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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.34 no.2 Rio de Janeiro maio/ago. 2022

http://dx.doi.org/10.33208/PC1980-5438v0034n02A05 

SEÇÃO TEMÁTICA - REVISÃO, AVALIAÇÃO E DESENVOLVIMENTO TEÓRICO E PRÁTICO NA CLÍNICA PSICOLÓGICA

 

Os aspectos caóticos do imaginário no contemporâneo: As redes sociais e a Queda Livre

 

The chaotic aspects of the imaginary in contemporary: Social networks and the Nosedive

 

Los aspectos caóticos del imaginario en el contemporáneo: Las redes sociales y la Caída en Picado

 

 

Jacqueline Danielle PereiraI; João Luiz Leitão ParavidiniII

IMestra em Psicologia pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Departamento de Psicologia do Instituto de Psicologia. Uberlândia, MG, Brasil. email: jacquelinedaniellepereira@hotmail.com
IIDoutor em Ciências da Saúde (Saúde Mental) pela Universidade de Campinas (Unicamp). Docente do Programa de Graduação e Pós-graduação em Psicologia no Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Campus Umuarama, Uberlândia, MG, Brasil. email: jlparavidini@gmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo trata, a partir da perspectiva psicanalítica lacaniana, das condições contemporâneas que provocam mudanças no estatuto do registro Imaginário e investiga os efeitos de sujeito que a preponderância desse registro sobre a instância do Simbólico pode franquear. Faz-se necessário, assim, refletir acerca do estádio do espelho, parte constituinte do Imaginário, percorrendo suas possíveis novas configurações na atualidade, tendo em vista a incidência do discurso capitalista e científico. A presença em massa da internet e suas redes sociais é um fator que contribui para a expansão do alcance do Imaginário tanto quanto para as mutações na realização especular, bem como para o retorno do sujeito a uma posição narcísica frente a si mesmo e ao outro, tornando-se necessário abordar também essa questão ao longo do trabalho. Para tornar mais clara a discussão, são apresentados, ao final, extratos de dois episódios de um seriado de ficção científica contemporânea.

Palavras-chave: imaginário; simbólico; contemporâneo; redes virtuais; Black Mirror.


ABSTRACT

The present article discusses, from a Lacanian psychoanalytic perspective, the contemporary conditions that cause changes in the statute of the Imaginary register, and inquires about the subject effects that the preponderance of this register over the instance of the Symbolic can open up. It is therefore necessary to reflect on the mirror stage, a constituent part of the Imaginary, covering its novel possible configurations today, in view of the incidence of capitalist and scientific discourse. The mass presence of the internet and its social networks is a factor that contributes to the expansion of the Imaginary's reach as well as to the mutations in specular realization, and furthermore to the return of the subject to a narcissistic position towards himself and the other, making it also necessary to address this issue throughout this work. In order to clarify the discussion, extracts from two episodes of a contemporary science fiction series are provided at the end.

Keywords: imaginary; symbolic; contemporary; virtual networks; Black Mirror.


RESUMEN

Este artículo aborda, desde una perspectiva psicoanalítica lacaniana, las condiciones contemporáneas que provocan cambios en el estatuto del registro Imaginario y se indaga sobre los efectos de sujeto que puede abrir la preponderancia de este registro sobre la instancia de lo Simbólico. Por tanto, es necesario reflexionar sobre el estadio del espejo, parte constituyente del Imaginario, cubriendo sus posibles nuevas configuraciones hoy, ante la incidencia del discurso capitalista y científico. La presencia masiva de internet y sus redes sociales es un factor que contribuye tanto a la expansión del alcance del Imaginario como a las mutaciones en la realización especular, así como al regreso del sujeto a una posición narcisista hacia sí mismo y hacia el otro, haciendo necesario abordar también este tema a lo largo del trabajo. Para aclarar la discusión se encuentran disponibles, al final, extractos de dos episodios de una serie de ciencia ficción contemporánea.

Palabras clave: imaginario; simbólico; contemporáneo; redes virtuales; Black Mirror.


 

 

Introdução

Os recursos virtuais pretendem se tornar um universo - quase literalmente; ao menos é o que Mark Zuckerberg tenciona com o seu grandioso projeto metaverso. Não é à toa que, numa reportagem sobre o projeto do idealizador do Facebook, afirma-se "Seja comprando, ou vendendo, num futuro muito próximo toda a nossa sociedade poderá estar imersa nesta nova tecnologia" (Exame, 2022). Os especialistas asseguram que a revolução será gigantesca: "a tendência é () que o dinheiro () passe a circular dentro do metaverso. Com isso, novas profissões, formas de estudar e formas de se divertir surgirão para mudar o que achávamos impossível de ser mudado: o modo como vivemos" (Exame, 2022). Não só a comunicação, mas a vida humana e as subjetividades se transformam a cada inovação das redes.

Tamanha inovação não se passa ao largo da ciência, tampouco do capitalismo. Há um grande investimento de ambos nesse lucrativo processo. A ciência, com a gana de fazer do homem uma máquina, aliada ao capitalismo, que tem sede de extração de mais-valia, sempre e ainda mais, tornam o próprio sujeito um produto. Esses discursos encontram em um projeto como o metaverso uma grande realização.

As redes sociais são um exemplo formidável da mobilização subjetiva que a internet pode causar. Pôde-se testemunhar há pouco tempo atrás o dia em que o WhatsApp ficou fora do ar e, posteriormente, a queda do Instagram. Em poucos minutos, centenas de reportagens foram geradas sobre os acontecimentos, e buscas como "Instagram cai" estavam no top 10 dos assuntos mais pesquisados em buscadores online e mais comentados no Twitter.

