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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.39 no.70 São Paulo June 2006

 

ENTREVISTA

 

Entrevista com Cláudio Eizirik* — Psicanálise: investigação e produção teórica

 

Psychoanalysis: investigation and theoretical production

 

Psicoanálisis: investigación y producción teórica

 

 

Cláudio Laks Eizirik

Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre

Endereço para correspondência

 

 

No dia 8 de março de 2006, por ocasião da visita de Cláudio Eizirik, atual presidente da IPA, a São Paulo para abertura do ano letivo do Instituto de Psicanálise da SBPSP, o Corpo Editorial de Jornal de Psicanálise teve a honra de recebê-lo para uma entrevista sobre o tema: "Psicanálise: investigação e produção teórica".

Jornal: Quais as principais metas e objetivos de sua gestão como presidente da IPA? Quais são as prioridades de sua gestão, que dificuldades tem encontrado e qual a importância para a psicanálise na América Latina e no Brasil de um presidente brasileiro?

Cláudio Eizirik: Após consultas com colegas de vários países e um exame cuidadoso dos principais desafios que a psicanálise e a IPA enfrentam atualmente, estabelecemos para esta gestão três prioridades principais: estimular a atividade clínica psicanalítica e sua discussão, formulação e teorização; aumentar o contato da IPA com os membros, sociedades e regiões, e os intercâmbios entre os mesmos; e incrementar a presença e a interface da psicanálise com a cultura, em várias dimensões. Em torno destes três objetivos prioritários foi formulado um plano estratégico, aprovado pelo Board (o Conselho da IPA, formado pelos vinte e um representantes das três regiões, a tesoureira, a secretária geral e o presidente) em agosto de 2005. A etapa seguinte consistiu no estabelecimento, reformulação ou fechamento dos comitês que devem desenvolver as atividades científicas, administrativas e operacionais da IPA, e na identificação de colegas com perfil para tais tarefas. Foi um processo algo trabalhoso, pois envolve quarenta comitês e cerca de quatrocentas pessoas. Em algumas das novas idéias introduzidas houve alguma resistência, mas em princípio predominou até o momento um acolhimento positivo.

Quanto a haver um presidente brasileiro, alguns dados quantitativos mostram que esta circunstância já provocou algumas mudanças na IPA, pois temos agora um número sem precedentes de coordenadores e membros de comitês latino-americanos. Além disto, acabamos de assinar com a FEPAL (Federación Psicoanalítica de América Latina) a criação do Instituto Latino-Americano de Psicanálise, que visa desenvolvê-la em países do continente onde a IPA não está presente.

Além disto, temos uma forma particular de pensar e praticar a psicanálise, e de desenvolver um convívio institucional mais intenso e participativo, incluindo membros e candidatos. Esta nossa maneira de ser psicanalistas está mais presente dentro da IPA e penso que contribui para um melhor conhecimento de nossa realidade. Sem dúvida, há um longo caminho a percorrer, incluindo publicações, traduções e intercâmbios clínicos – algo que estamos iniciando através de um novo comitê, o CAPSA (Comitê de Prática Analítica e Atividades Científicas), do Comitê de Publicações e do estímulo a maior participação latino-americana nos congressos. O do Rio foi um sucesso em termos científicos e de participação e o de Berlim está sendo organizado com o mesmo objetivo. Observo que há um movimento importante de deslocamento do eixo usual de comunicação. Ou seja, antes costumávamos importar conhecimento analítico, através de convites a autores ilustres e estudos de seus trabalhos. Nos últimos anos, observo o crescimento de uma tendência mais colaborativa e compartilhada, por exemplo, encontros entre duas sociedades de diferentes continentes estão aumentando, e mais analistas latino-americanos são convidados para expor seu trabalho na Europa e na América do Norte. Nosso propósito é contribuir para aumentar esse deslocamento do eixo tradicional.

Em suma, ainda é cedo para saber em que a presença de um presidente brasileiro pode de fato constituir um fator de mudança. Assim, sugiro que observemos o que vai acontecer nos próximos anos e depois avaliar o que aconteceu neste período.

Jornal: Apesar de haver produção teórica brasileira consistente, há dela pouca repercussão internacional. Por outro lado o brasileiro lê e valoriza a produção estrangeira, principalmente a inglesa e a francesa. O senhor concorda com essa nossa observação? Como explicaria esse fenômeno? Em sua opinião, como melhorar a divulgação de nossa produção internacionalmente? A IPA teria condições de favorecer um melhor intercâmbio?

