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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.33 no.3 Rio de Janeiro set./dez. 2021

http://dx.doi.org/10.33208/PC1980-5438v0033n03A03 

SEÇÃO TEMÁTICA - O FAZER DA PSICOLOGIA NO BRASIL A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA PSICANALÍTICA: CLÍNICA, PESQUISAS E POLÍTICAS PÚBLICAS

 

As transformações do mal-estar e o lugar da psicanálise após a era da técnica

 

The changes in the malaise and the place of psychoanalysis after the technical era

 

Los cambios del malestar y el lugar del psicoanálisis después de la era de la técnica

 

 

Cleyton Sidney de AndradeI; Inácio Antonio Silva de MarizII

IPsicanalista. Doutor em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Linguística e Literatura da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Maceió, AL, Brasil. email: cleyton.andrade@ip.ufal.br
IIPsicólogo. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Maceió, AL, Brasil. email: inaciomariz@hotmail.com

 

 


RESUMO

O presente artigo tem como objetivo discutir as mudanças na leitura psicanalítica do mal-estar e da neurose com o início da era da técnica e a instrumentalização da relação do sujeito com o mundo, e com a mudança do lugar social da ciência. Veremos como tanto a ideia de mal-estar como a de sujeito neurótico se transformam desde a leitura freudiana em sua época. Nesse sentido, discutiremos a pertinência da psicanálise para pensar essas transformações, considerando sua relação com a ciência e com uma ideia de racionalização, inclusive de racionalização do desejo, nos dias atuais.

Palavras-chave: psicanálise; neurose; mal-estar; ciência.


ABSTRACT

This article aims to discuss the changes in the psychoanalytic reading of malaise and neurosis with the beginning of the era of technique and the operationalization of the subject's relation with the world and with the change in the social place of science. We look at how both the idea of malaise and the neurotic subject have changed since Freudian reading in his time. Thus, the pertinence of the psychoanalysis will be discussed in thinking about those changes, taking into consideration its relationship with science and with an idea of rationalization, including rationalization the desire, in our days.

Keywords: psychoanalysis; neurosis; malaise; science.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo discutir las transformaciones en la lectura psicoanalítica del malestar y de la neurosis empezando con el comienzo de la era de la técnica y la instrumentalización de la relación del sujeto con el mundo, y con el cambio del lugar social de la ciencia. Veremos como tanto la idea del malestar como la de un sujeto neurótico se cambiaran desde la lectura de Freud en su tiempo. En este sentido, debatiremos la relevancia del psicoanálisis para pensar sobre estas transformaciones, considerando su relación con la ciencia y con una idea de racionalización, incluido de racionalización del deseo, hoy en día.

Palabras clave: psicoanálisis; neurosis; malestar; ciencia.


 

 

O sujeito neurótico como saída para o mal-estar

Desde Freud até hoje, a racionalidade que rege nossas vidas mudou. A razão neoliberal baseada no consumo e no mercado impõe-se na criação de normas e de formas de vida. Um dos maiores desafios da psicanálise atual, mais de cem anos depois de sua constituição, é rever preceitos angulares que a sustentam, já que "as sociedades democráticas do fim do século XX deixaram de privilegiar o conflito como núcleo normativo da formação subjetiva" (Roudinesco, 2000, p. 19), pressuposto chave para a fundamentação da teoria psicanalítica.

No período que se estende ao longo do século XX, a experiência entre o sujeito e a linguagem sofreu uma significativa transformação que, em termos heideggerianos, está relacionada com uma "modalidade específica de perceber e compreender o mundo" segundo uma gramática de extração e acúmulo (Silva Jr., 2017). Esse período em que uma linguagem instrumental se apropria da relação entre os sujeitos, envolvendo o mundo inteiro como uma rede, é que denominamos, assim como Silva Jr. (2017), a era da técnica. A consolidação desse período de integração do sujeito com uma gramática técnica para orientar e definir suas ações no mundo, "a nada permitindo que lhe escape" (Silva Jr., 2017), pôs em xeque a ideia psicanalítica do conflito como núcleo normativo constituinte da subjetividade.

No entanto, o fato de o conflito aparentemente deixar de responder como núcleo normativo das subjetividades não quer dizer que ele deixou de existir. A presunção mais elementar é que a organização estrutural do núcleo normativo que constitui o conflito tenha mudado a ponto de nos fazer intuir que o conflito não está mais ali, operando um ponto de clivagem na constituição psíquica dos sujeitos. As expressões do mal-estar e do sofrimento que perpassam as sociedades ao longo do tempo, por exemplo, seguem sendo a manifestação da validade dessa estrutura.

No que se refere a esse conflito, o que a psicanálise revela sobre os sujeitos de sua época é um antagonismo estrutural entre exigências pulsionais e processo civilizatório, que em um primeiro momento se revela na forma de resistência a costumes e principalmente a uma certa moral sexual burguesa, e que se traduz na constituição sintomática (Freud, 1908/2015).

