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Psicologia Clínica

Print version ISSN 0103-5665On-line version ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.33 no.3 Rio de Janeiro Sep./Dec. 2021

http://dx.doi.org/10.33208/PC1980-5438v0033n03A07 

SEÇÃO TEMÁTICA - O FAZER DA PSICOLOGIA NO BRASIL A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA PSICANALÍTICA: CLÍNICA, PESQUISAS E POLÍTICAS PÚBLICAS

 

Psicanálise e utopia: Diálogos sobre abordagens divergentes

 

Psychoanalysis and utopia: Dialogues on divergent approaches

 

Psicoanálisis y utopía: Diálogos sobre enfoques divergentes

 

 

Thales FonsecaI; Fuad Kyrillos NetoII

IPsicólogo, Mestre e Doutorando pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), São João del-Rei, MG, Brasil. email: thalesalberto94@gmail.com
IIDoutor em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Docente do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), São João del-Rei, MG, Brasil. email: fuadneto@ufsj.edu.br

 

 


RESUMO

O presente artigo propõe uma revisão de literatura que objetiva mapear a relação entre psicanálise e utopia. Mais especificamente, que busca situar brevemente o que psicanalistas e autores que se utilizam da psicanálise versam sobre o tema da utopia no Brasil, sem a intenção de, com isso, fazer uma descrição exaustiva dessas diferentes abordagens do problema, mas assimilando-as à nossa maneira. Para tanto, foram compilados um total de onze ensaios, dos quais cinco são artigos publicados em periódicos acadêmicos e os outros seis são capítulos de livro. Os ensaios que compõem esta revisão se voltam para articulações conceituais da ideia de utopia que em alguma medida passem pela teorização psicanalítica, de modo que o foco está no conceito em si, e não nas diferentes manifestações de uma discursividade utópica. Destaca-se, das diferentes abordagens, a ambivalência que envolve a relação da psicanálise com a utopia, que a constitui um profícuo campo de diálogo e debate.

Palavras-chave: psicanálise; utopia; revisão de literatura; política; impossível.


ABSTRACT

This article proposes a literature review that aims to map the relationship between psychoanalysis and utopia. More specifically, it seeks to briefly situate what psychoanalysts and authors who use psychoanalysis say about the theme of utopia in Brazil, without meaning to carry out an exhaustive description of these different approaches to the problem, but assimilating them in our own way. For this purpose, a total of eleven essays were compiled, of which five are articles published in academic journals and the other six are book chapters. The essays that make up this review focus on conceptual articulations of the idea of utopia that to some extent pass through psychoanalytic theorization, so that the focus is on the concept itself, and not on the different manifestations of a utopian discourse. The ambivalence surrounding the relationship between psychoanalysis and utopia stands out from the different approaches, which make it a rich field for dialogue and debate.

Keywords: psychoanalysis; utopia; literature review; policy; impossible.


RESUMEN

Este artículo propone una revisión de literatura que tiene como objetivo mapear la relación entre el psicoanálisis y la utopía. Más específicamente, busca ubicar brevemente lo que psicoanalistas y autores que usan el psicoanálisis tratan sobre el tema de la utopía en Brasil, sin la intención de hacer una descripción exhaustiva de estos diferentes enfoques del problema, pero asimilándolos a nuestra manera. Para ello, se recopilaron un total de once ensayos, los cuales cinco son artículos publicados en revistas académicas y los otros seis son capítulos de libro. Los ensayos que componen esta revisión se centran en las articulaciones conceptuales de la idea de utopía que, en cierta medida, pasan por la teorización psicoanalítica, de modo que el foco está en el concepto en sí mismo, y no en las diferentes manifestaciones de un discurso utópico. De los diferentes enfoques, se destaca la ambivalencia que implica la relación del psicoanálisis con la utopía, que la constituye como un campo fructífero de diálogo y debate.

Palabras clave: psicoanálisis; utopía; revisión de literatura; política; imposible.


 

 

Introdução

O presente artigo é fruto de um recorte da pesquisa de doutorado intitulada Forçar a elipse: uma razão utópica para um mundo periférico1, cujo mote é a retomada do conceito de utopia. Levando em consideração que a referida investigação tem como eixo teórico de base a psicanálise, propomos aqui um breve retrato da relação entre a teoria e o objeto da pesquisa. Isto é, no caso deste artigo, um retrato da relação entre a psicanálise e a utopia em pesquisas desenvolvidas no Brasil.

