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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.33 no.1 Rio de Janeiro jan./abr. 2021

http://dx.doi.org/10.33208/PC1980-5438v0033n01A09 

ARTIGOS - FAMÍLIA, SOCIEDADE E CULTURA: INTERVENÇÕES TEÓRICO-CLÍNICAS

 

Corpo e finitude: Imagem corporal e restauração narcísica

 

Body and finitude: Body image and narcissist restoration

 

Cuerpo y finitud: Imagen corporal y restauración narcisista

 

 

Anna Carolina Lo BiancoI; Juliana Castro-ArantesII

IPhD em Psicologia, Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), RJ, Brasil. aclobianco@uol.com.br
IIDoutora em Psicologia, Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. julianacastroarantes@gmail.com.br

 

 


RESUMO

Este artigo investiga a questão das alterações do corpo e o que elas suscitam em termos das intervenções clínicas que se podem estabelecer a partir daí. De início, atém-se à operação que instaura a imagem corporal e à sua dimensão de operação constituinte do sujeito. Em seguida, procura situar os efeitos das alterações das imagens corporais sobre o sujeito, justamente este que é sujeito ao corpo que o constitui como tal. Nesse ponto está colocada a questão dos recursos terapêuticos que podem ser usados na clínica com pacientes que sofreram alterações da imagem corporal, no sentido de restaurar a operação que constitui e mantém a imagem corporal e o narcisismo, no que estes tocam no problema essencial para a psicanálise, que é o desejo do sujeito. O texto trata, pois, do encontro com o corpo adoecido, com os limites que ele impõe ao vivente, e à clínica que daí tem a chance de ser instaurada - clínica que, visando ao sujeito do desejo, não deixa de ser comandada pelo que está implicado de essencial nela, que é a questão do ato que o faz surgir como sujeito.

Palavras-chave: corpo; finitude; imagem corporal; desejo; sujeito.


ABSTRACT

This article investigates the matter of body changes and what they raise in terms of clinical interventions which can be established from that. Initially, it is focused on the operation that establishes the body image and its dimension of a constituent operation of the subject. It then seeks to situate the effects of changes in body image on the subject, precisely the subject that is subject to the body that constitutes it as such. At this point the question is raised of the therapeutic resources that can be used in the clinic with patients who have suffered alterations of the body image, in the sense of restoring the operation that constitutes and maintains the body image and narcissism, inasmuch as they touch on the essential problem for psychoanalysis, which is the subject's desire. The text thus deals with the encounter with the sick body, within the limits that it imposes on the living, and the clinic that has then the chance of being established - a clinic that, aiming at the subject of desire, is constantly concerned with what is involved of essential in it, which is the question of the analytical act that makes it appear as subject.

Keywords: body; finitude; body image; desire; subject.


RESUMEN

Este artículo investiga la cuestión de las alteraciones del cuerpo y lo que ellas suscitan en términos de las intervenciones clínicas que podrán ser establecidas a partir de ahí. En principio, se atiene a la operación que instaura la imagen corporal y su dimensión de operación constituyente del sujeto. En seguida, busca situar los efectos de los cambios de las imágenes corporales sobre el sujeto, justamente éste que está sujeto al cuerpo que lo constituye como tal. En este punto se plantea la cuestión de los recursos terapéuticos que pueden ser usados en la clínica con pacientes que sufren alteraciones de la imagen corporal, en el sentido de restaurar la operación que constituye y mantiene la imagen corporal y el narcisismo, en lo que estos tocan en el problema esencial para el psicoanálisis, que es el deseo del sujeto. El texto trata, pues, del encuentro con el cuerpo enfermo, con los límites que él impone al viviente, ya la clínica que de ahí tiene la oportunidad de ser instaurada - clínica que, visando al sujeto del deseo, no deja de ser comandada por lo que está implicado de esencial en ella, que es la cuestión del acto que lo hace surgir como sujeto.

Palabras clave: cuerpo; finitud; imagen corporal; deseo; sujeto.


