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Psicologia Clínica

Print version ISSN 0103-5665On-line version ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.33 no.3 Rio de Janeiro Sep./Dec. 2021

http://dx.doi.org/10.33208/PC1980-5438v0033n03A05 

SEÇÃO TEMÁTICA - O FAZER DA PSICOLOGIA NO BRASIL A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA PSICANALÍTICA: CLÍNICA, PESQUISAS E POLÍTICAS PÚBLICAS

 

Delineamento de pesquisa no campo psicanalítico: Uma proposição sintética

 

Research design in the psychoanalytic field: A synthetic proposition

 

Diseño de investigación en el campo psicoanalítico: Una propuesta sintética

 

 

Érico Bruno Viana Campos

Psicólogo, mestre e doutor em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Professor assistente doutor do Departamento de Psicologia da Faculdade de Ciências de Bauru da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Bauru, SP, Brasil. email: erico.bv.campos@unesp.br

 

 


RESUMO

Este ensaio visa a revisar a problemática metodológica inerente ao campo psicanalítico e apresentar orientações que norteiem a elaboração de pesquisas com essa abordagem, considerando o contexto atual do paradigma qualitativo de pesquisa em ciências humanas e da saúde. Propõe-se que o critério fundamental seja a utilização ou não do método psicanalítico e sua associação a outros meios de investigação, configurando três grupos de delineamentos: (1) pesquisa sobre psicanálise, que ocorre sem o recurso ao método psicanalítico, onde se localizam os estudos teóricos ou documentais que abordam no âmbito da investigação da história e epistemologia das ideias psicanalíticas ou de sua dimensão sociocultural e filosófica; (2) pesquisa em psicanálise, que compreende os estudos empíricos que utilizam o método psicanalítico, onde se localizam os estudos tradicionais de casos clínicos no modelo psicoterápico e os estudos baseados em práticas ampliadas para contextos grupais, institucionais e socioculturais no âmbito da saúde, educação, trabalho ou comunidade; (3) pesquisa com psicanálise, onde se encontram os delineamentos de pesquisa empírica que utilizam os fundamentos teórico-metodológicos da psicanálise associados a estratégias metodológicas de outros campos para a coleta e análise de dados clínico-qualitativos.

Palavras-chave: psicanálise; metodologia; pesquisa qualitativa.


ABSTRACT

This essay aims to review the methodological problems inherent to the psychoanalytic field and present guidelines for research development with this approach, considering the current state of the qualitative research paradigm in the humanities and health sciences. It is proposed that the fundamental criterion is the use or not of the psychoanalytic method and its association with other means of investigation, outlining three groups of designs: (1) research on psychoanalysis, which occurs without the use of the psychoanalytic method, which comprises theoretical or documental studies that approach it in the context of investigating the history and epistemology of psychoanalytic ideas or their socio-cultural and philosophical dimension; (2) research in psychoanalysis, which includes the empirical studies that use the psychoanalytical method, comprising traditional studies of clinical cases in the psychotherapeutic model and studies based on extended practices for group, institutional and socio-cultural contexts in the scope of health, education, work or community; (3) research with psychoanalysis, which covers empirical research designs that use the theoretical and methodological foundations of psychoanalysis associated with methodological strategies from other fields for the collection and analysis of clinical-qualitative data.

Keywords: psychoanalysis; methodology; qualitative research.


RESUMEN

Este ensayo tiene como objetivo revisar los problemas metodológicos inherentes al campo psicoanalítico y presentar pautas que orienten el desarrollo de la investigación en este enfoque, considerando el contexto actual del paradigma de la investigación cualitativa en las humanidades y las ciencias de la salud. Se propone que el criterio fundamental es el uso o no del método psicoanalítico y su asociación con otros medios de investigación, configurando tres grupos de diseños: (1) investigación sobre el psicoanálisis, que se da sin el uso del método psicoanalítico, donde se encuentran los estudios teóricos o documentales que abordan en el contexto de la investigación de la historia y epistemología de las ideas psicoanalíticas o su dimensión sociocultural y filosófica; (2) investigación en psicoanálisis, que incluye los estudios empíricos que utilizan el método psicoanalítico, donde están los estudios tradicionales de casos clínicos en el modelo psicoterapéutico y los estudios basados en prácticas extendidas para contextos grupales, institucionales y socioculturales en el ámbito de la salud, la educación, trabajo o comunidad; (3) investigación con psicoanálisis, donde se encuentran los diseños de investigación empírica que utilizan los fundamentos teóricos y metodológicos del psicoanálisis asociados a estrategias metodológicas de otros campos para la recolección y análisis de datos clínico-cualitativos.

Palabras clave: psicoanálisis; metodología; investigación cualitativa.


 

 

Introdução

Este artigo, de caráter ensaístico, visa a revisar a problemática metodológica inerente ao campo psicanalítico, considerando o contexto atual da pesquisa e da formação no âmbito científico-acadêmico e profissional na área da psicologia, em que se destacam o paradigma qualitativo em ciências sociais e da saúde, o movimento das práticas baseadas em evidências e as demandas éticas de pesquisa e comunicação científica. Seu objetivo é apresentar referências e parâmetros que norteiem a elaboração de delineamentos de pesquisa no campo de uma forma sintética, com intuito didático e como forma de oferecer subsídios para um consenso na área. Trata-se de uma proposta de discussão dos modelos vigentes no âmbito da literatura brasileira e da realidade da psicanálise que se faz na universidade e na psicologia, baseada na experiência acumulada do autor como docente, pesquisador e orientador no âmbito da graduação e pós-graduação em psicologia. Nesse sentido, este artigo retoma e amplia as discussões e proposições de um trabalho apresentado há cerca de dez anos (Campos, 2008), a partir de referências atualizadas.

