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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.33 no.1 Rio de Janeiro jan./abr. 2021

http://dx.doi.org/10.33208/PC1980-5438v0033n01A03 

ARTIGOS - FAMÍLIA, SOCIEDADE E CULTURA: INTERVENÇÕES TEÓRICO-CLÍNICAS

 

“No ar” e nas ruas: Pajubá e humor entre travestis do interior de São Paulo

 

“In the air” and on the streets: Pajubá and humor among transvestites from a city in São Paulo state

 

“En el aire” y en las calles: Pajubá y humor entre travestis del interior de São Paulo

 

 

Ana Paula Leivar BrancaleoniI; Daniel KupermannII

IMestre e Doutora em Psicologia pela FFCLRP/USP, Pós-doutora em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia (IPUSP) da Universidade de São Paulo (USP), Professora Assistente da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), Campus Jaboticabal, SP, Brasil. ana.brancaleoni@unesp.br
IIProfessor Associado do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Bolsista do CNPq, SP, Brasil. danielkupermann@gmail.com

 

 


RESUMO

Este trabalho pretende discutir a produção do humor entre travestis que vivenciam condições de alta vulnerabilidade social, com especial destaque para a função exercida pelo "pajubá", dialeto utilizado, inicialmente, entre travestis e, posteriormente, apropriado também por outros grupos do universo LGBTT+. Dialogaremos com excertos de entrevistas e situações observadas ao longo de um trabalho de campo desenvolvido, a partir de uma perspectiva etnográfica, com um grupo de travestis do interior de São Paulo, além de produções culturais que nos convidam a refletir sobre a questão. Enquanto proposta de interlocução teórica, assume-se também a psicanálise. Identificam-se várias dimensões do humor, entre elas: produção de modos de sociabilidade; despatologização das travestilidades; indicação do caráter performático do binarismo de gênero; transformação da angústia em riso, celebração da vida. Pelo riso, as travestis também se afirmam como sujeitos que não se resignam ao sofrimento, que não sucumbem a uma realidade desfavorável e excludente.

Palavras-chave: humor; travestis; identidade de gênero; psicanálise; pajubá.


ABSTRACT

This work aims to discuss the making of humor among transvestites who experience conditions of high social vulnerability, with special emphasis on the "pajubá", a dialect initially used among transvestites and later also appropriated by other groups in the LGBTT+ universe. We will use excerpts from interviews and situations observed, from an ethnographic perspective, during fieldwork with a group of transvestites from a city in São Paulo state, as well as cultural productions that invite us to reflect on the issue. Psychoanalysis is included as a proposed theoretical interlocution. Several dimensions of humor are identified: the production of modes of sociability; depathologization of travestilities; indication of the performative character of gender binarism; transformation of anguish into laughter, celebration of life. Through laughter, transvestites also assert themselves as subjects who do not resign themselves to suffering, who do not succumb to an unfavorable and exclusionary reality.

Keywords: humor; transvestites; gender identity; psychoanalysis; pajubá.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo discutir la producción del humor entre travestis que experimentan condiciones de alta vulnerabilidad social, con especial énfasis en el papel desempeñado por el "pajubá", un dialecto utilizado inicialmente entre travestis y luego también apropiado por otros grupos en el universo LGBTT+. Dialogaremos con extractos de entrevistas y situaciones observadas durante el trabajo de campo desarrollado, desde una perspectiva etnográfica, con un grupo de travestis del interior de São Paulo, así como producciones culturales que nos invitan a reflexionar sobre el tema. Como propuesta teórica de interlocución, también se supone el psicoanálisis. Se identifican variadas dimensiones del humor, que incluyen: producción de modos de sociabilidad; despatologización de la travestilidad; indicación del carácter performativo del binarismo de género; transformación de la angustia en risa, celebración de la vida. A través de la risa, los travestis también se afirman como sujetos que no se resignan al sufrimiento, que no sucumben a una realidad desfavorable y excluyente.

Palabras clave: humor; travestis; identidad de género; psicoanálisis; pajubá.


 

 

Introdução

A discussão aqui apresentada foi ganhando destaque a partir de observações realizadas ao longo de trabalho de campo, que teve por pretensão promover ações de promoção de saúde e cidadania junto a travestis que vivenciam condições de vulnerabilidade social. Durante cinco anos, por meio de parceria com a Secretaria Municipal de Saúde de uma cidade de médio porte do interior do estado de São Paulo, empreendeu-se um processo de investigação e intervenção junto a travestis e transexuais, especialmente aquelas que trabalhavam no mercado do sexo. Ao acompanhar esse percurso, por uma perspectiva etnográfica, chamou-nos atenção a presença frequente de piadas e de humor em meio a realidade tão adversa. Tratava-se de pessoas que viviam condições materiais precárias, marcadas por relações de exclusão bastante profundas, com baixa escolaridade e poucos vínculos familiares mantidos; contudo, os risos eram frequentes. Risos frequentes, mas também perturbadores: humor e piadas, que desestabilizavam ordens legitimadas e impostas, como também desvelavam hipocrisias, medos, preconceitos e estereótipos. Assim, riam de si e de outros. Como compreender esse movimento? Que análises seriam possíveis?

Diante disso, o presente trabalho pretende discutir a produção do humor entre travestis que vivenciam condições de alta vulnerabilidade social, com especial destaque para a função exercida pelo pajubá - dialeto utilizado, inicialmente, entre travestis e, posteriormente, apropriado também por outros grupos do universo LGBTT+. Dialogaremos com excertos de entrevistas e situações observadas ao longo de trabalho de campo, além de produções fílmicas que nos convidam a refletir sobre a questão do dialeto. Enquanto proposta de interlocução teórica, assume-se também a psicanálise.

No que se refere a produções fílmicas, serão, inicialmente, destacados dois conjuntos de vídeos, que nos chamam especial atenção em virtude da função desempenhada pelo pajubá.

