SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.39 número70Psicoanálisis: investigación y producción teóricaPsicoanálisis, ciencia y ficción índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. v.39 n.70 São Paulo jun. 2006

 

DEBATE

 

Debate &– Psicanálise: investigação e produção de teoria

 

Psychoanalysis: investigation and theory production

 

Psicoanálisis: investigación y producción de teoría

 

 

No dia 1 de abril de 2006 o Corpo Editorial do Jornal de Psicanálise recebeu os colegas Ana Clara Duarte Gavião, Belinda Mandenbaum, Ludmila Kloczak, Marina Ramalho Miranda e Spartaco Ângelo Vizzotto para um debate a partir do tema: "Psicanálise: investigação e produção de teoria".

As questões propostas foram elaboradas pelo Corpo Editorial com o objetivo de trazer aos nossos leitores contribuições sobre o modo com que os analistas em formação, em nosso Instituto, vêm pensando a investigação e a produção teórica em psicanálise.

Agradecemos aos colegas presentes sua disponibilidade e colaboração.

Jornal: No célebre verbete que escreve para a Enciclopédia Britânica, Freud afirma: "Psicanálise é o nome de (1) um procedimento para investigação de processos mentais que são quase inacessíveis por qualquer outro modo, (2) um método (baseado nessa investigação) para o tratamento de distúrbios neuróticos e (3) uma coleção de informações psicológicas obtidas ao longo dessas linhas, e que gradualmente se acumulam numa disciplina científica". Que conseqüências podemos tirar dessa definição para estabelecer o estatuto da produção teórica da psicanálise?

Belinda: Uma coisa que me intrigou nessa definição, embora eu já a conhecesse, foi esse "quase". O que nos faz pensar que haveria outros modos para investigação desses processos mentais que não a psicanálise. No meu entender, e baseada na leitura de vários psicanalistas que estão hoje no debate em torno da questão da pesquisa em psicanálise, nenhuma outra ciência tem os instrumentos para investigar os processos mentais, dentro das complexidades que eles têm e na especificidade daquilo que a psicanálise investiga, que não a psicanálise. O que será que Freud tinha em mente quando formulou que são quase inacessíveis? Que outro modo os acessaria também? Eu não sei.

Spartaco: Eu queria lançar aqui uma proposta para pensarmos essa pergunta utilizando um artigo do Theodor Lowenkron, que saiu na Revista Brasileira de Psicanálise no ano passado. Nesse artigo o autor, com muita preocupação, fala sobre o novo estatuto da pesquisa em psicanálise. Numa pesquisa com dez mil e setecentos psicanalistas formados e reconhecidos pelas instituições da IPA, foi cunhada uma nova definição para o termo psicanálise: "O termo psicanálise refere-se a uma teoria do funcionamento e da estrutura da personalidade e é uma técnica psicoterapêutica específica. Esse corpo de conhecimento é baseado e derivado das descobertas psicológicas fundamentais feitas por Sigmund Freud; as palavras psicanálise, psicanalítica, etc. são os equivalentes das palavras psicoanálise e psicoanalítica, etc.". Ou seja, a pesquisa está fora dessa definição. Hoje em dia, de modo geral, não há em nosso meio e no meio internacional ênfase na pesquisa. É algo muito interessante e muito grave que Theodor denuncia e acho interessante pensarmos. Sabemos que há tentativas de re-introduzir a questão da pesquisa, como a de Fabio Herrmann e muitos outros de nossa Sociedade. Queria lançar isso como uma questão sobre a pergunta inicial.

Ludmila: Ao pensar nesta definição, o quase que você aponta é, para mim, uma posição política de Freud. Volta e meia ele dizia: "Provavelmente vamos descobrir outros métodos...". Parece que ele tentava dizer — na sua vontade de fazer parte da estrutura científica da época — "eu não sou tão diferente de vocês como vocês pensam que sou, apesar de trabalhar com esses fenômenos de acesso tão difícil", essa é minha impressão. Acho que Freud tinha muita precisão e muita clareza no que ele entendeu que fosse o objeto com o qual ele começou a trabalhar. Ele abarcou nessa definição, essa dinâmica, quase uma dialética entre o pesquisar, agrupar o conhecimento, entender o que se fazia e também os efeitos disso, que são o tratamento. Desde o Projeto, Freud, quando define e organiza os componentes do psiquismo em código de letras, em conceitos quase matemáticos, e de lá, quando ele expande toda sua teoria, vemos, ao longo dela, os pequenos traços, os pequenos rastros, daquilo que ele pensava. Ele já tem claro que o trabalho que ele faz é diferente, que o objeto com o qual ele trabalha é diferente e a maneira de abordá-lo também é diferente. Apenas ele fazia parte de certo momento histórico e de certa estrutura científica na qual permaneceu e que nós também conhecemos, fizemos e fazemos parte dela, talvez até de uma forma mais arraigada. Porém, Freud teve a liberdade de se descolar. Ao mesmo tempo dizer o "quase" e, por outro lado, prosseguir com muita convicção no que ele achava que tinha que ser o caminho dele. Assim, essas voltas, como a que se comentou, representam um retrocesso e uma angústia de quem não consegue ter a convicção dele.

Spartaco: Tenho a impressão que Freud se movimentou na criação da psicanálise a partir do interesse pela pesquisa e pela curiosidade científica, o que foi o grande motor do processo. Acho que o "quase" tem a ver, um pouco, com o cenário da época; com a indignação que sentia em relação ao que a medicina lhe oferecia, com o preconceito. Muitas tentativas surgiram para explicar os fenômenos psíquicos. A esse respeito, Roudinesco cita um trabalho publicado na revista Psicopatologia Fundamental, de H. Elemberger, historiador da psicanálise, "História do descobrimento do inconsciente", em que trata de todas as outras tentativas de abordagem que eram feitas. Então o "quase" parece ter esse sentido. Freud não estava sozinho nessa investigação, mas estava ali para criar um novo sistema, motivado pela pesquisa, pela ciência, pela curiosidade dele.