Cláudio Eizirik: Concordo com esta observação, que de algum modo já mencionei. Como explicá-la? Há várias possíveis razões, como uma certa tendência ao deslumbramento com a metrópole, herança dos tempos coloniais. A isto se associa um certo sentimento de inferioridade e de baixa auto-estima, o que dificulta as publicações. (Aliás, isto me lembra uma expressão forte que o Nélson Rodrigues usava em 1958, quando o Brasil venceu sua primeira Copa do Mundo — tínhamos o que ele chamava de "complexo de vira-latas".) Também existe uma dificuldade em aceitar o sistema de revisão pelos pares, hoje padrão internacional em qualquer periódico de qualidade. Também é inegável que as tradições culturais psicanalíticas européias são muito consistentes, por sua história e produção, e devem ser respeitadas. Ao mesmo tempo há um grande desconhecimento recíproco na América Latina, embora mais recentemente estejamos aumentando o intercâmbio na nossa área geográfica. Esta é uma das áreas que considero prioritárias para a IPA.

Assim, por exemplo, foi lançado no Congresso do Rio um livro organizado por Sérgio Lewkowicz e Silvia Flechner sobre os desenvolvimentos dos principais conceitos psicanalíticos latino-americanos, cada um deles comentados por um colega europeu e norte-americano, a partir dos textos aqui produzidos. Foi lançado simultaneamente em inglês e espanhol pelo Comitê de Publicações da IPA. Esse comitê está dando continuidade a um trabalho de publicações que inclui, de forma eqüitativa, as três regiões geográficas.

Participar dos congressos, como tem ocorrido, também contribui. Mas talvez tenhamos que desenvolver esta questão em dois movimentos; um interno e outro operacional. O interno é um trabalho de mudança de mentalidade, de fantasia básica, que nos permita reconhecer um fato objetivo: a psicanálise produzida na América Latina é de tão alto nível como o de qualquer região, e a nossa acuidade clínica pode ser igual ou melhor do que a de qualquer outro lugar. O operacional inclui essas medidas que mencionei e a realização de mais intercâmbios clínicos e teóricos com sociedades de outras regiões.

Jornal: Também observamos produção teórica psicanalítica importante fora dos quadros da IPA, isto tanto no Brasil como fora — basta observar as produções ligadas ao movimento Estados Gerais, a grupos lacanianos e as ligadas à universidade como as teses de doutoramento e as dissertações de mestrado. Como a IPA vê essas questões? Reconhece, deixa de lado, não leva em conta...

Cláudio Eizirik: Seria não só uma postura arrogante, como até uma leviandade epistemológica pretender que só dentro da IPA se produz trabalho teórico e clínico de qualidade. Cada vez mais existe diálogo, intercâmbio e trocas frutíferas com analistas de outras filiações. Em nossas diferentes publicações, como observo no Jornal de Psicanálise, trabalhos de colegas não pertencentes à IPA são publicados e nos congressos da IPA tem havido painéis com analistas lacanianos e junguianos. Assim, esta é uma fronteira que necessita ser mantida e expandida, de acordo com as peculiaridades de cada país ou região.

Na universidade há uma produção teórica e também de estudos empíricos muito importantes que resulta em publicações internacionais e nacionais. O International Journal acolhe trabalhos sem pedir atestado de filiação. Em suma, a IPA reconhece essa presença importante e age no sentido de promover trocas mutuamente benéficas.

Jornal: Sabe-se que a IPA tem se preocupado com a questão da pesquisa em psicanálise, tendo inclusive defendido a pesquisa empírica utilizando tratamento próprio das ciências. Como o senhor considera esta questão se aceitarmos o que Freud propõe, ou seja: que a psicanálise é, ao mesmo tempo, um método de investigação, um método de cura e de produção de teoria? É legítimo o uso do método experimental para produção de conhecimento psicanalítico? O que ganhamos e o que perdemos com isso?

Cláudio Eizirik: Esta é de fato uma questão extremamente relevante, porque implica não só pensarmos em termos de modelos de pesquisa psicanalítica, como talvez mais apropriadamente examinar o que entendemos por método psicanalítico, e de que maneira ele pode ser desenvolvido. Freud acertadamente descreveu o método psicanalítico como aquele em que investigação e tratamento caminham juntos. Assim, seguindo essa idéia, podemos pensar que a única verdadeira pesquisa psicanalítica é a que ocorre na sessão analítica. De fato, praticamente toda a nossa teoria se desenvolve a partir dos insights que foram sendo obtidos na clínica analítica. Essa visão é defendida muito claramente por André Green, por exemplo. O outro lado da moeda, cujos defensores incluem Wallerstein e Kernberg, por exemplo, sustenta que é possível fazer pesquisa psicanalítica usando o método científico experimental e que a psicanálise é uma ciência e como tal deve submeter-se às suas regras gerais. Desta visão decorreu a grande ênfase da IPA na pesquisa empírica, com um orçamento elevado para financiar este tipo de estudo, em anos anteriores. Já na gestão de Wallerstein foi estimulada também a pesquisa conceitual. Na atual, estamos incrementando ainda mais esta última ênfase, embora devamos reconhecer aqui que as propostas de Green e Wallerstein não são necessariamente excludentes. Pensando teoricamente, ambas são, sim, possivelmente incompatíveis, pois são duas visões de psicanálise.