 

 

Introdução

A questão das alterações da imagem do corpo e do que elas suscitam em termos das intervenções clínicas e terapêuticas que podem ser estabelecidas a partir de sua ocorrência constitui o objeto deste artigo. Para ressaltarmos o que está implicado nessas alterações, nos referiremos à operação que instaura a imagem corporal e à sua dimensão de operação constituinte do sujeito - operação constitutiva da imagem corporal que se encontra afetada quando da doença, como no câncer por exemplo. Trata-se então de "restaurar" tal imagem ou, pelo menos, de dar condições mínimas para que o sujeito possa vir a lidar com as alterações muitas vezes mutilantes e irreversíveis que lhe afetaram.

Neste artigo nos valeremos de dois textos princeps de Lacan (2006a, 2006b), uma vez que não é nossa intenção acompanhar seu trabalho com o corpo, a imagem e a constituição do sujeito em toda sua extensão. Privilegiaremos antes a demonstração de que há na operação de constituição da imagem corporal o que podemos identificar como uma estrutura de precipitação cujo efeito é o sujeito. Desenvolveremos esse ponto mais adiante, contando inclusive com passagens de um caso clínico que nos auxiliarão no desenvolvimento do argumento.

Estaremos, então, com a questão dos recursos que podem ser usados e das intervenções terapêuticas que podem ser feitas na clínica com pacientes que sofreram alterações da imagem corporal, no sentido de restaurar a operação que constitui e mantém a imagem corporal e o narcisismo, no que tocam na questão essencial para a psicanálise, que é o desejo de sujeito.

Temos assim delineada a problemática na qual se insere este texto, que é a do encontro com o corpo que sofreu alterações, com os limites que ele impõe ao vivente e à clínica que daí se tem a chance de instaurar - clínica que, visando ao sujeito do desejo, não deixa de ser comandada pelo que nela há de essencial, que é a questão do ato que o faz surgir como sujeito.

 

Corpo, imagem e constituição do sujeito - a estrutura de precipitação

Partimos da conceituação de corpo em psicanálise; corpo não como o entendido com as lentes da biologia, da anatomia ou da fisiologia. As concepções derivadas desses conhecimentos certamente têm lugar no que cada um entende por seu corpo próprio, mas outra concepção se introduz com a obra de Freud, trazendo novas condições para sua abordagem, com consequências cruciais para a maneira de se entender o humano em suas relações com o outro e nas vicissitudes de sua constituição como ser de fala.

Freud (1905/1996) concebe um corpo erógeno cujos órgãos, investidos de libido, ganham contornos especiais que respondem aos investimentos. E falar de libido, nesse ponto, é falar de pulsão sexual e significante (Freud, 1915a/1996, 1923/1996; Lacan, 1964/1985). É do investimento pulsional, isto é, de uma fala resultante do endereçamento feito ao futuro falante, que o organismo, no nascimento ainda massa amorfa, tornar-se-á corpo. Corpo, portanto, devido a esse investimento, ou seja, corpo cujo funcionamento dependerá, desde o primeiro minuto, da palavra que lhe é dirigida e do lugar que lhe é atribuído por outrem (Freud, 1895/1996). É a partir daí que o sujeito se faz corpo e viverá com ele, para ele e nele, nisso que, se podemos chamar de uma "relação", está longe de comportar as duas dimensões de corpo e alma, ou corpo e mente, como estamos habituados a conceber em nossa tradição cristã (Melman, 2009). É, pois, o corpo assim definido, constituinte do sujeito, que nos dará a base para avançarmos no presente escrito.

O corpo se constitui na relação com o outro, e Lacan (2006a) é quem dá a teorização mais precisa da operação aí implicada. Importante, entretanto, enfatizar que se trata de uma operação, uma vez que estamos quase sempre tomados pela ideia comum de que nascemos com um corpo composto por cabeça, tronco e membros. Assim, já dado.