Ana Clara: Fiquei pensando que esse "quase" pode ter a ver com o fato de que o fenômeno que a psicanálise se propõe a investigar, o inconsciente, está presente tanto nas experiências humanas mais profundas como nas relações humanas em geral, e que é possível algum acesso a ele através de outras formas, como por exemplo através das artes. Talvez qualquer manifestação humana de algum modo permita alguma apreensão dessa dimensão mais profunda. Mas o que eu considerei aqui, a partir dessa definição, é que há um setting clássico no qual o psicanalista encontra as melhores condições para essa investigação. O setting psicanalítico clássico seria um "laboratório" para a observação desses fenômenos tão sutis porque ele favorece, embora não garanta, alguma estabilidade nessa configuração formal do encontro humano que é um encontro intersubjetivo. Como coloca Bion, esse encontro traz uma turbulência emocional tão complexa que é difícil se dar conta. Então essa constância de setting — essa possibilidade de vários encontros semanais, no mesmo lugar, o uso do divã — funciona como uma espécie de lente de aumento para essas observações. Nada impede que a partir dessa experiência do psicanalista, nesse setting mais privilegiado, e com a experiência mais consolidada, ela seja transposta para outros settings. Porém isso vai depender de que essa experiência esteja mesmo já mais amadurecida.

Também estava pensando no desenvolvimento da Psicanálise com letra maiúscula, ou seja, a pesquisa enquanto produção inovadora de conceitos. Penso em como isso é difícil, porque depende de uma criatividade muito especial do pesquisador, de uma mente muito aberta, muito livre para pensar. Para apreender os conceitos básicos já estabelecidos da psicanálise, precisamos de muitos anos de análise, de supervisão, de experiência clínica. Agora, para criar novos conceitos há de se ter uma mente muito livre, muito genial. Cada encontro com o paciente é uma experiência nova que exige criatividade, liberdade para pensar, mas o avanço psicanalítico em termos mais amplos é muito difícil.

Considerei ainda nessa definição de Freud, por exemplo, no item 2, em que ele fala: "um método (baseado nessa investigação) para o tratamento de distúrbios neuróticos", que, apesar de toda a genialidade de seu espírito investigativo, ele ainda não considerava que também era possível o tratamento de distúrbios psicóticos, o que outros autores depois vieram a demonstrar. Mas no item 3 ele reconhece que a psicanálise é uma coleção de informações psicológicas que gradualmente se acumulam, ou seja, vemos aí o verdadeiro espírito científico dele, quando deixa claro que novos conhecimentos poderiam surgir.

Marina: Quero, inicialmente, agradecer o convite feito pelo Jornal para este debate. Vou retomar um pouco a pergunta feita pelo Jornal, sobre as conseqüências que nós podemos tirar dessa definição de Freud, "para estabelecer o estatuto da produção teórica da psicanálise". Fiquei muito contente de começar a pensar as questões que vocês formularam, a partir do verbete, pois ele me ajudou muito a entender e a organizar o que estava pensando sobre a pesquisa em psicanálise.

A partir deste verbete, Freud posiciona, dá referência e promove um otimismo ao nosso desejo de integrar pesquisa e clínica, pois ele reconhece a postura investigativa que abarca o espírito curioso do psicanalista, a necessidade do método próprio da psicanálise como organizador e favorecedor das descobertas, e acrescenta a estes ingredientes a assunção de que psicanálise é tratamento sim, mostrando como o psicanalista, ao colecionar dados informativos do psiquismo daquele paciente, ou dados sobre si mesmo, ou ainda dados da dupla analítica, enfim, ao acumular informações que brotam do vínculo analítico, encontra-se com o pesquisador que reside nele, que continua em processo de gestação e nascimento o tempo todo, tanto no consultório, quanto na universidade, abrindo novas frentes, num movimento dialético.

Usei esse verbete nos momentos iniciais da minha tese de doutorado. Esse verbete, além de ter sido escrito para a Enciclopédia Britânica, Freud o apresentou no Congresso Psicanalítico Internacional de Berlim, como uma forma de tornar públicas as primeiras concepções que fazia sobre psiquismo, como também para caracterizar o método psicanalítico para a comunidade científica da época. Assim, achei muito apropriado este início de conversa, devido à atualidade da idéia que nos faz retomar a questão da possibilidade investigativa da psicanálise. Essa foi a minha experiência particular como pesquisadora. Nesse verbete Freud faz a assunção do que trata a psicanálise. De que ela é ciência e é arte — em minha opinião também —, é uma forma de pensamento que levanta hipóteses teóricas apoiadas nas experiências clínicas. É um resumo fantástico do que discutimos hoje na contemporaneidade, especialmente essa idéia de que podemos ser um pesquisador tanto no consultório quanto na universidade. Acho que o que Freud aponta nesse verbete está muito presente nas conversas atuais.

Spartaco: Se fôssemos resumir, a curiosidade trata e cria métodos, e é essa postura, postura clínica interessada, que vai fazer a diferença; mas como vamos fazer para reproduzir essa postura interessada? Acho que se perde com essa nova definição de psicanálise (à qual me referi). É um cenário bem complicado esse nosso: ele nos desestimula em alguma medida, dentro da Sociedade. Nós, mais novos aqui, podemos pensar um pouco sobre a dificuldade de apresentar um relatório, sobre a dificuldade de buscar uma inserção no corpo societário.