Partimos, portanto, da convicção de que não é inútil mapear previamente o campo em que se adentra, como quem molha as pontas dos pés antes de um mergulho. Afinal, "mergulhar de cabeça" não condiz com a prudência que consideramos ser uma virtude fundamental àquele que pesquisa. É assim que, seguindo a boa tradição acadêmica, apresentaremos isso que no léxico dos pesquisadores é conhecido como revisão de literatura. No nosso caso, procuraremos, da maneira mais breve e menos enfadonha possível, retratar a literatura psicanalítica que trata da problemática da utopia. Vale lembrar que tal prudência acadêmica não deixa de ser também freudiana: o fundador da psicanálise, ao escrever sua mais importante obra, A interpretação dos sonhos (Freud, 1900/2001), destinou o primeiro capítulo inteiramente à descrição da literatura científica que tratava do problema dos sonhos.

Para tanto, compilamos um total de onze ensaios, dos quais cinco são artigos publicados em periódicos acadêmicos (Konder, 1998; Peixoto Jr., 1998; Pisani, 2006; Sousa, 2017; Miranda & Sousa, 2018) e os outros seis compõem, no formato de capítulos, o livro Utopia e mal-estar na cultura: Perspectivas psicanalíticas (Silveira, 1997; Frayze-Pereira, 1997; Goldenberg, 1997; Naffah Neto, 1997; Costa, 1997; Cardoso, 1997). Como se pode ver, apesar de não termos definido previamente um marco temporal enquanto critério de inclusão/exclusão dos ensaios que compõem esta revisão, constatamos que eles espontaneamente se situam na virada do milênio, entre os três últimos anos do século XX e as duas primeiras décadas do século XXI. Que o interesse psicanalítico pelo tema da utopia tenha aflorado nesse período de tempo não deixa de ser uma ironia digna de nota, sobretudo se levarmos em consideração que o final do século passado, com a queda do muro de Berlim e o colapso de boa parte dos Estados socialistas, tenha sido marcado pelo suposto fim das utopias e que o nosso século, frente à sangrenta experiência legada pelo anterior, seja parido numa intensa descrença com os projetos radicais de transformação social.

Os artigos foram encontrados nos indexadores SciELO (Scientific Eletronic Library Online) e PePSIC (Periódicos Eletrônicos em Psicologia), a partir dos descritores "utopia" e "psicanálise". Primeiramente foram encontrados 20 artigos (10 em cada plataforma), dos quais 15 foram excluídos mediante análise cuidadosa, por não se mostrarem pertinentes à nossa proposta. O critério de inclusão foi a busca de pesquisas que manejavam ou descreviam o conceito de utopia em si, tomando como um de seus fundamentos teóricos a psicanálise. De um modo geral, os artigos excluídos2 tinham como mote a interpretação de determinada atividade como veiculando uma perspectiva utópica (como, por exemplo, diferentes expressões artísticas ou obras de arte específicas, atos subversivos de adolescentes, esportes de alto rendimento etc.) ou buscavam uma prática dita utópica em contextos específicos (como o educacional ou empresarial), não se adequando, portanto, ao critério estabelecido. Isto é, enquanto nossa preocupação estava voltada para a articulação conceitual da ideia de utopia que em alguma medida passasse pela teorização psicanalítica, os artigos excluídos se ocupavam de diferentes manifestações de certa discursividade utópica. Como se pode ver, em nosso caso o foco está no conceito, enquanto que os artigos não incluídos se debruçavam sobre sua expressão.