 

Do GLOSSário ao Jornal Nacional: o pajubá está "no ar"

Um glossário? Um conjunto de palavras pouco conhecidas ou de sentido obscuro, contidas em um texto geralmente apresentado ao seu início ou ao seu final Assim, prosseguiremos nossa discussão dizendo de um "glossário" que apresenta termos que compõem o texto social, mas de forma obscurecida, pois contam de relações estabelecidas entre pessoas que não são reconhecidas em sua humanidade. Navegando pela internet, encontra-se o "GLOSSário", protagonizado por travestis artistas cearenses, que encenam situações em que algumas palavras do pajubá são traduzidas ao português e ganham sentido para os "não entendidos". Os dois volumes, produzidos por Fabinho Vieira, que compõe o coletivo Travestidas, despertam riso.1

Destaca-se que o próprio título já confere um sentido cômico às duas produções, indicando que não se trata de um glossário convencional, mas afirmando seu ar "glamoroso", construindo um jogo com a palavra, destacando o "GLOSS" - maquiagem labial. Portanto, um produto de uso institucionalmente feminino, mas que nomeia vídeos protagonizados por pessoas que rompem com a heteronormatividade, corpos que transitam por territórios que não seriam permitidos para aqueles que têm o pênis como genital de nascimento. Na segunda edição, inicia-se com uma música que tem como letra: "filme de puta não tem trilha sonora, não tem grana pra pagar direito autoral". Novamente, o que é socialmente pejorativo - nessa situação, "travesti puta" - comparece na criação artística como uma potência afirmada. A interdição do uso de música de autoria estabelecida, por falta de recursos financeiros, é denunciada pela criação musical que introduz o vídeo. Assim, afirma-se a travesti prostituta como sujeito criativo, que não sucumbe às adversidades da realidade vivida, mas que triunfa promovendo o riso por meio de suas criações que dizem de suas precariedades.

Nos dois vídeos, encontramos palavras e expressões como: edi, picumã, neca, aliban, aqué, odara, erê, amapô, cafuçu, passar o cheque, amapô, carne-de-lata, entre outras, que vão divertidamente demonstrando ao espectador sua ignorância sobre aquele dialeto.

Em outra série de vídeos, do canal Las Bibas from Vizcaya2, temos o "Plantão Telecurso do Pajubá". Os vídeos se iniciam com a chamada do Plantão da Rede Globo e seguem com cenas do Jornal Nacional, com seus jornalistas, entre eles William Bonner, ensinando pajubá aos telespectadores. Os jornalistas são dublados com vozes farsescas que conduzem todas as conversas por meio de expressões e termos pajubás. Assim, o pajubá invade o jornal mais assistido e influente do país, parodiando o instituído e promovendo riso ao vermos seus jornalistas pronunciando palavras como: chuca, neca e nena, introduzidas por uma frase: "Maju, vamo mostrar um pouco de cultura pra esse povo" O pajubá está "no ar", subvertendo espaços e figuras de autoridade.

Mas, qual o sentido do destaque inicialmente conferido a essas curtas produções mencionadas? Nossa aposta é que os vídeos condensam importantes convites para se problematizar o humor entre travestis, dando destaque ao dialeto pajubá em sua produção. No GLOSSário, o pajubá ganha as cores e o brilho do riso, assim como o "gloss", indicando para a sua função na produção do humor entre elas. No Plantão, "anunciam-se" a urgência e o destaque merecidos pelo dialeto. Assim, atendendo ao "chamado do Plantão", nos debruçaremos sobre ele.

 

O pajubá

Anuncia-se no Plantão: "Vou pedir a cassação de sua carteira de veada, porque, se você não sabe o que é pajubá, dá licença, né?" Assim, é como credencial de pertença Da mesma forma, logo no início das idas a campo, recebeu-se o aviso, por parte de uma delas: "Quer trabalhar mesmo com travesti, vai ter que aprender pajubá." Mas, afinal, que dialeto é esse?

O pajubá, ou "bate-bate", compõe o ethos de sociabilidade das travestis. O dialeto traz, como raiz, as linguagens praticadas pelos "membros das comunidades religiosas afro-brasileiras", designadas como "língua de santo". Ele é formado por termos que têm sua origem em algumas línguas africanas, a principal das quais é o yorubá-nagô, sobre a base fonológica e gramatical do português. Destaca-se, ainda, a significativa presença de termos metonímicos, além de palavras estrangeiras foneticamente adaptadas ao português (Borba, 2010).

Jimenez e Adorno (2009) discutem as compreensões da antropóloga nigeriana Oyeronke Oyewumi, que afirma que o yorubá não apresenta pronomes que indicam gênero, mas, sim, apontam aquele que é mais velho e o que é mais novo. Isso porque, na cultura yorubá, o organizador mais potente é a idade relativa e não o gênero. Segundo a antropóloga, a imposição de um sistema de gênero seria resultante do colonialismo, seguido do imperialismo acadêmico, o que implica no risco de apagamento e invisibilização de importantes diferenças étnico-raciais.

Assim, o pajubá se enraíza também como uma "cabula", que é um termo que resulta dos manejos dos negros para exercer sua crença, no Brasil, diante das barreiras cristãs, sincretizando elementos africanos às práticas permitidas e construindo uma nova prática cultural/religiosa, mas que permite a resistência dos elementos de sua cultura. "Cabula-se", pelo pajubá, a linguagem oficial, mediante uma inteligibilidade que escapa aos quadros legitimados da linguagem oficial. Como afirma Oliveira (2016): "formas de vidas que escapam à estreiteza da hegemonia heterossexual, o produziram como um modo de estabelecer comunicações e de produzir laços de comunidade" (p. 335).

O encontro com as línguas africanas, na composição do pajubá, se deu por meio da vivência de travestis em terreiros de candomblé e umbanda, religiões em que a homossexualidade e a travestilidade são aceitas, compreendidas também como próprias do ser humano. Segundo conta uma das travestis mais antigas e reconhecidas de Diadema, assumida como uma referência no grupo, até as décadas de 1960/1970 os espaços de socialização de travestis eram ainda mais restritos, sendo muito intensas a perseguição policial e a repressão política em relação ao grupo. Nesse contexto, os terreiros de candomblé compareciam como um dos poucos espaços de acolhimento e produção de sentimento de pertença para essas pessoas. Essa condição teria favorecido que muitas travestis "fizessem o Santo", incorporando elementos do yorubá à linguagem no universo da travestilidade. Tomando ainda o yorubá e sua gramática, esta parece possibilitar a coexistência de corpos híbridos e sexos instáveis. Isso porque é bastante flexível tanto em relação à dualidade sexo/gênero, especialmente aliando-se à religiosidade afro-brasileira, em que os orixás podem apresentar imagens e sexualidades bastante distintas daquelas dos santos e santas cristãos (Jimenez & Adorno, 2009).

