mesma época. Então fiquei satisfeito, quando, após demorada procura nas Memórias, encontrei uma passagem em que o doente elimina essa incerteza, com as seguintes palavras: "a memória de meu pai e de meu irmão [] é para mim tão sagrada como []" etc. Portanto, na época da segunda doença (talvez também da primeira?) os dois já estavam mortos. (p. 41)

No delírio de Schreber, Flechsig aparece como um substituto paterno, assim como Deus, o Sol, o Dr. Weber e o enfermeiro-chefe do sanatório. Da mesma forma, há Deus superior e inferior, porções dianteiras e traseiras de Deus, Flechsig superior e médio; todos substitutos paternos, atravessados pela cisão entre o pai e o irmão mais velho.

No entanto, ainda mais importante do que esse ensaio de interpretação são as reflexões conceituais suscitadas pelo texto das Memórias. É no caso Schreber que o conceito narcisismo encontra sua primeira elaboração mais acurada. Ele é situado entre o autoerotismo e o amor objetal e consiste no ponto de fixação da paranoia. Mediante essa formulação, Freud refuta a tese de Jung de que as psicoses, por não se organizarem em torno de investimentos libidinais objetais, não possuiriam uma etiologia sexual. É também nesse trabalho que Freud propõe uma gramática da paranoia. Por meio da contradição dos elementos da frase "eu o amo" - sujeito, objeto e verbo -, engendrar-se-iam, respectivamente, os delírios de ciúmes (não sou eu que o amo, é a minha mulher), erotomaníaco (não o amo, mas à mulher dele, porque ela me ama) e de perseguição (não o amo, o odeio, porque ele me persegue). Ademais, a contradição em bloco da frase implicaria o delírio megalomaníaco: não o amo, amo somente e inteiramente a mim mesmo (narcisismo).

Também é no caso Schreber que a hipótese dos três tempos do recalque tem sua aparição pública. Na paranoia, a fixação - Freud (1911/2010) ainda não usa "recalque originário" - é no narcisismo. O retorno do recalcado ocorre por meio da projeção: "uma percepção interna é suprimida e, em substituição, seu conteúdo vem à consciência, após sofrer certa deformação, como percepção de fora" (p. 88). E o recalque propriamente dito - ou secundário - ocorre mediante o desligamento da libido de seus objetos ("catástrofe do mundo de Schreber"). É intrigante o modo como Freud descreve esse processo:

Ele se realiza em silêncio; não temos notícia dele, somos obrigados a inferi-lo dos eventos consecutivos. O que se faz notar flagrantemente, para nós, é o processo de cura, que desfaz a repressão e reconduz a libido às pessoas por ela abandonadas. (p. 94-95)

Tal formulação acarreta duas hipóteses de extraordinário alcance, uma teórica e outra clínica. Do ponto de vista teórico, Freud tem de revisar sua descrição da projeção: "não foi correto dizer que a sensação interiormente suprimida é projetada para fora; vemos, isto sim, que aquilo interiormente cancelado retorna a partir de fora" (p. 95). Ainda situado nos marcos da teoria do recalque, Freud a tensiona ao limite. Note-se que o fundador da psicanálise reencontra, sem o nomear, a modalidade defensiva muito mais enérgica e exitosa do que o recalcamento - a Verwerfung -, elaborada no primeiro artigo sobre as neuropsicoses de defesa. Ao leitor de De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose, de Lacan (1958/2002), não passa despercebido que é nesse ponto das reflexões freudianas que o conceito forclusão do Nome-do-Pai lança suas raízes. Do ponto de vista clínico, Freud enuncia sua principal contribuição à clínica das psicoses: "o que consideramos produto da doença, a formação delirante, é na realidade tentativa de cura, reconstrução" (p. 94) Também é curioso que Freud diga que o desligamento da libido de seus objetos cumpre-se mudo e que a reconstituição delirante dessa ligação seja ruidosa. Anuncia-se, aqui, o confronto entre pulsões de vida e de morte.

Last but not least, é no caso Schreber que Freud propõe o diagnóstico diferencial entre paranoia e parafrenia - nomenclatura proposta pelo autor como alternativa à demência precoce, de Kraepelin, e à esquizofrenia, de Bleuler -, baseado em seus pontos de fixação: na paranoia, o narcisismo; na parafrenia, o autoerotismo. E é no apêndice desse trabalho que o fundador da psicanálise faz sua primeira incursão no campo do totemismo. Schreber escritor: seu legado a Freud - e à psicanálise - é incomensurável.