Apesar de o sujeito geralmente se manter numa postura passiva frente ao conteúdo virtual, há escapadelas. Os memes que circulam na internet denunciam isso, os significantes que aí surgem também. Alguns blogueiros, por exemplo, chamam as curtidas que recebem de biscoitos, fazendo analogia com recompensas - reforços positivos que tendem a aumentar a ocorrência do comportamento - que os animais recebem ao serem adestrados. Os memes, por sua vez, amiúde ironizam a relação dos usuários com a internet. Por exemplo, um meme que circulou no dia em que as redes sociais falharam traz a foto do Homem Aranha deitado em uma maca em um hospital acima da qual está escrito: "eu depois de 3 horas sem WhatsApp e insta e ainda não #voltou".

A realidade contemporânea é permeada continuamente pela insuflação do Imaginário. O que isso quer dizer? Significa, como muito tem-se falado, que o Simbólico estreitou seu alcance, enquanto o Imaginário estendeu o dele (Miller, 2001; Paulozky, 2011; Brousse, 2014; Hanze, 2014). Na verdade, há uma significativa sobreposição de um registro pelo outro. O atravessamento do cotidiano pelas redes sociais e pelas mídias, além da presença de diversas high-techs, colaboram para tal ocorrência. As redes virtuais, de modo especial, provocam mudanças na vida humana na medida em que sua inserção cotidiana acarreta alterações discursivas (Jerusalinsky, 2017).

A visualização da vida em telas dá outro enquadre às cenas ordinárias. Lacan (1965-1966/2018), em uma de suas definições da fantasia, delineia-a a partir da possibilidade de ser uma das telas para o Real que o esconde e o aponta a um só tempo. Baseado nessa noção, Alvarez (2014) propõe a interseção entre a tela fantasista e a tela da internet ao supor que ambas operam como gadget - no caso da internet, só às vezes -, isto é, em sua vertente que funciona como objeto que supre o objeto da fantasia, pretendendo substituí-lo. O gadget é a materialização da investida da ciência em tapar a perda de gozo inerente ao campo do Simbólico.

O uso das ferramentas virtuais pode incorrer até mesmo numa certa confusão entre as realidades material e virtual ou, igualmente, uma continuidade entre elas. Como quando o sujeito não sabe diferenciar o efeito tecnológico de um filtro aplicado a uma selfie no Instagram, retocando todos os detalhes de seu rosto, e a sua aparência fora dessa tela, a ponto de consultar um cirurgião plástico no intuito de transformar sua face para torna-la igual à imagem computadorizada. Os números nos dão a conta disso: segundo um estudo de 2017 da Academia Americana de Cirurgiões Plásticos, cerca de 55% das pessoas que querem fazer rinoplastia - cirurgia plástica de correção do nariz - têm essa vontade em razão da sua imagem em fotos em redes sociais (Eiras, 2020); além disso, a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (2017, p. 24) atesta que a procura por técnicas estéticas não invasivas subiu 390% de 2014 a 2016. Condicionam-se assim efeitos de sujeito.

Faz-se necessário um adendo para esclarecer o termo "caos" empregado no título deste texto. Tal termo é empregado valendo-se da participação do Imaginário na construção de sentido. Se o Imaginário dá consistência ao sentido, o "caos" aqui, cuja raiz etimológica grega é Khaós, porta o significado de um vazio que antecede a emergência das coisas, ou que se aloca no interior delas. Ele corresponde ao vazio deixado pela falta de sentido - diverso do vazio estrutural e estruturante, na medida em que o vazio estrutural se dá ao experienciar o lugar sem o objeto a, um sentido sem uma essência, como explica Dunker (2016). Em outras palavras, a falta de consistência da ordem Simbólica possibilita a superveniência do vazio que, em termos teóricos, aparece sem borda. Isso parece coincidir com os efeitos da internet, como aponta Hanze (2014): ao contrário do Simbólico que, a partir da inexistência de um componente que completaria o conjunto, torna impossível a nomeação de todos os membros desse conjunto e incita a criação de soluções, a internet "é uma resposta que satura o usuário, deixando-o na nudez física, social e psíquica mais elementar" (Hanze, 2014, p. 362).

Cabe também destacar que registro psíquico é um conceito lacaniano por meio do qual se pensa, de modo especial, não só a constituição do sujeito, mas também como se dá a experiência analítica, as operações em análise e a localização do sujeito nesta. A palavra registrar guarda o sentido de inscrever algo em determinado espaço ou lugar. Lacan, na releitura da teoria freudiana, inova ao fazer operar os três registros psíquicos: Real, Simbólico e Imaginário. Freud (1895/1996, 1896/1987) menciona e descreve os registros mnêmicos/psíquicos; porém, a definição conceitual desenvolvida por Lacan acerca dos registros se faz destacar das de Freud, tratando-se então de uma proposição fundamental para a "metapsicologia" lacaniana.

Em síntese, tem-se o Real como o registro do não-sentido, o vazio de saber. O Imaginário é o campo das relações do homem com a imagem, do qual Lacan (1953-1954/1986) faz uma primeira leitura a partir da etologia, considerando os automatismos entre o os estímulos visuais e a reação incitada, para depois entendê-lo como o âmbito da alienação, das identificações com o outro, dos fenômenos especulares. Esse registro seria responsável por dar consistência e sentido às coisas, tendo em vista que o Imaginário presentifica o que está temporariamente ausente. Soma-se a isso a sua condição de fazer borda ao Real. Também se constitui numa primeira via de acesso à realidade, o que não é possível pelo Real, já que o Real é o que "não cessa de não se inscrever" (Lacan, 1974-1975). Já o Simbólico, continente da linguagem e da fala, é caracterizado pela definição das coisas, o que é feito ao pôr um símbolo no lugar de algo, mas esse algo pode não ter nada a ver com o símbolo, e vice-versa (Vieira, 2009). E, na dimensão da linguagem e da fala, percebe-se que o Simbólico comporta uma diversidade de sentidos pela via da metáfora, contrastando ora com o Imaginário que funciona com sentidos unívocos, isto é, não deixa brechas para o mal-entendido, é o que é, o que está ali, ora com o Real que não detém nenhum sentido.

