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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.1 no.1 São Paulo May 1966

 

Comentários em tôrno do trabalho de Freud intitulado "um caso de neurose obsessiva", história clínica do paciente universalmente conhecido como "o homem dos ratos"

 

 

Dr. Roberto Pinto de Moura

 

 

- Importância do ato falho na perda dos óculos.

- O "voyeurismo" infantil - Ligações com a situação descrita em "Surram uma Criança".

- Trocas de caráter anais e orais - Melancolia.

Dada a exiguidade de espaço que tornou obrigatória esta síntese, deixamos de publicar um resumo do caso, do qual o leitor poderá inteirar-se, procurando-o nas obras completas do mestre. O ATO FALHO DA PERDA DOS ÓCULOS. O fato que mais nos chamou a atenção, durante a leitura deste trabalho, foi Freud não haver levado em consideração certos aspectos da situação em que surgiu a "idéia dos ratos", bem como os vínculos dêstes aspectos com o passado do doente. Tal omissão nos pareceu especialmente lamentável quanto ao autêntico ato falho da perda dos óculos. Não deixa de ser estranho que, para o autor de "Psicopatologia da Vida Cotidiana", tal ato falho tivesse tido uma importância secundária, e lhe pudesse parecer banal e indeterminado psicologicamente, quando o espírito daquela obra foi justamente mostrar a determinação inconsciente, de atos dessa natureza, por conflitos emocionais.

Para nós, a perda dos óculos é digna da maior consideração, pelos seguintes motivos: a)aconteceu logo após ter o "capitão cruel" feito a narrativa do "suplicio dos ratos"; b) o paciente fez uma evidente racionalização, para não os procurar, parecendo-nos que precisava ficar sem os óculos e encomendar novos, em Viena; c) passa a existir uma estreita união entre a "idéia dos ratos" e os problemas que se criaram por não ter o paciente procurado os óculos. Tais problemas existiram aparentemente graças a um engano do "capitão cruel", que não sabia quem pagara o porte dos novos óculos; Todavia o paciente conhecendo a verdade, aproveitou tal engano ao sabor de suas necessidades emocionais.

O ato falho mencionado adquire tanto maior importância, a nosso ver, quando nos lembramos de que olhar e contemplar, foram atividades eróticas, senão predominantes na vida infantil do paciente, pelo menos um poderoso estímulo para a atividade de tocar e abraçar mulheres. Aliás, o "voyeurismo" ocupava um lugar de destaque no quadro mórbido que ele apresentara aos seis anos, e que Freud mostrou constituir uma completa manifestação de neurose obsessiva. Nesse quadro, é o impulso para ver que sofre a sanção, pois é a premissa para o desejo de tocar e para as ereções que o paciente apresentava. Se não visse, não teria desejos, estes não seriam "adivinhados" pelos pais. Êle não estaria arriscado a castigos, não teria o ódio ao pai que já sentira aos 3 ou 4 anos, e o progenitor estaria preservado do perigo de morrer (onipotência do ódio).

Diante de tais dados, achamos que a perda dos óculos poderia ser interpretada como mêdo-desejo de castração, ou seja do impulso de despojar-se do pênis, para evitar a ira do pai e para auto-punir-se por seu ódio e sua sexualidade. Acrescentamos que os óculos aumentam a potência visual, enquanto a sua falta, para quem padece de um certo grau de deficiência da visão pode levar ao oposto sentimento de impotência de inferioridade.

Contrariamente, porém, achamos que a perda dos óculos pode também ter representado um "protesto viril", bastando lembrarmo-nos de que, sem as lentes, o paciente adquiria aspecto mais próximo de militar, ficando mais próximo da imagem do pai, cuja rudeza e rigidez explicava como traços adquiridos na vida de caserna, estando, como no-lo mostra Freud, identificado com o progenitor até o ponto de, como êle, criar uma dívida insolúvel. O uso dos óculos dava ao paciente o aspecto mais de um intelectual, e êle estava muito preocupado em mostrar-se tão bom oficial quanto os companheiros e, sem as lentes, adquiria uma fisionomia mais sugestiva desta condição. O uso de óculos pode acarretar sentimento de inferioridade, de modo análogo, na infância, pois impede um sem número de atividades em que as lentes podem ser quebradas, pondo a criança em situação desfavoràvel e também ao alcance da agressividade das outras, bastando citar pelo apelido de "quatro olhos", por exemplo.