Nesse sentido, o interior da sociedade burguesa deve ser compreendido como um campo específico da representação dessas "formações que visavam construir compromissos a respeito de disposições afetivas contraditórias referentes à mesma representação mental" (Safatle, 2008, p. 21) que resultam no sintoma. A psicanálise não se refere em nenhum momento a problemas do social que requeiram uma resposta universalista que busque sanar o conflito. Para a psicanálise, trata-se de um conflito interno que se refere aos "índices de uma contradição interna na determinação do valor de uma representação" (Safatle, 2008, p. 21), expressos socialmente pelo mal-estar de uma época.

Por meio da experiência clínica, na época de Freud e ainda hoje, podemos identificar como se expressa essa relação do sujeito, este sujeito neurótico, com a realidade. Verificamos como a neurose consistiu em uma "resposta individual à crise ética da modernidade" (Kehl, 2002, p. 76), que se funda entre a queda dos poderes e verdades patriarcais e a necessidade de, diante dessa queda, "fazer emergir as pequenas verdades singulares, recalcadas" (Kehl, 2002, p. 35). Ou seja, a psicanálise surge para interrogar o sujeito contemporâneo no seu desenraizamento, em suas dimensões indissociáveis de liberdade e conflito.

A importância do que Kehl (2002) aponta está na maneira como o sujeito moderno, superado o momento de servidão involuntária, teve de lidar com uma verdade sobre si, que se institui entre a queda da lei - na própria figura do Pai/soberano - e a restauração dessa lei - na simbolização do Pai ou de algo que ocupe seu lugar. Resumidamente, a importância da psicanálise é que ela supõe "uma instância interna de controle [] responsável, a um só tempo, pelo desenvolvimento dos homens modernos como indivíduos diferenciados uns dos outros e pelo sofrimento que essa prática de auto-observação pode acarretar" (Kehl, 2002, p. 63-64). Assim, a partir da falta de referentes estáveis para a linguagem na modernidade, ao sujeito neurótico é possibilitado construir um saber seu, sobre sua verdade, só que sustentado naquilo que ele não sabe, que é da ordem de seu caráter clivado (pulsão, inconsciente, desejo).

Dessa forma, o sujeito psicanalítico contemporâneo chega à clínica descrevendo novos conflitos e expressando novas aparências para sua neurose. O dilema atual da psicanálise é reconhecer o sujeito do inconsciente, da falta e do conflito, diante de uma contemporaneidade que busca cada vez mais defini-lo como sujeito pleno, "idêntico a si mesmo e reconhecido pelo meio a que pertence pelas manifestações soberanas de sua vontade" (Kehl, 2002, p. 78).

 

As transformações na era da técnica e o sujeito neurótico

A análise do psiquismo por meio da neurose ocupou lugar central no pensamento de Freud. A neurose se refere ao conflito psíquico estrutural que funda os indivíduos, conflito esse relacionado ao sentimento de culpa ao qual estamos sujeitos. Mas não é sempre que Freud se utiliza do termo neurose para se referir a uma estrutura psíquica. Inicialmente, Freud falava sobre as neuroses, e não a neurose. Isso porque a hipótese inicial se referia às neuroses como dispositivos de defesa das experiências traumáticas da infância. Com o passar do tempo, a neurose é redescrita como "operação de reconstituição da força simbólica da paternidade" (Dunker, 2014, p. 88). A partir de 1924, o paradigma causal se altera e a neurose passa a ser compreendida como resultado do "processo de fusão e desfusão das pulsões, com a correlata clivagem do eu", que teria a tarefa de "conciliar na estrutura dos sintomas o eu" (Dunker, 2014, p. 90). Paradigma que justifica a neurose no interior de uma diagnóstica do social que, com a apreensão da ciência pelo capitalismo, tende a avançar para além do aspecto conflitual da neurose entre sintoma e identidade.

Nos dias de hoje, essas experiências indeterminadas são produzidas no interior de uma racionalidade que opera para eliminar a potência criativa do sofrimento indeterminado, desconsiderando, assim, a importância de um diagnóstico psicanalítico em torno das neuroses. A razão contemporânea, especialmente por meio da medicação, tende a unificar a história de vida dos sujeitos, seus sintomas e sua personalidade (Dunker, 2016). Essa razão esvazia a potência do sintoma. Segundo Dunker (2018, p. 322):

a gramática normativa e a uniformização dos sintomas a sua forma ocidental contemporânea são um processo ideológico relevante tanto porque funcionam como neutralização do potencial crítico que os sintomas psicológicos trazem para a compreensão de um determinado estado social quanto pelo papel que os sintomas sempre tiveram, de produzir laços sociais específicos.

