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Psicologia Clínica

Print version ISSN 0103-5665On-line version ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.33 no.2 Rio de Janeiro May/Aug. 2021

http://dx.doi.org/10.33208/PC1980-5438v0033n02A06 

SEÇÃO TEMÁTICA - MATERNIDADE, VICISSITUDES DO DESENVOLVIMENTO INFANTIL E REDES DE APOIO

 

Maternidade e foraclusão: A equação filho-kakon

 

Maternity and forclusion: Son-kakon equation

 

Maternidad y forclusión: La ecuación hijo-kakon

 

 

Cristina Moreira MarcosI; Marconi Martins da Costa GuedesII; Juliana MottaIII

IDoutora em Psicanálise pela Universidade de Paris 7. Docente da Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas) e Professora Permanente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da PUC Minas. Pesquisadora Mineira da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), Belo Horizonte, MG, Brasil. cristinammarcos@gmail.com
IIMestre em Estudos Psicanalíticos pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Psicólogo do Instituto Raul Soares, da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (FHEMIG). Coordenador do Núcleo de Ensino e Pesquisa e do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde Mental do Instituto Raul Soares. Docente da Faculdade de Minas (FAMINAS) e dos cursos de Pós-graduação em Saúde Mental e Clínica Psicanalítica na Atualidade, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), Belo Horizonte, MG, Brasil. marconi_martins@hotmail.com
IIIPsicanalista. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Membro da Associação Mundial de Psicanálise (AMP) e da Escola Brasileira de Psicanálise (MG). Docente dos cursos de Pós-Graduação Lato Sensu Clínica Psicanalítica na Atualidade e Saúde Mental no Instituto de Educação Continuada (IEC) da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), Belo Horizonte, MG, Brasil. julianameirellesmotta@gmail.com

 

 


RESUMO

A maternidade está articulada à relação da mulher com a falta; contudo, a falta nem sempre está articulada ao falo, à castração. Que lugar a criança ocupa, qual o lugar para a maternidade, quando não há recurso à significação fálica? Um caso clínico nos permite interrogar qual o lugar do filho quando a significação fálica não é operante e a gravidez revela a foraclusão. Uma passagem ao ato durante a gestação evidencia como o bebê pode se converter em "kakon", objeto mau a ser eliminado. A angústia experimentada, neste caso, não é a angústia-sinal do neurótico, que enquadra a fantasia construída em resposta ao desejo do Outro. É uma angústia enorme, a céu aberto. Para o psicótico, não é possível responder ao desejo do Outro pela fantasia. Se, na neurose, o objeto a, extraído da castração, pode funcionar como uma resposta ao Outro, na psicose o sujeito se vê identificado a esse objeto. Ele encarna o objeto e a angústia fica sem contenção alguma. O bebê é o próprio objeto estranho, inimigo interior a ser eliminado, o verdadeiro "kakon".

Palavras-chave: maternidade; psicose; kakon.


ABSTRACT

Maternity is linked to the woman's relationship with the lack; however, the lack is not always linked to the phallus, to castration. What is the place of the child, where is the place for maternity, when there is no recourse to phallic significance? A clinical case allows us to question the place of the child when the phallic significance is not operable and the pregnancy reveals the forclusion. A passage to the act during the pregnancy shows how the baby can become a "kakon", a bad object to be eliminated. The anguish experienced in this case is not the neurotic signal anguish, which frames the fantasy constructed in response to the Other's desire. It is a huge, unconcealed anguish. For the psychotic, it is not possible to respond to the Other's desire for fantasy. If in the neurosis, the object a, extracted from castration, can function as a response to the Other, in psychosis the subject is identified with that object. He embodies the object and the anguish runs out of containment. The baby is its own foreign object, the inner enemy to be eliminated, the true "kakon".

Keywords: maternity; psychosis; kakon.


