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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.1 no.1 São Paulo May 1966

 

Fantasias de morte e divã

 

 

Dr. Luiz Vizzoni

 

 

A paciente, objeto das considerações que se seguem, apresenta um quadro clinico compulsivo-fóbico-obsessivo e usa intensos mecanismos de defesa maníacos e obsessivos.

Neste trabalho, desejamos assinalar a relação entre certos sintomas, fantasias de morte e atitude da paciente frente ao divã na evolução do tratamento analítico.

Dentre os sintomas apresentados por esta paciente, destacamos como ponto de partida a angústia de estar dentro de ônibus, carro, elevador, etc. (Claustrofobia). Neste caso, o mêdo é de que tais veículos, sentidos como objetos muito perigosos, sofram um desastre, e ela morra dentro. Quando está num ónibus, por exemplo, fica tensa e atenta ao motorista a fim de "controlar" os perigos (a mesma atitude quando está no consultório) e manter a angústia controlada mágicamente num nível suportável. Não usa o elevador para chegar ao consultório, a não ser num dia da semana em que é atendida mais tarde e a porta das escadas encontra-se já fechada. Aqui, a fantasia constante que faz é de o ascensorista morrer subitamente e ela ficar, como o morto, fechada num elevador, sem que ninguém saiba. Nesta mesma linha, outra fantasia frequente: à noite, deitada em sua cama, só e no ambiente escuro e silencioso, é assaltada pela idéia de estar num caixão de defunto, morta, ou de que possa sofrer de um ataque de catalepsía e ser enterrada viva.

Tais objetos, elevador, ônibus, etc., no entanto, não são perigosos apenas quando a paciente está dentro dêles. Mesmo fora, a ameaça continua a existir na fantasia de que "vai acabar morrendo atropelada por um veículo qualquer".

A relação simbólica entre os veículos e o caixão de defunto é muito evidente, e o perigo, como vimos, reside na ameaça de morte.

Além destas situações extremas, há uma gama de outras situações intermediárias, todas com o elo comum da idéia de morto. É assim que não se permite usar roupas e objetos de côr rôxa, de côres preta e amarela juntas, com fios ou fitas douradas. Da mesma forma, também vitrines, malas, estão associadas, tal como o divã do consultório, à idéia de morte, através da imagem do caixão de defunto.

Ao lado destas situações, caracterizadas por angústias paranoides ligadas a fantasias de morte, vamos observar que apresenta verdadeira atração por outras situações, também ligadas a morte. Por exemplo, tem verdadeira obsessão em vêr pessoas mortas, ocasiões em que se preocupa na observação de todos os detalhes dos defuntos, do caixão, das flores e de tudo o que faz parte da câmera mortuária. Sente-se verdadeiramente seduzida pelos fins da morte, e o prazer de observar tudo é uma forma de contrôle sobre a própria morte.

Outras fantasias de morte surgem tôda vez que começa a interessar-se por alguém. Basta, por exemplo, pensar em casar-se para sobrepor-se à idéia de que o marido vai morrer. Daí o terror de vir a gostar de alguém por causa da angústia que surge. Na situação analítica, fantasias de morte têm surgido de diversas formas, nos fins de semana e durante os períodos de férias.

"Desculpe si vou falar em cousa fúnebre, mas quando inicio um tratamento sempre penso: e si o médico morrer? Assusta-me a idéia de perder alguém com a morte!"

Esta angústia de perder o objeto com o qual se relaciona está subordinada à idéia de não ter tido sentimentos de amôr e não ter sabido preservar êsse objeto.

Esta paciente apresentou, durante toda a doença da mãe, até seu falecimento, preocupação excessiva de que esta morresse dormindo, o que a obrigava, compulsivamente a aproximar-se do leito da mesma, várias vêzes numa noite, a fim de certificar-se de que estava respirando.

Como expressão de seu contrôle maníaco, durante 9 mêses, manteve-se sentada numa poltrona em frente e bem próxima à minha. Durante todo êsse tempo sentiu-se ameaçada pela presença do divã, precisando justificar-se de diversas formas "porque não estava fazendo o tratamento direito".

Até o 6º mês de tratamento houve predominância absoluta das angústias paranoides, e, na situação transferencial, o analista, como representante de seus objetos internos e de seu superego, precisava ser controlado maniacamente.

A atitude constante da relação da paciente com o analista (e suas interpretações) tem sido a seguinte: a sessão geralmente decorre, desde o início até quasi o fim num clima de muita angústia, a paciente muito irritada, atacando o analista sob todas as formas, e pretextos. Nos minutos finais, a angústia assume outro aspecto: o analista, agora atacado e saturado com toda a sua "maldade" (ódio, ciúme, inveja, voracidade), passa a ameaçá-la de diversas maneiras, desde o castigo mais brando até o castigo de morte. No final da sessão, exige insistentemente que o analista a desculpe, justificando-se de que tudo o que faz é por doença e que não deseja ser assim. Procura abrandar o ódio do analista para se proteger de possíveis castigos e de culpa:

"Não quero que ache que tenho alguma cousa contra o senhor!"

"Por favor, responda de uma vez si o snr. está zangado comigo. Quero que o snr. me desculpe. Então, o snr. desculpa?".

"Agora já estou aborrecida, vou para a casa com outro problema".

