SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.34 issue1Motherhood(s) of homeless women: Between violations and subjective restorationListening in psychoanalysis: Abstinence and neutrality in question author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Psicologia Clínica

Print version ISSN 0103-5665On-line version ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.34 no.1 Rio de Janeiro Jan ./Apr. 2022

http://dx.doi.org/10.33208/PC1980-5438v0034n01A05 

SEÇÃO TEMÁTICA - DINÂMICAS SOCIAIS E PSICOLOGIA: COGNIÇÃO, FAMÍLIA, TRAUMA E INOVAÇÃO TECNOLÓGICA EM RELACIONAMENTOS E TRATAMENTOS

 

Maternidade e nascimento prematuro: O encontro com a vivência traumática

 

Maternity and premature birth: The encounter with the traumatic experience

 

Maternidad y nacimiento prematuro: El encuentro con la vivencia traumática

 

 

Karina Stagliano de CamposI; Sílvia Nogueira CordeiroII

IPsicóloga pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), com especialização em Psicologia Hospitalar pelo Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Hospital Albert Einstein (SP). Mestra em Psicologia pela UEL. Docente da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), campus Londrina, PR, Brasil. email: karinacampos.psicologa@gmail.com
IIPsicóloga pela PUC Campinas. Doutora em Ciências Biomédicas pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Docente permanente do Departamento de Psicologia e Psicanálise da Universidade Estadual de Londrina (UEL), Londrina, PR, Brasil. email: silvianc2000@gmail.com

 

 


RESUMO

Em razão do alto índice de nascimentos prematuros no Brasil, a prematuridade é um evento bastante preocupante, e as mulheres, impactadas pela antecipação do parto, enfrentam um momento de significativo potencial traumático. Esta é uma pesquisa clínico-qualitativa cujas participantes foram mães de bebês muito prematuros ou prematuros extremos ainda hospitalizados A técnica utilizada para a lapidação dos achados foi a análise temática de conteúdo, com a estipulação de categorias a posteriori analisadas segundo o referencial teórico da psicanálise. A categoria coberta no artigo "Eu entrei em choque, falei 'e agora como vai ser?': O encontro com o inesperado e a vivência traumática" trata da situação traumática enfrentada pelas mães diante da interrupção da sua gestação, num momento de encontro com o Real, o enfrentamento de um processo de difícil simbolização e o apego à religião na tentativa de recobrir esse fato impossível de simbolizar. Considera-se a importância de oferecer uma escuta especializada a essas mulheres, para que elas possam conferir uma significação a esse momento e dar um contorno ao Real que se faz presente, a fim de que não se precipite, de alguma forma, um trauma psíquico.

Palavras-chave: nascimento prematuro; psicanálise; maternidade; trauma.


ABSTRACT

Due to the high rate of premature births in Brazil, prematurity is a very worrying event, and women, impacted by the untimely childbirth, face a moment of significant traumatic potential. This is a clinical-qualitative research whose participants were mothers of very premature or extremely premature babies still hospitalized. The thematic content analysis technique was used for polishing the findings, with the stipulation of a posteriori categories analyzed according to the theoretical reference of psychoanalysis. The category covered in the article "I went into shock, and said 'and now how will it be?': The encounter with the unexpected and the traumatic experience" deals with the traumatic situation faced by mothers when confronted with the interruption of their pregnancy, stumbling against the Real, facing a process of difficult symbolization, and the attachment to religion in an attempt to account for a fact so hard to symbolize. The importance of offering specialized listening to these women is examined, so that they can impart a meaning to this moment and depict the Real that became present, so that a psychological trauma is not, in some way, triggered.

Keywords: premature birth; psychoanalysis; maternity; trauma.


RESUMEN

Debido a la alta tasa de nacimientos prematuros en Brasil, la prematuridad es un evento muy preocupante, y las mujeres, impactadas por la anticipación del parto, afrontan un momento de potencial traumático significativo. Esta es una investigación clínico-cualitativa cuyas participantes fueron madres de bebés muy prematuros o extremadamente prematuros aún hospitalizados. La técnica utilizada para pulir los hallazgos fue el análisis de contenido temático, con la estipulación de categorías a posteriori analizadas según el referencial teórico del psicoanálisis. La categoría cubierta en el artículo "Entré en estado de shock, dije '¿y ahora cómo será?': El encuentro con lo inesperado y la experiencia traumática" trata de la situación traumática que enfrentan las madres ante la interrupción de su embarazo, en un momento de encuentro con lo Real, afrontando un proceso de difícil simbolización y el apego a la religión en un intento de cubrir ese hecho imposible de simbolizar. Se considera la importancia de ofrecer una escucha especializada a estas mujeres, para que puedan atribuir un significado a este momento y dar un resumen de lo Real que está presente, de modo que no se precipite, de alguna manera, un trauma psicológico.