RESUMEN

La maternidad está vinculada a la relación de la mujer con la falta; sin embargo, la falta no siempre está vinculada al falo, a la castración. ¿Qué lugar el niño ocupa, cuál es el lugar para la maternidad cuando no hay recurso a la significación fálica? Un caso clínico nos permite interrogar cuál es el lugar del hijo cuando la significación fálica no es operante y el embarazo revela la forclusión. Un pasaje al acto durante el embarazo evidencia cómo el bebé puede convertirse en "kakon", objeto malo a ser eliminado. La angustia experimentada, en este caso, no es la angustia-señal del neurótico, que encuadra la fantasía construida en respuesta al deseo del Otro. Es una angustia inmensa, a plena vista. Para el psicótico, no es posible responder al deseo del Otro por la fantasía. Si, en la neurosis, el objeto a, extraído de la castración, puede funcionar como respuesta al Otro, en la psicosis el sujeto se percibe identificado a ese objeto. Él encarna el objeto y la angustia se queda sin contención. El bebé es el propio objeto extraño, enemigo interior a ser eliminado, el verdadero "kakon".

Palabras clave: maternidad; psicosis; kakon.


 

 

Introdução

Da psicanálise freudiana, podemos extrair a clássica tese da equivalência entre o filho e o falo. Em Freud (1933/1987), a resolução do Édipo feminino está ligada a uma reivindicação fálica jamais satisfeita, que culmina no desejo de ser mãe na medida em que o filho é o substituto do que ela não tem, o falo. Essa tese, retomada nos textos sobre a sexualidade feminina, é longamente discutida num texto de 1917, "As transformações da pulsão exemplificadas no erotismo anal", no qual Freud afirma a equivalência, como produtos do inconsciente nas fantasias e nos sintomas, dos conceitos de fezes (dinheiro, dádiva), bebê e pênis. Tais conceitos são descritos como intercambiáveis, mal se distinguindo um do outro. "Isto se verifica com mais facilidade na relação entre 'bebê' e 'pênis'." (Freud, 1917/1987, p. 161).

A conclusão freudiana acerca do feminino não ultrapassa a inveja do pênis, ao qual a mulher jamais conseguiria renunciar. O desejo do pênis é, segundo ele, um desejo feminino, par excellence. O desejo de um filho é um modo de responder à falta por meio da equivalência psíquica inconsciente entre o desejo de ter o falo e o desejo de ter um filho. O desejo de filho é um substituto do desejo de pênis; é o que Freud já demonstrava no texto de 1917 pela equivalência simbólica entre excremento-falo-criança. Desse modo, a mulher é, para Freud, irremediavelmente ligada a uma reivindicação fálica jamais satisfeita. O desejo de um filho é um destino da inveja do pênis; ter um filho seria um equivalente simbólico da posse do falo. Temos a maternidade assinalada como uma solução para o feminino. Entretanto, a clínica nos dá testemunhos de como essa solução está longe de apaziguar a mulher. A experiência da gestação, do parto e da maternidade frequentemente deixam entrever aquilo que da mãe não se reconhece nessa equivalência fálica (Marcos, 2007, 2017). Ademais nos interrogamos sobre qual o lugar do filho quando a significação fálica não é operante, a saber, nos casos de psicose.

Efetivamente, a criança está articulada, para a psicanálise, ao falo; contudo, Lacan abre a perspectiva de pensá-la em seu estatuto de objeto em suas diferentes declinações: objeto causa de desejo, objeto dejeto, objeto tampão. Se, para Freud, a criança é substituto do falo, para Lacan (1969/2003), ela é um possível objeto a para a mãe.

Lacan vai, já desde os seminários 4 e 5, apontar uma voracidade materna que nos impossibilita de ver a mãe lacaniana como uma mulher inteiramente saciada pelo filho mediante a equivalência fálica.

O que a própria criança encontrou outrora para anular sua insaciedade simbólica, vai reencontrar possivelmente diante de si como uma boca escancarada. () O furo aberto da cabeça da Medusa é uma figura devoradora que a criança encontra como saída possível em sua busca da satisfação da mãe. Aí está o grande perigo que nos é revelado por sua fantasias, ser devorado. (Lacan, 1956-1957/1995, p. 199)

Ora, a voracidade do amor materno é marcada por um ilimitado que pode se converter em ódio. Éric Laurent (2006) convida a tomar o infanticídio como ponto central do amor materno.