Estudos sobre as experiências psicóticas podem ser aqui mencionados de passagem, porque nos mostram, com exemplos clínicos eloquentes, como o corpo pode não se constituir por um discurso que mantém os órgãos com suas funções específicas; a harmonia que supomos pode estar ausente (Czermak et al., 2012; Sainte-Fare Garnot, 2009; Czermak, 2009; Jean, 2009). Tais estudos nos fazem ver como o corpo, longe de ter a configuração esperada, pode ser um amontoado de órgãos disfuncionais, no sentido que entendemos os "órgãos articulados em função, pelo discurso" (Czermak, 2009, p. 17). Por exemplo, a comida não pode entrar pela boca porque, sem que nenhuma massa identificável, por qualquer exame que seja, lá se encontre, as passagens - os tratos esofagal ou intestinal - encontram-se bloqueadas. Não é incomum ouvirmos de um paciente psicótico que ele teve um de seus órgãos roubado - obviamente, sem que nenhuma marca corporal indique tal possibilidade. Esses estudos apontam para a impossibilidade de um paciente psicótico manter a operação que sustenta o corpo, tal como ele é constituído na estrutura neurótica. Trata-se de ver no corpo psicótico outra lógica de constituição corporal, que de qualquer forma aponta para a desnaturalização do corpo que quase sempre concebemos como organizado em, por exemplo, aparato circulatório, respiratório, excretório etc., como ensinado pela anatomia.

É, pois, à operação que resulta em um corpo na neurose que nos dirigimos. Procuraremos examinar e conceituar com maior precisão o que identificamos como uma operação que implica necessariamente um outro. Essa operação será fundamental para a constituição de um corpo e do próprio sujeito. A emergência do sujeito, como argumentamos com base nos referidos textos lacanianos (2006a, 2006b), se dá nessa operação que tem uma estrutura de precipitação - precipitação usada aqui no sentido de avanço prematuro e antecipado, mas também no sentido químico do que se decanta da operação.

Desde muito cedo, o estádio do espelho foi concebido por Lacan em seu ensino (ver sobretudo 2006a) para dar uma formulação, tão original quanto precisa, de como, a partir da experiência psicanalítica, a função do eu se forma. Tomando os estudos comportamentais sobre o reconhecimento de chimpanzés no espelho, observa os efeitos desse reconhecimento na criança, que não se estancam na mera percepção do reflexo, como ocorre com os símios, mas repercutem, dando condições para que ela veja a relação de seu corpo com o que se encontra à sua volta, pessoas e objetos. Numa bonita passagem, traça então o que em psicanálise se tornou uma clássica e pungente descrição do que se dá com a criança ao se deparar com sua imagem no espelho: arrebatada num afã alvoroçado e vivo, ela resgata, "para fixá-lo", um aspecto instantâneo dessa imagem (p. 97). Dá-se então uma transformação, efeito dessa imagem assumida por ela: trata-se aí da identificação em que o eu surge como efeito de uma precipitação; seu corpo ganha uma forma que se antecipa à sua maturidade e à sua real potência. Para sempre, essa forma, que se apresenta como lhe sendo exterior, trará a possibilidade de reconhecimento, de uma "permanência mental do eu" (p. 97), ao mesmo tempo que instituirá sua própria alienação; essa forma, sendo-lhe agora exterior, apontará, daí em diante, para sua condição objetal.

Ao circunscrever e ressaltar o que identificamos como uma estrutura de precipitação, reconhecemos a tensão engendrada por essa estrutura: trata-se de uma tensão que se dá entre a imaturidade vivida pela criança e a antecipação de uma imagem bem arrematada que, no entanto, só se sustenta na virtualidade. A irredutibilidade desta tensão está em não poder se apoiar sobre a imagem, uma vez que tal imagem não coincide com o real que se terá aí refletido (Thibierge, 2011; Jean, 2005). Podemos nos referir, neste ponto, ao engodo trazido pela imagem que esconde a discordância e a inadequação em relação ao real de sua imaturidade. A imagem, ao cobrir o real da insuficiência do corpo, faz surgir nesse momento o eu em sua "função de desconhecimento" (Lacan, 2006a, p. 103; 2006b, p. 675). Eu que encobre justamente o que se apresenta como discórdia, como resto não absorvível e não absorvido pela imagem. Estamos diante da operação concebida por Freud (1915b/1996) como a de recalcamento do que não é aceito, do que não é compatível ou é excessivo em relação ao eu. Logo, podemos dizer que a "consistência e o valor de realidade da imagem do corpo são exatamente correlativos do desconhecimento de um objeto que ele é feito para recobrir" (Thibierge, 2011, p. 381), encontrando-se nisso o que Lacan, mais tarde, elabora como o objeto a (ver, por exemplo, Lacan, 2005), que dará nome ao que se perde no ponto exato de constituição do eu pela imagem especular. A esse respeito, nosso objeto, portanto, se relaciona à estrutura de precipitação que se coloca na constituição do sujeito, ao que tal estrutura nos permite construir teoricamente em relação às experiências subjetivas e ao que elas podem contribuir para as intervenções clínicas.