A justificativa para a escrita deste artigo veio da percepção que a questão sobre a metodologia de pesquisa no campo psicanalítico ainda é pertinente e atual. A formação de competências de pesquisa é um aspecto importante da formação. Silva et al. (2020), por exemplo, em seu relato de experiência, trazem um pertinente destaque para a relevância da discussão do trabalho de pesquisa no ensino de graduação e pós-graduação, mostrando como essa interlocução tem sido feita em alguns espaços acadêmico-universitários. Contudo, ainda encontramos dificuldade em encontrar apresentações didáticas e sistemáticas de fundamentação metodológica em psicanálise, tanto específicas na literatura psicanalítica quanto em manuais de metodologia de pesquisa. Além disso, a própria abrangência da problemática de pesquisa no campo psicanalítico tem se transformado em relação à forma como se circunscreveu inicialmente na formação em psicologia no país.

Desde os fundamentos freudianos entende-se que a psicanálise é constituída por um método que é simultaneamente terapêutico e investigativo, bem como por uma teoria derivada da aplicação desse método. Esse método é essencialmente clínico e interpretativo, definido pela chamada regra fundamental da associação livre como condição da emergência da transferência como eixo central do trabalho psicanalítico. Apesar de todas as particularidades do enquadre analítico padrão, é na singularidade da escuta analítica que se fundamenta a especificidade do método psicanalítico (Campos, 2010). Assim, a emergência do objeto da psicanálise, o inconsciente, é função da constituição de uma escuta específica, instrumentada por um método próprio. Nesse sentido, o método psicanalítico é essencialmente um só. O que varia é sua instrumentação técnica, em diferentes enquadres e com estratégias variadas.

No que concerne à estrutura do campo psicanalítico, Mezan (1988, 2014) indica que há necessariamente quatro níveis de teorização: a metapsicologia, o desenvolvimento, a psicopatologia e a teoria da técnica. É nesse último nível que se localizam propriamente as discussões metodológicas, que incluem não só as questões inerentes ao modelo psicoterápico, mas toda e qualquer caracterização dessa natureza no campo. Além disso, a psicanálise se assenta em três fontes distintas, que precisam ser igualmente consideradas e integradas na compreensão das problemáticas que lhe são inerentes: a clínica, a teoria e a cultura. Nesse sentido, qualquer abordagem aos fenômenos do campo psicanalítico deveria contemplar essas três dimensões, consistindo em uma diretiva metodológica de base para a presente proposição.

 

A psicanálise e as metodologias clínica e qualitativa

Por muito tempo, tendeu-se a tomar a escuta psicanalítica como uma condição exclusiva do enquadre clínico padrão, embora a própria obra freudiana atestasse o contrário. A sua aplicação e ampliação para além de seu nicho de origem precisou do reforço de uma série de desenvolvimentos teóricos e práticos para ganhar um estatuto de legitimidade para a psicanálise e, principalmente, para a comunidade científica em geral. Há uma história importante de ampliações clínicas durante a era das escolas pós-freudianas, que se apoia inicialmente nas inovações técnicas para o enquadre da psicoterapia infantil e para o trabalho com pacientes psicóticos, mas logo se desdobra em adaptações para o trabalho em instituições e em grupos. Do mesmo modo, a ampliação para uma crítica da cultura e das instituições sociais se efetivou durante esse mesmo período, com destaque para a teoria crítica, o culturalismo e o lacanismo. Particularmente ali houve a transição para uma concepção de subjetividade assentada nas estruturas discursivas e nas relações intersubjetivas, e não tanto na dimensão intrapsíquica do jogo de pulsões e representações, ou seja, na passagem de um paradigma pulsional para o subjetal e objetal (Mezan, 2014). Esse movimento de passagem do psiquismo individual para uma concepção de subjetividade que inclui a dimensão sociocultural e intersubjetiva foi fundamental para o reconhecimento da dimensão inconsciente que se produz onde houver sentido humano e não apenas no âmbito restrito da psicoterapia individual. Assim, por meio das diferentes vertentes majoritárias da tradição psicanalítica, constituíram-se até meados dos anos 1970 modelos mais elaborados e consistentes para sustentar um movimento em direção à clínica ampliada e à psicanálise aplicada, que vão marcar a psicanálise contemporânea (Campos, 2010).