Esse esvaziamento do papel da neurose no interior de uma diagnóstica social também pode ser creditado à forma como o saber da neurociência tem cooptado o debate sobre as ditas patologias mentais. Atualmente, a narrativa do sujeito neurótico, suas metáforas e experiências de linguagem é facilmente alinhada a um vocabulário da neurociência que explica as alterações e variações nas histórias dos sujeitos pela relação imediata que essas mudanças têm com a distribuição e receptação de neurotransmissores (Dunker, 2016). As palavras singulares de cada sujeito são substituídas por termos como dopamina, serotonina e endorfina, exclusivos da explicação neurocientífica das modificações cerebrais. De certa forma, esse tipo de razão também reflete no efeito da experiência clínica sobre os sujeitos nos dias atuais, especialmente no que diz respeito à clínica das neuroses. Para Dunker (2016, p. 122):

O real prejuízo que temos com o sequestro da noção de neurose, para o tratamento de nossos pacientes, não é que agora eles não querem mais saber da arqueologia infantil, nem das conexões sexuais e esquecidas na gênese histórica de seus sintomas, mas que eles se vejam sancionados, por um dispositivo diagnóstico com força de lei e poder disciplinar, na desconexão entre seus próprios sintomas [] A neurose opera a desconexão entre contextos narrativos, como que a dizer que a vida sexual é uma coisa, a profissional é outra, a familiar uma terceira coisa, os cuidados com o corpo algo à parte, as fases da vida um problema isolado.

A neurose é importante justamente por causar uma desconexão entre as narrativas das nossas vidas perante "o mal-estar que preside as insuficiências das articulações entre sofrer e ter um sintoma" (Dunker, 2016, p. 123). A resposta a essa desconexão e ao mal-estar vem com a elaboração de um vínculo das diversas narrativas sobre os sujeitos em uma nomeação singular de si mesmo (Dunker, 2016). Mas, em tempos de DSM1, isso deixa de acontecer. O neoliberalismo contabiliza e equaliza o sofrimento, redefinindo-o em formalizações reducionistas e enquadrando-o em manuais diagnósticos que o nomeiam com o intuito exclusivo de eliminá-lo por meio da supressão dos sintomas pela introdução dos psicofármacos, forma de tratamento reiterada principalmente pelo avanço das neurociências (Barreto & Iannini, 2018).

A mudança nos termos que sustentam a racionalidade atual, no que concerne ao sofrimento e ao mal-estar, fez autores como Dufour (2005, p. 20-21) afirmarem que o sujeito neurótico freudiano "com suas fixações compulsivas, e suas tendências à repetição, não oferece a melhor garantia da flexibilidade necessária às 'conexões' múltiplas no fluxo das mercadorias", e que esse sujeito específico foi superado pela forma como o neoliberalismo dissolve o sujeito tradicional moderno em um sujeito esquizoide - aquele mesmo descrito por Deleuze (em Deleuze & Guattari, 2010).

Para Dufour (2005), as trocas, desde as afetivas, são representadas pela circulação incessante das mercadorias, e esse modo de circulação faz com que a razão neoliberal consiga causar efeitos na estrutura psíquica do sujeito. O mal-estar que poderia ser gerado pela compulsividade à repetição, possível efeito do fluxo das mercadorias, por exemplo, na cultura do consumo, tenderia a ser barrado pela eficácia do próprio modo de circulação em incitar a "reconfiguração contínua e a construção performativa de identidades" (Safatle, 2015, p. 214). Mas Dufour não é psicanalista e, como dito anteriormente, apesar de uma mudança na maneira como o conflito responde aos termos da racionalidade de uma época, mesmo que aparentemente radical ao ponto de tentar destituir a neurose do sujeito, isso não representa o fim desse sujeito.

Segundo Safatle (2015, p. 214), "o setor mais avançado da cultura do consumo [] forneceria apenas a forma vazia da reconfiguração contínua de si que parece aceitar, dissolver e passar por todos os conteúdos". Se na modernidade podíamos falar de uma forma de coerção que era ao mesmo tempo desejada e estruturante, e se podemos dizer que essa forma de coerção era responsável pela criação das neuroses, no neoliberalismo basta integrar a fantasia dos sujeitos ao próprio fluxo das relações mercantis como forma de resolver as queixas que as neuroses causam, como se houvesse agora uma gestão das neuroses. Dufour (2005) tenta marcar o que delimita a continuação do sujeito pensado por Freud para a sua integração à circulação e ao fluxo contínuo. Segundo ele,

é preciso que os fluxos de mercadorias circulem e eles circulam ainda melhor porque o velho sujeito freudiano, com suas neuroses e suas falhas nas identificações que não param de se cristalizar em formas rígidas antiprodutivas, será substituído por um ser aberto a todas as conexões. (Dufour, 2005, p. 21)

Um ser aberto a todas as conexões. Assim se configura a nova estrutura constituinte do sujeito, que se identifica cada vez mais com as flutuações das identificações (Safatle, 2015). Se isso diz de uma franca mudança na forma como o discurso freudiano incide nas questões sobre o sujeito, efetivamente no tocante ao mal-estar e ao sofrimento, ao mesmo tempo percebemos que a mudança se dá principalmente na forma como os sujeitos são interpretados numa determina época, ou seja, a maneira como a neurose, ou neste caso as neuroses, sofrem os efeitos da linguagem de uma determinada época. Trata-se mais de uma recuperação do dizer sobre o mal-estar, agora não apenas pela nomeação das neuroses, como também pela avaliação dos efeitos que a racionalidade de uma época faz incidir sobre o sujeito. O sujeito freudiano não seria tão velho assim, como afirma Dufour.