Neste texto, pretende-se privilegiar o delineamento do registro psíquico Imaginário para, assim, pensar em como ele participa da produção da realidade subjetiva nas qual os sujeitos contemporâneos se constituem e da qual são constituídos. O ponto que se quer demarcar precisamente é o Outro contemporâneo envolto nas redes virtuais, as quais também estão, de certa forma, regidas pelos discursos da ciência e do capitalismo. Sabe-se que os produtos do capitalismo e da tecnociência se servem da web para exponenciar sua oferta, que além disso eleva ao infinito as experiências. Isso parece coincidir com o caráter pulsional que se faz num ciclo repetitivo. Contudo, esse ciclo bordeja algo, ainda que seja o vazio deixado pelo objeto a, muito diferente do que ocorre no modo virtual, já que implica um movimento em que a borda é frágil; afinal, o Outro virtual é anônimo e acorporal, portanto dificilmente impõe um limite ao sujeito imerso nesse meio.

Destarte, este artigo perpassará um tensionamento entre as vias que elevaram o Imaginário ao seu estatuto atual, tais como as redes sociais, e os efeitos de sujeito implicados, considerando para tal a perspectiva do vazio intrínseco ao caos, que outorga a emergência de situações que implicam o sujeito. Esse vazio se distancia do furo que o Real faz no Imaginário e no Simbólico na medida em que ele, o vazio, representa não um buraco ocasionado pelas bordas borromeanas enodadas da trindade RSI, mas uma supressão do próprio Real pela via da Imagem, "por uma escritura fundamentalmente estabelecida sobre a imagem" (Lollo, 2017, p. 18). Como lembra Lollo (2017), é preciso que a linguagem opere no Real para que se entenda algo do existente; no entanto, o sentido extraído dessa operação implica um referente que, para Lacan, é o próprio Real. Nesse sentido, na atualidade, é como se houvesse um vazio de referente. Assim, o ocultamento do Real pela imagem pode fornecer a falsa sensação de que o Real é prescindível, desconsiderando sua participação na articulação do sentido plural - não colado a uma verdade, como na vertente Imaginária -, segundo o que explicita Lollo (2017). Alguns extratos de produções culturais serão aproveitados para esboçar os modos contemporâneos de relação entre os sujeitos e o Outro.

 

O Imaginário

O Imaginário, longe de ser o produtor das imaginações, é definido por Lacan (1953-1954/1986), incitado pelo que lera em Freud sobre suas hipotetizações acerca de ser "um lugar psíquico, () o instrumento que serve às produções psíquicas como uma espécie de microscópio complicado, de aparelho fotográfico, etc." (p. 92). Não por acaso, Lacan é despertado por essas palavras de Freud, já que utilizará um instrumento, o esquema ótico do espelho, como análogo ao registro Imaginário, o qual o acompanhará por muito tempo em suas teorizações; e, mais ainda, tomará esse instrumento como deveras complexo, devido à conotação embaraçada que o Imaginário porta. Quanto às produções psíquicas às quais Freud se refere, pode-se dizer que elas compreenderão desde a leitura possível da realidade contingente, até as formações do inconsciente, tais como o sonho, os lapsos e os sintomas.

Destaca-se aqui, nesta seção textual, o Imaginário, apenas com intuito didático, sendo indevida a conclusão de que essas instâncias seriam independentes. Os registros, como Lacan vai postular mais tarde em sua teoria, constituem um tipo de enlaçamento denominado nó borromeano. Este se faz do intercruzamento dos três registros, cada um deles representado por uma corda em círculo (fechado). Tal estrutura dá cabo à interdependência dos registros, pois o escapamento de um deles causaria o desatamento de todo o nó, correspondendo à foraclusão do nome-do-pai tal qual ocorre na psicose. Com isso, há de se deixar claro que, quando se fala de determinada questão no Imaginário, fala-se de uma predominância desse registro, já que ele não é sozinho.

O registro Imaginário é, por excelência, um lugar desordenado. Pelo menos num primeiro momento. Em razão de o Imaginário ser esse primeiro meio de apreensão, é como se a captura inicial fosse um tanto quanto rudimentar. Contudo, o Imaginário é o que dá corpo àquilo que era sem corpo, mas assim só o faz já avançado o estádio do espelho.

O bebê é, muito inicialmente, um organismo imerso no Real. Ele experimenta esse protótipo corporal de uma maneira estranha. Até que se suceda o estádio do espelho, não é que ele não aceda absoluta e minimamente a uma imagem corporal, mas ele a tem em forma de pictogramas (Aulagnier, 1975) e não organizada. Conforme Aulagnier (1975), o processo psíquico que regula esse momento é denominado originário, sendo a representação pictográfica primitiva e desprovida de sentido, a qual a autora aproxima do que Freud chamou de representação pulsional. Ela a circunscreve ao tempo da primeira experiência de prazer correspondente ao encontro da boca com o seio. Nesse tempo, ainda não houve a separação entre objeto e sujeito, e ambos são percebidos feito complemento um do outro, ali constituindo os pictogramas.

O estádio do espelho é, basicamente, conforme discorre Brousse (2014), quando o bebê percebe sua imagem refletida num espelho. Este, ainda que material, é metafórico, e pode ser também uma outra criança. A realização do estádio do espelho promove uma espécie de assentamento do registro Imaginário e a constituição de um corpo para aquele bebê. Esse registro passa a ser assim o local da Gestalt, ou seja, o "que faz um, que eu vejo começo, meio e fim, que não é nebuloso, manchado ou confuso" (Vieira, 2009). Justamente por isso, é engodo.