Embora tenha uma longa tradição, o método psicanalítico e sua aplicação estiveram majoritariamente circunscritos ao campo da prática psicoterápica e suas variações interventivas na área da saúde mental. Sua origem eminentemente clínica e seu contexto institucional próprio marcou um desenvolvimento em paralelo com a discussão metodológica nas ciências humanas e da saúde. Historicamente, a psicanálise origina uma abordagem clínica de caráter psicoterápico, de início inclusive muito circunscrita às especialidades médicas - decorrem daí as controvérsias em torno da análise leiga desde os anos 1920 até os anos 1950, em todos os momentos de sua consolidação em países e regiões específicas. As diferentes posições em relação a essa restrição à prática médica foi um divisor de águas nos caminhos das tradições regionais. Porém, o mais importante é que a psicanálise se constituiu como a matriz para praticamente todas as psicoterapias. Todos os grandes movimentos de inovação na psicoterapia e na psicologia clínica até meados dos anos 1960 se originam de dissidências e controvérsias nas fileiras psicanalíticas, criando a pluralidade das chamadas abordagens humanistas, centradas na vertente dos aportes fenomenológico-existenciais, mas em um mosaico muito variado de práticas corporais e expressivas. Nos Estados Unidos e em sua esfera mais imediata de influência, esse movimento constituiu a chamada terceira força entre uma psicanálise ortodoxa calcada na psiquiatria e uma psicologia acadêmica calcada nas abordagens funcionalistas e comportamentalistas. Já na Europa, esse embate não foi tão dicotômico e polarizado, com interlocuções importantes entre essas tradições. De todo modo, em ambas as regiões se produziu também, até meados dos anos 1970, um leque muito variado de práticas terapêuticas centrado em uma abordagem essencialmente clínica para a subjetividade (Jacó-Vilela et al., 2013).

Isso quer dizer que, embora variassem em termos de mais ou menos estruturadas e mais ou menos ativas em suas técnicas, todas valorizavam a dimensão interpretativa e expressiva que poderia se dar nas condições do trabalho terapêutico, negando uma abordagem de caráter pedagógico ou de administração tecnicista da subjetividade. Valorizavam, portanto, a dimensão do sentido e uma epistemologia histórico-compreensiva, em detrimento do naturalismo científico padrão, mas, particularmente, estavam centradas na singularidade narrativa que se produzia e constituía caso a caso. Por isso, embora tivessem suas questões internas, as tradições psicanalítica e humanista formavam em conjunto um contraponto muito forte às abordagens naturalistas em psicologia e medicina, criando uma vertente própria, centrada em uma proposição metodológica estritamente e originalmente clínica. Nesse sentido, tenho denominado esse eixo de clínico, dada a abordagem singularizada a partir do sofrimento e sua vinculação histórica às instituições de cuidado à saúde.

Esse eixo constituiu então uma oposição importante às abordagens metodológicas de cunho empírico quantitativo e experimental no contexto da saúde. Isso quer dizer também que, até meados dos anos 1970, no âmbito das disciplinas de saúde e principalmente no reino "psi", a oposição fundamental era entre metodologias clínicas e metodologias experimentais ou psicométricas. Desse modo, a questão do "qualitativo" dependeu de um novo aporte, vindo de outra tradição, fruto de um desenvolvimento específico no campo das ciências humanas e sociais a partir da crítica aos modelos positivistas tradicionais que partiam de um modelo baseado nas ciências naturais. Essa crítica inicialmente foi embasada nos estudos da fenomenologia, da etnometodologia, do marxismo e do construtivismo social, remontando às próprias origens das ciências sociais, por conta da questão epistemológica que lhe é inerente. Contudo, o movimento se constitui e ganha ímpeto entre os anos 60 e 70 do século XX, vindo majoritariamente do campo das ciências sociais e adentrando inicialmente no âmbito da educação. Nos Estados Unidos e em sua esfera de influência da língua inglesa, esse movimento ganhou uma estrutura mais convergente, além de uma denominação que indica um ponto de ruptura estrutural: paradigma qualitativo de pesquisa (Denzin & Lincoln, 2006).

Paradigma nesse caso é tomado na acepção de um modelo geral de concepções teóricas e estratégias metodológicas que medeiam a inteligibilidade e a operação sobre a realidade. De fato, há uma série de aspectos que são partilhados pelas diversas perspectivas qualitativas em pesquisa que estão relacionados à compreensão do ser humano como um ser social, o que implica, fundamentalmente, reconhecer a realidade como construção social e as próprias teorias como construções sociais, de forma que estas são necessariamente imbuídas de ideologias e de poder. Nesses termos, a sociedade é tomada como uma multiplicidade de processos sociais que atuam simultaneamente e em temporalidades diferenciadas, compondo uma totalidade e a dinâmica da sociedade é dada por forças da ação individual e grupal, em que a ação grupal é preponderante. Além disso, os atores sociais são considerados agentes dotados de capacidade simbólica e de consciência histórica, de forma que a posição de sujeito e objeto de conhecimento precisa ser relativizada na figura do pesquisador, que passar a construir o conhecimento por meio da interação social.

Esse caminho foi endossado por uma série de desdobramentos no campo da psicologia, principalmente em sua vertente social e educacional, tais como a teoria das representações sociais, a análise de discurso, as metodologias da pesquisa-ação e da pesquisa interventiva. Cabe destacar que o aporte maior, principalmente na psicologia brasileira, se deu a partir de modelos fundamentados no materialismo histórico-dialético, dentro do movimento específico de nosso contexto de uma emergência dessa abordagem a partir da redemocratização, implicando uma reorientação acadêmica e profissional em direção a um diálogo com o social (Jacó-Vilela et al., 2013). Devido ao peso e centralidade do viés marxista, costumo caracterizar essa tradição da pesquisa qualitativa de pesquisa social (Minayo et al., 2015), em uma vertente sócio-histórica, na qual se alinha boa parte da produção nos campos social, pedagógico e da saúde (Minayo, 2013). O fato é que, atualmente, temos um campo bastante diversificado de proposições metodológicas e mesmo de teorias na área da sociologia e da psicologia social sob esse paradigma multifacetado.