 

O lugar da psicanálise na era da técnica

Para Silva Jr. (2018, p. 39), no pós-guerra, "uma nova linguagem havia se apropriado da relação entre os sujeitos e o mundo, uma linguagem instrumental", inaugurando uma nova era e uma nova gramática, e "essa nova gramática de extração e acúmulo, gramática na qual a existência passa a ser dita, seria 'técnica'" (Silva Jr., 2018, p. 39). É a partir desse argumento heideggeriano (ver Heidegger, 2007) que Silva Jr. (2018, p. 35) defende que "o mal-estar na cultura atual é radicalmente diferente daquele diagnosticado por Freud", ocasionando, consequentemente, uma mudança nos aspectos das neuroses.

No entanto, o fato de esse sujeito continuar forçando a criação de meios para expressar o mal-estar renova os desafios para a psicanálise, especialmente no que diz respeito às surpresas que as novas manifestações do mal-estar causam na teoria e práticas clínicas. Isso tudo só mostra como o mal-estar continua a oferecer uma potência disruptiva que permite compreender a insistência dos esforços civilizacionais, ao mesmo tempo em que expõe a violência oriunda desses esforços. Para Safatle (2018, p. 10):

Nossas sociedades realizaram o fim das neuroses, mesmo que isso não signifique uma liberação da vida de suas teias de culpabilidade, insatisfação e fixação temporal. Isso significou apenas a eliminação de certas formas de narrativa, de certas dinâmicas de sofrimento, de certos modos de sintoma, inibição e angústia em prol de outros. (grifos nossos)

De certa forma, a tarefa da psicanálise continua animada pelo caráter subversivo e contra-hegemônico do seu saber na investigação do inconsciente, no que concerne também a uma teoria clínica que se desdobra em torno da verdade dos sujeitos e à maneira como compreendemos a instituição e a organização dos laços sociais para além dos discursos vigentes. Isso quer dizer que, da mesma forma como Freud adotou o estudo das neuroses para construir as narrativas de sua época - vide textos como A moral sexual civilizada e as considerações de Freud sobre as neuroses de guerra, por exemplo -, interessa à psicanálise do nosso tempo acompanhar os efeitos causados pela racionalidade contemporânea no sujeito que conhecemos como neurótico, na medida em que é a vida pulsional que continua sendo do interesse da psicanálise, uma "vida que só poderia ser socializada por algo como sistemas de normas não funcionais, ou seja, que não visem determinar modelos gerais e estáveis de individualidade" (Safatle, 2015, p. 319). O mal-estar nos dias atuais, nesse sentido, serve como "um conceito central por descrever a existência de um sofrimento social maior, relativo não à desregulação das normas sociais, mas à própria normatividade dos processos de individuação e de personalização" (Safatle, 2015, p. 318).

Isso não quer dizer que a leitura do mal-estar prescinde da neurose como forma excelente e possível de nomeação. No entanto, o mal-estar não está intrinsecamente relacionado à saída pela neurose. O sujeito neurótico freudiano serviu principalmente para demonstrar como um sentimento de culpa foi constituinte do sujeito na modernidade (Kehl, 2002). Nesse sentido, a saída neurótica teria sido a interpretação mais adequada para Freud em sua época, e conforme mudaram as formas de repressão que causavam e ainda causam o conflito, o lugar da neurose no interior das relações sociais também foi modificado.

A era da técnica não representa o fim do sujeito neurótico, mas evidencia que, mais do que uma nomeação, o que está em jogo na constituição desse sujeito é o mal-estar que incide na sua relação com a cultura, já que essa noção freudiana continua sendo a expressão do excesso de onde se extrai a própria força motriz que guia a civilização. Além da manifestação radical das incongruências dos valores que circulam em determinado tempo da história, o mal-estar é a própria forma daquilo que, anterior a uma gramática, demanda desmedida e imperiosamente alguma inscrição, alguma forma de registro. É a essa exigência que a psicanálise desde seu princípio busca dar algum retorno. Interessa à psicanálise como "a noção freudiana de mal-estar pode fornecer uma perspectiva de avaliação de patologias sociais distinta daquela baseada na hegemonia do diagnóstico de anomia" (Safatle, 2019, p. 319).

Mais do que compreender o conceito de mal-estar em psicanálise ontem e hoje, o que nos interessa é a forma como ela reconhece essa condição imanente na constituição do sujeito, que agora a razão contemporânea age para expropriar, por meio de sua integração às normas sociais profundamente mercantis e consumistas.