Palabras clave: nacimiento prematuro; psicoanálisis; maternidad; trauma.


 

 

Introdução

A prematuridade no Brasil é considerada uma questão de saúde pública pelo Ministério da Saúde, tendo-se em vista que há um índice extremamente alto de nascimentos prematuros - média de 11,5% dos nascimentos, taxa quase duas vezes maior que a dos países europeus (ENSP/Fiocruz, 2016). Soma-se a isso a prevalência da prematuridade em 47% dos óbitos infantis.

Vale destacar que, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) a prematuridade é caracterizada conforme a idade gestacional e o peso do bebê ao nascer. Para a entidade, são considerados prematuros os bebês que nascem antes de completar 37 semanas de gestação. Subdividem-se em três categorias: prematuros extremos (menos de 28 semanas); muito prematuros (de 28 a menos de 32 semanas) e prematuros moderados (de 32 a menos de 37 semanas) (OMS, 2018).

Ao considerar tais fatores, há que se ressaltar o impacto desse evento nas mães desses bebês, uma vez que não se trata de um evento de rara ocorrência. Quando o parto prematuro ocorre, principalmente em casos de bebês prematuros extremos e muito prematuros, a criança é separada de sua mãe e recebe cuidados de uma equipe especializada, numa Unidade de Terapia Intensiva Neonatal (UTIN). Nesse momento, algumas mulheres tornam-se espectadoras de seus filhos, posto que, por serem muito frágeis, elas pouco podem intervir organicamente e também emocionalmente para a recuperação de seus bebês.

Esse fator, somado a diversos outros acontecimentos impactantes decorrentes de um parto antes do previsto, não é sem consequências para a organização emocional da mãe do bebê prematuro.

A mãe do bebê prematuro

A ocorrência dos partos prematuros concentra-se no terceiro trimestre da gestação, ou seja, a partir da 28ª semana de gestação, fase na qual, para a maioria das gestantes, já existe uma interação importante entre a mãe e o bebê, visto que ela sente a criança em seu ventre de maneira intensa e ainda cursa, juntamente com o desenvolvimento orgânico do bebê, a gestação psíquica, com a preparação da mulher para o exercício da maternidade dessa criança (Szejer & Stewart, 1997).

É nesse momento da gravidez que a mulher pode sofrer diversas descompensações somáticas e psíquicas, como pré-eclâmpsia, ruptura de membrana, descolamento prematuro de placenta, bem como depressão, estresse e ansiedade, as quais podem acarretar, frequentemente, a interrupção da gestação (Bittar & Zugaib, 2009; Szejer & Stewart, 1997).

Há que se considerar que o nascimento prematuro é um momento de violência, tanto do ponto de vista orgânico como psíquico, visto que o potencial de risco surge, muitas vezes, de maneira inesperada, e isso pode afetar não só a criança - que é retirada abruptamente do útero materno e precisará se haver com possíveis consequências orgânicas de sua prematuridade -, mas também a mulher e sua família, pois são brutalmente atravessados pela repentina interrupção do processo de gestação psíquica da criança (Dias, 2006). Irrompe, portanto, uma mãe, cujo lugar materno, em construção, foi antecipado em virtude de um corte (Netto & Duarte, 2010).

Tais situações de difícil manejo enfrentadas pela mulher que vivencia o nascimento prematuro de seu bebê podem ser entendidas como uma situação de grande potencial traumático e há que se considerar que, numa situação de prematuridade, na qual a urgência da hospitalização protagoniza a história, o nascimento prematuro mostra-se irrefreável em seus efeitos, principalmente para os pais e, em especial, para a mãe (Vanier, 2013/2015).

Ela pode experimentar o momento do nascimento de seu filho como um evento brutal, imprevisto, traumático, que excede qualquer capacidade de elaboração; é uma intrusão do Real (Ansermet, 1999/2003), uma vez que uma decisão médica é tomada de urgência a fim de salvar as vidas, tanto da mãe quanto do bebê. É um bebê nascido inesperadamente e numa atmosfera de medo e pânico (Mathelin, 1997/1999).

Vive-se, dessa forma, no âmago do trauma; tudo se passa de forma muito rápida, sem a possibilidade de representação simbólica dos acontecimentos. A mãe é tomada por um sentimento de irrealidade. Trata-se de uma ocasião em que vida e morte se misturam. Nas palavras de Ansermet (1999/2003, p. 49), "a situação da reanimação neonatal é justamente a do pavor, com seu efeito de sideração".