 

Corpo, narcisismo primário e castração

Ainda que não se possa identificar propriamente uma teoria do narcisismo em Lacan (Jean, 2005), é possível afirmar que o estádio do espelho vem resolver uma série de formulações pendentes sobre esse conceito na obra de Freud. Principalmente no que se refere à distinção entre uma libido narcísica e outra objetal, que cedo se mostrou praticamente insustentável, o ensino lacaniano faz um deslocamento que instaura a dimensão narcísica como uma das consequências da formação da imagem. E narcisismo, nesse ponto, tem de ser distinguido de autoerotismo. O narcisismo primário que caracteriza o investimento libidinal implicado na operação de reconhecimento e identificação do corpo, isto é, do que Freud nomeia "eu corporal" (1923/1996, p. 29), só advém depois do estádio do espelho. Antes dele, pode-se conceber um investimento autoerótico, em que o corpo não se constituiu como tal e a criança não vê nada dela no espelho. A criança não é "narcísica" de nascença (Balbo & Bergès, 2003); o narcisismo é um efeito da estrutura de precipitação que enfatizamos, sendo possível reconhecer nisso a "nova ação psíquica" postulada por Freud (1914/1996, p. 70) em decorrência da confrontação da criança com a primeira castração simbólica.

Balbo e Bergès (2003) mostram os trilhamentos e os constrangimentos necessários implicados na formação da imagem especular. Lembram que não é qualquer outro que vê a criança ali - trata-se da mãe ou de quem está em seu lugar - e também que não é qualquer outro que esta vê - e sim ela própria. O nome que a inscreve nesse ponto faz dela o "significante do espelho" (p. 46), reconhece ali o significante que a representa, que é simbólico dela, podemos dizer. Mas ocorre também que a imagem que ela traz de si (e que daí em diante sempre retornará) seja o "suporte de um significante relativo ao corpo" (p. 46), vale dizer, o corpo ganha aí realidade significante. É só nesse ponto que a criança "pode escolher" estabelecer com seu corpo próprio uma relação narcísica. Trata-se agora de um corpo que é eu e que é outro (Rimbaud, 1871; Balbo & Bergès, 2003).

Procuraremos agora nos dirigir à questão das alterações da imagem corporal, ou seja, aos problemas trazidos por afecções que atingem justamente a imagem do corpo de que estamos tratando.

 

Alterações da imagem corporal - a discórdia sem encobrimento

Tomaremos fragmentos de um caso de mastectomia total da mama direita de uma paciente em tratamento psicológico no Instituto Nacional de Câncer (INCA), com o qual o Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ mantém um acordo interinstitucional de pesquisa. A paciente, atualmente com 57 anos, vem sendo atendida regularmente por uma das autoras, psicóloga, membro do Grupo de Pesquisa Corpo e Finitude, a qual constantemente se reporta a esse grupo para apresentação e discussão do caso.

Começamos por dar relevo a um sintoma apresentado pela paciente, depois de quase dois anos de entrevistas regulares com a referida profissional: a sensação fantasma de que o mamilo da mama que havia sido retirada coçava. É importante mencionar, antes de considerá-la, que tal sensação fantasma aparece na fala da paciente somente depois de um longo percurso que ela iniciara de maneira parcimoniosa e monossilábica, refletindo uma vida igualmente empobrecida e desprovida de ânimo. Até então, a paciente mal parecia dar-se conta inteiramente da cirurgia por que passara havia quase duas décadas e menos ainda das implicações que trouxera para sua vida sexual, de mulher e de sujeito de desejo. Referia-se à cirurgia, como a outros episódios duros de sua vida, dizendo que achara que "não era nada".