Marina: Justamente porque talvez fique faltando para cada um de nós um contato mais profundo com as inquietações que levam a um pensamento criativo e investigativo. Por isso achei muito feliz a idéia do Jornal de começar a evocar em nós o pensamento sobre investigação com o verbete de Freud. Foi o mesmo movimento que eu tive na tese de doutorado. Esse verbete convoca para a pesquisa. É um chamado. Temos de perceber que temos dentro de nós muitas inquietações que podem ser transformadas em produção científica. Temos essa potencialidade e essa possibilidade especialmente dentro de uma comunidade como a nossa instituição.

Belinda: Novamente nos atendo ao verbete, podemos pensar as questões da pesquisa realizada em outros settings, que não exclusivamente o da clínica. O que parece que ele está dizendo é que desse procedimento de investigação nasce um método, que é o método propriamente psicanalítico. Teríamos que fazer uma diferenciação entre método e técnica. Ele parece sugerir que o método que deriva dessa investigação dos processos mentais implica certos procedimentos que se realizam, com excelência, no setting clínico. Mas não só. Aprendemos com Fabio Herrmann a correspondência entre método e objeto, esse método que nasce das próprias características do objeto, o método psicanalítico.

Leda: O que ele chama de espessura ontológica do método.

Belinda: Poderíamos de fato nos perguntar se é possível fazer investigações dos processos mentais a partir de outros métodos que são extemporâneos à psicanálise. Por exemplo, os métodos científicos tradicionais dariam conta? E o que acontece quando os psicanalistas, no afã de afirmar um estatuto científico da psicanálise, vão em busca de adotar métodos ditos científicos, dentro dos paramentos científicos tradicionais? Aqui me ocorreu, sobre a pergunta de vocês, que a produção teórica da psicanálise tem que emanar dessa forma de investigação e desse método de investigação. É uma teoria que emana desses procedimentos. Como se poderia fazer pesquisa sem levar em consideração que estão totalmente intricados o método e o objeto?

Jornal: Em instigante trabalho, "Psicanálise e pesquisa", publicado no número anterior de nosso Jornal, Fabio Herrmann aponta três modalidades de pesquisa que disputam espaço no movimento psicanalítico: 1 — investigação teórica (pesquisa conceitual); 2 — pesquisa empírica; e 3 — pesquisa clínica (seja do paciente seja da cultura), mas com o método psicanalítico. No texto, o autor discute em que condições as duas primeiras podem ser úteis à psicanálise e elege a terceira — a pesquisa clínica com o método psicanalítico — como a mais apropriada à nossa disciplina. Herrmann propõe que "todo analista pesquisa. O trabalho clínico, no dia-a-dia do consultório, é uma das formas mais elevadas de investigação. De cada análise, derivam-se prototeorias ad hoc que, às vezes, desembocam em teorias elaboradas o bastante para serem publicadas". No entanto, o autor reconhece que "uma pesquisa psicanalítica é mais que um relatório clínico". Como transformar a clínica de cada dia em pesquisa comunicável?

Marina: Acho que a clínica de cada dia poderia se transformar numa tese por dia. O exercício de comunicação das mensagens que conseguimos obter no trabalho clínico diário e com o exercício dessa comunicação através da linguagem, falada ou escrita, essas experiências podem e devem ser comunicadas. Lembrei-me do que Freud fala no prefácio do caso Dora. Ele diz que temos dois grandes compromissos: o primeiro com nosso paciente e o segundo com a comunidade científica da qual fazemos parte. A nossa clínica de cada dia tem que ser aproveitada como uma pesquisa. A partir de uma inquietação pessoal, acabamos colecionando dados tanto da experiência clínica com o paciente como a respeito de nós mesmos; e essa coleção de dados, como foi falado no terceiro item do verbete, poderá servir como um corpo de conhecimento comunicável para que a nossa comunidade cresça justamente em função dessa abertura de frente.

Ana Clara: A criatividade, a liberdade para pensar, o compromisso científico são fundamentais para o trabalho de pesquisa. Também pensei em como é possível transformar em pesquisa comunicável o trabalho do dia-a-dia. Acho importante que o psicanalista pesquisador possa organizar seu procedimento de pesquisa. Eu me lembrei de um artigo do Walter Trinca publicado numa revista de psicologia hospitalar do HC em 1999, cujo título é "A pesquisa em psicanálise como uma seqüência de movimentos criativos". Ele apresenta um modelo bastante útil para pensarmos essa questão. O que enfatizo é que essa clínica do dia-a-dia vai se organizar a partir da curiosidade em relação a alguma questão. O primeiro passo é delimitar uma questão a ser investigada a partir de uma experiência clínica bem genuína, muito viva, que tenha despertado um interesse autêntico. A curiosidade é fundamental para qualquer investigação. O investigador observa ali algum fenômeno que lhe chama a atenção, desperta o interesse — algum sintoma, algum quadro orgânico associado a alguma manifestação —, observa em algum paciente, depois observa em outros. O que Trinca propõe nesse modelo é que essa organização se dê a partir da transcrição do material clínico, o que depois permitirá um olhar focalizado nos fenômenos associados à questão que está sendo investigada. O psicanalista alcança, aos poucos, uma compreensão global do campo dinâmico que ele está estudando e formula, então, suas hipóteses a partir dos próprios dados do material clínico que ele está observando, a partir de sua própria experiência emocional junto com seus pacientes. Ele ressalta também a espontaneidade na construção literária, propondo escrever com o próprio estilo, ousando pensar fora do abrigo dos grandes autores, para, assim, se aproximar mais deles. Acho que o importante nessa investigação é que a aproximação de alguma verdade se dê pela apreensão profunda da natureza dos fenômenos, que vai permitir que essa revelação seja verificada por outros pesquisadores. Agora, para essa profundidade de apreensão ocorrer, é necessária a mobilidade psíquica na mente do pesquisador, do investigador, o que depende da qualidade do contato que o psicanalista tem com suas próprias experiências emocionais, com sua própria vida interna. Por isso a capacidade criativa é necessária, a organização coerente do material clínico é necessária para comunicar uma pesquisa, mas o aspecto essencial para a qualidade da comunicação é a auto-investigação, é a análise pessoal. Essa é a base para que uma pesquisa faça sentido a um interlocutor, como é com o paciente no dia-a-dia.