Etimologicamente, a palavra trauma deriva do grego traumatikós, que significa ferida, ferir (Laplanche & Pontalis, 2001). Dessa forma, aquilo que fere pode ser tomado como trauma; no entanto, do ponto de vista da psicanálise, o trauma seria qualquer afeto que provoque medo, angústia, vergonha ou dor psíquica: é aquilo que se inscreve na dimensão da surpresa, do imprevisto e do inesperado, mobilizador de um abalo no aparelho psíquico (Freud, 1895/2006).

A partir de 1920, Freud define a neurose traumática como um acontecimento externo intenso, cujo impacto emotivo provoca, pela carga contida, sintomas significativos como confusão mental, estupor e agitação motora (Freud, 1920/2006). Na situação de trauma, o indivíduo tem a sensação de que sua vida corre perigo, com sentimentos de excesso, congelamento de energia, e bloqueio que o paralisam (Uchitel, 2001).

Dessa maneira, o trauma não surgiria apenas de conflitos internos, mas também de eventos externos, em que há a incursão de uma angústia sinalizadora de um excesso que impossibilita, mesmo que provisoriamente, qualquer simbolização (Laurent, 2002).

Ainda a esse respeito, Ansermet (2015) destaca que, por ser o trauma o encontro com aquilo que escapa à simbolização, o sujeito mergulha, num primeiro tempo, na sideração, devido à hiância que se abriu entre o acontecimento e a capacidade de significação, da representação daquilo diante do qual ele se encontra. Trata-se, portanto, do desamparo, da castração, do irrompimento do Real. Por ser impensável, o trauma permanece sem fala (Mathelin, 1997/1999).

Diante disso, para que uma elaboração seja possível, torna-se imperativo que haja um espaço para simbolização, visto que, como bem destacado por Freud (1895/2006), um trauma não se define, em especial, apenas pelo evento traumático em si, mas sim pela representação e significação conferida pelo indivíduo, em seu psiquismo, a posteriori, ou seja, o valor traumático de um evento é particular de cada sujeito, e pode ser localizado a partir da narrativa de cada um, da representação atribuída por cada pessoa após o acontecimento.

Conforme aponta Freud, a temporalidade do psiquismo para elaboração do evento traumático acontece na atemporalidade do inconsciente, e os efeitos desse acontecimento só serão conhecidos após o período de latência (Freud, 1926/2006).

Lacan (1945/1998), ao utilizar o conceito do tempo lógico, evidencia que a elaboração psíquica de um acontecimento segue a temporalidade lógica, ou seja, o instante de ver, o tempo de compreender e o momento de concluir. Essa ressignificação não obedece à ordem cronológica, mas está inserida na dimensão simbólica do tempo lógico, no qual o sujeito, por meio de divisões do tempo e de sua articulação, alcança uma conclusão.

Partindo desses pressupostos, pode-se dizer que o nascimento prematuro caracteriza-se como um momento de grande potencial traumático, do inesperado que entrecorta a mulher em sua gestação. Nesse instante, a mulher depara-se com o impossível de simbolizar, com a inexistência de palavras que possam dar contorno à situação potencialmente traumática que está vivenciando, um instante caracterizado pela angústia, de ruptura da cadeia significante.

Nesses momentos de urgência do parto e da interrupção da gestação, do desamparo, da pressa, da iminência da morte, pode-se dizer que a mulher encontra-se congelada na angústia e no trauma do instante de ver. Conforme aponta Berta (2015), parece haver um curto-circuito entre o ver, o compreender e o concluir. Destaca-se, assim, o instante de ver, já que ele reúne o choque do encontro com uma contingência que excede as coordenadas simbólicas e imaginárias do sujeito, um momento de significativo impacto.

Para recobrimento e contorno do Real assustador que se mostra, é comum o apego à religião, conforme aponta Freud (1927/2006) a respeito das ideias religiosas como forma de circunscrever as situações em que o desamparo se fez presente, sobre as quais o homem exerce pouco ou nenhum controle, como os fenômenos da natureza, as doenças e a finitude da vida.

Essas questões colocam o homem frente à sua castração e revelam feridas em seu narcisismo, uma vez que sua ideia de onipotência é posta em xeque. No tocante à vida e à morte, o apego à fé e a seres sobrenaturais que teriam uma explicação para os acontecimentos dolorosos, aqueles para os quais a ciência tem pouca ou nenhuma explicação, nem cura para os males, é uma tentativa de restaurar o narcisismo ferido (Cintra, 2004).