Quando escutamos que para encarregar-se do mundo, para manejar os problemas da sociedade, as mulheres são mais bondosas que os homens, mais negociadoras, estão menos sujeitas à ira porque possuem menos circuitos hormonais agressivos, é preciso não esquecer o infanticídio que concentra o enigma do amor materno. Assim, como o crime passional é o ponto central do amor feminino, o infanticídio o é do amor maternal. As mulheres não possuem a perversão no sentido masculino, possuem, em troca, o infanticídio. Não possuem a perversão porque tem filhos, dizia Lacan para resumir o problema. (Laurent, 2006, p. 139)

Como a destruição do filho pode ser o ponto central do amor? Encontramos em Lacan uma definição do amor que revela esse parentesco. "Eu te amo, porque inexplicavelmente amo em ti algo que é mais do que tu - o objeto a minúsculo, eu te mutilo" (Lacan, 1964/1990, p. 254). Todo amor se estrutura a partir de uma fantasia na qual se elabora o que amamos no Outro e que é mais do que ele. Mas, enquanto a histérica se divide em torno do objeto agalmático ou daquilo que o Outro quer dela, o psicótico não se tortura com tais dilemas. A mãe neurótica se interroga o tempo todo se ela saberá se ocupar de seus filhos, se ela será uma boa mãe, se será admirada pelos outros. A comédia da vida amorosa no neurótico é marcada por todo tipo de interrogação em relação ao desejo do Outro: O que ele sente por mim? Ele me ama? O que quer de mim? Nada disso se passa na psicose.

A maternidade está articulada à relação da mulher com a falta; contudo, a falta nem sempre está articulada ao falo, à castração. Que lugar a criança ocupa, qual o lugar para a maternidade, quando não há recurso à significação fálica? Quando não há anteparo fálico, o que há? Qual o estatuto da maternidade para uma mulher psicótica? Um caso clínico nos permite interrogar qual o lugar do filho quando ele não está no lugar do falo, quando a significação fálica não é operante, quando a gravidez não é subjetivada e revela a foraclusão.

 

A passagem ao ato e o bebê-kakon

A discussão que se segue refere-se à pesquisa1 desenvolvida no Hospital de Ensino / Instituto Raul Soares / FHEMIG, entre 2017 e 2019, financiada pela FAPEMIG, cuja pergunta inicial desenhou-se em torno do lugar que a criança ocupa no inconsciente materno, nos casos em que a significação fálica não é operante, interrogando assim a tese freudiana segundo a qual o filho é um equivalente do falo. Esta investigação se deu por meio do mapeamento dos casos, recolhimento dos dados clínicos, supervisões, seminários teóricos e clínicos2, nos quais foram sistematizados os casos em que a maternidade se converte em palco de sofrimento psíquico, colocando impasses na condução do tratamento para a equipe.

K. é uma paciente cuja psicose se desencadeia a partir do nascimento de seu primeiro filho. Dele, ela dirá que queria matá-lo, que ele a separava do marido. Entretanto, ela não se transforma numa Medeia e engravida novamente. Durante sua segunda gravidez, os sinais da crise retornam e ela é internada. Ao longo da internação, apresenta um quadro de persecutoriedade, sobretudo com o marido; heteroagressividade; erotização; hipersexualidade; alucinações auditivas com vozes de comando; e ideação suicida. O quadro iniciou-se, segundo a paciente, após ela ter apanhado e ter sofrido uma tentativa de abuso sexual do marido em seu "Primeiro Dia das Mães". A partir de então, a paciente conta que começou a sentir-se "estranha () perseguida".