Lacan (1938/2003) assevera sobre o estádio do espelho:

Com efeito, é a partir de uma identificação ambivalente com seu semelhante que, através da participação ciosa e da concorrência simpática, o eu se diferencia num progresso comum, do outro e do objeto. A realidade inaugurada por esse jogo dialético preserva a deformação estrutural do drama existencial que a condiciona e que podemos chamar de drama do indivíduo, com a ênfase que esse termo recebe da ideia de prematuração da espécie. (p. 78)

Ocorre que esse corpo psíquico só se dá com o Simbólico. Por mais que o Imaginário ofereça um contorno ao que estava solto, somente o Simbólico fixa isso. O que não quer dizer que não se estranhará mais esse corpo. O corpo é sempre mais ou menos seu, mais ou menos do Outro. A especularidade, propriedade intrínseca ao Imaginário, funciona dessa forma, isto é, operando vez ou outra fenômenos transitivistas.

A partir da intervenção do Simbólico, pode-se entender o que Lacan (1953-1954/1986) propõe ao sublinhar a importância da posição simbólica do sujeito diante do espelho. Dela necessita o Imaginário. Ela muda a forma das produções psíquicas. A posição simbólica em questão é a localização subjetiva no Outro relativamente acordada entre ele e o sujeito - posto que o sujeito é capaz de responder a esse posicionamento -, mais particularmente, no desejo do Outro. Lacan localiza o suporte dessa posição no olho humano que aparece no esquema do espelho, pois ele orientará o sujeito num ponto ou outro como objeto de seu desejo.

Acresce-se que é também no estádio do espelho que duas outras instâncias estão em jogo: o eu ideal e o ideal do eu. Com Freud (1914/2010), concebe-se tanto o eu ideal quanto o ideal do eu enquanto uma imagem que se aspira a ser, resultante do narcisismo primário, momento em que a libido do sujeito é homogênea e voltada totalmente para si mesma, como único objeto de amor. Com Lacan (1960/1998), estabelece-se uma diferenciação entre elas, sendo o eu ideal uma instância Imaginária concebida no estádio do espelho, e o ideal do eu, a instância simbólica corolário desse mesmo estádio. Contudo, o ideal do eu é Simbólico, pois advém da palavra do outro confirmando essa imagem e se conformando como um "guia" (Lacan, 1960/1998, p. 166) para o sujeito. De toda sorte, Lacan (1953-1954/1986) aponta:

O Ich-Ideal, o ideal do eu, é o outro enquanto falante, o outro enquanto tem comigo uma relação simbólica, sublimada que no nosso manejo dinâmico é, ao mesmo tempo, semelhante e diferente da libido imaginária. A troca simbólica é o que liga os seres humanos entre si, ou seja, a palavra, e que permite identificar o sujeito. (p. 166)

O estádio do espelho inaugura a relação da imagem de si com a imagem do outro por meio do eu ideal. Por sua vez, essa imagem idealizada estabelece um além e um aquém como medida de si mesmo. Daí que, ulteriormente, essa instância passará a ser chamada de supereu por Freud (1923/1982).

Observando esses movimentos entre os registros psíquicos, nota-se, mais uma vez, a correlação entre eles, ao contrário do que se poderia cogitar, que haveria a imposição de um pelo outro, porque o Simbólico é geralmente visto como a chave da relação do sujeito com o mundo. De acordo com Prado Jr. (2003), na sutura do Imaginário com o Real encontra-se a condição da instauração do Simbólico. Igualmente, nesse passe, confirma-se a competência do Imaginário para engendrar o processo perceptivo inaugural, dado que é a primeira corda no nó borromeano que toca o Real, o qual vem a ser revestido pelo Simbólico e atravessado pelo Real. Revela-se então a coexistência dos registros nas experiências correntes.

 

O contemporâneo

A revolução tecnológica em progresso marca fortemente o tempo presente, tal que lança os sujeitos numa lógica da quantidade e da velocidade. São tempos em que o individualismo, apregoado pelo capitalismo, incorre na insuflação do narcisismo em sua dimensão Imaginária. Frente a essas circunstâncias, a palavra, representante-mor do Outro, é desacreditada. Levando-se em conta que a corporeidade arrematada pelo Simbólico é significantizada e, com isso, ganha vida, o declínio da lei simbólica, fenômeno de eclipse das regulações tradicionais que pautavam o laço social fundamentadas na palavra, implica a degradação do significante representante de um limite que pauta as relações sociais. Assim, a evocação contínua da imagem deve ser mote para uma reflexão crítica, de modo particular, quando distante de mediadores Simbólicos.

Lollo (2017) lança luz sobre a relação do império do supereu com a imagem formadora do eu:

Nós estamos no domínio da imagem, do eidolon, do ídolo. O Eu surge no desenvolvimento da criança e aparece com nossa imagem diante do espelho. Ele que, entretanto, persiste em nós. A superpotência [surpuissance] da imagem faz do Supereu um ídolo, um superman, que permite imaginar, mas não permite pensar, pesar nem avaliar. (p. 19)

Os discursos são matemas lacanianos por meio dos quais são representados em fórmulas algébricas as maneiras em que se estrutura o laço social desde quatro lugares identificados como agente, verdade, Outro e produção. O discurso da ciência e do capitalismo tomam a dianteira na cena contemporânea. O capitalismo, enquanto discurso resultante de uma mutação no discurso do mestre, traz, em seu matema, o sujeito barrado, faltoso, no lugar de agente e o significante do saber (S2) no lugar de Outro. Nesse discurso não se consuma essa relação com quem o agente estaria suposto a se relacionar; ao invés disso, é estabelecida uma articulação direta do sujeito com o objeto que se produz. Em outras palavras, o saber, cuja matriz hoje são as tecnociências, é quem determina a produção. Já no lugar da verdade, comparecem os significantes mestres de imperativo ao gozo, e no da produção, o objeto a. Desse modo, os significantes mestres que circulam nesse discurso ganham o estatuto de verdade, e o produto é tido como suposto objeto causa de desejo.