Jimenez e Adorno (2009) afirmam que o yorubá, na parceria com as práticas religiosas afro-brasileiras, "constituem o berço onde a gramática se uniu à experiência mítica". Tal união teria possibilitado a existência discursiva das travestis, na medida em que lhes confere o status de legitimidade, havendo a garantia de um lugar no referencial de identificação com divindades que gozariam também da condição de trânsito entre os gêneros. Destaca-se que a possibilidade oferecida pelo recurso linguístico-gramatical como o yorubá, articulado a uma cultura religiosa que flexibiliza a posição do gênero como organizador central, participa intimamente da produção de um contexto em que a existência da travestilidade pode ser reconhecida e legitimada, o que não seria esperado em línguas latinas e nas religiões cristãs.

Pelúcio (2015) aponta para uma importante questão: o ethos construído pelas travestis traz a noite, a rua e o terreiro como espaços e sentidos, frente aos processos de exclusão social. Esse espaço de sociabilidade possui seus códigos e dialeto. "Cabula-se" o instituído e reafirma-se enquanto existente, ainda que à margem. A questão é que não simplesmente ocupam a margem, mas a constroem articulada a suas formas de existência. Assim, merecem destaque o reconhecimento do instituído e seu uso subversivo. "Cabulam-se" os poderes instituídos. Nesse sentido, vale nos reportarmos ao exemplo de Clara, conforme faremos a seguir. Assim, das telas caminhamos para a rua.

 

Desafiando o biopoder

Destaca-se, entre as travestis estudadas, o efeito disruptivo do humor frente à heteronormatividade e aos processos sociais de patologização, por provocar questionamento do binarismo de gênero, do biopoder e das autoridades socialmente instituídas. Trazemos, de início, um excerto da entrevista realizada com Clara, que assumimos como exemplar no sentido do desafio ao biopoder:

Uai, ele diz que eu nasci homem, né? Aí eu falei quê! Eu nasci atriz eu acho que quando o médico olhou e falou pra minha família: 'É um menino', eu olhei pra cara dele, pra cara do médico e falei: 'Ei, paspalho, o que é que você tá falando? Cuida da sua vida, né?' Ele diz que eu nasci homem, onde tem homem aqui? Num tem, só o Chuck, né? Já comecei atuando na hora do meu parto mesmo, né? (rindo) que o médico ficou lá falando 'É homem, é homem, é homem', eu lá: 'Que que é isso, né?' (aos risos).

Clara tinha 40 anos e era natural de outra cidade. Era paciente renal, fizera a doação de um de seus rins para uma irmã que se suicidara pouco tempo depois de realizar o transplante. Por conta dos problemas de saúde prévios, não "bombou" silicone e fazia uso de hormônios descontinuamente, mas sem acompanhamento médico adequado. Contudo, em virtude dos problemas renais, sentia que vivenciava mais dificuldades com a hormonização. Desejava manter o pênis, mas queria retirar as gônadas para facilitar a aquisição de caracteres femininos. Diante da negação do procedimento (ao longo de anos) pelo Sistema Único de Saúde, ela construiu um "plano" para a obtenção do que queria. Referia que estudou anatomia e anestesia por um longo tempo. Conseguiu bisturi e anestésico, realizou o corte das gônadas em uma situação que julgava que receberia socorro e que, no processo de reconstituição, os médicos teriam que conduzir o procedimento tal como ela desejava. Obteve sucesso e narra sua vida apresentando a cirurgia como o grande divisor de águas. Conforme relata:

Eu mesma fiz meu laboratório, eu me criei no meu laboratório, eu mesma criei o meu laboratório. Eu fui ligando uma coisa com a outra, eu sabia que existia um tipo de cirurgia que ia dar certo por causa do meu rim, então que não ia afetar meu rim, sabia que minhas taxas hormonais era x, já tinha ultrapassado muito e tava muito além e que só a cirurgia ia resolver meu caso e fazer o quê? O hospital não quis fazer Pensei, deixa eu começar que eles terminam. Eu premeditei tudo, premeditei tudo até na hora da hemorragia, né? Então na hora que eu tava indo pro centro cirúrgico Eu não tava sentindo dor porque já estava me dando muito analgésico por conta da cólica renal então daí eu vi que ia dar conta chamei a ambulância e já fui pro hospital. Aí eu consegui o que eu queria.

Poderíamos, assim, posicionar a figura da travesti, sua parodística de gênero, sua confrontação dos profissionais de saúde mental, como questionadoras e desestabilizadoras do suposto saber sobre a identidade de gênero? Seria o riso entre travestis, no contexto observado, promotor de questionamentos e possibilidades de efeitos disruptivos ao binarismo de gênero e à heteronormatividade? Retomemos o GLOSSário, o Plantão, Clara e outras tantas com as quais nos encontramos

 

GLOSSário, Plantão, Clara e outras tantas: questões postas ao binarismo de gênero

Assistindo aos vídeos mencionados, refletindo sobre o pajubá, demorando-nos na história e nas falas de Clara, colocam-se para nós questionamentos sobre o gênero e seu processo de produção.

Como afirma Butler (2013), o gênero é "o mecanismo pelo qual as noções de feminino e masculino são produzidas e naturalizadas"; entretanto, assim como é o mecanismo de produção, também pode vir a ser "o aparato através do qual esses termos podem ser desconstruídos e desnaturalizados" (p. 42). Posicionar-se-ia, assim, a ameaça representada pela "margem travesti" ao binarismo instituído?

É importante destacar que, quando nos referimos "às travestis", não as estamos compreendendo como categoria de forma a produzir homogenizações. Ao contrário, assumimos a perspectiva das travestilidades. Como afirma Pelúcio (2015), esse termo em seu plural é mais legítimo na medida em que evidencia a multiplicidade de formas de se entender e se constituir, enquanto sujeito, nessa expressão de gênero. Mesmo porque as travestis têm se referenciado em inúmeras imagens de ser homem/mulher, nas diversas relações sociais que compõem, bem como mediante veiculações de diversos modelos pelos meios de comunicação. Consideram-se, ainda, as variações regionais e de ambientes como elementos que participam da constituição dessa multiplicidade. Assim, Peres (2004) propõe o termo "travestilidades" tanto para demarcar a gama diversa de possibilidades identitárias das travestis, quanto para romper com as perspectivas mais patologizantes. A partir dessas considerações, ao longo do trabalho, permanecemos utilizando o termo travesti por uma conveniência de escrita. Contudo, destaca-se que ele deve ser lido, ao longo do texto, a partir da perspectiva das travestilidades.