É com a presença desse órgão amputado que somos remetidos à operação que apresentamos acerca da imagem corporal. Lembramos a "função de desconhecimento" do eu, várias vezes mencionada por Lacan (2006a, 2006b) Vimos que essa função é tributária da operação do recalque do que ainda não está suficientemente maduro, do que é inadequado para constituir a imagem do eu. É com o encobrimento dessa inadequação, com o desconhecimento da discórdia entre a prematuridade do corpo e a imagem que se completa no espelho, que o eu é engendrado.

Ora, a amputação de uma parte do corpo confronta o sujeito com todas as questões envolvidas na operação de constituição do corpo próprio e, logo, com sua própria constituição, que emerge dessa operação. A amputação lembra que o corpo não tem a unidade que o faz corpo; que o eu, efeito desse corpo, não mostra a harmonia prometida. Ao contrário, as intervenções médicas, especialmente as que causam dor, não nos deixam esquecer que temos vários órgãos, os quais têm funcionamento autônomo e são apenas precariamente dominados por nossa vontade e nossa intenção, por nosso domínio (Melman, 2001).

Só nos sentimos bem quando não sentimos nosso corpo, quando o corpo não faz falar dele. "No limite, seria preciso ter um corpo sem órgãos e isso seria a saúde", afirma Melman (2001, p. 7), que lembra Leriche (apud Melman, 2001), para quem "a saúde é o silêncio dos órgãos" (p. 7). Nesse sentido, trata-se de anular o corpo. Em outras palavras, de obter seu silêncio. Quando não sentimos o corpo, pensamos gozar de boa saúde; fora isso, é o embaraço, o incômodo, a doença, dos quais a paciente mencionada justamente pensava poder desembaraçar-se. Dizia ela: "Não é nada".

No entanto, e eis o ponto em que nos centramos, o que ressalta num caso como esse, de uma amputação, é que a quebra da harmonia do corpo não pode ser facilmente esquecida. O recalcado retorna, e retorna para lembrar que há uma operação de recalque que está sendo impedida de se refazer. Foi preciso que o tratamento desse a ela condições de haver-se com a imagem descompletada e que ela estivesse munida de coragem para enfrentar a extirpação de uma parte do corpo, a fim de que começasse a aparecer como o que certamente terá sido para ela: a perda do que até então a sustentava como sujeito.

Podemos supor que seu corpo perdera a consistência que tivera, perdera, justamente podemos dizer, seu valor de imagem do corpo que vinha encobrir o seu despedaçamento, a sua desarmonia. O membro fantasma é o resto não absorvido e não absorvível na imagem. Trata-se aí da presença do objeto que deveria estar encoberto para que a imagem pudesse se sustentar. O que se acompanha na fala da paciente quando aparece a sensação fantasma remete ao que Thibierge (2011) afirma acontecer quando há cortes radicais no corpo, como a amputação. Diz ele que toda a problemática subjetiva da castração é reativada (p. 200).

Quando se acompanha a história que a paciente vem construindo durante seu tratamento, encontram-se algumas passagens que dão conta das pequenas batalhas que travou ao longo da vida, e que mostram sem dúvida o seu reencontro com a castração, aquela que a colocara no mundo anteriormente.

É como se a amputação trouxesse de volta feridas que se mantinham fechadas a duras penas, como acontece na estrutura neurótica, em que o sujeito é resultado da operação de castração, que se renova a cada encontro com um ponto de impossibilidade, com um obstáculo colocado pelo Outro. Trata-se do encontro com a queda da imagem do corpo, com a dura realidade da sua fraqueza, da sua fragilidade, da sua finitude. Esse é o momento de reativação de toda a problemática implicada na operação da castração, que deixou suas marcas ao longo da vida da paciente e que aqui, mais uma vez, toma a cena de sua vida.

 

A restauração da imagem narcísica - fazendo valer a estrutura de precipitação

Por estarmos em contato com aqueles de quem podemos dizer que estão se havendo outra vez com a questão trazida pela operação da castração, temos visto que esse mesmo momento pode ser tomado como uma oportunidade para que se inicie um trabalho de elaboração da problemática acima exposta. O atendimento à paciente que mencionamos principiou por uma situação que nos oferece um ponto de apoio importante para tal constatação.