Depreende-se, portanto, que o produto que o capitalismo quer vender, e vende, é um objeto posicionado ao nível do objeto a. Ele o faz a partir da sua relação com o discurso universitário, do qual é derivado o discurso científico. Nesse discurso, por sua vez, o significante do saber (S2) figura como agente, enquanto o objeto a está no lugar do Outro, o significante-mestre no lugar da verdade, e o sujeito barrado no lugar da produção. Tais posições conformam o discurso da ciência em articulação ordenada pelo conhecimento técnico, organizado veladamente pelos significantes-mestres e se endereçando ao objeto a, de forma que resulte em um sujeito que demanda.

A ciência e o legado acadêmico coadunados ao capital criam objetos que simulam completar o homem na sua falta. À diferença do objeto a que, como causa de desejo, não obtura a falta estrutural, os engodos de objetos a produzidos pelo capitalismo deveras tamponam-na, ao menos circunstancialmente. As artimanhas empregadas precipuamente na tecnociência, que são, segundo Askofaré (2005, citado por Chechia, 2015), a pretensão de entendimento total, o anseio pela soberania e o proveito fracionário e interesseiro, operam de tal maneira que o sujeito é capturado fantasmaticamente.

Por essa razão, pode-se afirmar, seguindo Chechia (2015), que há um conluio entre os discursos universitário, capitalista e da ciência, dado que um se forja no outro, e, por isso, são reforçados ou exauridos uns pelos outros. Exceto "o discurso capitalista, que, pelo seu próprio princípio de funcionamento, tende a imperar sobre os demais, desfazendo os laços sociais em sua busca desenfreada da mais-valia" (p. 312). Eis o diferencial do discurso do capitalismo se comparado aos demais discursos: seu funcionamento não autoriza a formação de laços; contrariamente, inibe-os, contrastando-se assim com a própria natureza discursiva de fazer laço.

Lacan (1973/1985), no seminário 20, antevê que, daquele momento em diante, "vocês serão, infinitamente muito mais do que pensam, os sujeitos dos instrumentos que, do microscópio à radiotelevisão, se tornam elementos da existência de vocês" (p. 110). E se, como ele continua, naquele momento não se podia "medir o vulto disso" (p. 110), hoje já se vê concretamente. E conclui: "mas isso não faz menos parte do que eu chamo o discurso científico, na medida em que um discurso é aquilo que determina uma forma de liame social" (p. 110).

Laurent (2007) traça uma espécie de sonho que a ciência teria "no qual poderíamos nos considerar como máquinas funcionando de forma segura, que se poderia trocar as peças defeituosas de maneira a poder funcionar de novo normalmente, nos assegurando assim de uma presença normativizada do mundo como tal" (p. 38).

Outra insígnia do Outro virtual é o viés escópico. O Outro contemporâneo, impulsionado pela virtualidade das coisas e de seus instrumentos, é onividente. Sem embargo, há aí uma dupla face: ao mesmo tempo que permite ao sujeito ver, o Outro virtual igualmente vê o sujeito. De outro modo, o sujeito goza do olhar, mas é gozado ao se dar a ver. Isso dá ao Outro uma consistência quase sem brechas, imprimindo um gozo sobre os sujeitos por meio de seus instrumentos. Mais ainda, o Outro, em suas malhas virtuais, adquire a montagem de um "espelhamento plural" (Soler, 2001, p. 237), cujo reflexo é feito de ideais peremptórios para o eu. Sua essência é a fabricação de imagens em ritmo acelerado promovida pelos diferentes meios midiáticos e sociovirtuais (Barroso, 2006). Acerca disso, Barroso (2006) comenta:

A eleição dessas imagens-referência não é conforme às leis do sujeito do desejo, isto é, à singularidade de cada um, mas conforme às leis do mercado, aos interesses soberanos do capital, que devem valer igualmente para todos. Por exemplo, basta a uma jovem criança usar o celular da Xuxa para sentir-se como a própria Xuxa. (p. 93)

É recente a intensificação do privilégio da imagem em detrimento das determinantes simbólicas. Frente à deriva, o sujeito moderno obtém uma coordenada diversa da do Simbólico, qual seja, a da imagem (Paulozky, 2011). Ainda assim, o sujeito se vê em um estratagema. "A imagem lhe dará um modelo de como ser, como se vestir, o que opinar, quando calar em suma, onde se situar" (Paulozky, 2011, p. 199). A condição do império da imagem enquanto ordenador "trata-se de um empuxo à alienação sob um mandato" (Paulozky, 2011, p. 199), alienação a uma imagem por ordem narcísica.

Se outrora a imagem participava de uma operação psíquica na qual ancorava a subjetividade, seja na dimensão do corpo, seja na dimensão do desejo, na atualidade ela está mais próxima de uma desorganização para o sujeito. Remete-se assim àquela imagem primitiva do corpo do sujeito, fragmentária e causa de angústia. O quesito de uma imagem para o ser falante como fator de estruturação é sua associação ao Simbólico (Brousse, 1996). O que se vê atualmente, contudo, é a suspensão de tal ligação. A imagem distanciada da palavra como mediação adquire o estatuto de puro gozo, invocando a sua dimensão caótica por consequência. Lembrando que Lacan (1958-1959/2002) considera como condição do desejo do sujeito o desejo do Outro, nesse sentido, o desejo hodierno do Outro, precisamente o do Outro virtual, que coloniza o desejo do sujeito, traduz-se em um código algoritmizado, logo anônimo e infinito, o que não oferece sustentação ao sujeito.