Com a vinda de novos óculos, o paciente, por um lado, recupera o pênis perdido, e anula a castração, mas por outro lado a confirma, pois torna a perder o garbo militar, voltando a ser "intelectual", e, quando nos lembramos do nexo entre saber e contemplar, podemos dizer que o paciente volta a ser um "Voyeur", regredido, excluído, criança.

Achamos oportuno recordar o que diz Freud dos sintomas da neurose obsessiva, muitos dos quais provenientes do recalcamento da ambivalência manifesta em dúvidas do deslocamento da escoptofilia, este relacionando-se com o prazer de olhar, com desejo de conhecer. No presente caso, em alguns momentos, voyeurismo está menos evidentemente relacionado com os elementos dos quadros mórbidos, mas, em outros, êle aparece claramente. Como exemplo disto, podemos citar a compulsão que o paciente apresentava de ir contemplar, no espelho, o próprio pênis, sempre que imaginava a volta do progenitor (todavia já morto) à sua casa. Estão aqui presentes as duas vertentes do "voyeurismo": duplicando-o, o espelho fazia-o, ao mesmo tempo, ser êle próprio e o pai, contemplando-se e se exibindo. Ocorria tal fato sempre que estava o paciente estudando, o que consistia em ver que, diferentemente do ver mulheres, era agradável ao pai, assim sublimando o voyeurismo. Talvez por isso nos estudos estava atrasado, e o saber obstado, pois como vontade do pai (superego) acarretava rebeldia pois a sublimação da contemplação e da atividade sexual genital (penetrar no assunto, possuir) era passivel de condenação. Não deixa de ser interessante, todavia, que o paciente quando criança tão proibido de ver mulheres, e tão embaraçado no seu afã de saber, para possuí-las (casar-se) se acreditasse, em muitas ocasiões, capaz de "ver" mais que os outros, acreditando ter premonições e sentir a "presença" do pai morto.

SURRAM UMA CRIANÇA. Não queremos abandonar o temo "voyeurismo" sem tentarmos uma ligação entre a situação obsessivamente imaginada pelo paciente, ou seja, o "suplício dos ratos" com a situação descrita por Freud em "Surram uma criança". Os portadores desta fantasia e o "homem dos ratos" imaginam uma cena em que alguém é castigado respectivamente nas nádegas e no ânus. Na primeira dessas situações, a vítima é uma criança e, à imaginação da cena, se segue a mesturbação, enquanto na segunda os castigados são dois adultos, e o paciente, em lugar de masturbar-se, sofre de intensa angústia. As diferenças entre as duas situações se tornam menos significativas quando supomos que na fantasia do paciente, por uma deformação original, os adultos tivessem substituido a criança. Assim, o paciente inverteria a situação, expressando o seu ódio recalcado e repetindo a cena da sua própria infância em que, castigado pelo pai, reagiu violentamente. A revivescência desta cena com o pai, entretanto, viria corrigida, como o paciente queria que fosse, isto é, dominando o pai, e confirmando o direito de ser cruel com a ama (amada, mãe) além de desfrutar de ambos sexualmente (ratos, pênis). Quanto ao fato de, a imaginação da cena, seguir-se angústia e não masturbação, como em "surram uma criança" parece-nos que esta é realmente substituída por aquele que surge sem repressão em duas situações não imaginadas, mas uma delas vista e outra lida pelo paciente: a primeira, vendo o guarda proibir o caçador de tocar trompa, a segunda, lendo como Goethe venceu a maldição que a primeira amada lançou sobre àquela que o beijasse. Reencontramos aqui o pai (guarda) proibitivo e castigador, e a mãe (primeira amada), ambos protagonistas da fantasia dos ratos, onde esta é substituída pela mulher amada, mas tão inatingivel (proibida) como aquela que veio substituir. A inclusão da mãe, como objeto também de ódio, não nos parece estranha quando nos lembramos de que, além de "trair" o paciente com o pai, deve ter-lhe dado sentimento de rejeição semelhante ao que foi compelido a reviver na situação com a amada, pois o paciente possuía um irmão que, em sua infância era o "preferido de todos" e que foi objeto de perpétua inveja e ódio, até o início do tratamento, quando o paciente lhe queria matar a noiva, por não querer que êle se casasse. Aliás, não reencontramos o irmão nos tenentes A. e B., sub-rogados do pai? Por outro lado, sua mãe não aparece claramente na história do paciente senão duas vezes, uma delas quando êle, criança, lhe atribui, como ao pai, o poder de lhe adivinhar pensamentos: a segunda quando apresentou ereções e foi "queixar-se" (?) à mãe, deixando de ser significativo o fato de não sabermos o que ela disse, ou fez. Seguindo Freud, "o móvel da defesa e o complexo de castração e as tendências contra as quais atua são as do complexo de Édipo", podemos dizer que os conflitos do paciente na fase edipiana, foram muito intensos e agravados pela presença do irmão e a morte da irmã, que poderia ter-lhe confirmado a fantasia da onipotência do ódio. Seu super-ego, "herdeiro do complexo de Edipo", lhe impôs o recalcamento da sexualidade (por ameaça de castração) e da agressividade (preservar o pai, mãe, irmãos). Já bastaria, segundo Freud, o recalcamento do ódio para surgir à disposição à uma neurose obsessiva. Entrou na fase de latência com intensos ciúmes e ódio inconscientes, impulsos à contemplação-exibição, impulsos orais, anais fálicos recalcados, amor reacional aos pais e irmãos e aquela "consciência de culpa inconsciente" pelas agressões expressa com maior ou menor clareza em várias situações, entre as quais, e principalmente: a de zelar pelo progenitor no Além, a identificar-se com êle, como um modo de lhe emprestar o corpo para que continuasse vivo, e ainda o horror diante da idéia do "suplício dos ratos", que seu próprio ódio onipotente aplicava ao pai.