Quanto aos capítulos do livro supracitado, não poderíamos partir da psicanálise - que, como evidencia Lacan (1964/2008), é uma práxis que possibilita operar com o real não mediado (não simbolizado) por meio, paradoxalmente, de uma mediação simbólica - e nos servirmos de um critério que não levasse em conta algum nível de contingência acadêmica. O livro que agora compõe esta revisão de literatura chegou às nossas mãos durante a escrita da dissertação de mestrado intitulada Psicose e CAPS: Entre a metapsicologia, a clínica e a política (Fonseca, 2018). Já naquele trabalho, ao fazer uma crítica a ideais institucionais que, como tais, se apresentam como ideais políticos, vimo-nos na perigosa tentação de relegar todo e qualquer ideal à categoria de um processo ideológico que, ao ocultar o mal-estar (inerente à cultura, é a lição freudiana), impede as manifestações genuínas do sujeito e gera um certo cerceamento. Tanto Freud como Lacan mantinham-se sempre desconfiados diante de um ideal ao perceberem, com bastante astúcia, que idealizar implica, em grande medida, escravizar-se a tal ideal e à alteridade (o que Lacan chama de grande Outro) que ele engendra. Em suma, ser fiel a um ideal é facilmente convertido em fidelidade a um mestre. Foi assim que chegamos ao impasse de criticar os ideais, sem querer, com isso, flertar com qualquer niilismo político. Foi nesse momento, aliás, que surgiu o primeiro rudimento do problema fundamental da investigação da qual este artigo é um desdobramento: como repensar a utopia para além do ideal e da ideologia?

Desta feita, extrairemos de cada um desses textos uma "tese" ou "premissa", seja a partir de uma aproximação ou de um afastamento, que estabeleça de maneira mais ou menos esquemática a forma como pretendemos retomar o conceito de utopia. Nesse sentido, ainda que estejamos propondo um retrato da intervenção de outros pesquisadores sobre o tema, não temos a pretensão de produzir uma descrição puramente objetiva - na qual nós, enquanto sujeitos-pesquisadores, nos enveredamos num esforço de autoanulação - de modo que em momento algum assumimos uma postura neutra ou vazia diante das investigações. Assim, cada seção numerada a seguir faz referência a um dos textos que compõem esta revisão de literatura. A ideia de deduzir uma "tese" de cada um dos ensaios se inspira na sistematização realizada por Marx (1845/1978) ao estabelecer as bases de seu materialismo histórico e dialético, em contraposição ao hegelianismo de Feuerbach. Que cheguemos igualmente a onze teses, visto que são onze ensaios, não passa de mera coincidência fortuita. Trata-se de um modo de situar brevemente o que psicanalistas e autores que se utilizam da psicanálise versam sobre o tema da utopia no Brasil sem a intenção de, com isso, fazer uma descrição exaustiva dessas diferentes abordagens do problema, mas assimilando-as à nossa maneira.

 

Tese 1

Contra a visão comum da utopia como imagem imperativa de um lugar onde os caminhos já foram exaustivamente indicados, prescritos e regulamentados, a psicanálise apresenta uma potência, qual seja: a possibilidade de "ler o texto das cinzas", de medir os efeitos do recalcado na história e, assim, recusar-se a um só tempo a esquecer o passado e a se submeter à sua lógica de repetição. Desse modo, a psicanálise, ao engendrar uma capacidade de historicização e elaboração de traumas passados, se constitui como uma forma de reação ao continuum inerte da história, como a quebra do ciclo de repetições que nos interditam o futuro (Sousa, 2017). Clara referência, ainda que não plenamente explicitada pelo autor, à concepção benjaminiana de história, o que naturalmente desvela uma já conhecida via de diálogo entre psicanálise e crítica marxista quando o assunto é a busca utópica por transformação social.

 

Tese 2

Mas, se a psicanálise é dotada de uma vocação utópica, trata-se de uma "utopia iconoclasta", distinta, portanto, de uma vulgar concepção projetista. Ou seja, a vocação utópica da psicanálise se refere à perspectiva de um ideal que não pode ser colocado como imperativo, mas que aciona algo que ainda não se sabe: um vazio, uma brecha que nos movimenta para o novo. Uma utopia desejante que, contra a promessa, propõe a aposta. Ora, uma tal concepção de utopia está intimamente relacionada à mensagem conflitante veiculada pela psicanálise, que se coloca, nesse sentido, como "vigilante da falta", que se constitui no esforço contínuo de responsabilização do sujeito e da sociedade pelo seu mal-estar (Miranda, & Sousa, 2018). Resta saber como recuperar uma utopia assim concebida sem se restringir a fazer mera poesia da falha3, a um eterno apontar para falta constitutiva de todo ser falante no qual a iconoclastia converte-se em resignação.