Em sua chegada ao hospital, encontrava-se com 34 semanas de gestação, dessa vez grávida de uma menina, e à medida que as alterações físicas se produziam, com o avanço da gravidez, K. apresentava significativa piora no quadro. Com frequência aconteciam intercorrências, tentativas de autoextermínio, episódios de heteroagressividade, agitação psicomotora que, na maioria das vezes, em decorrência da gravidade e da falta de recursos (eram poucos os recursos medicamentosos que podiam ser administrados à paciente), mobilizavam a equipe que a atendia e outros profissionais do hospital. Apresentava-se insone quase todos os dias. Muito agitada, logorreica, era, porém, abordável pela palavra. Possuía boa relação com grande parte da equipe, à qual sempre dirigia seus incômodos em relação à gestação.

"Quero que minha criança nasça logo () Eu não estou conseguindo me controlar. Me ajuda, não quero machucar ninguém () Por que quando eu engravido eu fico assim?" Em muitos momentos, parecia que ela agia como se não estivesse consciente corporalmente da criança que estava gestando.

Manifestava uma preocupação excessiva com a criança que estava gestando, convencida de que a criança morreria. O que a tomava de urgência parecia ser a gravidez. Falava ainda sobre o desconforto sentido com sua filha mexendo em sua barriga. "Eu não aguento mais, ela está mexendo muito. Tira essa barriga de mim".

Esse caso interroga o lugar onde se situa a maternidade para essa mulher ou onde ela não se situa. Qual o lugar do filho? Lembremos o relato do desencadeamento de uma crise, não por acaso, no Dia das mães. Em seu primeiro "Dia das mães", espécie de data na qual ela se inscreveria simbolicamente enquanto mãe, algo do desejo sexual invade seu corpo. K. relata ter sido agredida e ter sofrido uma tentativa de abuso sexual por parte do marido. Algo entre a mãe e a mulher estava alterado, e parecia ser em um ponto impossível de simbolização da maternidade que a surpreendia e assim, começaram as ideações de abuso. Então temos aí uma primeira indicação para pensar o que acontece com a maternidade para essa mulher. K. parecia encerrada na alternativa mãe/mulher, ou uma ou outra. Ser mãe é impossível de ser subjetivado.

Outro ponto chama atenção: o nascimento do primeiro filho foi diferente do nascimento da filha. Embora as transformações do corpo na gravidez fossem insuportáveis, K. referia-se à criança com afeto, fazendo planos sobre como cuidaria da filha. O filho a separava do marido; a filha era descrita como um presente, um dom, para ele. Entretanto, veremos que a pulsão de morte também se mistura ao amor materno no caso da filha. K. sucumbe às vozes. Primeiro elas lhe ordenam que faça mal a ela, e depois é a criança que corre perigo. A preocupação excessiva com criança que estava gestando já revelava a conjugação da maternidade com a morte. Ela tem certezas. Sabe que pode fazer mal a seu bebê e pede ajuda. Obstina-se em dizer que ele morrerá. Se todo amor tem um caráter delirante no qual se enaltece o outro portador do objeto a, na psicose, o sujeito persiste em ter uma relação bem especial com esse objeto no outro, objeto que termina por ser seu parceiro. O Outro se transforma na voz ou no olhar, com o qual se tem uma relação tão somente agressiva ou erótica, sem a mediação simbólica.

Cada mulher se depara na gravidez e no parto com uma experiência de corpo singular, na medida em que o corpo da mãe deixa de ser dela. Para cada uma, pode haver um ponto impossível da maternidade que escapa à simbolização. Entretanto, K. não dispõe do falo para simbolizar o que está acontecendo. Ela entra no sem limite antes mesmo do parto. Quando Lacan (1956-1957/1995) fala do filho como um pedaço de carne a falicizar, ele afirma o necessário recobrimento do filho pelo significante. Há, em K., mesmo antes do parto, na experiência da gravidez, alguma coisa que ela não conseguia simbolizar, pelo menos antes do nascimento. Uma gravidez, mas também o parto, pode representar para uma mulher o encontro com um objeto real demais, impossível de ser simbolizado. Uma mãe deverá recobrir esse objeto real demais com os elementos de um imaginário que constituirá uma borda a partir da qual se desenha um corpo e com um desejo que particulariza.