Essa tradição também é a mais reconhecida e abordada no campo acadêmico nas ciências sociais e humanas hoje, incluindo as vertentes alinhadas a essas áreas no campo das psicologias. A consolidação e sistematização de um paradigma qualitativo de pesquisa no âmbito científico-acadêmico brasileiro se deu ao longo dos anos 1990, momento em que também o movimento ganha força no âmbito das ciências da saúde, passando a ser reconhecido e sistematizado a partir de escolas de formação e pesquisa em ciências médicas. Foi nesse período que emergiram dois grandes expoentes das tentativas de aplicação e integração do paradigma qualitativo à área de saúde, cujos manuais são referência até hoje: Minayo (2013) e Turato (2003). Este último propõe uma integração mais ampla e eclética das diversas vertentes do paradigma qualitativo em uma perspectiva também pragmática, incluindo aquela vertente que não emergiu na tradição das ciências sociais e sim da tradição clínica da medicina e das psicoterapias de extração psicanalítica e humanista. Nesse sentido, sua proposta está epistemologicamente e metodologicamente mais fundamentada na crítica fenomenológica do que na crítica oriunda do materialismo histórico-dialético, além de compor melhor com a pluralidade das abordagens próprias do campo das psicologias e, no que nos interessa, a psicanálise. Decorre daí a terminologia específica: metodologia clínico-qualitativa aplicada às ciências humanas e da saúde (Turato, 2003).

O propósito desse resgate do percurso pelos modelos da metodologia científica foi mostrar que há dois eixos de contraposição ao modelo das ciências naturais e às metodologias quantitativas e experimentais de pesquisa, um clínico e um sócio-histórico ou social. Embora ambos sejam "qualitativos", a rigor é no contexto do segundo que emerge a concepção de um paradigma de pesquisa próprio, que é mais recente e que tem retroagido sobre o primeiro no âmbito científico-acadêmico. Por conta disso é que proponho que a caracterização da natureza da metodologia de pesquisa em psicanálise no contexto atual, tanto profissional quanto científico-acadêmico, seja referido a uma abordagem clínico-qualitativa de pesquisa. Agora resta compreender como se deu especificamente esse percurso e debate na comunidade psicanalítica brasileira.

 

Delineamentos de pesquisa no campo psicanalítico no Brasil

A psicanálise consolidou-se institucionalmente no Brasil somente a partir do pós-guerra, ao longo dos anos 1950 e 1960, de uma forma muito ligada ao campo médico-psiquiátrico. Embora teorias psicanalíticas fossem ensinadas na medicina e na pedagogia, foi só com a constituição da profissão da psicologia e os cursos de formação que ela começou a ganhar uma transmissão na academia, ligada a uma fundamentação teórica e metodológica básica para o exercício da psicologia clínica. Não obstante, a formação própria e especializada, bem como o foro privilegiado de produção teórica e inovação técnica, continuava restrita às sociedades de psicanálise ligadas à Associação Psicanalítica Internacional (IPA). Embora haja algumas iniciativas pioneiras de formação não alinhada, é só a partir dos anos 1980, com a consolidação do movimento lacaniano, que a formação muda de figura. Em primeiro lugar, porque sai do âmbito restrito das sociedades psicanalíticas para institutos independentes do movimento lacaniano, mas também porque começa a migrar de forma mais significativa para a esfera de influência da psicologia e ganhar abrigo e lugar nos cursos de pós-graduação em psicologia e filosofia que vão surgindo. Na sequência, há um incremento muito consistente de docentes formados nas fileiras dos programas de pós-graduação na França, levando ao amadurecimento de uma comunidade importante de psicanalistas na universidade, fazendo formação e pesquisa. Isso levou, ao longo dos anos 1990, a um embate e discussão madura sobre o que podia e cabia à psicanálise na universidade.

O que interessa destacar é que a discussão nesse período ainda estava muito assentada na questão do que pode ser transmitido ou que nível de formação pode se dar na universidade, retomando a via dos apontamentos de Freud (1919/1996) sobre o ensino dogmático de psicanálise na academia. Além disso, no que interessa à presente discussão, também tratava da legitimação das estratégias de investigação próprias da psicanálise - basicamente os estudos de caso clínico e os ensaios teóricos - no âmbito acadêmico, ou seja, sua fundamentação e caracterização no formato de dissertações e teses.