 

Tese 3

Há uma íntima relação entre a obra freudiana e o tema da utopia na história do pensamento ocidental, cuja realização máxima é certamente a intervenção teórica de Herbert Marcuse4. A assimilação marcusiana da psicanálise, ainda que se faça do ponto de vista de uma interpretação filosófica do pensamento de Sigmund Freud, tem a virtude de contribuir sobremaneira no que se refere ao papel da psicanálise em sua articulação crítica com outros campos, como a teoria social e a própria filosofia - questão importante para a tradição frankfurtiana na qual o filósofo alemão se insere. Nesse sentido, partindo de uma concepção de que a teoria psicanalítica é, em si mesma, social e política, Marcuse propunha um certo horizonte de emancipação (subjetiva e social) que almejava à liberdade de uma sexualidade polimórfica numa sociedade não repressiva, tanto no aspecto social como metapsicológico do termo. É justamente tal imagem de um indivíduo concreto, pois impensável fora do social, que constitui sua utopia materialista de matiz psicanalítica, como o retrato de uma sociedade transformada (Konder, 1998).

 

Tese 4

Ora, a contribuição histórica do pensamento freudiano ao tema da utopia aparece em Marcuse por meio da inegável contradição entre uma certa imagem de satisfação não reprimida e o peso de uma realidade de não realização de tal imagem. Trata-se, portanto, para enunciar de maneira um tanto tautológica, de enxergar uma potência de crítica ao princípio de realidade (e de suas exigências de adaptação) na própria assunção de tal contradição. O desafio, para Marcuse, é tornar a liberdade e o prazer uma realidade mediante a eliminação da repressão inerente à sociedade capitalista. Para tanto, seria necessária a formação de novas relações não alienadas de trabalho diante da criação de novos destinos pulsionais em uma sociedade transformada, em que o princípio de realidade seria não repressivo. É importante frisar que, se tal concepção utópica incorre em uma certa impostura de idealizar uma sociedade não repressiva, é certo que Marcuse estava plenamente prevenido de um certo revisionismo (presente, por exemplo, em Fromm), que suprimia o conceito de pulsão de morte. O filósofo alemão, portanto, acolhe a imanência da pulsão de morte proclamada por Freud, buscando, por outro lado, desativar seu caráter regressivo por meio de uma sociedade transformada, em que reinaria um estado pleno de satisfação (Pisani, 2006). Saída um tanto questionável, pois implicaria que tal estado de satisfação sexual desse fim à tensão do aparelho psíquico mediante uma espécie de curto-circuito pulsional que, inesperadamente, não incorresse no conhecido atalho destrutivo da pulsão de morte - um certo malabarismo metapsicológico que, como podemos ver, acaba por se sustentar no recurso a um futuro utópico que, justamente por ainda não existir fora de um vir-a-ser, torna-se irrefutável.

 

Tese 5

Em todo caso, a tradição freudo-marxista, que tem um dos seus pontos altos em Marcuse, mas que também remete a autores como Wilhelm Reich e Erich Fromm, tem a virtude de criticar um suposto pessimismo cultural de Freud. Porém, esses três pensadores acabaram por escrever certo por linhas tortas (ou torto por linhas certas) ao desembocar no tão criticável otimismo imputado aos utopistas5. Em termos teóricos, recaíram na já suficientemente criticada concepção de utopia como inexistência de mal-estar que, enquanto tal, seria exclusivo da sociedade burguesa6. Em todo caso, trata-se de ver o desamparo não como primordial (ou ontológico), como propõe Freud, mas apreendido socialmente7, o que se expressa em noções como mais-repressão (Marcuse), recalque socialmente necessário (Fromm) e na ideia de uma repressão sexual própria à dominação fascista (Reich). Uma utopia em psicanálise, todavia, não passa por uma libertação sexual irrestrita, visto que depende do reconhecimento da castração como condição de possibilidade do desejo, em que o sujeito renuncia às suas narcísicas fantasias de onipotência - e, portanto, a qualquer possibilidade de exclusão do mal-estar ou do desamparo. Trata-se, assim, de buscar constituir uma verdadeira "coletividade de sujeitos" que, longe de uma versão harmonizadora de utopia, acolha a singularidade e a diferença, articule o particular e o universal (Peixoto Jr., 1998).