Os movimentos do bebê na sua barriga são insuportáveis. Alguma coisa acontece em seu corpo com os movimentos da criança, que é sentida, não com o júbilo testemunhado por certas gestantes para as quais a gravidez é subjetivada, mas como um corpo estranho. A criança não habita sua barriga, a barriga é habitada pela criança. O corpo não é dela e esse objeto, mexendo sem parar, é verdadeiramente insuportável. É um pedaço de carne muito vivo, objeto de puro gozo. K. quis extraí-lo em uma passagem ao ato na qual tentou atravessar a janela da enfermaria e retirar o bebê enfiando um caco de vidro na barriga e batendo-a contra o chão. Após contenção, ela pediu por socorro e que não a deixassem fazer nada contra sua família, pois agora as vozes estavam pedindo que ela matasse a criança.

A angústia experimentada por K. não é a angústia-sinal do neurótico, que enquadra a fantasia construída em resposta ao desejo do Outro. É uma angústia a céu aberto. Para o psicótico, não é possível responder ao desejo do Outro pela fantasia. Se, na neurose, o objeto a, extraído da castração, pode funcionar como uma resposta ao Outro, na psicose, o sujeito se vê identificado com esse objeto. Ele encarna o objeto, e a angústia fica sem contenção alguma. O bebê é o próprio objeto estranho, inimigo interior a ser eliminado, verdadeiro kakon. Após a passagem ao ato, o parto foi antecipado e a extração desse objeto acabou por apaziguar K. O kakon é a presença do mal que se quer extrair, seja extimamente, seja no próprio corpo, na busca de barrar ou extrair o gozo. É uma tentativa de tratar o real pelo real.

Na passagem ao ato de K., a pulsão se faz ato, sem nenhuma mediação simbólica. É uma tentativa de extração do mal-estar relacionado à presença do objeto kakon. A referência ao kakon surge no ensino de Lacan, em sua tese acerca do caso Aimée. É nos trabalhos de Guiraud, nos quais Lacan se apoia, que esse conceito parece descrever, em sua origem, o instante de uma angústia intensa vinda em um momento de fracasso da simbolização. Em seus estudos sobre os crimes imotivados, Guiraud se alinha à doutrina freudiana para estabelecer os crimes do eu, nos quais se incluem os crimes de interesse e os crimes do isso, nos quais se alojam os crimes pulsionais. Lacan acrescenta aí os crimes do supereu, ligados aos delírios de autopunição. No que concerne aos crimes imotivados, os crimes do isso, Lacan assinala que Guiraud revela o caráter de agressão simbólica desses crimes: "o sujeito quer matar aqui não é o seu eu ou seu supereu, mas sua doença ou, de modo mais geral, 'o mal', o kakon." (Lacan, 1957/1987, p. 307). Maleval (2000) lê nessa passagem a aproximação entre esses dois conceitos, o kakon e o isso freudiano, e eles nos levam ao fundamento das teses lacanianas concernentes à passagem ao ato em sua relação com o objeto real.

O kakon reaparece no texto Acerca da causalidade psíquica: "() o que é alienado busca atingir no objeto que golpeia não é nada mais do que o kakon de seu próprio ser" (Lacan, 1950/1966, p. 175). Maleval (2000) situa três nomeações sucessivas do real nesse lugar onde o imaginário falha e nada mais se reflete e o significante encontra seu limite, o pensamento se esvazia; são elas o kakon de Guiraud, o isso freudiano e o objeto a lacaniano (p. 40).