Esse foi o germe de um segundo embate, pois colocou a formação de âmbito mais "psi" e suas estratégias metodológicas de pesquisa e intervenção em diálogo com outro movimento, o paradigma qualitativo de pesquisa que se constituiu no país a partir dos anos 1990. Para isso foi importante também uma mudança no âmbito das práticas profissionais e das políticas públicas, com a constituição de novos dispositivos de atenção à saúde, dentro da abordagem psicossocial. Essa mudança na forma de organização do trabalho, promovendo práticas multiprofissionais e intersetoriais, bem como posturas interdisciplinares, foi fundamental para um salto qualitativo e de complexidade crescente nas pesquisas desenvolvidas na comunidade acadêmica. Dos anos 2000 em diante, cresceu exponencialmente a entrada da psicanálise nesse movimento de ampliação da clínica, bem como sua interface com a educação, o trabalho e a dimensão sociopolítica. Esse desenvolvimento se dá no esteio das abordagens qualitativas e em um movimento de inovação e criação crescente de estratégias singularizadas. Da articulação inicial com os instrumentos da psicologia, como a avaliação psicológica e as estratégias psicodiagnósticas, passa a haver uma bricolagem mais significativa com estratégias da pesquisa social, começando a criar delineamentos mais híbridos, em que a psicanálise compõe o método de pesquisa junto com outros métodos, estratégias, instrumentos e categorias de análise. Essa hibridez e multiplicidade é um novo passo na progressão das questões metodológicas do campo psicanalítico, que merece ser melhor circunscrito e discutido, pois vem diluir perspectivas muito dicotômicas e de divisão clara entre o que é psicanálise e o que não é psicanálise.

A definição de uma metodologia de pesquisa psicanalítica passa, necessariamente, pela discussão da especificidade de seu saber e de seu método para, em seguida, apresentar os diferentes delineamentos de pesquisa possíveis. A produção de conhecimento em psicanálise pressupõe um método que enseje a transferência, operacionalizado no âmbito de um setting, onde o inconsciente pode emergir. Diante disso, a verdadeira pesquisa em psicanálise seria aquela que emerge da clínica psicanalítica, e a própria teoria psicanalítica é fruto de seu método. Essa posição clássica estabeleceu-se desde a reflexão freudiana sobre o ensino de psicanálise nas universidades, em que esse deveria ser concebido com o intuito de divulgação das proposições psicanalíticas e de forma dogmático-crítica (Mezan, 1994). É encontrada também em autores que são taxativos em afirmar que a pesquisa acadêmica em psicanálise não pode consistir em uma pesquisa empírica, sendo necessariamente de caráter teórico (Garcia-Roza, 1994). Posições menos restritivas procuram marcar que, apesar da pesquisa propriamente psicanalítica ser necessariamente de tipo clínico (Mezan, 1998), isso não quer dizer que outras formas de aplicação do método e das categorias psicanalíticas sejam vedadas. Nota-se então que a questão sempre se configura em torno do método psicanalítico e da escuta clínica como fundamentos para qualquer balizamento. Nesse sentido é que cabe repor, retomando esse debate dos anos 1990 na psicanálise acadêmica brasileira, a distinção proposta por Garcia-Roza (1994) entre pesquisa em psicanálise e pesquisa sobre psicanálise.

O primeiro grupo é o da psicanálise em sua dimensão original, que encontrou dificuldades para se firmar e legitimar em âmbito acadêmico a partir de seus próprios parâmetros metodológicos, centrado no estudo de caso como referência fundamental. Na academia brasileira, a consolidação das estratégias clínicas encontrou um ponto alto nesse momento, no qual se destacam alguns trabalhos que se preocuparam em responder às críticas metodológicas mais tradicionais, tais como a objetividade e a generalização (Eizirik, 2001), mas também desenvolver parâmetros para sua redação em termos de seu caráter de construção retrospectiva e para o desenvolvimento do chamado raciocínio clínico (Safra, 1993).

Essa perspectiva de uma distinção fundamental entre o uso ou não do método psicanalítico se mantém até hoje em trabalhos como o de Figueiredo e Minerbo (2006), além de estar presente ainda hoje na discussão reiterada e renovada sobre a construção de casos clínicos no âmbito da formação e da pesquisa (Val & Lima, 2014; Dunker et al., 2017). Além das discussões específicas sobre a estrutura e escrita de casos, ou sua convergência com outros aportes sobre casuística, como casos múltiplos ou estudos de caso em abordagens antropológicas (Carneiro, 2018), encontram-se também esforços de instrumentalização da escuta psicanalítica em sua disposição essencialmente clínica para formatos que não o caso. Nesse sentido cabe destacar a proposição de Silva e Macedo (2016), de uma estratégia metodológica específica para o trabalho com fatos clínicos em psicanálise, com um recorte para pesquisas e caráter acadêmico. Contudo, embora tenham o mérito de ampliar a caracterização dos fatos clínicos e seu trabalho para além do estudo de caso clássico, não chegam a propor técnicas específicas ou muito inovadoras, fazendo sobretudo a mesma retomada que está sendo feita aqui do debate em torno da diferença fundamental entre as pesquisas que tomam a psicanálise do ponto de vista eminentemente teórico e aquelas que o fazem com o método psicanalítico.

De todo modo, as pesquisas em psicanálise no Brasil se instituíram a partir da chamada clínica padrão, em seu modelo psicoterápico tradicional, calcado fortemente na clínica individual adulta e infantil. Os anos 1990 trazem a consolidação desse percurso, com o respaldo das contribuições da psicanálise contemporânea na ampliação do campo psicanalítico a partir da distinção operada por Lacan (1967/2003) entre psicanálise em intensão, baseada na aplicação do método em seu contexto clínico e a doutrina dela derivada, e psicanálise em extensão, que diz respeito à escuta psicanalítica em contextos grupais, institucionais e sociais, articulando a prática psicanalítica com ciências afins (Plon, 1999).