 

Tese 6

Pois é justamente no campo de problemas da universalidade que se articula uma das críticas mais comuns à discursividade dos utopistas, tida como uma modalidade do chamado discurso do mestre. A premissa é de que o ideal utópico engendra uma exigência do universal que muito facilmente desembocaria num processo de segregação enquanto índice da subordinação da diferença. Isto é, que a universalidade só se realizaria por meio de um discurso totalitário cujos limites são justamente os que dele são segregados. Ora, a posição desta crítica não é bem a de que a utopia suprimiria o mal-estar ou dele se apropriaria como motor, mas de que ela mesma o produziria. Trata-se de relegar a utopia ao que em psicanálise chamamos de recalque, sendo os segregados do discurso utópico universal o excesso que retorna na forma de mal-estar. Aqui, a renitente demanda social por uma utopia se apresenta como demanda por um mestre, organizada em função de um horizonte ideal de reencontro com o paraíso perdido (Goldenberg, 1997). O risco, nesse caso, é o de confundir uma crítica obviamente necessária à utopia com o abandono da busca por um universal (mesmo que não-todo) importante a qualquer luta por emancipação - o sujeito do inconsciente não é afinal uma forma de universalidade? -, recaindo no eterno jogo das diferenças que paradoxalmente se converte em um identitarismo sectário (ele mesmo uma forma de segregação) tão presente em nosso cotidiano narcisismo das pequenas diferenças.

 

Tese 7

Aliás, pode-se dizer que a clássica crítica psicanalítica aos ideais configura-se, muito provavelmente, como uma das mais relevantes contribuições de Freud para o pensamento político. Assimilando aspectos dessa crítica, há a contribuição de Jurandir Freire Costa para o tema - não diretamente, mas decerto implicitamente, política - da utopia amorosa e sexual. E, de todo modo, se o tema em si não é explicitamente político, o tratamento dado a ele na interseção entre Marcuse e Foucault certamente o é. É nesse ínterim que encontramos uma crítica contundente a qualquer ideal de felicidade que constranja a liberdade humana e suas expressivas possibilidades de reinvenção. Assim, uma utopia - pensada seja no plano da ética da amizade foucaultiana como prática de libertação que escapa à lógica disciplinar, seja no escopo da erotização total marcusiana enquanto contraponto crítico ao bem-estar alienado do capitalismo que coisifica a sexualidade - deve ser radicalmente pluralista (Costa, 1997). Aqui, o narrativismo8 que norteia a intervenção de Freire Costa na psicanálise, com seu foco na potência libertadora da reinvenção subjetiva e na crítica a um certo ontologismo positivo, reificador e essencialista ostenta a virtude de apostar na irredutibilidade do sujeito a modelos (utópicos ou ontológicos) preconcebidos.

 

Tese 8

Ainda na esteira da desconfiança psicanalítica com os ideais, há a produção de um tipo específico de utopia que divide o mundo entre homens bons e maus, como forma de nos proteger da ambivalência que nos constitui9. Não perceber esse tipo de contradição constitutiva do ser humano moderno implica recair numa visão estreita de subjetividade como recurso à dicotomia metafísica entre Bem e Mal. O destino de tal estratégia, como era de se esperar, é uma espécie de niilismo ressentido como fruto inexorável da idealização. Trocando em miúdos: quanto mais alto o salto, maior o tombo; quanto maior o ideal, mais ressentido o niilismo. A boa utopia, nesse sentido, deve se estabelecer como uma crítica da metafísica - no caso de Naffah Neto, uma crítica da metafísica de matiz nietzschiana - que desde sempre serviu de fundamento de nossas utopias ocidentais: desde o mundo das ideias platônico, passando pelo paraíso cristão, para desembocar enfim nas modernas utopias revolucionária, científica ou tecnológica. Aqui, torna-se tarefa fundamental da psicanálise que pretende assumir sua vocação de para além da clínica fazer uma crítica ao solo metafísico em que ela mesma está assentada10 (Naffah Neto, 1997).