Ludmila: Acho, Ana, que você desenvolveu aquilo que pode ser resumido nos elementos básicos que todo pesquisador deve ter em mente, e que me ocorreram quando pensava nessa questão. São eles: disciplina em observar; formulação de hipóteses; introdução de alguma variável e verificação; e finalmente organização do resultado. É muito preciso e claro isso, mas exige uma disciplina permanente, e no nosso campo essa disciplina deve ser fruto do encontro da pessoa consigo mesma, não é algo que vem de fora. No entanto, nós esquecemos essas simples palavras que aprendemos nos primeiros anos dos nossos cursos, seja medicina, seja psicologia. Em parte, porque dizemos ser própria da pesquisa empírica, essa maneira de trabalhar. Mas o que fazemos nas sessões, em nosso contato do dia-a-dia com nossos pacientes? Não é da ordem da empiria? Porque é a observação que fazemos — e que vem na esteira dos fenômenos transferenciais e contratransferenciais — que nos ajuda a construir junto com o paciente as intervenções que vão desembocar numa interpretação. É o efeito dessa interpretação que irá nos dizer se de fato estamos nos encontrando com nosso paciente, se de fato estamos compreendendo e, inclusive, fazendo uso do conhecimento que temos. Então, quando nos incomodamos pelo fato de a pesquisa psicanalítica não ser validada por outros referenciais de pesquisa, esquecemos que dentro dela estão contidos esses passos de investigação, e que não é nos valendo de pesquisas de laboratório ou de observações de atendimentos ou outros modelos existentes que vamos garantir que a investigação e a produção de conhecimento em psicanálise se façam.

Casualmente, ontem, entrei em contato com o trabalho de Juan Pablo Jimenez, que virá nos visitar. Achei várias observações dele muito ponderadas, mas há uma parte em que ele cita algumas pesquisas em que se perde a alma do objeto. Nessas pesquisas que ele cita a alma do objeto desaparece e sabemos que o nosso objeto não está fora, ele está ali, ele é construído junto com o paciente. Ele não é algo "de" que se fala, mas é algo que se fala "com". Assim, no nosso caso, só é possível a pesquisa se nós falarmos "com". E sobre a proposta de Fabio Herrmann de que a pesquisa psicanalítica é mais do que um relatório, penso que, quando um relatório é tratado como um trabalho em que se vai falar "de" um paciente, acabou o trabalho psicanalítico, acabou a produção psicanalítica. Acabou a possibilidade de envidar os esforços para agrupar algum conhecimento, algum conceito a mais naquele campo no qual o analista se propõe a trabalhar.

Spartaco: A validade do relatório, na medida em que nele não haja a presença dessa alma que você acaba de falar, ou na medida em que não se destina a tê-la, não ficaria como algo a ser questionado? Qual seria, efetivamente, a finalidade do relatório? Supostamente já estamos atendendo pacientes supervisionados. Por que então a exigência do relatório, e não de algo que contenha efetivamente alguma coisa da alma tanto do pesquisador como do analista?

Belinda: Ocorreu-me pensar que tanto Fabio como nós, talvez, sejamos otimistas, pois poderíamos nos perguntar: será que todo analista pesquisa? A clínica, de fato, é sempre uma situação de pesquisa, da qual se derivam as prototeorias? Sabemos quanto é difícil pesquisar verdadeiramente. Quanto é difícil transformar a situação clínica numa situação de pesquisa, e por dificuldades da própria situação. A observação clínica é muito difícil. Não é nada fácil se agarrar ao objeto e ao método psicanalíticos, deixando teorias e preconcepções em suspensão. Mas, em alguns momentos, eventualmente, temos a sensação de estarmos chegando a algo mais novo, sentimos que há momentos de descoberta, mas não é no dia-a-dia. Embora, também, o dia-a-dia pudesse ser, sem dúvida, pensado e repensado ou ser transformado em tese. Mas, muitas vezes, estamos na clínica reiterando concepções, aplicando idéias. Assim, há muitas dificuldades para a investigação psicanalítica. Dificuldades que podem ser tanto do analista, como da situação analítica, ou mesmo da instituição. Por exemplo: que espaço temos para apresentarmos e discutirmos, com colegas, aquilo que consideraríamos novas descobertas? Que espaço a instituição dá para o novo? Sabemos que há forças que vão no sentir da reiteração de certas teorias, de autores, de escolas. Todos vivemos isso na instituição.

Spartaco: Novo que não é tão novo porque os candidatos, que entram aqui, já têm história. Vamos pensar na negativa como uma resposta à sua suspeita (que haja espaço para o novo). Mesmo assim, dentro da formação, o relatório vai levar um individuo a se interessar mais por pesquisa? Respondendo que realmente é muito difícil pesquisar e as pessoas chegam aqui eventualmente sem ter, na grande maioria dos casos, esse interesse por pesquisa, então o relatório é um instrumento que ajuda ou que atrapalha, na medida em que institucionaliza no mau sentido da palavra? Essa é uma questão.