Uma outra vertente que se consolidou de forma bastante significativa na universidade nesse período e marcou uma inflexão importante no próprio campo psicanalítico brasileiro foi a das pesquisas que se efetivaram a partir da filosofia e das ciências sociais. Esse movimento foi fundamental para estabelecer a tradição de pesquisa sobre psicanálise. Esse tipo de pesquisa, que não utiliza o método psicanalítico como referencial essencial, diz respeito à investigação das ideias psicanalíticas no plano exclusivamente teórico-conceitual. Ela pode acontecer tanto em uma perspectiva longitudinal ou histórica, focando nos desenvolvimentos conceituais de aspectos da disciplina, quanto em uma perspectiva mais transversal e estrutural de determinada problematização, no que ganha um caráter mais propriamente epistemológico (Mezan, 2002; Monzani, 1989).

Esse tipo de trabalho normalmente é desenvolvido na forma de ensaios teóricos e revisões de literatura, a depender da tradição mais humanística ou naturalista envolvida, mas também pautados por estratégias de diferentes extrações hermenêuticas. Nesse sentido se observa desde posições mais objetivas e racionalistas, até perspectivas mais dialógicas e construtivistas. Também há a contribuição mais contemporânea de estratégias sustentadas em concepções não essencialistas ou diferenciais sobre o sentido, oriundas de vertentes de estudos linguísticos e literários, em que a dimensão pragmática e performativa da linguagem e uma abordagem desconstrutiva dos discursos é ressaltada (Campos & Coelho Jr., 2010). Portanto, há uma série de variações dentro das estratégias hermenêuticas que embasam estudos teórico-conceituais, e isso implica uma diversificação na forma como esse tipo de trabalho pode se desenvolver hoje no campo psicanalítico. Além disso, é importante considerar que, embora no geral se possa demarcar que nas pesquisas sobre psicanálise a experiência empírica e seu método não são centrais, não é possível dizer que eles estão de todo excluídos.

O principal motivo é que, diante da ampliação da concepção de subjetividade trazida pela revolução das ciências da linguagem, a própria noção de inconsciente se espraia para as formações discursivas e, portanto, para os textos. Nesse sentido a contribuição francesa foi particularmente notável, mas no âmbito estritamente psicanalítico cabe destacar o debate de extração lacaniana sobre a transmissão da psicanálise e sua implicação, a forma como se trabalha textos nesse campo. Apesar de que nessa perspectiva o lugar da experiência clínica e a construção do caso ainda sejam o fundamento para produção de um saber retrospectivo e em nível formal sobre o inconsciente e a transferência (Nogueira, 2004), entende-se também que algo se transmite da experiência psicanalítica e dessa abertura ao sujeito inconsciente que não pode ser formalizado ou explicitado, pois escapa ao sentido e na verdade opera subjacente aos sentidos possíveis como uma negatividade. Nesse contexto se integra a concepção do passe como dispositivo de formação e autorização da posição de analista, bem como das formas discursivas como condição da produção do laço social. Isso implicou passar a considerar o relatório de pesquisa na forma de texto como testemunho e resposta a uma elaboração que não se esgota, mas se comunica. Decorre daí também a caracterização de diferentes âmbitos e modos de comunicação da psicanálise: seu ensino, sua transmissão e sua difusão (Castro, 2013). De todo modo, na esteira do aporte lacaniano, categorias como o desejo do analista, a transferência com a pesquisa e a condição de analisante do pesquisador (Moreira et al., 2018) passam a colocar em questão a isenção objetiva do pesquisador em seu percurso, a ponto de se converter em um verdadeiro caso metodológico (Queiroz & Silva, 2002).

Ainda na perspectiva francesa, Laplanche (1992) traz uma proposta metodológica mais definida e explícita de trabalho com textos a partir da escuta psicanalítica. Ele propõe que sejam quatro os lugares possíveis da experiência analítica: a clínica, com o tratamento padrão; a psicanálise extramuros, onde estão as variações técnicas e diferentes inserções institucionais; a teoria; e a história. É nesses dois últimos âmbitos que se encontram as possibilidades de uma escuta psicanalítica das formações discursivas, em que uma espécie de leitura flutuante busca as expressões dos fenômenos psicanalíticos (condensações, deslocamentos, supressões, lapsos) como parâmetro para uma leitura interpretativa do que é explicitamente colocado na ordem das razões de um texto. Isso vem a consolidar uma proposição hermenêutica propriamente psicanalítica no campo acadêmico (Campos & Coelho Jr., 2010), que sinaliza para a permanência de um resto não assimilável às tentativas racionais de apreensão da experiência do inconsciente, bem como para uma compreensão não linear ou progressiva sobre a construção do conhecimento em psicanálise e, sobretudo, para uma posição ética de reconhecimento da negatividade que põe em questão as concepções epistemológicas neopositivistas (Queiroz & Silva, 2002). Portanto, a questão de uma pesquisa sobre psicanálise como pesquisa teórica precisa ser entendida a partir dessas relativizações.