A psicanálise segue como um "terreno em que se articulam as linhas de força que produzem o sujeito desgarrado das grandes formações sociais estáveis" (Kehl, 2002, p. 60). Dessa forma, ela compromete a efetividade dos discursos que mantêm e reproduzem as relações no interior da racionalidade neoliberal, em dois sentidos especialmente: primeiro, no que diz respeito à própria condição de sujeito, pois para a psicanálise este é sempre clivado e indeterminado, em detrimento da razão neoliberal que busca determiná-lo de forma muito precisa; e segundo, no que concerne às particularidades de sua relação com a racionalidade, pela forma como ela mesma se constitui como saber que aponta para os impasses da razão em cada época.

Como vimos até agora, é possível resgatar com a psicanálise o reconhecimento de um sujeito que não se fecha em uma estrutura rígida ou que, diante da multiplicidade possível dos vínculos de identificações, não se submete pura e somente aos fluxos mercantis ou às narrativas que a neurose oferece nas formas do sintoma. Por isso, analisar esses resíduos identitários apenas por meio da modalidade das neuroses parece não ser mais suficiente para criar um campo de reconhecimento profícuo, como foi aquele do estudo das neuroses, imprescindível para entender as modalidades de sofrimento a partir do século XIX. De forma alguma isso quer dizer de uma impotência da psicanálise diante do impasse sobre as neuroses, mas, sim, a constatação de como a teoria psicanalítica avança como uma experiência clínica, com "a produção de um estilo, que responda à singularidade da relação do sujeito com o seu desejo [] no lugar da compulsão do neurótico, de tudo conhecer / tudo explicar" (Kehl, 2002, p. 73).

A psicanálise põe-se diante de uma racionalidade que visa a contornar a indeterminação que está na fundação dos sujeitos com promessas de realização e de ganhos que a flexibilização das identidades e o "consentimento moral" (Safatle, 2015) a essa flexibilização podem oferecer. Contornar, nesse caso, refere-se mais à possibilidade de reconhecer essa indeterminação que se encontra fora do cálculo da racionalidade devido a sua forma antipredicativa, do que assumir o risco de integrar essa indeterminação a uma gramática que integra, entre outras coisas, o caráter neurótico do sujeito.

Por isso, embora possa parecer contraditório, as noções de mal-estar e neurose, e as questões em que ambas se desdobram, continuam indispensáveis. A importância dessas noções pode ser ampliada na medida em que dirigimos nosso olhar para "fora" da psicanálise e consideramos que as mudanças da racionalidade científica a partir do início do século XX fazem com que as reflexões psicanalíticas alarguem-se para além dos limites que a época de Freud estipulava. Esse olhar para fora se refere à necessidade de refletir, como faz Silva Jr. (2017, 2018), sobre a indissociabilidade entre a psicanálise e a visão de mundo científica, esta última responsável por aproximar as narrativas neuróticas do campo das normatividades, esvaziando sua potência como chave de leitura para o mal-estar no interior da gramática psicanalítica.

 

A psicanálise e a visão de mundo científica

No que concerne à relação da psicanálise com a visão científica de mundo, é preciso reconhecer como a "elevação" do discurso psiquiátrico "a uma lógica industrial, indissociável da manipulação dos consumidores pelo marketing" (Silva Jr., 2017, p. 173) produziu "efeitos sobre os modos de narração do sofrimento, como a rarefação da figura do destino nas narrativas autobiográficas do sujeito" (Silva Jr., 2017, p. 174), relevantes às formulações psicanalíticas. Essa "elevação" dos discursos psiquiátricos à lógica mercantil é indício da mudança do lugar social da ciência, refletida em diversos campos do saber, incluindo a psicanálise. Para Silva Jr. (2017, 2018), uma profunda reflexão sobre a mudança do lugar social da ciência é imprescindível para uma revisão das formas de sofrimento psíquico que sirva novamente como uma potente gramática diagnóstica sobre o mal-estar nos dias de hoje.

Quando insiste na adoção de uma visão científica da época para sua epistemologia, Freud não toma a ciência como um saber totalizante. Não era esse o espírito científico da época. Pelo contrário, "trata-se de uma visão de ciência pautada pela busca paciente e fragmentária do saber" (Silva Jr., 2018, p. 35). A mudança do lugar social da ciência que ocorre no período pós-industrial, segundo Silva Jr., é responsável pelo "ponto cego" da teoria freudiana na análise dos "fenômenos psíquicos e os sofrimentos sociais da era da Instalação" (2018, p. 186-187, grifo do autor). Dessa forma,

a compreensão do atual funcionamento social da ciência é necessária para que se apreendam seus efeitos no sujeito enquanto novos modos de subjetivação, ou seja, de que modo o sujeito participa, ocupa seu lugar e resiste ao que lhe é oferecido como o 'sentido do (seu) sofrimento'. (Silva Jr., 2018, p. 36, grifo do autor)