Ana Clara: Eu penso diferente. Eu acho que esse compromisso investigativo científico é essencial ao método psicanalítico. Dentro disso penso que é também importante que o psicanalista possa comunicar isso de alguma maneira. Acho extremamente útil se comprometer a fazer um relatório.

Spartaco: O que está em questão é esse fato da alma, como foi há pouco falado. No relatório está-se ensaiando dizer alguma coisinha, mas é através dessa sistemática que nós chegamos ao estatuto da pesquisa?

Ana Clara: Pode ser o primeiro passo.

Marina: Acho que o relatório que se faz depois da primeira e segunda supervisão pode ser um grande estímulo para a pesquisa. Antes de fazermos os relatórios éramos estimulados para comunicações verbais em reuniões, quer fazendo perguntas em jornadas quer como convidados para apresentar trabalhos. Mas na hora em que nos defrontamos como candidatos, com a exigência do relatório, nós nos obrigamos a organizar e redigir nosso pensamento que antes era comunicado somente por via da palavra. Nessa ocasião o candidato pode se dar conta de talentos ou dificuldades para a escrita, e será estimulado a fazer registro das primeiras impressões da coletânea de dados obtidos ao longo do caminho clínico, expandindo-se nesta empreitada.

Acho, então, que fazer o relatório pode ser um ponto de partida para uma tomada de consciência da necessidade da pesquisa e para a expansão pessoal do candidato. É importantíssimo para o trabalho clínico com um paciente em particular ter o espírito de curiosidade próprio da pesquisa, para avançar com o paciente em direção à produção de conhecimento, conhecimento de si, da dupla, da sessão, do processo, de uma interpretação em particular, de um gesto, de um olhar... A isso podemos dar o nome de: ciência, pesquisa, mestrado.

Particularmente, sou muito favorável a que a instituição ofereça condições para o aperfeiçoamento da escrita psicanalítica, como é oferecido na universidade. Deveríamos estar mais atentos à utilização da linguagem, para que não corramos o risco da linguagem hermética, de restrito alcance. Nesse sentido a universidade para mim foi de muito valor por proporcionar meios de comunicação numa linguagem compreensível para uma comunidade mais ampla. E isto porque a divulgação da psicanálise é fundamental. A vida da psicanálise é condicionada ao fato de que ela seja conhecida. Precisamos divulgá-la e contar ao mundo não-psi a respeito da valiosíssima e indispensável contribuição que o olhar psicanalítico traz para o entendimento de qualquer fenômeno psíquico.

Assim, o valor do relatório estará em grande parte dependendo do manejo do candidato com seu trabalho, e do casamento que vai fazer com sua escrita. Isso sim poderia ser mais conversado na instituição antes de chegar à data de entrega do relatório. Poderia, também, este manejo ser preparado em parceria com os professores para que o relatório tenha esse caminho e a possibilidade de dar uma contribuição para o próprio candidato e para a sociedade como um todo. Talvez dentro do próprio curso de formação pudesse haver um espaço para que professores e alunos conversem sobre as funções do relatório, no sentido tanto do aproveitamento pessoal do candidato, quanto no dos benefícios que esse relatório pode trazer para a clareza do processo psicanalítico com um paciente em particular e, mais ainda, fazendo dessa experiência contribuição para a comunidade inteira. Assim estaremos muito perto do que nós fazemos na universidade.

Ludmila: Eu queria comentar dois aspectos sobre o relatório. Primeiro, é o aspecto burocrático do relatório. Lendo o artigo do Kernberg, a história do relatório é muito antiga e ele foi criado como uma maneira mínima de que outros soubessem como é que aquele sujeito está trabalhando. Tenho a impressão que esse foi o objetivo inicial. É claro que se reiterou e transformou-se em uma atividade puramente burocrática, e nesse caso não tem razão de ser. Se o objetivo é este, o relatório perde a alma.

Spartaco: Ninguém faz "gincana de relatório" nesta Sociedade. Ninguém bota na mesa o relatório e diz: "Vamos discutir". Como um colega outro dia falou: "Teu relatório vai ficar em uma gaveta, se ficar...".

Ana Clara: Na semana passada fui chamada para uma discussão, que nem era a apresentação formal do relatório, mas uma discussão posterior, do relatório de uma colega com um grupo, e achei extremamente útil. Acredito que pode ser um momento importante na formação. Eu ainda estou terminando minha primeira supervisão e ainda não fiz o relatório, mas estou muito motivada a fazê-lo. Acho que quando ele é visto de uma maneira excessivamente formal, como um compromisso burocrático, claro que aí é detestável, mas acho que o objetivo não é esse, o de cumprir uma burocracia, mas sim, como Ludmila colocou, o de promover o desenvolvimento do pensamento clínico e científico.

Spartaco: O objetivo é sempre o melhor, mas nós vemos também que essa discussão não é apenas da atualidade, ela é bem antiga. Kernberg coloca isso, nesse artigo extenso. Estamos pensando, claro, que existem situações fortuitas bem-sucedidas. Mas temos que nos perguntar se na média é assim.

Ana Clara: Sempre houve e vai haver resistências à psicanálise dentro do próprio campo psicanalítico. Movimentos antipsicanalíticos estão dentro de cada um de nós e da comunidade psicanalítica. Isso é inerente à vida mental.