A problemática contemporânea parece se resumir conforme Vieira (2005) assinala: "O imaginário sem o Simbólico é inerte, pura estátua. Dessa forma, se o Simbólico está afogado pelo imaginário, temos imagens chapadas que, por essa razão, se apresentarão com uma fixidez real" (p. 37). Com isso, o psicanalista conclui que não se está vivenciando tempos de gozo excessivo, mas de um gozo ditado pelas cifras do mercado (Vieira, 2005). Ele exemplifica: a imagem de uma modelo em uma revista pode ser transformada ao se pensar que aquela pessoa envelhecerá e como os sinais desse processo aparecerão nela. É em razão de se poder isolar a imagem em pedaços traduzidos por significantes (os olhos adquirirão rugas, o cabelo ficará branco etc.) que a imagem é vivificada. No entanto, o que se constata como um fenômeno entre as mulheres, por exemplo, é que elas "não estão preocupadas em ser mais belas que a vizinha e sim em se tornar a imagem chapada de um objeto coletivo" (Vieira, 2005, p. 37).

Para finalizar este ponto, cabe recuperar uma breve passagem clínica. Os pais de uma adolescente me procuram por causa de seu afastamento do convívio social. Quando a adolescente chega, a demanda se revela: sua imagem não é adequada. Traz, no celular, a imagem de uma garota que tem o nariz perfeito, aliás, tudo nela é maravilhoso. E é assim que quer ficar. Já definiu a solução: rinoplastia e retirada das pintas do rosto. Qualquer intervenção com o intuito de fazer falar, de se implicar com sua demanda, é cortada pela única solução encontrada, o procedimento cirúrgico. A associação livre é estagnada, enquanto ela passa horas dentro do consultório, cabisbaixa vagando entre as fotos que (não se) vê em suas redes sociais.

 

Espelho, espelho nosso

Os meios virtuais tornaram-se um "grande espelho" (Homem, 2020) ou um espelho pluralizado (Soler, 2001). As produções culturais dão mostras disso. Pode-se até arriscar dizer que o avanço do alcance do fenômeno da virtualização toca o desamparo humano frente ao insabido do que está por vir. Assim, estabelece-se uma relação entre as redes sociais e as produções de ficção científica com enredos futuristas na tentativa, talvez, de amenizar esse Real relativo ao não saber, ao sem sentido.

Aqui, serão utilizados dois produtos culturais a fim de substanciar a análise dos efeitos do Imaginário no sujeito. Uma dessas obras, que atraiu milhões de espectadores, e cujo objetivo é mostrar como será o mundo num futuro muito próximo, é Black Mirror, série composta por episódios independentes. Tal objetivo foi declarado por Charlie Brooker, idealizador da série e escritor de muitos de seus capítulos, em sua coluna em The Guardian (Vieira, 2017/2018). Interessa notar que, dentre os capítulos escritos por Brooker e também outros não escritos por ele, o foco é o olho. As tecnologias mostradas não só se servem do olho humano, como o imitam, reproduzem seu mecanismo e agregam funções a ele.

É frequente o mecanismo científico estar atrelado ao poder de ver, que, em seu caso, vai desde nanoseres até as crises iminentes. Não é de se estranhar que, como Lacan (1953-1954/1986) afirma, no registro Imaginário, o olho tem uma participação especial. Vê-se como a busca do ser humano por conhecimento está ligada a evidências que lhe sirvam de esteio, tomando lugar essencialmente no Imaginário. Não obstante, continua Lacan (1953-1954/1986), o ser humano não se reduz ao olho. Será que o que Brooker queria alertar tem a ver com isso, que em breve os seres humanos serão, mais que só imagem, serão quase só olho?

Em Black Mirror, todas as histórias apresentadas guardam um tom distópico. A maior parte dos episódios trata do que se pode ver, prever, rever, como que uma marca desta época - tal como a característica proeminente da ciência, e tal semelhança não se faz por coincidência. Em vários episódios há a possibilidade de implantar tipos de chips na cabeça que controlam, melhoram ou dão novas competências a alguma função humana.

A problemática em torno do tipo de dispositivo em questão remete a mais uma representação do Outro em sua tendência atual ao controle,

que toma o homem como um objeto a ser controlado, em que a proteção se confunde com a projeção, dando origem a toda a indústria da vigilância, criando uma nova ordem: o que se controla, existe. A realidade se torna um panóptico, um grande olho que vê sem olhar, mas que controla tudo. (Paulozky, 2011, p. 199)

Ainda em Black Mirror, outro episódio, agora da terceira temporada da série, faz eco a outra fala de Homem (2020): "O adulto que está no Instagram é a criança procurando algo de si nesse grande espelho" (Homem, 2020). Brooker (2016) explica que "Queda Livre [título do episódio] é uma sátira sobre a aceitação e a imagem de nós mesmos que nós gostamos de retratar e projetar para os outros" (tradução nossa1). Tomar-se-á então, a título de extrato de uma produção cultural que representa as subjetividades contemporâneas, o supracitado episódio da série (Jones & Schur, 2016).

O roteiro do episódio se passa em torno do dia a dia da personagem Lacie. Ela vive numa configuração social que estabeleceu uma forte relação com as redes sociais, a ponto de os habitantes trocarem avaliações virtualmente a todo momento e instantaneamente, tornando suas relações sociais dependentes dos escores obtidos. Todos os cenários que dão forma à narrativa são totalmente clean, as pessoas, os objetos e as construções estão prevalentemente em tons pastel, transmitindo suavidade, paz e equilíbrio. Até mesmo as vozes são melódicas, como se todos estivessem plenamente calmos e felizes. Entretanto, esses aspectos transmitem também superficialidade.