Ao evocar o mecanismo libertador do kakon na análise da passagem ao ato de Aimée, Lacan destaca como o objeto que ela golpeia é o seu inimigo interno, é sua própria enfermidade. Cottet (2008) afirma que o ponto em comum entre Lacan e Guiraud se localiza justamente aí na conceitualização de um gozo do qual os pacientes buscam se libertar. Ele assinala que é sobretudo a noção de "extração do objeto a", ou seja, uma extração de gozo, que virá no lugar do que Lacan destacava como autopunição do narcisismo. Daí o interesse pelos crimes imotivados de Guiraud, nos quais eles destaca o mecanismo libertador dos esquizofrênicos que buscam se livrar da sensação dolorosa que os invade pela passagem ao ato homicida. É menos a imotivação que retém a atenção do que o sentimento de liberação que os acompanha. O kakon é um dos nomes do objeto êxtimo. O objeto golpeado no exterior é o ser mais íntimo do sujeito. A passagem ao ato de K. o evidencia de modo exemplar: o kakon é o ser do sujeito identificado ao objeto a como mais de gozar. Ela testemunha um esmagamento do sujeito sobre o objeto a, há uma identificação a seu ser de dejeto. "Quando o objeto a se impõe no real, o simbólico falha e a angústia surge" (Maleval, 2000, p. 41).

Assim, segundo Maleval (2003/2014), o kakon é apreendido como o objeto a cuja não extração constitui a maior indicação para apreender a especificidade da estrutura psicótica, que implica conexões inadequadas do Real com o Simbólico e o Imaginário, revelando então a incapacidade do sujeito em sustentar plenamente a função limitadora em relação ao gozo. O que há nesses casos é a ausência de separação do sujeito de seu objeto de gozo, o que resulta na emergência de um gozo não limitado, na ausência da instalação da fantasia fundamental e nos consequentes efeitos de inconsistência afetiva e corporal.

Nesse sentido, a passagem ao ato é, como o delírio, uma tentativa de cura, "uma tentativa de fazer advir a castração simbólica, trata-se de uma tentativa de extração do objeto a, causa do desejo" (Maleval, 2000, p. 42). O psicótico é levado a arrancar o objeto parcial da pulsão. Em K., é o bebê, esse objeto estranho no interior de si mesma. Por seu ato, ela busca um tratamento, não pela elaboração significante do delírio, mas por um curto-circuito em direção ao objeto real. Trata-se, para ela, de se separar de um objeto de puro gozo.

K. nos dá a ver uma equação que se realiza não como filho-falo, mas como filho-morto, evidente num primeiro momento na relação com o primeiro filho. A menina, que parece surgir inicialmente como um dom, será também posteriormente marcada pelo voto de morte. Após o apaziguamento produzido pelo parto, K., ao voltar para casa, pediu que não a deixassem sozinha com a filha, pois temia sufocá-la com o travesseiro. Não é que não exista o desejo de matar um filho, às vezes, mas em sentido figurado, não na realidade. O problema é que, nesse caso, ela é considerada capaz disso. Contudo, devemos nos perguntar o que se operou aí. Haveria uma travessia da pulsão que se faz ato, sem mediação alguma como ocorre na passagem ao ato, à palavra? O impulso de golpear se retém nem que seja pelo instante da palavra: "Que não me deixem sozinha com ela". K. avisa: "Posso sufocá-la com o travesseiro".

 

Considerações finais

Três eixos permitem retomar o caso, ordenando alguns pontos centrais: o corpo, o objeto e o gozo. Para uma mulher, a gravidez coloca a relação com o corpo no centro da cena. O corpo grávido convoca cada uma nessa relação e terá um efeito diverso. Esse corpo que se transforma pode ser enaltecido, aceito ou rejeitado. O ideal materno vem investir esse corpo, fazendo da barriga arredondada um lugar privilegiado narcisicamente. Nada disso se passa com K. Ela é tomada de horror com os movimentos do bebê em sua barriga e experimenta a gravidez com o sentimento de estranhamento, como quando a equipe relata que ela enlouquece com as contrações. Paradoxalmente, isso não impede a criança de existir no discurso.