Klüber-Ross (1981/2018) aponta que, diante da possibilidade da morte de um ente querido, percebe-se que o apelo à religião, por parte da família, é algo muito recorrente, a fim de se encontrar forças e esperanças para a sobrevivência do doente.

Isto posto, é bastante comum o apoio que essas mulheres encontram na religião, trazendo muitas vezes discursos religiosos que auxiliam no contorno e no encobrimento desse Real assustador e sem explicação. A religião exerce, nesses casos, a função de amparo à mãe, de garantia da sobrevivência e recuperação do bebê, de busca de explicações para o parto prematuro do filho (Véras et al., 2010).

À vista desse encontro com o trauma, em que há conteúdos impossibilitados de representação na cadeia significante e em que o trabalho da associação livre encontra-se obliterado, importa salientar a necessidade da oferta de uma escuta que a auxilie na elaboração desse acontecimento, em busca da inscrição daquilo que ainda não foi capaz de encontrar registro no psiquismo.

Dessa maneira, viabiliza-se a significação desse acontecimento, considerando a temporalidade do inconsciente, o a posteriori freudiano, para que o Real que a assalta possa, aos poucos, obter um sentido minimamente encoberto pelo Simbólico e ela possa criar novas possibilidades subjetivas, com a intenção de que esse evento se inscreva como um trauma psíquico de outra ordem.

 

Metodologia

Este trabalho é um recorte de uma pesquisa de mestrado, cujo objetivo foi investigar os sentimentos e as vivências de mães que tiveram bebês prematuros extremos e muito prematuros, que ainda se encontravam hospitalizados.

O estudo caracterizou-se por uma pesquisa qualitativa com enfoque na pesquisa clínico-qualitativa (Turato, 2003). Para a construção da amostra, foi utilizada a técnica de amostragem intencional, em que o autor do projeto delibera quais são os sujeitos que comporão o estudo, segundo os pressupostos do trabalho, e sobre os quais é possível apreender em profundidade as questões relevantes para a pesquisa (Turato, 2003).

O grupo da amostra dessa pesquisa foi composto por nove mulheres, mães de bebês prematuros extremos ou muito prematuros que ainda se encontravam hospitalizados, cujas idades variaram entre 18 e 38 anos.

Os nomes das participantes foram omitidos e substituídos por nomes de flores, em virtude da relação feita pela pesquisadora a respeito da delicadeza, tanto do momento vivenciado por essas mulheres, como das flores. Destaca-se que a escolha do nome de cada flor não foi aleatória, mas o significado do nome de cada uma vincula-se a alguma característica da participante, apreendida pela pesquisadora.

Para viabilizar o método clínico-qualitativo, foi utilizada a Técnica de Entrevista Semidirigida de Questões Abertas. Segundo Bleger (1980/2003), a entrevista mostra-se como um instrumento de fundamental importância para o método clínico, uma vez que amplia, verifica e aplica o conhecimento científico.

As participantes foram convidadas a participar da pesquisa durante o período de permanência com o bebê na UN (Unidade Neonatal). A coleta de dados ocorreu somente após o aceite da participante à pesquisa e da explicação dos termos da pesquisa contidos no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), e da assinatura deste.

A técnica utilizada para a lapidação dos achados foi a Análise Qualitativa de Conteúdo, e foi considerada a categorização não apriorística (Campos, 2004; Minayo, 1993/1999). Destaca-se que a análise das categorias estipuladas se fundamentou na perspectiva da teoria psicanalítica.

Este estudo seguiu as normas preconizadas pela resoluções nº 466/2012 (MSaúde/CNS, 2012) e nº 510/2016 (MSaúde/CNS, 2016). Por se tratar de pesquisa realizada na área da saúde com interface na área das ciências humanas, foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com seres humanos.

 

Resultados e discussão

Para discussão deste artigo, selecionou-se a categoria "Eu entrei em choque, falei 'e agora como vai ser?': O encontro com o inesperado e a vivência traumática", a qual trata das questões relacionadas à situação de significativo potencial traumático vivenciada por essas mulheres em virtude do nascimento prematuro de seus filhos. Somam-se a isso os eventos ocasionados pelos imprevistos diários com o bebê hospitalizado e o apoio que essas mulheres buscaram nos aspectos religiosos para recobrir esse insuportável que irrompe.