 

Tese 9

Ora, uma utopia de base psicanalítica como crítica da metafísica tem obviamente um alvo bem delimitado: a metafísica do sujeito deduzida do "gnosticismo" que caracterizou a abordagem filosófica clássica. E como os resquícios da filosofia, enquanto disciplina-mãe, não se extinguiram na tendência à especialização e formação de novos campos de estudo (dito científicos) a partir do século XIX, é possível conceber também um certo gnosticismo presente no indivíduo sociológico. Se tomarmos a teoria lacaniana do significante, veremos assim uma suposta correspondência "gnóstica" entre estruturas que transcendem e determinam a subjetividade, que vão de Deus, passando pelo Estado moderno, para desembocar enfim na estrutura inconsciente do Outro. Pois é neste ponto que se encontra a possibilidade de ruptura com o gnosticismo colocada pela psicanálise, visto que o sujeito do inconsciente (je) não se restringe à roupagem imaginária e simbólica do eu (moi)11, isto é, não se restringe a uma estrutura que o transcende e determina (tal como o indivíduo sociológico ou seu ancestral direto, o sujeito filosófico tradicional), mas advém do que é da ordem do impossível, da existência irredutível de um furo na estrutura significante do Outro; em suma, advém do desejo. Com isso, a psicanálise parece conseguir forjar uma concepção de subjetividade que não se vê inteiramente subordinada a qualquer estrutura (seja ela encarnada na figura de Deus, do Estado, da linguagem ou do inconsciente). Isso obviamente possui uma relevância política: se a ideologia tem, por um lado, a função de encobrimento da falta no Outro, de totalização das significações, de constituição de um sistema fechado de ideias e valores, quer se refiram ao presente ou ao futuro, a utopia, por outro lado, deve surgir da falta de lugar do sujeito, de uma ética do desejo como confronto à ideologia individualista (Silveira, 1997). E, acrescentamos, como confronto à metafísica da subjetividade.

 

Tese 10

O curioso é que tal perspectiva da irredutibilidade negativa do sujeito para a recuperação da utopia pode apresentar-se como uma espécie de "faca de dois gumes". Não à toa, vemos a partir dela uma contundente recusa à utopia enquanto matriz de produção e fechamento de sentido - e, portanto, uma leitura que propõe que a utopia tem uma função semelhante à da ideologia. É dessa maneira que, sobrevoando parte da história da arte moderna, encontra-se uma expressiva crítica da identidade por meio de temas como o da introdução da contradição e do vazio que leva a um esquecer-se de si mesmo; da busca incessante de si tornando-se outro; da procura por uma identidade inencontrável; da realização de experiências tão profundas que se tornam independentes do eu; da arte como forma de operar com o absurdo, o impensável e o impossível. Em suma, temas que dizem respeito tanto à arte quanto à psicanálise e que implicam no adentrar em um "não-lugar" de onde surgem todos os lugares, uma espécie de estética do vazio que, se por um lado nos aproxima da aniquilação, por outro gera a abertura de um caminho criativo: uma verdadeira acrobacia da identidade, perpetuamente reinventada (Frayze-Pereira, 1997). Mas o mais interessante é que, na recusa mesma da utopia - inclusive de seu termo, que quase não aparece no ensaio de Frayze-Pereira -, vemos surgir com frequência uma expressão que remete à própria raiz etimológica da palavra: "não-lugar" (ou seja: u-topia, do grego ou, prefixo de negação, e topos, que denota lugar). Como dissemos, uma faca de dois gumes que, com ou sem intenção do autor, contrapõe à utopia uma versão outra um tanto desavisada de u-topia que, longe do fechamento de sentido, faz dela índice de abertura e invenção.

 

Tese 11

Mas se a reinvenção subjetiva, fundamental a toda utopia que se preze, é importante para a psicanálise justamente porque esta engendra uma forma particular de simbolização como abertura de sentido, vivemos em tempos pouco simpáticos - tanto para a psicanálise, quanto para a utopia. Assim, assistimos ao século XXI ser inaugurado num estranho estado de miséria simbólica. E sem simbolização não há historicização, não há memória social e não há, enfim, a temporalização necessária ao processo de singularização dos sujeitos que cria uma abertura para sequências diferentes e conclusões desconhecidas. Que possibilita, enfim, a distensão do tempo e da própria subjetividade. É assim que nos vemos confinados a um presentismo imediato - inclusive no sentido literal de "não mediado" simbolicamente. Desse modo, operar sobre a psicanálise e a utopia em nosso tempo tem exigido um esforço não natural (Cardoso, 1997). Uma antiga intervenção política, marcada na história (e nos muros de Paris de 1968), agora faz eco: soyez realistes, demandez l'impossible.

 

Considerações finais

É verdade que tais palavras de ordem francesas, assim como os destinos da explosão revolucionária de maio de 1968, podem conter um sentido ambíguo. É o que em alguma medida explora Pacheco Filho (2015), ao se questionar sobre a existência ou não de uma aproximação possível entre o slogan da Adidas, "impossible is nothing", e o referido "seja realista, exija o impossível".