Chegado a puberdade, o paciente escolheu um objeto hétero-sexual mas só lhe pode dirigir seu desejo de afeto e não impulsos genitais. Além disso, mostra as tendências homossexuais apontadas por vários autores nos neuróticos obsessivos, chegando Fenichel a dizer que a vacilação entre a atitude masculina e a feminina, representadas pela integrante passiva do erotismo anal, "constituem o conflito mais típico no inconsciente do neurótico obsessivo (homem)". Ora na mesma época da escolha hetero-sexual o paciente mantinha uma ligação carregada de intenso afeto por um rapaz, de quem tinha intensos ciúmes, bem como posteriormente, na época da eclosão da neurose, com um amigo a quem sempre solicitava auxílio para livrar-se de suas obsessões. Resta ainda lembrar o supra-citado episódio do exibicionismo, diante do espelho, em "presença" do pai morto e de volta à sua casa, bem como a situação conflitual que o paciente viveu: obedecer ao pai, abandonado a eleita, ou continuar cortejando (amar o pai ou a mulher?) A partir de certo instante sempre está dividido entre o pai e um confidente, de um lado, e uma mulher impossível, de outro. Finalmente a ambivalência sexual nos pareceu ainda patente na substituição que fez, da moça dos correios, pelo tenente A, e a substituição, aliás, como que "por ordem" do capitão cruel (pai), que, assim, lhe proibia, simbolicamente, levar sua gratidão, amor, pênis, à moça (mãe). Mantém tal situação para evitar a castração e também preservar os seus pais de seu ódio onipotente, expresso na fantasia dos ratos. De passagem lembremo-nos de que, ao dizer-lhe, o capitão, que êle tinha de devolver o dinheiro, reagiu primeiramente com a idéia de que, se o fizesse, sucederia ao pai e à amada o suplício, mas mesmo assim se lhe implantou o desejo de obedecer à ordem, o que implicaria o aludido supliciamento. Finalmente ocorreu-nos que a situação: perda dos óculos - espera - recebimento de novas lentes poderia simbolizar: castração na fase fálica - latência - puberdade (recuperação do pênis, medo de castigo, ódio, medo do próprio ódio e forte tendência à regressão às etapas anal e oral (voyeurismo).