Indica-se que a travesti, em suas diferentes formas de existência, zomba da sociedade heternormativa binária, especialmente da afirmação posta por um modelo expressivo de gênero, dentro do qual se pressupõe a existência de uma autenticidade essencial. Assim, a travestilidade é uma verdadeira paródia da noção de uma identidade de gênero originária, natural ou primária. Isso porque a travesti desvela o caráter artificial e performativo do gênero, falsamente naturalizado por meio de uma "ficção reguladora da coerência heterossexual" (Butler, 2013). Estaria o humor, presente entre as travestis, na composição de elementos de caráter disruptivo do ideal de gênero tomado como algo natural?

No parodismo de gênero, tem-se a abertura ao riso, impulsionado pela destituição do sentido do "normal", pelo desvelamento de sua não originalidade, revelando que não se trata de algo natural. Ao invés disso, o original comparece como cópia, marcado pela falha, frente a um ideal que não há quem possa plenamente incorporar. Nesse parodismo, o cômico é elemento componente.

No sentido de aprofundar a discussão sobre a produção e a função do humor entre elas, buscamos as lentes da psicanálise. Humor, travestis, psicanálise quais os diálogos possíveis?

 

Humor e travestilidades: construindo diálogos

Ousamos uma aproximação dessas reflexões acerca das paródias de gênero às considerações de Kupermann (2010) quando, em sua análise sobre a metapsicologia do humor, afirma o seu potencial perturbador do status quo. Destaca-se a possibilidade do humor de subverter fronteiras estabelecidas pelo ethos oficial, assim como hierarquias que se erigem na estrutura social. Destarte, entendemos que a psicanálise pode trazer contribuições importantes para a compreensão do problema proposto para o presente trabalho.

É apenas em 1927, mesmo ano de lançamento de O futuro de uma ilusão, obra de grande reconhecimento público, que Freud retoma, em um breve ensaio, o tema do humor. Diferente de O futuro de uma ilusão e de O mal estar na civilização, onde comparece uma visão bastante pessimista acerca da natureza humana e dos caminhos trilhados pela humanidade, no texto O humor o autor sinaliza para destinos menos nefastos, ampliando, inclusive, suas compreensões acerca do superego - apresentado, nessa ocasião, também como a possibilidade de um estado de espírito afável (Kupermann, 2003). Destaca-se ainda, ao final de sua escrita, que: "temos muito a aprender sobre a natureza do superego" (Freud, 1927/1996, p. 169).

Nesse trabalho, Freud retoma questões já apresentadas no texto Os chistes e sua relação com o inconsciente (1905/1996), no qual, segundo o próprio autor, a questão do humor foi analisada apenas a partir do ponto de vista econômico, em que se buscou demonstrar que o prazer obtido por meio do ato humorístico surge da economia de energia em relação ao sentimento.

Prosseguindo a análise, Freud indica duas possibilidades de realização do processo humorístico, a primeira por uma pessoa isolada, e outra que se daria entre duas pessoas, das quais uma não toma parte do processo humorístico, mas torna-se objeto de contemplação humorística. Ainda assim, destaca que o principal elemento a ser compreendido é o humorista. Isso porque aquilo que ocorre entre os participantes ou ouvintes não passa de mero eco ou reprodução do ocorrido com o humorista.

Freud posiciona o humor em grau mais elevado na comparação com o cômico e com o chiste, o que, segundo ele, se deve ao triunfo do narcisismo, "na afirmação vitoriosa, da invulnerabilidade do ego" (1927/1996, p. 166), que se recusa a ser compelido a sofrer. Assim, o mundo externo e suas vicissitudes convertem-se em ocasiões para obter prazer, fato que configura o humor como "rebelde", não resignado à crueldade das circunstâncias reais.

O humor apresentaria, portanto, duas características: a rejeição das reivindicações da realidade e a efetivação do princípio do prazer a fim de escapar da compulsão para sofrer. O vienense considera ainda que o humorista se comporta frente aos ouvintes como o adulto diante de crianças nas situações em que o primeiro sorri dos interesses e sentimentos triviais que parecem enormes para os infantes. Destaca-se que esse posicionamento foi encontrado, em muitos momentos, na relação com as travestis que, vivendo experiências de abjeção, constroem formas de sobrevivência e resistência. Adiante, nos deteremos mais profundamente sobre a posição de abjeto ocupada por elas, assim como as resistências aos efeitos mortificantes de tal posição.

 

O abjeto e o grotesco: resistências aos efeitos mortificantes dessa condição

Segundo Butler (2013, p. 191), o abjeto é o que foi expelido, descartado tal como excremento "tornado literalmente 'Outro'". Parece uma expulsão de elementos estranhos, mas é precisamente por meio dessa expulsão que o estranho se estabelece. A construção do "não eu" como abjeto estabelece fronteiras do corpo, que são também os primeiros contornos do sujeito.

As travestis são dotadas de um corpo que habita o espaço da dessemelhança e da não identidade, o que as torna repulsivas porque fraturam a suposta estabilidade e unidade do corpo-padrão dentro dos pressupostos heteronormativos. Tomando por base as considerações de Butler (2013), a travesti ocupa o lugar do abjeto. Destaca-se que o Brasil segue como país do mundo com o maior número de mortes de travestis e transexuais, conforme aponta o dossiê Assassinatos e violência contra travestis no Brasil em 2018, organizado por Benevides e Nogueira (2019). O país responde por 47% das mortes notificadas.