Se retomamos a maneira de pensar de Freud, vemos que até 1920 ele presume que o processo civilizatório requer uma renúncia à satisfação pulsional, e "tal renúncia é compensada seja por expressões deformadas da satisfação, a saber, os sintomas neuróticos, seja pela sublimação, isto é, por expressões culturalmente aceitáveis de sexualidade" (Silva Jr., 2017, p. 175). Mas, a partir de 1920, a constatação de Freud, especialmente com a noção de pulsão de morte, é que "toda sublimação exigiria uma regressão libidinal preliminar ao seu posterior desvio para novos objetos socialmente valorizados" (Silva Jr., 2018, p. 49), isto é, um retorno ao narcisismo. Esse retorno ao narcisismo teria como efeito uma "deserotização importante da libido" (Silva Jr., 2018, p. 49), fazendo com que "o mal-estar na civilização adquire[isse] uma segunda faceta, ao lado daquela dos sintomas neuróticos, a saber, aquela da deserotização e da consequente liberação de forças pulsionais agressivas" (Silva Jr., 2017, p. 175).

Dessa forma, o mal-estar, além de produzir os sintomas neuróticos, teria relação com o conteúdo de verdade dos sujeitos que a agressividade pulsional preserva, mais precisamente com a "relação deficitária dos discursos com a verdade histórica dos sujeitos e de sua vida pulsional" (Silva Jr., 2017, p. 175), que é o que essa agressividade representa. A essa expressão do mal-estar é que se refere o "impasse entre pulsionalidade, cultura e patologia" (Silva Jr., 2017, p. 175) na teoria psicanalítica.

Diante do fato de que "as grandes narrativas de uma cultura, seus ideais, suas exigências morais, podem fazer adoecer na medida em que estabeleçam relações deficitárias dos seus sujeitos com a verdade de sua história e de seus desejos" (Silva Jr., 2017, p. 175), para Freud, apenas a Weltanschauung, a visão de mundo científica, poderia servir como registro de reconhecimento do conteúdo de verdade dos sujeitos, pois "em vez da totalidade e da imediatez, a Weltanschauung científica seria definida pela fragmentariedade, pela incompletude e pelo adiamento de sua relação com a verdade" (Silva Jr., 2017, p. 177). Nas palavras de Safatle (2015, p. 124):

O discurso científico em sua versão freudiana quebra a ilusão da providência por não assumir perspectivas teleológicas finalistas, produz o desamparo por não fornecer totalidades funcionais estáveis (como seria, ao menos segundo Freud, o objetivo do discurso filosófico) e nos colocar diante da irredutibilidade do contingente.

Em psicanálise, o discurso científico funcionaria como um efeito do qual resulta um saber não necessariamente formalizado. Assim, se por um lado a ciência exige uma nomeação, por outro ela produziria desamparo a partir da condição do sujeito diante da irredutibilidade da vida. Podemos afirmar, a partir da psicanálise, que aquilo que se refere ao irredutível do sujeito expressa sua verdade. Dessa forma, se em Freud "o discurso científico deve ser considerado como aquele que não cede sobre a verdade, isto é, não se sujeita às ilusões confortáveis, como o faz o discurso religioso" (Silva Jr., 2018, p. 52), a ciência emergiria sempre como a possibilidade de criação de um novo saber - um saber verdadeiro - sobre os sujeitos. Para Silva Jr. (2017, p. 188), "o que a Weltanschauung científica de Freud não chega assim a considerar é a possibilidade da própria racionalidade científica pudesse se transformar em discurso radicalmente operacional, e, contudo, simultaneamente moral", o que de fato aconteceu e se radicalizou ao longo do tempo. Ainda conforme o autor:

Com efeito, esse inquietante funcionamento que o discurso científico assume na organização social não pode ser capturado pela crítica freudiana, apoiada em uma versão do discurso científico que estaria imune ao seu funcionamento no psiquismo na chave de depósito da totalidade da verdade. Tudo se passa como se a racionalização, figura tão familiar a Freud no âmbito da clínica psicanalítica, tivesse se transformado em uma nova moral cultural precisamente pelo seu caráter totalizante, isto é, na medida em que é tomada como a única forma de saber. (Silva Jr., 2017, p. 189)

Um dos encaminhamentos dados por Lacan para o problema da relação entre psicanálise e ciência é compreender o próprio saber científico como causa do mal-estar. Ele faz isso na medida em que articula ciência e saber como dois campos totalmente conciliáveis na modernidade (Lacan, 2008), dado que direciona o debate sobre o estatuto científico da psicanálise justamente para a questão do sujeito do capitalismo.

Segundo Lacan (2008, p. 38), "a realidade capitalista não tem relações muito ruins com a ciência", especialmente pela forma como o mal-estar que reafirma a verdade dos sujeitos, e que Lacan definiu como mais-de-gozar, passou a ter reconhecimento por meio do discurso marxista, que aproxima esse mais-de-gozar da mais-valia, na medida em que esta se torna o limite de apreender o valor de verdade do sujeito a partir da leitura marxista da relação do sujeito com a forma-mercadoria, ou seja, no interior do discurso de uma economia política (Žižek, 1996). Acontece que, para Žižek (1996, p. 301), "a mercadoria permanece, para a economia política clássica, como uma coisa misteriosa e enigmática", incapaz de produzir pela mais-valia alguma expressão de verdade que possa se referir ao mais-de-gozar lacaniano.