Pensando pragmaticamente, e levando em conta nossas múltiplas necessidades e níveis de interface com a universidade, a psiquiatria, a psicologia, as ciências humanas – minha posição é que necessitamos de vários tipos de pesquisa psicanalítica disponíveis. Com a conceitual cuidaremos do nosso desenvolvimento teórico; com a clínica melhoramos nossa acuidade terapêutica e podemos compartilhar mais com nossos colegas; e com a empírica realizaremos estudos de efetividade terapêutica e outros que nos ajudarão no diálogo com os sistemas de saúde e as disciplinas científicas. Ou seja, podemos perder quanto à especificidade, mas ganhamos quanto à interlocução com os outros saberes e ainda exercemos a necessária liberdade de permitir que nossos membros e candidatos sigam os caminhos e a busca de conhecimento que lhes pareçam mais de acordo com suas inclinações.

Jornal: Um dado também da atualidade é a queda da procura por formação em psicanálise dentro dos institutos das sociedades ligadas à IPA e isto no mundo inteiro. Observamos isso em São Paulo e sabemos que outros institutos brasileiros também passam por esse problema. Em sua opinião, a que devemos esse quadro e que medidas a IPA pretende tomar para minorá-lo?

Cláudio Eizirik: De fato, este é um fenômeno observado em vários países, em graus variáveis. Vários fatores podem estar contribuindo para isto: a oferta de outras formações menos rigorosas do que a nossa, a atração de métodos de tratamento mais rápidos e exigindo menor imersão emocional; as dificuldades socioeconômicas, que podem tornar mais difícil aceitar um enquadre analítico; e, como sempre houve, as resistências a enfrentar o encontro com a própria subjetividade e o exame dos significados e conflitos que produzem sofrimento psíquico. Muitas vezes fico na dúvida quanto à ordem desses fatores, mas penso que a ênfase numa suposta crise da psicanálise — na qual não acredito, pois nossa disciplina é sólida e de fato é uma obra em construção, como propus em meu discurso de posse — e um certo tom alarmista ou catastrófico podem encobrir essas resistências que existem dentro dos pacientes e dos analistas. É muito difícil manter-se analista e trabalhar dentro do método analítico, com o que nos exige de trabalho psíquico com a contratransferência e com as várias dimensões do campo analítico.

O que a IPA tem feito? Desde a gestão de Kernberg, várias coisas, como as conferências inter-regionais, por exemplo. Na de Widlöcher, foi iniciado o programa DPPT, para estimular e financiar projetos das sociedades que ampliem sua inserção social e possam estimular futuros pacientes a procurar análise e profissionais a buscar formação analítica. Na atual gestão, o programa CAPSA, de intercâmbio da atividade clínica entre as três regiões, e a ação de vários comitês como de crianças e adolescentes, COWAP, informação pública, psicanálise e cultura, assuntos profissionais. Uma área vital é a do trabalho conjunto com os candidatos. Temos um comitê de interface IPA-IPSO, um sistema de bolsas para candidatos, estamos procurando incluir mais os candidatos nas atividades da IPA, como na organização dos congressos (de cujo comitê de programa a IPSO participa) e nos comitês, e outras medidas.

Em suma, penso que o futuro de nossa disciplina será decidido dentro de cada sala de análise, e de nossa disposição para trabalhar analiticamente com nossos pacientes. A IPA, assim como as sociedades, devem estar e estão comprometidas com a abertura e o desenvolvimento de espaços de troca em que o método analítico seja estudado, desenvolvido e compartilhado.

 

 

Endereço para correspondência
Cláudio Laks Eizirik
R. Marquês do Pombal, 783/307
90540-001 Porto Alegre, RS
Fone/Fax: (51) 3224-4364
E-mail: ceizirik.ez@terra.com.br

 

 

* Analista Didata. Membro Efetivo da SPPA.

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