Assim, o estar fora da ordem hegemônica é assumido como um estado sórdido e desordenado da natureza, o que se dá mediante o pretenso apagamento social do caráter performativo do gênero, atribuindo-lhe uma estabilidade representada por um binarismo, assumido como originário e universal. Trata-se de um regime que identifica como "perigosos" aqueles que se situam às margens dele. E onde estaria o perigo? Que ameaça tais seres abjetos podem constituir para o instituído? Como aponta Butler (2013), é justamente nas margens que se encontra a maior vulnerabilidade dos sistemas sociais, pois elas denunciam aquilo que foi apartado, mas que, mesmo assim, compõe o humano. Daí o perigo que os sujeitos abjetos representam. Assim, pauta-se a relação entre o interno e o externo em que, tendo-se por referência a passagem excrementícia como modelo pelo qual se dão as práticas de diferenciação das identidades, o outro, o ser abjeto, vira "merda". O ideal social seria que o corpo normatizado atingisse, em toda a sua superficialidade, uma impermeabilidade, constituindo-se numa perfeita vedação do eu e do outro/abjeto. Contudo, tal impermeabilidade é impossível de ser alcançada.

O humor, em seu caráter questionador de toda e qualquer autoridade, produzido e enunciado por seres abjetos, pode, quiçá, endereçar importantes questões acerca da heteronormatividade instituída sobre relações de poder. As travestis nos contam sobre uma posição social de clandestinidade, ao passo que também denunciam que esse lugar do "estranho" diz daquilo que também é entranho, do recalcado que não pode socialmente comparecer às luzes do dia. Como afirma Freud: "Uma experiência estranha ocorre quando os complexos infantis que haviam sido reprimidos revivem uma vez mais por meio de alguma impressão, ou quando as crenças primitivas que foram superadas parecem outra vez confirmar-se." (1919/1996, p. 226)

Frente ao monstruoso, há uma incômoda proximidade entre o horror e o riso. Vernant (1988) aponta que, no monstruoso, ocorre uma imbricação daquilo que se toma como distinto e apartado, guardando a ambivalência entre o terrificante e o grotesco, assim como a oscilação entre um e outro.

A figura da travesti, configurada como monstruosa, pode produzir efeitos de estranhamento capazes de romper o imobilismo e repor o movimento na vida social ao desestabilizar códigos e certezas que organizam e ditam a moral cotidiana, principalmente a naturalização do binarismo de gênero. O riso grotesco das travestis, assim como aquele promovido nos outros por sua figura, traz à luz e positiva aspectos que socialmente são lançados no escuro, posicionando-se, portanto, em um movimento distinto ao da repressão e da angústia de castração.

O uso do pajubá, por sua vez, pode ilustrar a resistência à condição de abjeto e aos seus efeitos mortificantes. Nas observações de campo, assim como podemos constatar nos vídeos, o dialeto é utilizado, com frequência, na promoção do riso sobre elas e entre elas. Trata-se de uma forma de expressão que permite o reconhecimento - entre elas e também para outros - de questões difíceis, conferindo a sensação de laço social e de pertença grupal. Como disse Clara:

É… já é uma risada o jeito que eu escolho pra falar em si. Entre a gente, a gente fala, no pajubá… já dá um tom, né? Com outras pessoas que são minhas amigas, mas não são entendidas, né? Elas já sabem, né? Comecei a conversa com pajubá, vem risada, mesmo que for rir pra não chorar, né? Nem sempre o babado é bom. Mas rir melhora, né?

Assim, a benevolência da instância ideal e o reconhecimento da alteridade presente no humor favorecem o bendizer da vida e a possibilidade de um laço afetivo não traumatizante com o outro (Kupermann, 2003). Por outro lado, o uso do pajubá também se presta a delimitar o distanciamento desejado daqueles que não são "entendidos". Ao longo do trabalho de campo, uma palavra era de uso recorrente, mas não compreendíamos claramente seu sentido. Referiam, em várias situações, que estavam "brocadas". Diziam frases como: "a sociedade broca a gente", "assim você me broca", "somos brocadas", "se é brocado, não tem jeito". O interessante é que o esforço de compreensão do sentido dessa expressão era freado por um riso e um dizer complementar: "pode ser". Frente à pergunta do que era "brocado", respondiam com outra questão: "o que você acha que é?" Contudo, tratava-se de um limite que não encerrava ou impedia a conversa. Constituía-se, ao longo dos encontros, um divertido "jogo de adivinha", em que o sentido mais exato não era revelado, mas prosseguia-se a conversa a partir dos sentidos trazidos pela pesquisadora - alguém "de fora". Assim, compuseram as conversas, vários sentidos atribuídos por esse "agente de fora" à expressão conhecida e manipulada por elas. Brocado seria fixado ao chão, impedido de se movimentar? Seria perfurado, esvaziado, carcomido? Ao final de cada tentativa, emergia, com frequência, um riso partilhado entre elas, seguido de um "pode ser também" e, assim, prosseguiam falando desse "novo" brocado, aquele do presente momento.

Assim como no GLOSSário, porém, agora sem traduzir ao leigo o sentido da palavra em pajubá, há a promoção de um riso reafirmando um saber que possuem e revelando a ignorância de outros que, socialmente, ocupam uma posição mais reconhecida e privilegiada. Jimenez e Adorno (2009), na pesquisa que realizaram com travestis, destacam, justamente, o uso da linguagem na produção de aproximações e afastamentos. Relatam momentos em que o uso do pajubá e de gírias incompreensíveis dava-se justamente com a função de demonstrar o domínio sobre o território, assim como a pouca disponibilidade para qualquer tipo de aproximação. Em outros momentos, contudo, deparam-se com a disposição das travestis para traduzir expressões e palavras do seu universo.

Diferente da relação estabelecida com a palavra "brocado", quando outras expressões também não eram compreendidas inicialmente pelos "de fora" - "não entendidos" -, estavam dispostas a explicar. Frequentemente, usavam expressões e palavras em pajubá que eram traduzidas frente a uma incompreensão do seu sentido. Como em uma conversa com um grupo em que diziam da necessidade de "aquendar a neca". No momento da tradução, o riso conjunto "Você não sabe o que é aquendar a neca? Nem pode, você não tem neca." Frente ao dito, o riso era partilhado entre todos - os "de dentro" e os "de fora".