"O snr. deve me achar muito chata, deve estar aborrecido comigo. Por isso, acho que prefere os outros clientes".

Esta atitude expressa seus conflitos primitivos com o peito, sendo a relação como analista uma relação com objeto parcial (peito muito desejado e por isso mesmo invejado, odiado, mordido e tornado perseguidor).

O mesmo tipo de conflito vamos encontrar nas fantasias de ter atacado o ventre materno e destruído seu conteúdo (ataques orais e anais). Podemos então compreender por que durante muito tempo manifestou desejo obsessivo de que a mãe tivesse mais um filho, porque isto viria negar a destruitividade de suas fantasias.

Com a morte da mãe seus conflitos avivaram-se e defendeu-se deslocando seu sadismo contra a madrasta. Nessa época surgiram vários sonhos de morte da madrasta.

No decurso do tratamento pudemos observar que a aceitação do divã estava subordinada à resolução de seus conflitos e a aceitação da própria análise. O "perigo" da análise estava expresso na fantasia de que deitar era ser enterrada viva. Ou então, conforme mostrou no primeiro dia que usou o divã, quando em meio a uma intensa angústia fez a fantasia seguinte:

"Não consigo falar aqui deitada, nem mesmo raciocinar, não aguento mais. Sabe qual a impressão que me dá? Que estou numa mesa de operação, prestes a receber a anestesia para ser operada! "(Angústia de perder o contrôle da análise e de ser esvaziada agressivamente pelo analista).

Deitar significava também deixar de ser intolerante, agressiva, auto-suficiente e ser bôa; porém ser bôa, tolerante, e aceitar maior aproximação da análise, era igual à submissão total ao analista, ficar à mercê do mesmo, ser devorada pela análise, perder a própria individualidade.

Ainda mais: aceitar o divã significava não estragar mais o "alimento-interpretação" do analista (peito nutridor da mãe) e recebê-lo como causa bôa. E receber qualquer cousa bôa era sentir-se ultra condescendente ao analista. Era precisar retribuir através de uma ultra-gratidão, de tal forma que só poderia fazê-lo dando sua própria vida, isto é, morrendo.

Podemos compreender então como seus objetos internos tão atacados e tornados tão perigosos, continuamente a ameaçavam de morte e estavam representados (projetados) simbolicamente pelos veículos, elevador, divã, etc.

Como dissemos, até o 6º mês, só havia perseguição, sua preocupação era consigo própria, com seus prejuízos. Nenhuma consideração pelo objeto. A partir do 7º mês de tratamento, diminuindo a projeção e entrando na posse dos desejos de preservar a análise, pôde atingir a fase depressiva e só então, na altura do 9º mês de tratamento, conseguiu aceitar o divã.

Ao chegar a este ponto da análise, nos movimentos de avanços e recúos que se seguirem, a paciente, numa das fases de regressão em que voltou a sentar-se na poltrona, sonhou que estava perdendo todos os dentes, acordando muito angustiada.

Compreendemos a razão desta paciente desejar aflitivamente conservar íntegros como um sinal de que não recebeu castigo algum e, portanto, negando sua agressividade. Perder os dentes, além de significar o castigo pela sua maldade, significava a perda de suas defesas. Eis o porquê da necessidade de voltar à poltrona e re-adquirir o contrôle oniopotente dos objetos perseguidores. (projetados no analista).

Como sabemos, o apêgo tão pronunciado a este tipo de defesa, acarretando dificuldades ao progresso do tratamento (reação terapêutica negativa) é a maneira de a paciente proteger-se do perigo maior que teme - a depressão - com todo o mêdo de que isto signifique ser morta, ou matar-se, através da loucura ou do suicídio, como o castigo que merece.

Este mêdo de que algo pior possa advir com a perda das defesas maníacas e a aceitação efetiva do auxílio da análise podem ser observado nestas expressões da paciente:

"Não adianta nada, doutor, eu não tenho mesmo cura".

"Porque o snr. não se convence de que eu não tenho cura e me manda logo embora?"

"Eu quero aceitar tudo o que o snr. me diz, mas si eu aceitar e não der certo, como vai ser?"

 

 

GLOSSÁRIO (continuação).

Angústia depressiva é a angústia pelo mêdo de que a agressividade de alguém aniquilaria ou aniquilou o bom objeto. É experimentada por parte do objeto e por parte do ego, que se sente ameaçado na identificação com o objeto. Origina-se na posição depressiva, quando o objeto é percebido como objeto total e a criança experimenta sua própria ambivalência.

Angústia de castração é principalmente de tipo paranoide na projeção da própria agressividade da criança, mas pode conter também elementos depressivos; por exemplo, a angústia de perda do pênis como órgão de reparação.

Objetos bizarros: são a exteriorização de identificações projetivas nas quais o objeto é percebido como dividido em diminutos fragmentos, cada um contendo uma parte projetada do self. Estes objetos bizarros são experimentados quando estão carregados de grande hostilidade.

Pais combinados: uma figura da fantasia de pais combinados em coito. Origina-se quando o pai não está completamente diferenciado da mãe e seu pênis é sentido como parte do corpo da mãe. Quando angústias edipianas são desenvolvidas, esta fantasia é reativada regressivamente como um meio de negar o coito dos pais. É geralmente experimentada como figura terrificante.

(continua no próximo número)

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