As pessoas têm em seus olhos uma lente que, quando miram alguém, faz aparecer, ao lado do rosto visto, o nome e a nota alcançada por ela naquele sistema utilizado. A lente também torna tudo que é olhado impecável. Assim, quando Lacie é presa por estragar a festa da amiga ao final do episódio, ela tem a lente retirada como parte da punição e, paradoxalmente, é libertada do cárcere do glamour a que vinha se submetendo. Passa então a ver detalhes sórdidos, como a poeira no ar.

Outra cena interessante, relacionada à lente, é a que mostra Lacie em frente a um espelho dando gargalhadas. Em um primeiro momento, parece que ela está treinando a melhor forma de rir (para os outros). Depois, Lacie parece ficar inebriada em sua própria imagem sorridente refletida no espelho e passa a dar risadas mais vigorosas. Iorc (2019), em sua canção intitulada "Desconstrução", canta "fantasiou o brio da rotina / fez de sua pele sua sina".

Nem todos fazem parte deste sistema. O irmão de Lacie, por exemplo, que tem uma avaliação baixíssima, não compreende a sujeição da irmã. Ele se indignava ao ver a irmã, que tinha uma atitude similar ao que descreve Iorc: "vestiu um ego que não satisfez / () / como fosse dádiva divina / queria só um pouco de atenção / () / seguiu o bando a deslizar a mão / para assegurar uma curtida" (Iorc, 2019).

Em certa altura, Lacie recebe a ligação de Naomi, uma amiga sua de infância, convidando-a para seu casamento. A amiga agora esbanja uma vida muito melhor que a de Lacie, que, por sinal, acompanha tudo pelas redes sociais de Naomi. A posição social da amiga, que lhe confere uma nota quase máxima, incomoda Lacie. Há uma rivalidade entre ela e Naomi, mas ela aceita ir ao casamento e fazer um discurso.

Interessa notar aqui como as redes sociais incitam à rivalização. Jerusalinsky (2017) aponta o ponto comum entre o fenômeno da relação com o outro no meio virtual e a cena da inveja caracterizada por Santo Agostinho e recuperada por Lacan. Essa cena diz respeito à ocasião em que a criança inveja o irmão que mama em seu suposto lugar, afeto que provém do reflexo especular. Destarte, Jerusalinsky (2017) chama atenção para a semelhança entre as comunidades virtuais e o

espelho da rainha má do conto da Branca de Neve, produzindo a emergência de amor-ódio, ciúmes, inveja e rivalidade consigo mesmo e com os outros, ao pôr em relevo, nas relações, a chave de montagens especulares diante das quais se exalta a instantaneidade do brilho narcísico e se empalidece de inveja, exercendo o encantamento e o ódio da rivalidade (p. 23)

Depois de receber o convite, ao longo do restante da dramatização, Lacie entra em queda livre, daí o nome do episódio. Sua avaliação decai à medida que se depara com situações que a tiram do controle. Já bastante desvalidada, Lacie encontra Susan, uma caminhoneira com nota irrisória, que demonstra não se preocupar com isso e ter superado esse sistema. O que basicamente a mulher tenta evidenciar para Lacie, ao contar sua história, é que aquilo não levava a nada, o vazio embutido naquele empreendimento todo. Porém, Lacie contrapõe: "Mas eu ainda não tenho nem o que perder por enquanto. Eu ainda estou lutando por isso." Susan não se contenta e revida: "E o que é 'isso'?" Ao que Lacie responde: "Eu não sei o bastante para ser feliz" (Brooker, 2016), como se ali ela pudesse encontrar a reposta.

A construção do episódio é semiótica no que tange às quedas sofridas por Lacie, que vai de um ambiente paradisíaco para um lugar medonho; de uma suposta viagem de avião para uma carona de caminhão; de uma provável entrada gloriosa num casamento de alto nível para uma entrada pelos fundos com o vestido enlameado; de um escore próximo da nota máxima a outro cerca de zero. Quanto mais ela fazia algo concordante com aqueles valores, mais o furo aparecia. Na busca por esse objeto abstrato que lhe daria a felicidade plena, "se liquidou em sua liquidez / viralizou no cio da ruína" e "encontrou a própria solidão" (Iorc, 2019). O decorrer do episódio retrata muitíssimo bem esses versos de Iorc.

De modo geral, o propósito da história é exibir o mesmo que Iorc (2019) fala em sua música: "Nas aparências todos tão iguais / singularidades em ruína." A perspectiva psicanalítica oferece recursos para se entender o vazio que sempre há, inclusive nas telas que propagam imagens estampadas nas redes sociais, as quais muitas vezes tentam escamoteá-lo. Nesse momento, entra em ação a função de objeto gadget do qual a internet faz vez. Face a isso, como indica Freud em Luto e Melancolia (1917/1987), o inchaço narcísico é um esforço de deslocamento libidinal para dar amparo ao ego que foi, de alguma forma, abatido.

Conforme nota Jerusalinsky (2017), a suposta felicidade plena que circula nas mídias sociais quase nunca representa o malogro do dia a dia. "Essa exaltação narcísica apresenta, em sua contracara, uma faceta melancólica, em que o sujeito se sente esvaziado de sentido, com a 'bola murcha', a se comparar à 'bola cheia' da plenitude imaginária que virtualmente constitui para si" (Jerusalinsky, p. 23). A recente pergunta que viralizou na internet "E fora do story, como você está?" parece denunciar justamente a distância entre o que se mostra no virtual e o que corresponde à realidade.