Assim, permitiam a aproximação, como também constituíam diferenciações mediadas pelo riso que promovia o laço social. Como afirma Minois (2003), com referência ao trabalho Os chistes e sua relação com o inconsciente, de Freud: "Nem todo mundo tem esse espírito; isso requer aptidões particulares, ligadas à necessidade de comunicar. Aliás, a palavra espirituosa exige a cumplicidade do outro; trata-se de um gesto social, do qual uma das qualidades essenciais é a concisão." (1927/1996, p. 526)

De forma concisa e precisa, estabeleciam-se limites entre "entendidos" e "não entendidos" reafirmando a existência de sua linguagem, seus sentidos e formas de relação com o gênero e com o corpo que podem existir/resistir. Borba (2010) salienta o pajubá como uma importante e frequente ferramenta linguística na negociação de suas posições de sujeito, qualificando aqueles que serão, ou não, seus interlocutores, na medida em que seu uso por pessoas travestis e não travestis diminui as diferenças identitárias, aproximando aqueles que interagem.

Como afirmam Borba e Ostermann (2008): "A corporificação é o que habilita os/as transgêneros a construir performances de gênero que contrastam com suas determinações biológicas através do uso de seus corpos e linguagem" (p. 410). Clara conta que se diverte vendo a cara de pessoas que as discriminam, quando nessas situações começa usar termos do pajubá. Relatou, em entrevista: "Precisava ver a cara dela ficou me encarando feio, olhando de cima em baixo na fila. Daí eu disse: 'ahhh amapô vai perder picumã' a cara que ela fez! Ela não entedia fiquei rindo."

Outra questão que merece destaque é o manejo do gênero no uso do português. Uma observação realizada em uma casa/pensão é exemplar. Estávamos na sala quando a travesti cafetina voltou a falar da situação de conflito que vivia com um irmão. Notava-se que, quando se referia a si na relação com os irmãos e com o pai, usava o gênero gramatical masculino. "Meu pai me disse: 'filho cuida do seu irmão que é um descabeçado, não deixa ele ficar largado na sarjeta'." Quando voltava a falar de situações do cotidiano de sua casa, na relação com "as outras meninas", referia-se a si no feminino. Borba e Ostermann (2008) descrevem o manejo do masculino e feminino gramaticais por travestis. Segundo relatam, o masculino gramatical é utilizado em contextos e funções interacionais bastantes específicas, tais como nas relações familiares, para demarcar momentos de suas vidas anteriores às transformações corporais, na referência a outras travestis com as quais não se identificam.

Assim, quebram fronteiras no que se refere ao gênero, ao léxico, à gramática. Por meio do humor e do uso da linguagem, produzem diferenciações entre elas e outros/as, promovem o rebaixamento de figuras de autoridade Carnavalizam? Convidemos Bakhtin para nos auxiliar no prosseguimento de nossas discussões.

 

Bakhtin e a carnavalização: quebra das fronteiras e rebaixamento das figuras de autoridade

Bakhtin (2013), em suas análises sobre a cultura popular na idade média e no renascimento, apresenta a figuração da travesti, aquela que era característica daquele contexto, com relevância. Como afirma o autor, o mundo cômico popular constitui-se como paródia carnavalesca daquela vida originária, sendo mesmo o seu "revés". Trata-se de um riso que escarnece a todos, que não respeita hierarquias e que abarca burladores e autoridades. Assim, com seu tom festivo, constitui-se um riso de caráter utópico que se erige contra todas as formas de autoridade, expressando e conservando a ambiguidade da condição humana. Nesse sentido, baixo e alto corporal se imiscuem, assim como vida e morte, início e fim, positivo e negativo. Dá-se, portanto, nesse sistema de imagens da cultura popular - o realismo grotesco -, uma relação distinta também com o princípio material e corporal que comparecem numa dimensão universal, festiva e utópica.

Como afirma Bakhtin: "O cósmico, o social e o corporal estão ligados indissoluvelmente numa totalidade viva e indivisível. É um conjunto alegre e benfazejo" (p. 17). Na carnavalização do mundo, uma figura emblemática é a velha grávida que ri e promove o riso. No realismo grotesco, a morte nada mais é do que uma mulher grávida e os perigos do mundo, na visão carnavalesca, são convertidos em "espantalhos cômicos" (Kupermann, 2010).

Nessa relação estabelecida com o corpo e sua representação, Bakhtin destaca a contradição privilegiada nas imagens ambivalentes, disformes, monstruosas e horrendas da "vida cotidiana preestabelecida e complexa" quando as percebemos através dos parâmetros da "estética clássica". Dessa forma, são imagens que se contrapõem àquelas do corpo humano perfeito e bem acabado, maduro e plenamente estável. Ao contrário, no corpo grotesco não há nada estabilizado ou harmônico, e justamente nessa ambivalência se daria a revelação da vida, porque se trata de um corpo que não se encontra isolado do mundo ou imune à passagem do tempo, mas que se autoriza a ultrapassar os seus próprios limites, inclusive anatômicos, sendo "eternamente criado e criador" (p. 23). Nesse contexto, tem-se, em certa medida, uma liberação, ainda que de caráter provisório, da verdade dominante, assim como do regime estabelecido e vigente. Suspendem-se temporariamente as relações hierárquicas, privilégios, regras e tabus.

Bakhtin (2013) refere-se também ao vocabulário e gestos da praça pública na cultura popular da Idade Média. Segundo o autor, esses promovem a constituição de uma linguagem carnavalesca típica, porque não respeitam restrições, liberam os sujeitos das normas instituídas de coerência, decência e etiqueta, assim como das relações hierárquicas, efetivando, na praça pública, uma maneira de comunicação peculiar. Dessa forma, constitui-se uma linguagem para além da linguagem oficial com potencial de desestabilizar o instituído. Não temos a pretensão, que seria leviana, de igualar o pajubá ao vocabulário da praça pública; ressaltamos, porém, que também entre travestis, existe um dialeto que está para além da linguagem oficial e que guarda seu potencial desestabilizador.

Dialogando com a obra de Bakhtin (2013) e suas compreensões sobre o realismo grotesco e a percepção carnavalesca do mundo, destacamos a potência da carnavalização de subverter as fronteiras estabelecidas pelo ethos oficial, assim como as hierarquias que se erigem na estrutura social. Na "festa", cabem a ambivalência, a metamorfose, a aproximação da vida e da morte, o comparecimento do sentido material e corporal, e a própria agressividade é componente do movimento de regeneração. Nossa aposta é que "o trabalho de desidealização, junto à possibilidade de estabelecimento de modos inéditos de sociabilidade, promovidos pelo humor, nos autoriza a pensar que não desaprendemos de todo a rir" (Kupermann, 2010c, p. 205), mesmo que o individualismo e o isolamento narcísico venham na contramão dessa condição.