Como destacado anteriormente, um trauma não se caracteriza fundamentalmente, para a psicanálise, por uma situação traumática em si, mas pela significação e representação psíquica que o sujeito faz dele a posteriori (Freud, 1895/2006). Freud (1920/2006) destaca, portanto, que os acontecimentos cotidianos e externos que apresentam potencial traumático podem impactar o aparelho psíquico e dificultar a representação desse evento, precipitando o trauma. Para Ansermet (2015), o momento do nascimento prematuro tem grande potencial traumático, o qual escapa à simbolização do sujeito, um encontro com o inesperado que, como destacado por Mathelin (1997/1999), por ser inapreensível, permanece sem fala.

Esse aspecto de acontecimento abrupto, com a inexistência de palavras que possam dar contorno ao Real, a esse inesperado que surge, pode ser evidenciado pelos recortes a seguir, no momento em que as mulheres contaram como aconteceu e como foi para elas a experiência do parto prematuro:

Amor-perfeito: [] seu bebê pode nascer a qualquer momento. Falou desse jeito assim, para mim, quase morri, desesperei, porque eu falei: "nossa, mas é muito pequeno", na hora eu pensei, eu comecei a chorar, desesperada, não sabia o que fazer [].

Jasmim: No quarto dia disseram que eu tinha que subir para cesárea, porque estava descolando a placenta, fiquei desesperada, porque é um choque [].

Nessas falas, destaca-se o evento de quebra da homeostase, em que os bebês, que estavam sendo gestados e contavam com menos de trinta semanas de gestação, poderiam nascer a qualquer hora.

Esses discursos engendram o exposto por Ansermet (1999/2003), em que a ocasião da notícia da antecipação do parto é uma circunstância que presentifica o âmago do trauma e tudo acontece de maneira muito rápida. Essas mulheres vivem um momento de irrealidade, como bem ressalta Ansermet (1999/2003), ou seja, falam da percepção de que o que está acontecendo não é com elas. A fala de Amor-perfeito nos faz pensar a esse respeito:

Amor-perfeito: [] na hora já fiquei internada, foi muito louco, parecia que não era eu que estava vivendo aquilo, foi coisa muito rápida, fiquei internada, um monte de remédio. Era um pânico para mim, porque eu não acreditava no que estava acontecendo, parece que você não está vivendo ali, foi terrível [].

Dessa forma, devido à caracterização abrupta do acontecimento, a pessoa experimenta afetos de angústia e pânico, os quais podem levá-la a se questionar sobre sua identidade e sobre as razões para aquilo estar acontecendo com ela.

Percebe-se, como destacaram Laurent (2004) e Caldas (2015), que o Real insiste, e há pouca possibilidade de dar contorno a ele pela palavra. A fala de Íris pode exemplificar essa sensação:

Íris: Não sei te explicar, é uma dor que não tem nome [].

Miller (1997) ressalta a afirmação de Lacan, que atesta a relação com a língua como verdadeiro núcleo traumático, ou seja, com o impacto que as palavras escutadas causam no ouvinte, sem que ele seja capaz de lhes conferir sentido algum. Pode-se constatar esse impacto das palavras do outro quando as mães enfatizam o que sentiram quando o médico lhes informou da necessidade da internação e/ou do parto prematuro. Dália assim descreve:

Dália: [] Eu chorei muito, eu falei sim para o médico [a respeito do parto], mas eu chorei, porque 32 semanas eu sabia que ela era pequena. Mas no dia anterior eu fiquei muito nervosa quando ele [médico] falou que tinha que nascer mesmo, que não tinha mais jeito [].

Petúnia, mãe de gêmeos, um de cujos bebês foi a óbito durante a gestação, assim destaca:

Petúnia: [] não sentia nada, o médico me apavorou, que o I. não ia aguentar, porque o coraçãozinho dele já estava ficando fraco []. (grifo nosso)

Salienta-se, no caso de Petúnia, o duplo trauma experienciado por ela, um pela notícia do falecimento de um dos seus bebês dentro do ventre e outro pela notícia da necessidade de realizar um parto antes do previsto. Ela assim descreve:

Petúnia: [] ele era gemelar, o outro irmãozinho dele veio a óbito dentro de mim ainda, eu não sabia. A gente veio fazer exame do coraçãozinho para ver como estava a situação deles, na hora que fez [o médico] viu que o do I. estava normal, só que o outro já tinha ido a óbito, na hora eu fiquei abalada, eu chorei muito, estava engasgada com tanta coisa ruim, o psicológico da gente fica abalado, fica muito abalado [].

Logo, quando ela aponta que estava "engasgada" com tantos acontecimentos ruins, pode-se apreender o congelamento do deslizamento simbólico provocado pelo encontro com a situação de potencial traumático; faltam palavras que possam, de alguma forma, conferir qualquer significação aos fatos.