Além disso, a questão do alcance da compreensão psicanalítica sobre a subjetividade a partir de uma visada eminentemente teórica se desdobra num segundo grupo de delineamentos, que diz respeito à interpretação psicanalítica dos fenômenos sociais e culturais. Esse âmbito não é mais o da clínica ou mesmo da saúde, começando a fazer parte da psicanálise extramuros ou em extensão.

O termo original freudiano é psicanálise aplicada, que diz respeito à aplicação do método psicanalítico ao âmbito dos fenômenos sociais e culturais, incluindo sua dimensão clínica (Mezan, 1994, 2002; Plon, 1999). A ideia de uma "aplicação" da teoria psicanalítica não deve ser entendida nos mesmos moldes da distinção entre pesquisa básica e pesquisa aplicada em ciências naturais, já que a teorização em psicanálise emerge do seu próprio método e nele se efetiva, congregando de forma simultânea pesquisa e investigação. Além disso, como enfatiza Mezan (2014), a psicanálise parte, desde seus fundamentos freudianos, da articulação intrínseca entre suas três fontes: clínica, teoria e cultura. Contudo, houve, no início, a questão de se a transposição para fenômenos não clínicos seria legítima, mas foi algo ultrapassado na história de ampliação progressiva do campo psicanalítico. O que ainda permanece é se esse tipo de trabalho pode prescindir ao método e se resumir a uma aplicação de categorias conceituais como grade de análise para fenômenos não clínicos. Decorre daí uma discussão sobre o caráter implicado desse tipo de trabalho, ou seja, que há uma implicação subjetiva do intérprete, que faz com que ele responda de posição e em uma relação intersubjetiva. Esse tipo de discussão acontece em ambas as vertentes mais relevantes dessa tradição: na dimensão estética da interpretação de obras de arte e literatura (Frayze-Pereira, 2005) e na dimensão sociopolítica das instituições culturais (Rosa, 2004; Rosa et al., 2017).

Independente do debate terminológico, o fato é que há uma dimensão legítima e consolidada de trabalhos de psicanálise no âmbito sociocultural, que o fazem prioritariamente a partir de uma discussão teórica ou a partir da análise e interpretação de obras materiais e documentos. Nesse sentido, tal vertente de aplicação pode ser enquadrada dentro dos delineamentos de pesquisa sobre psicanálise. Já aqueles estudos que não se apoiam na análise de obras e se voltam mais para a consideração da dimensão sociopolítica do sofrimento nas instituições ou na cultura costumam ter uma postura mais implicada de atuação e, nesse sentido, podem ser caracterizados como pesquisa com ou mesmo em psicanálise. O critério nesses casos seria novamente da ordem de o trabalho se configurar como uma reflexão teórica ou avançar na dimensão prática da atuação e intervenção, bem como a exclusividade do uso do método psicanalítico ou não. Todavia, é importante apontar que esses delineamentos dizem respeito apenas a uma parte do movimento de ampliação e extensão da psicanálise para além de sua inserção teórico-clínica original.

A outra vertente é justamente aquela que faz a ampliação a partir da prática profissional, ou seja, que utiliza o método e a escuta psicanalítica em seu trabalho de assistência e intervenção em diferentes contextos. Nessa vertente se alinhariam também os trabalhos de psicanálise implicada na vertente sociopolítica anterior. Portanto, trata-se da psicanálise em extensão, na medida em que se amplia a prática clínica para outras modalidades e dispositivos de trabalho, na saúde, mas também na educação, no trabalho, na assistência social e na vida comunitária. É nesse contexto que se dão as variações técnicas, modificações de enquadre e de finalidades de intervenção que têm sido também uma marca da ampliação do campo de atuação profissional de psicólogos e psicanalistas nas últimas décadas no país.

Cabe destacar nesse contexto a contribuição importante e original de Fabio Herrmann (2001, 2002) de uma clínica extensa como uma vertente importante de renovação da tradição psicanalítica, marcada por uma relação dogmática e idealizada com as teorias. Sua teoria dos campos retoma a problematização do método psicanalítico a partir das ideias de princípio do absurdo e de ruptura de campo para pensar uma escuta psicanalítica além da clínica padrão, pois tomará o inconsciente como uma produção contextual de sentido, evidenciado pelo ato interpretativo. Essa contribuição é fundamental para operar no âmbito de uma psicanálise não lacaniana a ampliação para uma concepção mais ampla de subjetividade e de trabalho psicanalítico, em que as práticas discursivas encarnadas nas relações sociais possam ser legitimadas como campo de atuação e de pesquisa.

O uso do termo extensão se justifica pela proposta dessas duas tradições, a lacaniana, de expressão internacional, e, no âmbito nacional, a contribuição específica da teoria dos campos. Além disso, o termo tem a vantagem de se associar a uma dimensão importante das atividades universitárias e acadêmicas, que é a relação mais ampla entre a instituição acadêmica-universitária e a sociedade, por meio da difusão dos saberes e conhecimentos, na vertente dos cursos e atividades culturais, mas também nas práticas assistenciais e desenvolvimento de tecnologia social. Os próprios estágios de formação profissionalizante em graduação e a atuação dos serviços-escola são atividades de caráter extensionista onde o trabalho da psicanálise na universidade tem destaque.