Belinda: Lembrei-me que li um trabalho de Elizabeth Spillius — autora que tem uma grande importância dentro do universo kleiniano, particularmente dos autores de língua inglesa — em que ela faz uma enorme pesquisa de relatórios de candidatos dentro da Sociedade Britânica de Psicanálise, abrangendo vários períodos. E nesse trabalho ela observa exatamente isso: embora idealmente o relatório devesse ser o que Ana Clara falou há pouco, ele estava servindo para a reiteração das teorias da época, de uma certa concepção. A autora vai mostrando como dentro da teoria kleiniana, num período em que há um privilégio da questão das pulsões de morte, todos os relatórios traziam essa marca da destrutividade e da agressividade, marca esta muito forte da escola kleiniana na década de 50. Depois, com o advento de Bion, o olhar presente nos relatórios e as teorias colocadas neles mudam. O relatório, sem dúvida, tem que ser esse momento privilegiado de registro de um processo. Mas ele também serve para uma reiteração, uma reafirmação das teorias vigentes e de certas concepções.

Marina: É uma oportunidade para que se pense a comunicação em psicanálise.

Spartaco: Esse uso burocrático é anticientífico, antipesquisa. Hoje eu posso reparar, a Sociedade está muito mais aberta do que já esteve vinte ou trinta anos atrás, mas o que observamos historicamente — e Fédida retoma esse artigo da Spillius naquele livro Clínica psicanalítica — é o uso burocrático como uma forma de manter o igrejismo psicanalítico. Quando se diz "isso é antipsicanalítico" ficamos de orelha em pé, porque o que é psicanalítico? É reproduzir a linguagem? Isso é um grande problema do meu ponto de vista, inclusive dá abertura para a pesquisa, dá abertura para o novo. A idéia do negativo, de Fédida, se contrapõe a isso. Temos essa tendência de reproduzir, de sermos aceitos porque reproduzimos. É um discurso formatado, é aprender a não pensar, é não exercitar a capacidade negativa. Minha concepção, lendo muito Fédida e muito Fabio Herrmann também, é que teríamos que ir à busca desse negativo. Esse negativo não nos é dado, não é uma coisa que se apresenta facilmente a você na sua clínica. É algo que temos que buscar ativamente, dentro de nós mesmos e na clínica, de uma forma instigante, às vezes instigando. Então não sei, quando ouço você falar de antipsicanalítico, fico preocupado. Surge a idéia de estar contra a instituição, estamos contra o edifício.

Ana Clara: Essa minha colocação foi no sentido de pensar que há resistências à aproximação da dimensão não-sensorial, da experiência emocional mais profunda, que são inerentes ao funcionamento psíquico, individual, no psicanalista, no paciente, na relação do psicanalista com sua pesquisa, nos grupos de psicanalistas. Temos sempre que nos haver com movimentos na direção desse contato com a vida emocional mais profunda, mas sempre há movimentos também contrários a isso dentro de nós.

Belinda: E também dentro do paciente. Às vezes, tudo concorre para não fazer pesquisa.

Ludmila: E, completando o pensamento, há um outro aspecto além do relatório burocrático. Há os vários níveis em que os próprios candidatos estão. Talvez o relatório apanhe o candidato num momento da sua evolução profissional, de conhecimento, ou, inclusive, até de evolução analítica — com todas as dificuldades que nós também atravessamos nos nossos processos —, com muita dificuldade de elaborar um trabalho escrito. Então, às vezes, o máximo que a pessoa consegue fazer é algo bastante simples e reiterador e, às vezes, é até necessário que o seja, porque é uma oportunidade que o candidato tem de, pela primeira vez, expor por escrito aquilo que ele está aprendendo. Porque enquanto não escrever não saberá o quanto ele sabe. Não há como saber de outra forma. A oralidade não é precisa, ela se contamina também de informações, agora a escrita é onde a pessoa vai se colocar. Então, se ela está num momento X, numa escala, não vai poder fazer grandes desenvolvimentos, grandes discussões. Nem falo em construir conceitos novos, que é algo raro, nem temos que ter essas pretensões de que só seremos pesquisadores se construímos conceitos novos. Se pudermos usar os conceitos para iluminar um certo campo, para esclarecer uma certa situação, já é muito numa pesquisa.

Estamos esquecendo a presença do supervisor, porque a pesquisa em cada um de nós não é algo que se gera espontaneamente. Nem todo mundo tem vontade de ser pesquisador no sentido pleno da palavra. É preciso respeitar essas individualidades. Por outro lado também, historicamente, o supervisor tinha e tem ainda a função de ajudar o candidato a aprender a ser clínico. Mas a aprendizagem da clínica deve envolver essa disciplina de pesquisa e acho que o supervisor deve ter uma função aqui importante, inclusive na escrita. Ele deve trabalhar num modelo mais próximo — pelo menos em certos momentos da supervisão, talvez nessa parte mais final de elaboração de questões — de um orientador de teses numa universidade.

Spartaco: Estava pensando na questão da formação de conceitos novos comparando com a questão da ruptura de campo. Quer dizer, quando o campo se rompe, temos a oportunidade de tentar alguma coisa nessa hora. Oferecem-se situações que nos dão a ocasião de pensar mais adiante, na pesquisa, etc. Nunca devemos buscar a ruptura de campo, que ela não vai se apresentar.

Ludmila: Se buscar, aí ela não aparece.

Spartaco: A pesquisa em psicanálise tem essa característica. Eu concordo com você, Ludmila, o supervisor tem que ter essa escuta muito fina para captar quando é que eventualmente está acontecendo uma ruptura ou não naquilo que você traz para supervisão, ou no próprio ato da supervisão.

Jornal: Ainda nesse mesmo trabalho, Herrmann destaca duas dimensões fundamentais na pesquisa: a dimensão heurística e a dimensão de verificação. Reconhece ainda que essas duas dimensões têm importância desigual. Apesar da verificação ser um momento complementar, valioso, da pesquisa, ela não é o elemento central. Esse é a descoberta, a dimensão heurística. Como o analista poderá dar conta dessa questão?