 

Schreber escritor, Schreber precursor

Transmitir um nome: eis uma questão que atormenta Schreber. Não qualquer nome, mas um intimamente vinculado à escrita. No tocante ao papel da produção das memórias de Schreber, Faustino (2014) coloca:

Podemos observar que [] a escrita advém, no quadro schreberiano, como um artifício essencial, uma vez que se mostrou relevante não apenas para a exposição de suas ideias delirantes, mas, nesse mesmo feito, abriu a possibilidade de trabalho de sua paranoia. [] essa escrita põe-se como uma ferramenta através da qual suas ideias vão sendo elaboradas e reelaboradas várias vezes até o momento de publicação de seu livro. (p. 125)

Ademais, Schreber (1903/2006) oferece um testemunho de ordem crítica, que prenuncia a luta antimanicomial. Ao descrever seu sofrimento e experiências no período inicial de internação no Sanatório de Sonnenstein, o autor adiciona uma nota que contém, entre outros elementos, um questionamento implícito ao sistema psiquiátrico vigente na época, confirmando que, também na psicose, o saber se encontra do lado do paciente:

Imagino que me perguntarão por que eu não contei antes para os médicos todas essas coisas, na forma de queixas. Só posso responder perguntando se teria sido dado algum crédito à minha descrição desses fatos ligados a fenômenos de natureza sobrenatural. Consideraria um grande triunfo da minha capacidade dialética se com o presente trabalho, que já assume as proporções de uma obra científica, eu conseguisse apenas um resultado: suscitar nos médicos apenas uma sombra de dúvidas de que talvez houvesse algo de verdade nas minhas supostas ideias delirantes e alucinações. Se eu tentasse me explicar só oralmente, dificilmente poderia esperar que alguém tivesse paciência de me ouvir numa exposição demorada; menos ainda se considerariam esses pretensos absurdos dignos de uma reflexão. (p. 117)

Esta passagem mostra, ainda, a transferência que Schreber mantinha com a comunidade médico-científica: Schreber pede escuta. Para ele, esta comunidade já se configurava como um Outro mais apaziguado, quem sabe efeito do trabalho da transferência com seus médicos - não apenas com Flechsig, mas também com o Dr. Weber. Nas Memórias, lê-se que a ida para o sanatório de Sonnenstein é um importante marco: é após essa transferência que começa a organizar-se um delírio místico, que permite a Schreber reconciliar-se com um desejo rechaçado - o de ser uma mulher no coito -, e que o famoso paciente paranoico inicia a escrita da sua obra.

Jacques Lacan (1958/2002), em seu retorno a Freud, propôs, inicialmente, uma totalidade em jogo no enfrentamento do psicótico a um Outro sem barra, ilimitado em decorrência do que nomeou como forclusão do significante Nome-do-Pai. Em um momento seguinte, Lacan (1960/2002) mostrou que existe uma falta no Outro, constitutiva para todo falante, cuja "barra" apela ao inesgotável da linguagem, ao tesouro dos significantes. A transposição em texto dos profundos estados delirantes, alucinatórios e catatônicos - e o reconhecimento que podemos fazer de uma terapêutica, no uso do texto - coloca Schreber como um precursor, também, do que, nos dispositivos clínicos atuais, denominamos como oficina terapêutica de escrita.

Lacan, percorrendo os passos da pesquisa freudiana, mostrou que o sujeito das psicoses está na transferência. A questão é que a transferência para ele é massiva, quer dizer, quase total, fazendo com que o problema não seja a entrada na transferência, mas uma saída que a coloque em condições de ser transposta a um saber encarnado, por exemplo, por um analista. Schreber mostrou suas possibilidades de transferência - ainda que acidentadas; a fusão entre seu pai e irmão, o vínculo satisfatório com o Dr. Weber e a sobreposição entre o Dr. Flechsig e os deuses do seu percurso delirante. Evidentemente, aqui tratamos não da presença de uma neurose de transferência - que, de fato, para Freud, era condição de analisibilidade -, mas daquela transferência que porta um saber da ordem do inconsciente.

 

Considerações finais

A transferência de Freud com as Memórias, como vimos, possibilitou o desenvolvimento de sua noção de narcisismo. Ao mesmo tempo, com o trabalho verbal em relação ao ciúmes, à erotomania e à perseguição, Freud elucidou, gramaticalmente, o mecanismo da projeção. Freud pôde ler o inconsciente de Schreber na escrita deste texto, pois a transferência totalizante, característica da psicose, canalizou sua aparição nele. A partir daí, há uma leitura possível deste inconsciente na continuidade de sentido presente entre o devaneio de ser uma mulher no momento do coito e o delírio de emasculação para tornar-se a esposa de Deus. Portanto, Freud não apenas lançou luz ao caso, com o auxílio da psicanálise, como fez com que a própria psicanálise avançasse, a partir do texto do Presidente. Deste modo, com Schreber escritor, iniciou-se a ampliação da cena analítica tradicional, mote para que, mais tarde, Lacan pudesse avançar no âmbito de uma clínica possível das psicoses; e para que nós, clínicos, pudéssemos ampliar nossos dispositivos para além dos muros.

 

Referências

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Recebido em 24 de fevereiro de 2019
Aceito para publicação em 02 de julho de 2019

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