Estava fazendo um tratamento de rotina com a fisioterapeuta e fala que, na época, se via muito mal-humorada, com certo mal-estar que, no entanto, não tinha como precisar. A fisioterapeuta, um dia, lhe disse: "Isto que você tem é dor". A partir daí, ela passa a chorar de dor. E a reclamar constantemente, porque não havia nada que fizesse a dor passar. Nesse momento, foi encaminhada à Clínica da Dor, onde a médica recorreu a uma bateria medicamentosa sem muito sucesso. Em seguida, disse-lhe que precisava de um atendimento psicológico. Ela, então, marcou a primeira consulta com a psicóloga.

É importante, aqui, voltarmos ao que mencionamos acerca da dor e à possibilidade que porta de que se escute o corpo. É por meio da dor que o corpo silenciado pelo recalque se faz ouvir. E ouvir o corpo é ouvir o sujeito do padecimento, da vida empobrecida e insatisfatória que levava. A dor, portanto, oferece um acesso e uma oportunidade ímpares ao sujeito do desejo. Foi através da dor que a paciente pôde ir se aproximando, pouco a pouco, do que havia calado sua vida sexual, sua vida de desejo e de investimento narcísico. Foi pela escuta da dor, que falava de uma operação malsucedida de recalcamento, que a psicóloga pôde ter notícia das repercussões subjetivas da mutilação que a marcara.

Trata-se então de tomar nas mãos essa oportunidade e de pensar o que está em jogo no tratamento da paciente. Ela começa a se confrontar com a perda que a acometeu e a elaborá-la na tentativa de resgatar uma imagem que venha a fazer corpo para ela, restaurando a circulação do investimento narcísico. A sensação fantasma que aparece nesse instante pode ser considerada uma tentativa de reconstrução da imagem de corpo. O tratamento prossegue, deixando-nos desde já algumas indicações do que nele está implicado.

 

Considerações finais

Considerando que a escuta da fala de um paciente nos interessa na medida em que é ao sujeito do desejo e do inconsciente que visamos, a questão do ato que dá lugar a esse sujeito (Lacan, 1967-1968/2001) se torna crucial e vem ao primeiro plano de toda a problemática com que estamos lidando. É da estrutura de ato, conforme concebida por Lacan desde 1945 (Lacan, 2006c), que se trata, quando pensamos na tomada de posição da criança que se antecipa à maturidade do corpo. Da antecipação, portanto, que não se dá por uma decisão voluntária e egoísta (individual, digamos) pela qual a criança fixaria para si a sua imagem. Esse instante, como vimos, comporta a consideração do outro, e é com o outro que se fura uma redoma solipsista, para que a forma da imagem se torne realidade (Lacan, 2005).

Temos aí a estrutura de precipitação que introduz o infans no mundo e dá condições para que o organismo se articule com a realidade circundante, o que não é algo dado de saída para os falantes, justamente pela prematuridade que os caracteriza em seu nascimento.

Quando estamos em face de alterações drásticas do corpo, como aquelas de pacientes amputados, estamos diante da falência da imagem do corpo constituinte do sujeito. É, portanto, da falência do sujeito e de seu desejo que tratamos aqui. O empobrecimento da vida da paciente, de cujo tratamento se mencionaram alguns trechos, mostra o tempo em que o desejo está afetado e há, pode-se dizer, uma retirada do investimento narcísico. A reativação da circulação desse investimento requer uma nova ação psíquica que dê condições para que a imagem narcísica abalada se reinstaure.

Trata-se, assim, de apostar na coragem daquele que vê a imagem se perder, se dilacerar, de tentar fazer outra imagem para si, outro eu, o qual, embora se apoie no que terá sido a sua história, tem de se precipitar numa nova aventura. Discordante mais uma vez do que seria a imagem perfeita, bem-acabada e harmoniosa, é na antecipação dessa nova imagem que ele terá a chance de se encontrar com seu desejo e dele não abrir mão em sua vida de sujeito.

 

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Recebido em 24 de julho de 2019
Aceito para publicação em 16 de setembro de 2019

 

 

Este estudo foi apoiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), do qual a primeira autora é Bolsista de Produtividade.

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