A essa fase impactante da notícia da necessidade de realizar o parto antes do previsto, somam-se as notícias diárias sobre a saúde do bebê a cada momento que as mães chegam ao setor de neonatologia, quando buscam por novidades, ou quando alguém da equipe vai até elas falar sobre algum procedimento. Algumas vezes, são notícias que as abalam psíquica e emocionalmente, como reatualizações das situações traumáticas, além do medo da iminente morte do bebê.

Sobre as notícias e os acontecimentos imprevistos, elas assim relatam:

Jasmim: [] cada dia que a gente entra aqui é uma coisa diferente, porque é um dia após o outro [].

Dália: [] é aquele medo de você chegar e o que você vai encontrar, a gente vai embora e não sabe o que vai encontrar no dia seguinte [].

Essas notícias e acontecimentos inesperados presentes num setor de reanimação neonatal promovem, nessas mulheres, um constante reencontro com a situação potencialmente traumática, em que as palavras parecem desaparecer.

Houve momentos na realização das entrevistas em que algumas mulheres estavam em choque e abaladas por alguma intercorrência recente com seu bebê, além da situação no parto antecipado, como apreendido pela fala de uma entrevistada, ao relatar, bastante angustiada, algo que acontecera no dia anterior:

Jasmim: [] ele não estava trabalhando muito bem sozinho, já três vezes que ele teve essa queda e foi tudo na minha frente. Ele ficou roxinho, eu fiquei desesperada, não sabia se eu chorava, se eu pedia para Deus dar-me força, no dia que entubaram ele, ele não voltava e a enfermeira falando "volta, volta" e ele não voltava e eu escutando tudo isso, foi desesperador [].

A respeito do constante medo do óbito dos bebês, as entrevistadas mostram-se sempre apreensivas e, por vezes, vivenciam cenas com seus filhos que as impactam significativamente. A esse respeito, elas relatam:

Amor-perfeito: [] ele parou porque ele desentubou sozinho, deu uma parada, que desesperador que foi, eu tinha descido no banco de leite, aconteceu e na hora que eu voltei, todo mundo estava olhando assim para mim, como se tivesse alguma coisa acontecido e a hora que eu olhei, o tubo estava diferente, já comecei a chorar [].

Hortência: [] eu falo morreu, porque a enfermeira disse que era pra gente sair que ia reanimá-lo, para mim ele chegou a morrer e não foi só uma, várias vezes eu o vi morrer na minha frente, porque ele foi reanimado, eu sempre ficava com medo, até pensava "agora vai" e chorava [].

Esses momentos de encontro com impossível de ser simbolizado, em que a pessoa se depara com a intrusão de um acontecimento impensável em sua organização simbólica, necessitam de um tempo de elaboração e de significação. Neles, pode ocorrer o congelamento do sujeito no instante de ver, quando ele se defronta com a notícia ou com o evento (Ansermet, 1999/2003).

Nas entrevistas realizadas, apreendem-se diversos acontecimentos nos quais há certa dificuldade dessas mulheres para pôr em palavras e conferir uma significação diversa para esses acontecimentos. Era comum, no decurso das entrevistas, que as participantes ficassem em silêncio diante de alguma pergunta feita pela pesquisadora ou apenas chorassem, o que nos confere indícios desse encontro com o impossível de ser simbolizado. Esse fato pode levar à dedução de que elas vivenciam psiquicamente uma região limítrofe entre o instante de ver e o tempo de compreender, ficando para depois, provavelmente, o momento de concluir, como salientado por Berta (2015), visto que elucida a ocorrência de um curto-circuito entre os tempos de ver, de compreender e de concluir nas situações em que o trauma se faz presente.

Esse aspecto fica patente quando elas ressaltam, por exemplo:

Violeta: Não sei te explicar como que foi, não sei explicar porque tiraram ela antes [].

Jasmim: Não sei nem o que explicar [].

Na tentativa de recobrir essa dor sem nome e de buscar algum sentido para o inesperado que imperou, percebeu-se a presença do apego ao sobrenatural. Essas mães, durante o período de internação de seus bebês, precisam lidar com a incerteza no tocante à recuperação de seus filhos e com o pavor diante de todos os acontecimentos dentro de uma UTI neonatal. Lidam, portanto, com a castração e a finitude e apegam-se a um Deus onipotente, na tentativa de alcançar algum consolo nesse tempo de grande desamparo.

Utilizam, dessa forma, um recurso psíquico, como salientado por Freud (1927/2006), no qual, em face do desamparo incomensurável, é comum que o homem recorra ao sobrenatural, por considerá-lo detentor de todas as respostas, o qual tudo pode resolver. É possível encontrar esse aspecto nas mães entrevistadas, como bem demonstram os seguintes recortes:

Íris: [] tem coisas que não dependem da gente, depende de Deus também, Deus pode fazer a obra nela hoje, e amanhã ela está bem [].