Cogita-se, então, a possibilidade de uma comunidade em que o humor poderia vir a ser um meio para se evitar as idealizações, que são totalitárias, possibilitando que "os órfãos" partilhem, além de seu reconhecimento de orfandade, também a arte, a ciência e outras fruições, em um processo em que a lucidez e a ludicidade encontram-se enredadas (Kupermann, 2008).

Aproximamos o corpo da travesti do corpo grotesco bakhtiniano, marcado pela ambivalência, instabilidade e incompletude, que ultrapassa os limites, inclusive aqueles de ordem anatômica: corpo criado e criador. Trata-se, portanto, de uma produção contínua de um corpo que questiona e rompe com as concepções de acabamento, perfeição, permanência e eternidade. Convida, assim, para a suspensão, mesmo que provisória, das verdades absolutas, privilégios, regras e tabus da ordem vigente. Portanto, a própria condição da travesti, em sua parodística de gênero, constitui um escárnio à ordem heteronormativa, que prega uma relação naturalizada e originária entre genital, desejo e gênero. Como afirma sarcasticamente uma delas "se dizem que sou homem só porque nasci com pau, porque querem, me prendem se eu andar sem camisa na rua, mostrando os meus peitões uhuu". Como também exemplificado por outra fala: "o que eles querem mesmo é a Eva no corpo de Adão" e "nós temos o melhor da Eva e o melhor do Adão".

Em uma conversa com um grupo, riam: "você já ouviu o ditado: 'quem desdenha quer comer'? De dia a maricona olha e diz olha: 'que veado nojento' mas à noite o que você escuta é: 'como você é linda'." Observaram-se vários momentos em que brincavam com sua condição corporal, tão rechaçada socialmente por romper com o binarismo de gênero, com frases jocosas como "somos total flex", "aqui o cliente tem a versão completa", "dois em um". Clara, por exemplo, conta-me sobre o seu "truque":

O truque da minha cirurgia é eu falar pras pessoas assim, né, eu Eu fui parada na rua pelo cara da USP, o cara me olhou assim e disse: "você não é mulher?" Eu disse "Não, eu nasci com os dois". "Não acredito". E aí… esse cara da USP disse: "Gente, eu quero ver, deixa eu ver". Daí ele me levou no estacionamento da USP, porque tinha o selo da USP, onde trabalha e eu mostrei e ele falou "eu não acredito". Ele era da USP viu professor (ria) Pensei: deu certo, que bom!

Remetemo-nos às considerações de Minois (2003, p. 96) sobre o riso grotesco que "incide sobre a própria essência do real que perde sua consistência. É uma verdadeira desforra do diabo, uma vez que ele pulveriza a ontologia, desintegra a criação divina, reduzida ao estado de ilusão". Dessa forma, ele constitui a constatação do "não-lugar", movimento que reduz "o ser ao absurdo e à aparência".

Chamou-nos a atenção também a repetição enfática, entre risos, da informação de que a pessoa com a qual saíra e que ficara curiosa sobre sua genitália era "da USP". Ser da USP, na cidade, é assumido como um diferencial que confere status e respeito. O movimento de Clara nos aproxima do princípio de rebaixamento que se apresenta como outra face da carnavalização. Questionam-se, assim, os lugares do poder e da hierarquia: "O riso ambivalente implica o rebaixamento, do mesmo modo que a agressividade é parte do movimento de regeneração, e não é difícil perceber o motivo pelo qual as figuras da autoridade, que detêm a função de proteção e de regulação da vida social, são seus alvos privilegiados." (Kupermann, 2010, p. 193)

Observamos, ainda, o esforço para a desidentificação, pelo humor, com o lugar do abjeto, assumindo sua voz e denunciando hipocrisias da sociedade heteronormativa. Por esse movimento, o "poder da realeza do binarismo de gênero" é minorado, e são expostas suas fragilidades. Para que isso seja possível, é necessário romper com as idealizações e ser capaz de rir de si mesmo.

 

A desidealização e a potência do rir de si mesmo

O humor visa a preservar a potência libertadora da desidealização; no caso por nós analisado, a libertação da onipotência da heteronormatividade, que pretende responder e enquadrar toda possibilidade de humano em uma equação de congruência entre genital de nascimento, orientação do desejo e gênero.

Ao longo das observações, as travestis afirmavam a dureza da "pista de batalha". Referiam que a noite "não era mais a mesma" e traziam relatos de experiências muito doloridas no trabalho no mercado do sexo. Contudo, como uma delas textualmente afirmou: "A gente reinventa, se não ri, tá morta pra enfrentar a dureza tem que fazer até a tristeza pular de alegria". Reportamo-nos às considerações de Minois (2003), evocando Nietzsche. Segundo o autor, o sofrimento profundo do homem impele à necessidade de invenção do riso. Assim: "é porque temos consciência de nossa condição desesperada que podemos rir seriamente, e esse riso nos permite suportar essa condição" (p. 518).

Laurence, em resposta à minha pergunta sobre a vivência de preconceito, respondeu rindo: "Meu amor, se você for ligar pra preconceito você não sai na rua (ria também da minha pergunta). A gente ri, faz piada do outro também". Constata-se, assim, entre o grupo, o reconhecimento da condição de excremento, que lhes é atribuída socialmente. Referiam-se à dificuldade de frequentar lugares públicos e ter acesso a direitos como a saúde, por exemplo. Diziam dos olhares das pessoas para elas e completavam com comentários geradores de risos. Como referiu uma delas: "Me olham como um dragão, sou mesmo um bicho poderoso Uhhuuu". Na conversa em grupo, outra prosseguia "cuidado com o Dragão, viu perigosa!".