Por isso, para Lacan (2008, p. 3), aproximar o mais-de-gozar e a mais-valia marxista no interior da razão capitalista tem como resultado apenas um saber "fruto dos meios de articulação que constituem o discurso capitalista", e não uma experiência de fragmentariedade, incompletude e adiamento da verdade, a que se referia em outros tempos o pensamento freudiano, quando se reportava à visão científica. Logo, a mais-valia é somente a "incidência científica em algo que é da ordem do sujeito" (Lacan, 2008, p. 38). Ainda de acordo com Lacan (2008), é sobre discursos como esse que se funda o sujeito capitalista.

Para Lacan (2008), é como sendo um saber que a ciência conflui-se com uma racionalidade, na medida em que aquilo que é da ordem do gozo necessita inserir-se na linguagem, e isso acontece somente na forma de um saber científico que procura ser equivalente a uma verdade do sujeito. Assim, "o próprio processo pelo qual a ciência se unifica, no que ela extrai seu nó de um discurso consequente, reduz todos os saberes a um único mercado" (Lacan, 2008, p. 40).

No entanto, a psicanálise não procura uma localização coerente em relação ao saber científico de uma época. O próprio Lacan (2008, p. 19) aponta para isso, ao dizer que:

Se o mercado dos saberes, muito apropriadamente, está abalado pelo fato de a ciência lhe trazer essa unidade de valor que permite sondar o que acontece com sua troca, inclusive em suas funções mais radicais, certamente não é para que a psicanálise se faça presente por sua própria demissão, quando ela é perfeitamente capaz de articular algo a esse respeito. Todos os termos empregados a propósito disso, tais como 'não conceituação', toda a evocação de sabe-se lá que impossibilidade, designam apenas a incapacidade daqueles que os promovem.

Na medida em que esse mercado de saberes reconhece como mercadoria "um objeto qualquer do trabalho humano" (Lacan, 2008, p. 19), ele cria a mais-valia, enquanto à psicanálise é possível reconhecer o mais-de-gozar como "função da renúncia ao gozo sob efeito do discurso" (Lacan, 2008, p. 19), renúncia necessária em razão da própria limitação do discurso científico. A ciência não é capaz de ir além disso, não é capaz de ir além do discurso.

Segundo Iannini (2008, p. 197), "as críticas feitas pela psicanálise à ciência dizem respeito à exigência de um fundamento suficiente, ao ideal de completude, e igualmente, à ideia segundo a qual a ciência poderia se erigir como 'tribunal do verdadeiro'". A recuperação da temática do sujeito feita por Lacan "consiste em subverter a teoria moderna do sujeito" (Iannini, 2008, p. 197), reconhecendo o sujeito marcado por uma divisão essencial como aquele que sofre efeitos advindos das ordens imaginária, simbólica e real, e não como fundamento do conhecimento que institui saberes ou ainda como sujeito da livre vontade.

O trabalho indissociável entre ciência e razão reflete na psicanálise porque dele resulta o sujeito sobre o qual a psicanálise opera, reconhecendo, entre outras coisas, as expressões de sofrimento que esse trabalho produz. Para Iannini (2008, p. 198), "a psicanálise nasce no Universo já constituído pela ciência moderna e não sonha com algum idílico estado de coisas anterior ao corte que a matematização e a infinitização do universo impuseram". A psicanálise não é produto do trabalho da ciência, ela opera no sujeito produzido nesse universo científico sem submeter-se à razão e à cientificidade.

Como diz Roudinesco (2000, p. 125), "se a psicanálise realmente se formou numa ruptura com os saberes oficiais, ela extraiu sua força não de uma revalorização dos saberes ocultos, mas do conhecimento racional de fenômenos outrora marginalizados". Esse conhecimento marginalizado tem a ver com a irredutibilidade do contingente a que se refere Safatle (2015), pois a psicanálise abriu todo um campo de investigação, que permanecerá aberto enquanto o inconsciente existir.

O desdobramento dessa transformação da leitura sobre a ciência desde Freud, chegando aos dias de hoje, em que o neoliberalismo captura a ciência como equivalente aos discursos institucionais e institucionalizantes, é uma ideia de inconsciente como sendo ele mesmo a representação do domínio do neoliberalismo sobre todos os aspectos da subjetividade humana - algo discutido por autores como Dardot e Laval (2015), uma vez que ganha força, segundo os autores, uma ideia de racionalidade capaz de atender aos desejos mais legítimos do sujeito.