Caráter anal - ocorreu-nos verificar se o paciente teria revelado traços apontados por Freud e outros autores, como típicos do caráter obsessivo, e, a respeito, lembramo-nos dos seguintes: tendência à cólera e à vingança: parcimônia (retendo o dinheiro devido); teimosia, obstinação, perseverança (na insistência com que mantém a idéia da dívida); escrupulosidade; tendência a postergação (adiando a entrega do dinheiro, atraso nos estudos, etc.).

Caráter oral - a questão da parcimônia nos leva aos trabalhos de Abraham sôbre o erotismo oral, cuja importância ressalta, afirmando inclusive que a origem do caráter anal está estreitamente relacionada com o caráter oral. Assim, a parcimônia estaria ligada à oralidade, e "a posse de um objeto significa originalmente a incorporação desse objeto". Se o paciente revelou tendência à parcimônia, a perda dos óculos poderia ser uma formação reacional contra esta tendência (perder, dar). Diz ainda Abraham que se encontra parcimônia em pessoas que não podem ganhar o próprio sustento. Esta era justamente a situação do paciente, que tinha que estudar (vêr, comer) para trabalhar e casar-se. Expressivos de conflitos orais encontramos: mordida na ama, idéia de enriquecer (incorporar) com a morte do pai; cura de emagrecimento no balneário", estudos atrasados, dificuldade de compreender as palavras dos interlocutores, presença de blasfêmias nas orações (oral-sadismo) e sua defesa contra isso, consistente no uso de palavras boas; finalmente, as tendências "voyeurísticas" (incorporar com os olhos).

Melancolia - Abraham faz ligações entre neurose obsessiva e melancolia, dizendo que os portadores de uma apresentam sintomas mitigados da outra, tendo ambas sua origem em conflitos entre amor e ódio, bi-sexualidade. Dependeria da destruição ou a conservação do objeto (triunfo ou não, do ódio) que o indivíduo sofresse de melancolia ou de neurose obsessiva. Acentuou que o melancólico também tinha fixações na fase oral, à qual regredia como reação à perda de objeto. Depois que perdeu o pai, o paciente apresentou um período depressivo, que, se não chegou a ter as características da melancolia, fugiu às simples do luto. Certos sintomas da melancolia, como as auto-acusações e tendência à reparação, se não aparecem claramente, estão implícitas na conduta do paciente, que passa a estudar, como queria o pai, após ter sido mau estudante; por outro lado, a situação dista do luto comum pela presença de fantasias que Freud chamou, entre aspas, de "delirios" (visitas do pai morto, etc.). A situações assim, o mestre designa como depressões obsessivas, conseqüentes à morte de pessoas amadas, "excelente ocasião para fazer surgir a ambivalência das relações amorosas". Acrescenta que, quando há predisposição à neurose obsessiva, tal ambivalência dá ao luto uma estrutura patológica, "e obriga a exteriorizar-se a auto-reprovação, por haver desejado a perda do objeto amado, ou inclusive, por ser culpa dela.

Voltando a nosso paciente, podemos dizer que, dado o seu pai como morto por seu ódio onipotente, êle entrou em depressão, graças às fixações orais, e em virtude de também amar o progenitor, e, por isso, se sentir culpado; tentou reparar o "dano", fazendo o pai ressuscitar nas suas fantasias, recebendo-o em casa, tornando-se estudioso, e identificando-se com êle, para conservá-lo vivo em si próprio, como mostrou Freud das situações depressivas, conseqüentes à perda de objeto. Todavia, a eventual narrativa do capitão cruel, ou seja, o aparecimento na realidade, de uma figura evocativa do pai temido e odiado, desmanchou seu precário equilíbrio, penosamente conseguido, e instalou a enfermidade, com retorno do reprimido, perda do controle do Ego sobre os impulsos inconscientes, e precedia do ato falho da perda dos óculos, cujo significado tentamos desvendar, através de várias suposições, entre as quais agora acrescentamos a de que além da perda do pênis (castração), poderia também significar perda do pai desde que também tomemos os óculos como um objeto protetor, que ajudam a vêr, e desde que nos lembremos de que sem as lentes, adquiria maior garbo, propiciando ao pai uma nova existência.

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