O humor que promove a desidealização na vida social caracteriza-se pela capacidade do sujeito rir de si mesmo, de suas próprias ilusões de onisciência e onipotência, reconhecendo sua precariedade, falibilidade e finitude (Kupermann, 2017). O humor implica, portanto, uma ultrapassagem narcísica. Observa-se, entre o grupo (o que também comparece nos vídeos), a indicação freudiana de que o humor opera como um instrumento que possibilita o prazer mesmo que haja dores e dificuldades passíveis de angustiar o sujeito. Assim, o humor suplanta os afetos penosos e sua evolução no sentido da mortificação do sujeito.

Ao referir-se ao lugar social das travestis, diziam que para a sociedade "travestis não eram da terra, talvez em outro planeta pudessem existir". Apontavam o medo que as pessoas tinham das travestis. Como uma deles comentou em tom jocoso: "Quem tem medo de travesti? Em alguns lugares até assombração tem medo e foge da gente." Fala acompanhada do riso do grupo. Nesse contexto de produção do humor, ocupam concomitantemente a posição da criança e do adulto, conforme indica Freud (1927/1996). Pela ação de um superego benevolente, podem olhar para a realidade como uma brincadeira infantil sobre a qual é possível uma pilhéria. Como afirma Minois, dentre as defesas psíquicas contra a dor, o humor é "a arma mais sublime porque, ao contrário de outras, mantém a saúde psíquica e o equilíbrio e é fonte de prazer" (2003, p. 527).

Segundo Freud, há no humor um triunfo do narcisismo primário "na afirmação vitoriosa da invulnerabilidade do ego" (1927/1996, p. 166), que se recusa a ser compelido a sofrer. Assim, o mundo externo e suas vicissitudes convertem-se em ocasiões para obter prazer, fato que configura o humor como "rebelde", não resignado à crueldade das circunstâncias reais. Com a rebeldia do humor, pela não resignação ao instituído, as travestis resgatam a potência de ser o que são. Esse movimento seria possível por um superego afável, presente na condição de humor, em contraposição ao superego sádico, próprio do masoquismo, que não permite ao ego ajustar os elementos do mundo externo de forma que lhe seja satisfatória. É importante ressaltar, contudo, que, para Freud, o humor não caracteriza uma ilusão defensiva, porque ele não é alheio à realidade, de forma que não cria um universo que lhe seja próprio, mas, ao invés disso, estando em contato íntimo com a realidade, reajusta prazerosamente os elementos do mundo. Dessa maneira, conforme observamos nas produções humorísticas de nossas travestis, o humor não constitui uma contraposição àquilo que é sério, mas uma alternativa "a uma realidade mórbida criada por uma concepção de mundo na qual princípio de realidade e princípio de prazer encontram-se inelutavelmente dissociados" (Kupermann, 2003, p. 93).

Nesse sentido, ganha destaque a tarefa ímpar das travestis de construir sua erótica, de impor seus caminhos de satisfação libidinal, de obter prazer e de realizar seus desejos. Tarefa ímpar que não se coaduna com modelos previstos de scripts para categorias, ou a concepções que determinam e fixam modos de ser e estruturas, a partir de reduções nosológicas dos sujeitos. No humor, tem-se o riso do órfão, daquele que não tem mais as garantias de entidades terrenas ou divinas poderosas e oniscientes, mas que, justamente por isso, está fadado a criar seu próprio caminho, partindo de seu desamparo, assim como formas de sociabilidade para compartilhá-lo com seus companheiros que se encontram na mesma condição (Kupermann, 2003).

Destaca-se, contudo, que essa não é uma condição permanente entre as travestis referidas. Encontramos situações em que o entusiasmo e o reconhecimento da alteridade perdem sua intensidade frente a formações grupais em que se sobressai a força de atração promotora de patologias sociais nas quais impera a saudade renitente de um pai onipotente, produzindo processos de idealização, empobrecimento erótico, visando a combater o desamparo via submissão aos imperativos ditados pelos ideais grupais, nesse caso, da heteronormatividade. Assim, nessas ocasiões, reafirmam e se fixam aos ditames que as oprimem, ou seja, o posicionamento de que deve haver uma correlação absoluta e necessária entre genital de nascimento, gênero e orientação do desejo, conforme se prevê socialmente. Nos momentos em que o binarismo e a heteronormatividade se repõem, o humor e a rebeldia criativa desaparecem, dando lugar à manutenção e à reprodução de ideais socialmente valorizados, ainda que violentando o sujeito.

 

Por uma síntese? As múltiplas funções do humor

O riso entre as travestis compareceu, aos nossos olhos, indicando as seguintes vertentes: produção de modos de sociabilidade; despatologização das travestilidades; indicação do caráter performático do binarismo de gêneros; transformação da angústia em riso; celebração da vida.

No riso, que participa da constituição do laço social entre as travestis, destaca-se a função exercida pelo pajubá, "língua de origem de santo", que traz em sua história e uso o ethos travesti, assim como os sentidos complexos atribuídos à rua e ao terreiro, locais de sociabilidade em que aquilo que não coube nas famílias/casas, escolas, consultórios, pode ser expresso e aceito. Na gira do terreiro e na pista de batalha, as travestis têm suas existências legitimadas. Assim, é frequente a presença do pajubá promovendo o riso, que muitas vezes só pode ser partilhado entre elas e aqueles que se apropriaram do dialeto, porque são "da mesma paróquia" (Bergson, 1987). Por meio do riso, também, se afirmam como sujeitos que não se resignam ao sofrimento, que não sucumbem a uma realidade desfavorável, que assumem os seus corpos como território de busca por expressão de suas identidades. O humor é "rebelde"; assim, é possível triunfar sobre o sofrimento e reafirmar sua potência. Por meio do riso, questiona-se a heteronormatividade, o biopoder, os lugares sociais reconhecidos, o feminino e o masculino, os diagnósticos médicos e psicológicos e, inclusive, a própria psicanálise e a nós, psicanalistas.

 

Referências

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Recebido em 15 de agosto de 2019
Aceito para publicação em 12 de novembro de 2019

 

 

1 GLOSSário das bichas 1 e 2. https://www.youtube.com/watch?v=oaUL7i_Ln4I https://www.youtube.com/watch?v=ieX-wJuiH4Q (acessado em 09/08/2019).
2 Las Bibas from Vizcaya - Plantão Telecurso do Pajubá. https://www.youtube.com/watch?v=9fB9YUh4N7g (acessado em 09/08/2019).

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