Tudo acontece como se as liberdades e as escolhas dos sujeitos girassem em torno do próprio desejo. Para Dardot e Laval (2015, p. 333), esse regime que visa a que os sujeitos governem a si próprios "pressupõe todo um trabalho de racionalização até o mais íntimo do sujeito: uma racionalização do desejo". Segundo os autores, "trata-se agora de governar um ser cuja subjetividade deve estar inteiramente envolvida na atividade que se exige que ele cumpra. Para isso deve-se reconhecer nele a parte irredutível do desejo que o constitui" (Dardot & Laval, 2015, p. 327). Essa pode ser uma forma de dizer que os indivíduos se sujeitam à ethos empresarial, como se essa ethos possibilitasse a experiência de um desejo legítimo.

A eficácia desse processo está em que "o ser desejante não é apenas o ponto de aplicação desse poder; ele é o substituto dos dispositivos de direção das condutas" (Dardot & Laval, 2015, p. 327). Por isso nessa ética combinam tão bem o trabalho sobre a racionalização do desejo e as condutas do sujeito, isto é, seu desempenho e sua performance, como se a experiência de um desejo legítimo pudesse ser alcançada mediante um esforço, uma tentativa de superação, uma ação de risco que conduziria os sujeitos ao máximo desempenho e à mais alta performance como meios para alcançar o que desejam.

Mas há um sério problema quando se fala em racionalização do desejo, quando pensamos o desejo como um conceito psicanalítico. A interpretação dos sonhos de Freud, por exemplo, é uma gramática própria de interpretação do desejo - e gramática porque nada tem a ver com uma racionalização ou discurso -, na medida em que sonhar é o meio excelente de o inconsciente revelar o conteúdo recalcado que corresponderia justamente ao desejo do sujeito. Para Kehl (2002, p. 116), "o desejo é o impulso psíquico originado pela intervenção da linguagem nas primeiras satisfações parciais da pulsão", isto é, o desejo corresponde a uma condição anterior aos discursos da racionalidade. Ambas assertivas indicam que o desejo é impossível de ser racionalizado. A psicanálise de Freud seria uma gramática do reconhecimento que se propõe a interpretar o desejo, ou aquilo que é da ordem do desejo. E esse reconhecimento só é possível fora do campo da razão e dos seus termos.

 

Considerações finais

Por fim, seja como uma teoria ou uma clínica das neuroses e do desejo, a psicanálise continua interessada pelo conflito estruturante que funda o sujeito ao longo do tempo, e que, na sua época, Freud nomeou de mal-estar. Como uma clínica do mal-estar, é possível dizer que a psicanálise de Freud produziu uma extensa diagnóstica em torno da neurose, que possibilitou, durante muito tempo, a compreensão da sociedade a partir de um trabalho entre clínica e crítica (Safatle, 2015).

Com o passar do tempo, especificamente com o início da chamada era da técnica, os discursos em torno do sujeito neurótico freudiano sofreram transformações - o que não quer dizer que esse sujeito ou que o conflito que o funda como neurótico deixaram de existir. A era da técnica, que corresponde ao período de instrumentalização da relação do sujeito com o mundo, representa uma virada da subjetividade e dos discursos dos sujeitos. Assim, Freud interpretou a neurose como a saída mais adequada para o conflito ocasionado pela repressão em razão do lugar social de certos discursos que conformaram o sujeito (Kehl, 2002) em sua época. Já a mudança do lugar social dos discursos da ciência, que são aqueles fundamentais para a constituição dos sujeitos, ocasionou efeitos e contornos no sujeito neurótico freudiano como o conhecíamos. Isto é, as neuroses se transformaram profundamente com o passar do tempo.

No entanto, apesar da mudança do lugar social da ciência, a psicanálise segue como um saber produzido para além das formações sociais estáveis (Kehl, 2002), comprometendo, dessa forma, a efetividade dos discursos no interior da racionalidade contemporânea, que busca determinar o sujeito e suas neuroses de forma muito precisa. Diante de uma ideia equivocada de desejo racionalizado, a psicanálise segue como saber capaz de realizar importante crítica à razão, pois como ela nos ensina, é impossível supor uma racionalização do desejo. O trabalho teórico e clínico de Freud demonstra como o desejo só pode ser compreendido como algo relacionado à verdade dos sujeitos, isto é, correspondente ao seu inconsciente.

 

Referências

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Recebido em 18 de agosto de 2020
Aceito para publicação em 04 de dezembro de 2020

 

 

Este trabalho é resultado de pesquisa de mestrado em Psicologia desenvolvida no Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFAL e foi subvencionado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
1 Sigla para Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, traduzido como Manual Estatístico e Diagnóstico de Transtornos Mentais. "O DSM é a classificação construída para a era dos psicofármacos. Os diagnósticos são simplificados, e os sintomas, explicitados como alvos numa perspectiva sintonizada com as pesquisas e apropriada para o emprego clínico de tais medicamentos. A cada diagnóstico se busca fazer corresponder um tratamento específico: eis o princípio básico dos algarismos terapêuticos. Passou a existir hegemonia ampla do método estatístico, em função do qual os dados são tratados sob o manto da generalização." (Barreto & Iannini, 2018, p. 45)

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