Ludmila: Nessa afirmação, Fabio Herrmann vai praticamente contra a direção normal das pesquisas, porque o que se espera das pesquisas é que elas sejam sempre verificadas. Elas só têm valor se houver comprovação, verificação e repetição, e é da natureza de nosso trabalho que ele não é verificável, é só comparável. Os vários relatos podem eventualmente apresentar pontos em comum e são esses pontos que acabam alargando o conhecimento. Então, aqui a ênfase dele vai na direção do que nós estamos dizendo, só que ele dá o nome certo. Que o nosso trabalho é permanentemente um trabalho de descoberta, de ter a escuta afinada para essas mudanças, revelações, encontros que acontecem na clínica, e não somente na clínica do consultório mas também da clínica num sentido amplo, seja na leitura de textos, seja na observação de um certo ambiente social ou histórico. Essa escuta é que permite então que apareça aquilo que vai nos provocar e exigir de nós um posicionamento, alguma resposta, algo que produz uma inquietação que nos obriga a tentar entender. Essa é a dimensão da descoberta, ela só é descoberta quando provoca essa inquietação.

Lembro da contribuição de Nicole Berry, analista francesa, num artigo publicado na revista Pulsional (1996). Ao descrever um caso, ela se perguntava por que escrevia sobre aquele caso em particular. Dizia, em resumo, mais ou menos o seguinte: "Escrevo por causa da paciente, porque preciso escrever para me afastar dela, para poder enxergá-la, para poder entender o que ela provoca em mim e então poder entender o que se passa com ela. Escrevo também porque preciso recolocar-me em comunicação com meus pares, leitores e amigos, e partilhar o que eu vivo, o que eu sofro, o que eu faço e como meus pacientes me solicitam. A escrita é o terceiro que me reaproxima da paciente". Isso é essencialmente o trabalho de descoberta, onde o verificar fica realmente atrelado à descoberta no sentido mais intenso da atividade.

Marina: Quando eu li a pergunta, logo associei com o termo heureca.

Spartaco: Fabio fala em heureca

Marina: Pois é, o Fabio fala. Heureca é exatamente o que falamos quando, durante um processo psicanalítico, achamos algo que procede, no nosso pensamento. Então falamos, num comentário interno, heureca, achei, encontrei.

Fui buscar no dicionário o que queria dizer "heurístico" e na definição do dicionário diz: "Conjunto de regras e métodos que conduzem à descoberta, à invenção e à resolução de problemas". Existe um outro significado no dicionário que diz que "a heurística é uma ciência auxiliar da história que estuda a pesquisa das fontes". Então, é muito profunda a dimensão heurística, que ultrapassa muito a dimensão da verificabilidade, embora as duas dimensões devam estar presentes em algum nível. A verificabilidade é importante para que a descoberta que você está fazendo seja comunicável, dê mais frutos e avance. Esse movimento de descobertas, que vivemos no consultório de maneira tão natural, vai ficando cada vez mais sólido, firme, em nós, na medida em que realmente as fontes das descobertas vão sendo cada vez mais investigadas.

Sobre a questão da demonstração, que está junto tanto da heurística quanto da verificabilidade, lembrei-me de uma experiência. Na sexta-feira passada, numa reunião na banca de uma colega da USP, aprendi com nosso colega Alceu que demonstrar significa "tirar os monstros". Acho que é exatamente esse o processo da descoberta, quando vamos demonstrando na nossa qualidade de psicanalista, afastando os monstros, como as coisas vão clareando e como vamos fazendo mais heurecas ao longo do processo. Realmente, então a verificabilidade vem por si, porque o nosso empirismo está na evidência dos efeitos de uma interpretação que evidencia nosso processo, os nossos progressos e inclusive as nossas falhas. Elas aparecem, sim, no follow-up, no seguimento dos nossos pacientes. Essa colega, cuja banca referi há pouco, pesquisou sobre os efeitos do pós-término de uma análise. O trabalho é muito interessante porque nos permite ver se as sementes plantadas no processo foram, realmente, fertilizadas; ver também que desdobramentos a nossa conversa teve.

Essas questões de verificabilidade, para nós, não ocupam um lugar de tanto destaque porque também são completamente naturais. Basta saber ver. Às vezes, contando nosso trabalho de pesquisa, encontramos certos interlocutores que não sabem abrir os olhos ou os ouvidos para ver, escutar e perceber a verificabilidade das nossas hipóteses.

As nossas pesquisas são muito interessantes. Às vezes, começamos uma pesquisa com uma hipótese que levantamos a respeito de uma pessoa, mas no decorrer da pesquisa mudamos tanto nossas hipóteses que já nem sabemos mais qual era a pesquisa inicial, pois ela tomou um outro rumo completamente diferente. O nosso objeto de investigação, como diz o André Green no artigo "What kind of research for psychoanalysis?", é vivo e é mutante, então as nossas hipóteses vão mudando junto, o que torna a pesquisa em psicanálise mais fascinante ainda. Continua Green: "Para fazer teoria analítica é necessário rigor de pensamento e imaginação".

Belinda: Para responder a essa pergunta, imediatamente somos lançados à dimensão dos cânones científicos, porque a palavra verificação é própria da pesquisa científica nos cânones mais tradicionais. E, nesse campo, ela tem a ver com a possibilidade de reprodução de uma determinada experiência. Uma experiência que deve ser possível ser replicada para verificar se encontramos, de fato, os resultados a que o primeiro pesquisador chegou.

Porém, acompanhando o que a Ludmila e a Marina falaram, vemos que elas sugerem uma idéia de verificação que parece não ser essa. Então, é necessário, talvez, precisar um pouco mais, ou tentar chegar ao conceito de verificação que é próprio do método psicanalítico e saber como podemos formulá-lo. Acho que é uma questão: aqui para nós, o que seria verificação?