O que determina que ela não tivesse consciência da gestação? Trata-se da dimensão do corpo na psicose. Segundo Maleval (2003/2014), a não extração do objeto a constitui a maior indicação para apreender a especificidade da estrutura psicótica, que implica conexões inadequadas do Real com o Simbólico e o Imaginário, revelando então a incapacidade do sujeito em sustentar plenamente a função limitadora em relação ao gozo. O que há nesses casos é a ausência de separação do sujeito de seu objeto de gozo, o que resulta na emergência de um gozo não limitado, na ausência da instalação da fantasia fundamental e nos consequentes efeitos de inconsistência afetiva e corporal. É o que vemos quando K., sem crítica, senta-se no chão do banheiro com um quadro de diarreia importante e, com significativa lentidão, fala: "minha filha vai nascer, me ajuda. Eu não estou aguentando mais, ela está mexendo muito".

Segundo Brodsky (2011), "a afirmação do Nome-do-Pai quando está no campo do Outro tem por consequência a extração do objeto desse campo. Quando não está, não se produz a extração e o objeto aparece presente, ativo no campo do Outro, retornando seja no corpo, como na esquizofrenia, ou no outro semelhante, como na paranoia" (p. 57). Desse modo, na esquizofrenia, muitas vezes apresenta-se essa falha na relação do sujeito com seu corpo. De acordo com Brodsky, podemos aqui verificar o que Lacan quis dizer ao afirmar que "o corpo é o outro". Segundo Lacan (1975-1976/2007), o corpo é nossa única consistência, mas sem garantias, pois ele é passível de "sair fora a todo instante" (p. 64). Nesse sentido, para todo sujeito o corpo é Outro e é preciso inventar uma maneira de se dar bem com esse corpo. Tais invenções criam, assim, certa demarcação corporal e, consequentemente, certa demarcação do gozo. "Para dizê-lo num termo de mecânica, ele tem necessidade de um grampo para se sustentar com seu corpo" (Miller, 2010, p. 17).

Em K., podemos considerar que é justamente essa amarração em relação ao corpo que se solta nos momentos em que tem que lidar com a gestação que a coloca frente a um real impossível de nomear e suportar. Tratando-se de uma esquizofrênica, a inconsistência corporal é uma marca. A demarcação imaginária do corpo se perde, e K. precisa inventar saídas para lidar com esse corpo em frangalhos. Fica possível compreendermos a cena na qual entra em conflito corporal com outras pacientes como se não estivesse grávida, pois frente ao impasse da inconsistência corporal que está vivenciado, a criança parece, em alguns momentos de maior confusão, não estar mesmo em sua barriga.

É importante destacar que K. tem um grande estima pela criança, e que a filha está mais em seu discurso do que em seu corpo, pois a paciente sempre se referia a ela com afeto. Mesmo quando quis extrair a criança de sua própria barriga, K. parecia querer mesmo era extrair o objeto do próprio corpo, e que isso não tinha relação com a criança, mas com a barriga em si, esse "saco de pele", no dizer de Lacan, que mexe e que a incomoda, chegando a ser insuportável, conforme ela mesma diz: "Tira essa barriga de mim".

A criança mexendo e crescendo dentro da barriga e a modificação no corpo causada pela gravidez são vividos como o horror de estar grávida. Apesar do inferno de estar grávida, ela ama a filha, planeja seu futuro, lhe dá um nome. Francesa Biagi-Chai (2014) afirma que essas mulheres não interpretam as sensações experimentadas no corpo como sinais da gravidez. Parece haver uma desconexão entre o significante "que nomeia um órgão para sua função e a manifestação dos fenômenos corporais". Na medida em que há o apagamento desta função significante (nomear a função de um órgão), temos como consequência a impossibilidade de nomear os fenômenos corporais da gravidez com a significação da maternidade. Eles são interpretados como incômodo, estranhamento, horror. O que parece curioso no caso discutido é que isso não a impede de conferir existência à criança no campo do discurso. Evidencia-se uma falha entre o saber e o corpo; como dissemos, a criança está mais presente no discurso do que no corpo. Cada gravidez e cada criança se inscreve para o sujeito de um modo. Se o menino a separa do marido, a menina os une. Ela é um dom a ser oferecido: "Ele ficará tão feliz em vê-la".