Petúnia: [] porque eu tive que entregar na mão de Deus, seja o que Deus quiser agora daqui para frente [].

Klüber-Ross (1981/2018) destacou, em sua obra "Sobre a morte e o morrer", que é comum as pessoas recorrerem à religião frente ao adoecimento de um entre querido, em busca de forças e de esperança para sua sobrevivência, como se pode perceber pelo discurso a seguir:

Hortência: [] foi um choque, não tinha como eu ganhar agora, fiquei com medo na hora dele não viver, mas me apeguei em Deus e pedi força. Deus consola, dá força, Deus sabe o que faz [].

Logo, essas mulheres buscam apoio na religião, tanto para encontrar uma explicação para a antecipação do parto, como também para o enfrentamento do evento traumático do nascimento prematuro e para a recuperação da saúde de seus filhos. A esse respeito, Véras et al. (2010), destacam que, nesses casos, a religião oferece amparo à mãe, bem como uma suposta garantia da recuperação de seu filho.

 

Conclusões

A vivência do parto muito antecipado mostrou-se como evento de grande potencial traumático para essas mães que tiveram bebês muito prematuros ou extremos. O choque da notícia, comunicada pela equipe médica, de que seria necessário ou a internação imediata dessa gestante ou a realização urgente do parto pode ser compreendido como um momento de irrupção do Real, do impossível de ser simbolizado, em que se faz presente somente a falta de palavras que possam dar sentido a tudo o que ocorre.

É um momento caracterizado, assim, pela quebra da homeostase, não só da gestação orgânica, como também da gestação psíquica, tão importante para a construção enquanto mãe desse bebê. Somam-se a isso as diversas intercorrências enfrentadas por essas mulheres cotidianamente no setor de reanimação neonatal, em vista da condição de seus filhos, que as relançam sempre em novas reedições da situação traumática.

Portanto, um parto prematuro lança a mulher, em meio à ruptura de sua gestação, ao encontro com uma situação traumática, em que as palavras utilizadas para a expressar pouco conseguem conferir uma significação. Em meio ao desespero, ao inesperado que se deflagra e ao desamparo, recorre ao divino, onipotente, o qual pode conceder uma explicação para esse evento, além de resolvê-lo. O apelo ao sobrenatural confere, dessa forma, uma obturação da castração, do furo existente na trama do trauma.

A respeito do trauma, ao se considerar a temporalidade do inconsciente, quando um evento tornar-se-á ou não um trauma psíquico somente a posteriori, é necessário destacar a importância de realizar uma escuta das angústias dessa mulher, para que ela possa conferir um sentido outro a esses acontecimentos e atribuir-lhes uma significação que dê um contorno ao indizível do Real. Isso teria o propósito de não precipitar um trauma psíquico de outra ordem e lhe permitir criar novas possibilidades subjetivas sobre aquilo que lhe aconteceu, o que pode impactar sobremaneira na apropriação, bem como no exercício de sua maternidade com seu bebê, na ocasião hospitalizado.

 

Referências

Ansermet, F. (1999/2003). A clínica da origem: A criança entre a medicina e a psicanálise. Rio de Janeiro: Contra Capa.         [ Links ]

Ansermet, F. (2015). O traumatismo anterior ao nascimento. Opção Lacaniana online, 16(6), 1-8. http://www.opcaolacaniana.com.br/nranterior/numero16/texto4.html        [ Links ]

Berta, S. L. (2015). Localização da urgência subjetiva em psicanálise. A Peste: Revista de Psicanálise e Sociedade e Filosofia, 7(1), 95-105. https://revistas.pucsp.br/index.php/apeste/article/view/30462/21073        [ Links ]

Bittar, R. E.; Zugaib, M. (2009). Indicadores de risco para o parto prematuro. Revista Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia, 31(4), 203-209. https://doi.org/10.1590/S0100-72032009000400008        [ Links ]

Bleger, J. (1980/2003). Temas de psicologia: Entrevistas e grupos (3ª ed.). São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Caldas, H. (2015). Trauma e linguagem: Acorda. Opção Lacaniana online, 6(16), p. 1-14. http://www.opcaolacaniana.com.br/nranterior/numero16/texto5.html        [ Links ]

Campos, C. J. G. (2004). Método de análise de conteúdo: Ferramenta para a análise de dados qualitativos no campo da saúde. Revista Brasileira de Enfermagem, 57(5), 611-614. https://doi.org/10.1590/S0034-71672004000500019        [ Links ]