A promoção de um ideal universal e precificado, advindo de um Outro imagético, anônimo e mercadológico, não representa valores singulares, e põe a subjetividade de cada um à parte. A carência do Outro Simbólico, que venha firmar o ideal com a palavra, implica a instantaneidade do sustentáculo dado pelos ideais contemporâneos. Isso, por sua vez, faz com que a busca se torne incessante.

Lollo (2017) descreve como ao ignorar o Real - a castração -, o Imaginário e o Simbólico sofrem efeitos, pois a liberdade proposta pela metáfora simbólica é cerceada, resultando num mundo de sentidos fechados, tornando os sujeitos submetidos a interpretações únicas. Incorre-se daí uma pregnância no ideal. Ele toma de exemplo a capacidade das religiões de construir crenças dogmáticas, sustentadas que são pelo ideal - eidos, vocábulo grego que quer dizer imagem.

Brousse (2014) formula algo que pode muito bem ser empregado nessa breve análise do episódio, que, por meio da intervenção da ciência no contemporâneo,

o organismo se converte em objeto comum, que tem, como diz Lacan, um valor no campo da competência econômica, que se define, segundo Lacan, pela rivalidade (aspecto imaginário) e pelo acordo (aspecto simbólico). É isto que dá valor aos objetos no mundo dos objetos comuns. (p. 11)

Por extensão, é válido ponderar que a ocupação da internet com o corpo por meio de imagens, tal como o poder ver por meio de tecnologias virtuais ou o poder estar virtualmente assemelha-se ao que a ciência realiza no corpo, uma incisão de obturação do Real. Além do mais, os recursos virtuais possibilitam experienciar uma decomposição imagética do corpo, levando a um alto ganho de prazer, posto que não há no fantasiar o mesmo custo que se tem num ato (Jerusalinsky, 2017). Porém, o custo parece estar, como sugere Jerusalinsky (2017), na inércia do sujeito enquanto espectador frente ao excesso de excitações corporais que muitas vezes se transmite pelas telas sem a participação do Simbólico como auxílio para elaborá-las. Assim, o dito "grande espelho" acaba por funcionar mais do lado Real do corpo, isto é, do lado do organismo sem o envelopamento Simbólico que liga os fragmentos da imagem psíquica corporal.

Ainda sobre o episódio, as condutas que Lacie toma diante do seu fracasso perante o "Outro visualizer" permitem lembrar que frente a um Outro poderoso e gozador, o sujeito sempre buscará saídas para que possa escapar dessa captura. Na cena derradeira, na qual Lacie, encarcerada, vê na cela da frente outro preso, e os dois começam a trocar xingamentos, nota-se como tal comportamento é libertador para ambos. Não estar mais sob a égide de um Outro que, numa vertente ampla, contabiliza cada passo dado é retificador.

À guisa de conclusão, pode-se considerar que o sujeito inserido na ordem Simbólica se localiza conforme o que está também inserido nessa estrutura, de modo que não seria inócuo para o sujeito a inscrição em massa de recursos virtuais. Isso especialmente porque tais recursos suscitam efeitos não só no Simbólico, mas também no Imaginário e no Real. O Imaginário, recorte deste trabalho, é incrementado à medida que o Simbólico esmorece como ordenador. Contudo, uma outra ordenação desponta, agora configurada sob a ênfase do Imaginário. Tal configuração comporta o efeito caótico, já que mergulha o sujeito numa reafirmação narcísica impossível, uma vez que o sujeito se constitui e se confirma pelo Outro. A história de Lacie representa muito bem esse efeito: a decadência progressiva da personagem condensa a fragilidade de um Outro anônimo e sem corpo como o é o Outro virtual.

 

Considerações finais

O contemporâneo marcado pelo Imaginário fundido aos instrumentos capitalistas, científicos e virtuais promovem efeitos de sujeito, que passam paulatinamente a ser objetos de discussão. Este texto discorre brevemente sobre a realidade atual, no que tange, principalmente, aos aspectos do registro Imaginário.

Os ideais projetados nas telas não conferem a consistência dada pelos ideais constituídos a partir do espelho. As identificações necessárias para se fazerem tal como bússola para o sujeito são fugazes, além de que, as identificações contemporâneas não propiciam o reconhecimento de um traço subjetivo, mas de marcas advindas do Outro do mercado. Enquanto o traço subjetivo é um sinal de que o sujeito pertence a um grupo, preservando o espaço da sua singularidade, o mercadológico é universal, imergindo os eus numa massa indiferenciada. Com isso, a imagem necessária à constituição subjetiva se faz vacilante.

O gozo encontrado no uso das redes virtuais pelos sujeitos é vazio, já que o Outro virtual é Imaginário. Se, por um lado, o Imaginário é responsável por substanciar, por outro lado, falta o sentido que afirma essa substância, fazendo com que, nessa ausência do Outro Simbólico, o sujeito permaneça na busca incessante pela reafirmação.

A ideologia instituída na atualidade promove o ocultamento da condição humana que reside fundamentalmente na dor de existir, tentando silenciar a angústia, tão cara ao desejo. A partir dos instrumentos criados, o homem transforma o que é da ordem do impossível na tentativa de alcançar o essencial do ser. Contudo, a angústia do sujeito não pode ser arrebatada, então ela emerge ainda que desconectada do Outro que não a suporta mais, como no caso dos novos sintomas. Esta, porém, é uma discussão para outros trabalhos.

 

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Recebido em 29 de setembro de 2021
Aceito para publicação em 27 de junho de 2022

 

 

1 "Nosedive is a satire on acceptance and the image of ourselves we like to portray and project to others."
Não se declararam fontes de financiamento.

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