Quanto ao gozo, no caso K., "a criança que ela carrega, realiza o objeto a. O Outro é real e quer gozar do sujeito" (Laurent, 2004, p. 90). Dominique Laurent faz essa afirmação a partir de um outro caso, que fez história em psicanálise, o caso Aimée, paciente da tese de Lacan acerca da paranoia. A passagem ao ato de K. é testemunha da impossibilidade de subjetivação da gravidez, revelando a distância entre estar grávida e ser mãe. Estar grávida não faz de K. uma mãe e não a confronta com a castração; ao invés, sua gravidez revela a foraclusão. Não estamos diante da equivalência filho-falo, tese freudiana tantas vezes lembrada, mas antes nos deparamos com uma equivalência entre filho-objeto, como Lacan destaca na Nota sobre a criança. Para as mulheres, "a criança lhe dá, imediatamente acessível, aquilo que falta ao sujeito masculino: o próprio objeto de sua existência, aparecendo no real" (Lacan, 1969/2003, p. 370). Essa realização da presença do objeto a pode se fazer em diferentes modalidades. Zenoni (2000) afirma que a criança, ser vivo saído do corpo da mãe, se presta particularmente a dar forma ao retorno do objeto no real. Segundo ele, "condensador de gozo", o filho pode ser "a libra de carne a sacrificar que se separa da unidade do corpo" (p. 37).

É um objeto de gozo que aparece no real. K. nos dá a ver uma equação que se realiza não como filho-falo, mas como filho-morto, evidente num primeiro momento na relação com o menino. A menina, que parece surgir inicialmente como um dom, será também posteriormente marcada pelo voto de morte. Após o apaziguamento produzido pelo parto, K. pede, ao retornar para casa, que não seja deixada sozinha com a filha, a quem teme sufocar com o travesseiro. O desejo de matar um filho pode, às vezes, existir, mas em sentido figurado e não na realidade; porém, K. é considerada capaz disso. Há algo na maternidade que ela não consegue simbolizar.

Quanto ao objeto, a experiência do parto, na qual um corpo se abre para que outro saia, produz uma certa extração que apazigua. Se, para ela, o parto apazigua, o encontro com o bebê não será fácil. Num primeiro momento, ela afirma querer se ocupar da criança, presente a ser ofertado ao marido. Contudo, posteriormente, ela não consegue fazê-lo: ou a protege excessivamente ou dela se esquece. As solicitações da criança convocam a mulher a ocupar o lugar do Outro materno. Trata-se do Outro da demanda, da potência do dom. Entretanto, a experiência da maternidade confronta toda mulher, não ao que ela tem, mas ao que ela não tem. Diante dessa convocação, K. fica sem recurso, sem possibilidade de subjetivação da maternidade.

 

Referências

Biagi-Chai, F. (2014). Du fameux déni de grossesse. In: C. Alberti (Dir.). Être mère, p. 155-177. Paris: Navarin / Le champ freudien.         [ Links ]

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Cottet, S. (2008). Criminologia lacaniana. Almanaque On-line, 3(04) (revista do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais - IPSM-MG). https://almanaquepsicanalise.com.br/wp-content/uploads/2015/09/IV2.pdf (acessado em 28/07/2021).         [ Links ]

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Recebido em 24 de fevereiro de 2020
Aceito para publicação em 23 de setembro de 2020

 

 

Este artigo foi baseado na pesquisa "O que quer a mãe, hoje: um estudo sobre maternidade no século XXI a partir da psicanálise", financiada pela FAPEMIG - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais.
1 Agradecemos a toda a equipe da pesquisa: Laila Sampaio Parreiras, Clara Matos Ratton, Lucas Anselmo Polido Lopes, Beatriz Bissoli Laranja Gouvêa Pinto, Renata Lucindo Ferreira Mendonça e a toda a equipe do Instituto Raul Soares - Hospital de Ensino FHEMIG.
2 Agradecemos a Marina Recaldi e a Cristiane Barreto pelos comentários acerca do caso e a Ana Lidia Santiago pela condução de uma conversação realizada no hospital também a partir do caso.

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