Cintra, E. M. U. (2004). A questão da crença versus a questão da fé: Articulações com a Verleugnung freudiana. Psicologia em Revista, 10(15), 43-56. http://ibict.pucminas.br/index.php/psicologiaemrevista/article/view/195/206        [ Links ]

Dias, M. (2006). Uma escuta psicanalítica em neonatologia. In: R. G. Melgaço (Org), A ética na atenção ao bebê: Psicanálise, Saúde, Educação, p. 137-147. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

ENSP / Fiocruz (2016). Taxa de bebês prematuros no país é quase o dobro do que em países da Europa. In: Portal Fiocruz - Notícias. https://portal.fiocruz.br/noticia/taxa-de-bebes-prematuros-no-pais-e-quase-o-dobro-do-que-em-paises-da-europa        [ Links ]

Freud, S. (1895/2006). Estudos sobre a histeria. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (trad. J. Salomão), vol. 2, p. 39-43. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Freud, S. (1920/2006). Além do princípio de prazer. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (trad. J. Salomão), vol. 18, p. 2-42. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Freud, S. (1926/2006). Inibição, sintoma e ansiedade. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (trad. J. Salomão), vol. 10, p. 48-110. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Freud, S. (1927/2006). O futuro de uma ilusão. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. 21, p. 15-63. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Klüber-Ross, E. (1981/2018). Sobre a morte e o morrer. São Paulo: WMF Martins Fontes.         [ Links ]

Lacan, J. (1945/1998). O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada. In: Escritos, p. 197-213. Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Laplanche, J.; Pontalis, J. (2001). Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Laurent, E. (2002). El revés del trauma. Virtualia, 6, 2-7. http://www.revistavirtualia.com/articulos/696/destacados/el-reves-del-trauma        [ Links ]

Laurent, E. (2004). O trauma ao avesso. Papéis de Psicanálise, 1.         [ Links ]

Mathelin, C. (1997/1999). O sorriso da Gioconda: Clínica psicanalítica com bebês prematuros (trad. Procópio Abreu). Rio de Janeiro: Companhia de Freud.         [ Links ]

Miller, J.-A. (1997). Lacan elucidado. Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Minayo, M. C. S. (1993/1999). O desafio do conhecimento: Pesquisa qualitativa em saúde (6ª ed.). São Paulo: Hucitec-Abrasco.         [ Links ]

MSaúde/CNS - Ministério da Saúde, Conselho Nacional de Saúde (2012). Resolução nº 466, de 12/12/2012 - Diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/2013/res0466_12_12_2012.html        [ Links ]

MSaúde/CNS - Ministério da Saúde, Conselho Nacional de Saúde (2016). Resolução nº 510, de 07/04/2016 - Normas aplicáveis a pesquisas em Ciências Humanas e Sociais envolvendo dados obtidos de participantes ou informações identificáveis. https://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2016/Reso510.pdf        [ Links ]

Netto, M. V. R. F.; Duarte, L. S. (2010). Frankestein na UTI neonatal: O conflito entre o filho real e o filho imaginário. Psicanálise e Barroco, 8(1), 175-188. http://www.seer.unirio.br/index.php/psicanalise-barroco/article/view/8783/7479        [ Links ]

OMS - Organização Mundial da Saúde (2018). Nacimientos prematuros (nota descriptiva). https://www.who.int/es/news-room/fact-sheets/detail/preterm-birth/        [ Links ]

Szejer, M.; Stewart, R. (1997). Nove meses na vida de uma mulher: Uma abordagem psicanalítica da gravidez e do nascimento. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Turato, E. R. (2003). Tratado da metodologia da pesquisa clínico qualitativa: Construção teórico-epistemológica, discussão comparada e aplicação nas áreas da saúde e humanas. Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

Uchitel, M. (2001). Neurose traumática: Uma revisão do conceito de trauma. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Vanier, C. (2013/2015). Premature birth: The baby, the doctor and the psychoanalyst (transl. L. Watson). London: Karnac.         [ Links ]

Véras, R. M.; Vieira, J. M. F.; Morais, F. R. R. (2010). A maternidade prematura: O suporte emocional através da fé e religiosidade. Psicologia em Estudo, 15(2), 325-332. https://www.scielo.br/j/pe/a/bqHmzXwkQJYRjR6KRyTpQQd/        [ Links ]

 

 

Recebido em 23 de maio de 2021
Aceito para publicação em 02 de outubro de 2021

 

 

Não se declararam fontes de financiamento.

Creative Commons License