No âmbito dessa clínica extensa é que se relacionam também as propostas de práticas psicanalíticas na investigação de fenômenos sociais e políticos, bem como as propostas de clínica ampliada. Aqui não só há uma aproximação maior com o campo e as técnicas da pesquisa social, como também das propostas intersetoriais próprias do campo da saúde. A rigor, clínica ampliada é uma denominação de política pública de assistência à saúde, onde a psicanálise vem se integrar às propostas e dispositivos do modelo de atenção psicossocial. Aqui se destacam as propostas de uma psicanálise alinhada a essas práticas, o que implica a manutenção do método psicanalítico como referência e, portanto, não apenas suas categorias teórico-conceituais, mas suas estratégias de escuta, interpretação e intervenção. É nesse sentido que encontramos propostas de instrumentalizar a observação participante e as estratégias de entrevista a partir da consideração dos fenômenos transferenciais e da posição subjetiva própria da psicanálise nesses contextos específicos (Rosa & Domingues, 2010).

Esse é o movimento mais recente de desdobramentos dessas questões no campo psicanalítico, que ganha força particularmente nas duas últimas décadas. Embora muitas propostas nesse sentido sejam fundamentalmente psicanalíticas, também já não é possível dizer que elas sejam exclusivamente psicanalíticas em suas estratégias metodológicas e que em proporções maiores ou menores já esteja em jogo algo da ordem da bricolagem e da hibridez. São particularmente notáveis propostas de pesquisa que fazem associações entre categorias de análise metodológicas e outras técnicas de coleta e mesmo interpretação de dados, como entrevistas que não são necessariamente instrumentadas psicanaliticamente, práticas grupais de outras extrações. É assim que a psicanálise vem se associando a pesquisas de representações sociais e variadas formas de análise de conteúdo ou de discurso. Esse tipo de delineamento, inclusive, é muito comum em pesquisas que acontecem em nível de graduação em psicologia e constitui exemplo muito claro de associação entre a tradição metodológica do campo propriamente psicanalítico e o paradigma da pesquisa qualitativa. A questão não parece ser a de manter um certo purismo ou identidade da psicanálise, mas antes reconhecer sua articulação e integração nesse contexto mais amplo, em uma perspectiva mais propriamente interdisciplinar. É nesse sentido que venho propor uma terceira categoria de delineamento para o campo psicanalítico, além daqueles dois mais bem estabelecidos desde os anos 1990: a pesquisa com psicanálise. Esse delineamento diz respeito àquelas pesquisas empíricas em que há mais uma associação entre método psicanalítico e outras estratégias do que propriamente uma integração original ou ampliação do campo psicanalítico no sentido de incorporá-las ou transformá-las.

 

Considerações finais

Após passarmos em revista a diversidade e complexidade das possibilidades de articulação do saber e do método psicanalíticos com as exigências das metodologias de pesquisa clínicas e qualitativa em ciências humanas e da saúde, é possível esboçar uma proposta de síntese, conforme o Quadro 1.

 

 

Trata-se de uma proposta com fins prioritariamente didáticos e esquemáticos, que visa a nortear definições terminológicas para a fundamentação metodológica de pesquisas no campo psicanalítico, principalmente diante das exigências do meio acadêmico e universitário. Está particularmente assentada no percurso próprio da história do movimento psicanalítico brasileiro e tem a pretensão de reconhecer os avanços que têm ocorrido em direção à ampliação e associação da psicanálise com outras perspectivas de atuação e pesquisa no campo das humanidades e saúde. Essa articulação acena para pautas interdisciplinares e intersetoriais próprias do contexto contemporâneo.

Sua principal contribuição está no sentido de ampliar o escopo estabelecido em meados dos anos 1990 e presente de certa forma até hoje, principalmente no âmbito da pesquisa psicanalítica que se desenvolve nas instituições universitárias. A questão não mais pode ser resumida a uma oposição clara entre uso ou não uso do método, nem entre pesquisa de caráter teórico ou pesquisa empírica, muito menos em uma caracterização restrita de clínica. Nesse sentido é que se propõe tanto a noção de uma clínica extensa ou ampliada e uma associação do método psicanalítico com outros métodos de forma híbrida como uma categoria própria de delineamentos. Embora a distinção entre essas duas categorias de delineamentos possa ser difícil de caracterizar em alguns casos, entendo há vantagens em discriminá-las. De todo modo, ambas correspondem ao reconhecimento do que há de novo na pesquisa e no trabalho psicanalítico nas últimas décadas, justificando então sua incorporação na configuração de uma proposição sintética ao campo.

Por fim, a própria questão sobre a manutenção de uma identidade clara do que é o campo psicanalítico, principalmente em termos de reconhecimento profissional e institucional, foi algo que se relativizou muito desde o começo do século XXI, na medida em que a psicanálise que se faz na universidade é hoje uma parcela importante do campo psicanalítico, em conjunto com a pluralidade de instituições de formação e difusão em psicanálise, de forma que as instituições tradicionais respondem menos pela sua expressividade, embora mantenham um lugar importante em sua legitimação profissional e também em sua dimensão teórica.

 

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Recebido em 21 de novembro de 2020
Aceito para publicação em 19 de agosto de 2021

 

 

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