Diante desse paradoxo, podemos deduzir a tarefa de contrapor o impossível utópico às infinitas possibilidades do consumo de nosso tempo pós-moderno, globalizado, neoliberal e, claro, antipático à mudança social - afinal, se nada é impossível, não há porque sequer almejar uma transformação radical. Em outros termos, fica a tarefa de defender a utopia política que vislumbra um mundo supostamente impossível contra a utopia consumista de um mundo em que tudo é possível (mas, é claro, apenas aos poucos que têm real poder de compra sem endividamento). Curiosamente, o paradoxo que envolve a noção de impossível expressa bem a ambivalência que, igualmente, envolve a relação da psicanálise com a utopia, cujo rastro procuramos seguir neste breve artigo. Destaca-se, portanto, das diferentes abordagens, elogiosas ou críticas, a certeza de um profícuo campo de diálogo e debate.

 

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Recebido em 25 de agosto de 2020
Aceito para publicação em 24 de março de 2021

 

 

Este trabalho recebeu apoio da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
1 Pesquisa que contou com o fomento da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) e atualmente conta com o da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
2 Ao leitor atencioso que, porventura, queira conferir o rigor de nosso critério de exclusão, seguem os artigos não incluídos nesta revisão: Amaral & Sousa (2019), Connell (2013), Costa-Moura & Lo Bianco (2009), Dias & Sousa (2012), Fonseca (2012), Hur & Mendonça (2016), Ketzer & Sousa (2012), Machado & Sousa (2015), Marsillac (2014), Marsillac & Sousa (2017), Matthiesen (2003), Medeiros & Sousa (2020), Seger & Sousa (2013), Sousa (2008), Sousa & Goldmeier (2008).
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o Real lacaniano não é o Real-como-impossível no sentido de não poder acontecer, ou de nunca podermos deparar com ele Lacan não é esse tipo de poeta da falha. A coisa verdadeiramente traumática é que milagres - não no sentido religioso, mas no sentido de atos livres - acontecem, só que é muito difícil nos havermos com eles. É por isso que devemos rejeitar a ideia de uma poesia da falha. Para Lacan, o Real não é esse tipo de Coisa-em-si da qual não possamos nos aproximar; é antes, a liberdade como um corte radical na textura da realidade." (Žižek & Daly, 2006, p. 204-205)
4 Mas que, ressaltamos, também pode ser percebida em menor grau em Ernst Bloch e, mais recentemente, em Frederic Jameson.
5 Crítica a um certo otimismo utópico à parte, é inegável a relevância desses grandes pensadores para tornar o pensamento freudiano consequente no que tange à reflexão política e social. Sobretudo de Wilhelm Reich, pelo pioneirismo e significativas contribuições na articulação entre psicanálise e marxismo.
6 O que, apesar de problemático, não deixa de ser uma forma arrevesada de afirmar a centralidade do mal-estar como o que movimenta em direção a um futuro emancipatório.
7 Marcuse, no já comentado malabarismo metapsicológico para sustentar o conceito de pulsão de morte, incorreu menos que Fromm e Reich em tal impostura.
8 Sobre o narrativismo enquanto chave de assimilação da psicanálise em Jurandir Freire Costa, ver Dunker (2007).
9 Estratégia presente de maneira massiva no Brasil contemporâneo, dividido entre sujeitos supostamente unos: os bandidos e os cidadãos de bem.
10 Aqui, fica mais do que evidente que simplesmente reproduzir o gesto freudiano de criticar as diferentes Weltanschauungen (religiosa, filosófica ou política) sem perceber que ele mesmo se encontrava no interior de uma Weltanschauung científica (possivelmente newtoniana) não é o bastante (Dunker, 2019).
11 Processo de identificação que na teoria althusseriana da ideologia é conhecido como interpelação e que Silveira (1997), a partir da teoria do antropólogo francês Louis Dumont, assimilou à gênese extramundana do indivíduo (o referido gnosticismo que deriva completamente a individualidade ou subjetividade de uma estrutura que o determina). O sujeito do inconsciente, nesse caso, apresentaria uma faceta para além da interpelação ideológica e, portanto, parece além do gnosticismo.

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