Spartaco: Há também uma questão de interdisciplinaridade. Lembrei de um artigo de Widlöcher publicado na Revista de Psicanálise Contemporânea há cinco anos, em que ele se refere ao seguinte ponto: se formos ver a psicanálise como objeto de pesquisa — o que também é uma vertente de investigação —, vamos ter que pensar também na interdisciplinaridade, ou seja, afinal de contas o que é verificação? ("Quem vigia os vigilantes"). Ou melhor, de que verificação estamos falando? É interessante esse artigo, porque nele o autor propõe uma esquematização da prática de pesquisa em psicanálise: como instrumento, como objeto, como modelo de pesquisa, ou simplesmente como prática de pesquisa. É um estímulo para pensarmos como fazer a interlocução, como a aprofundarmos; é necessário, especialmente para quem está na universidade. Como podemos dialogar com as outras formas de produção de conhecimento, principalmente as naturalistas, as positivistas, as cognitivistas, que estão mais em voga.

Belinda: E, pelo que tanto a Ludmila quanto a Marina estavam sugerindo, numa primeira aproximação poderíamos dizer que a verificação é inerente ao processo. É uma questão então saber se é possível, por exemplo, tomar a descoberta feita dentro de um processo psicanalítico e aproximar ou comparar com outro processo psicanalítico, ou seja, se é possível verificar as hipóteses e descobertas levantadas no processo A com aquilo que é descoberto e pensado no processo B. Se um processo poderia ou não servir de verificação para o outro. Não tenho respostas. Ou se temos que pensar num conceito de verificação que é inerente ao próprio processo e que tem a ver com o próprio movimento da sessão. Eu lanço uma interpretação quase como uma hipótese. Aquilo que o paciente responde, se essa interpretação é ou não mutativa, de que maneira ela produz ou não mudanças e como é que isso vai caminhando, então é essa verificação que é própria do processo psicanalítico. Agora, como podemos fazer do ponto de vista da comunicação e da criação de um corpo de conhecimentos psicanalíticos, no sentido de poder fazer com que essas hipóteses e descobertas possam ser refutadas ou confirmadas por outros psicanalistas?

Marina: Esse é que é o problema, porque em função da subjetividade, da singularidade de cada par analítico, os heurecas que os dois falaram pertencem a eles. Para fazer essa comunicação para um outro, para um terceiro, é preciso pensar muito como será possível. Essa é a grande questão dos relatórios, pois vemos o candidato escrevendo, contando sobre sua relação com seu paciente, aquele acompanhamento longo, muitas vezes bastante descritivo e cuidadoso, e assim constatamos ser uma experiência tão pessoal, tão íntima e singular que se torna de difícil transmissão. É como fazer uma visita a um casal que nos convida, empolgados, a assistir o filme da sua lua-de-mel. Evidentemente a emoção é própria da dupla. Por mais que nos esforcemos para acessar sua emoções vividas... como é difícil comunicar o afeto que foi vivenciado! É uma experiência tão particular que o ouvinte terá que se esforçar muito, pois é um terceiro que entra na díade.

Belinda: Mas, por outro lado, essa coleção de informações psicológicas que está no verbete de Freud pretende ser universal. Quando Freud organiza um modelo de funcionamento mental ou de aparelho psíquico, ele assume e nós todos também assumimos que todos nós partilhamos desse funcionamento psíquico. O corpo de conhecimentos que a psicanálise foi construindo diz respeito, ou pretende dizer respeito, a todos os seres humanos em todos os tempos. Assim, como podemos lidar com a dialética daquilo que é absolutamente singular mas que pretende alcançar algo que é universal, e que portanto deveria ser verificado em várias outras situações humanas?

Marina: Então estamos falando em duas dimensões diferentes que ao mesmo tempo caminham juntas. A transmissão da experiência emocional como tentei exemplificar através do filme da lua-de-mel e a transmissão do conhecimento, das descobertas que nasceram ali, nessa intimidade psicanalítica. Realmente é uma tarefa difícil e completamente necessária, para podermos cumprir esse item do verbete de Freud.

Belinda: Cabe aqui a noção em psicanálise daquilo que Tolstói, escritor russo, dizia: "É só falando da minha aldeia que eu posso falar do mundo". É adentrando naquilo que há de mais singular e único que eu alcanço essa dimensão universal. A psicanálise também tem esse movimento.

Ana Clara: Essa dificuldade com a verificação é análoga a uma dificuldade que podemos estar vivendo no dia-a-dia com os pacientes em relação à interpretação. Como se vai formular uma interpretação? Então acho que de fato a descoberta, a "heureca com H" (heurística), é o principal, mas como isso vai ser transmitido, ser comunicado? Acredito que, se pudermos nos aproximar um pouco de alguma verdade de uma experiência emocional, podemos encontrar uma maneira sensível de transmitir, e como aquilo diz respeito a uma experiência humana com um interlocutor, seja com paciente ou colegas, ou uma comunicação interdisciplinar, aquilo vai poder ser compartilhado. Resistências existem, e precisamos analisar os porquês. Às vezes, a comunicação pode ser arrogante. Isso no consultório mesmo pode ocorrer e não vai surtir efeito construtivo. É uma questão de poder identificar os níveis de contato com a experiência, e como isso pode ser captado num grupo que está querendo compartilhar o interesse por aquele tema.

Jornal: Muitos de nossos debatedores aqui presentes estão na universidade — como professores ou mesmo fazendo seus mestrados e doutoramentos — e em formação em nosso Instituto. Em cada um desses lugares tiveram ou terão que produzir conhecimento em psicanálise. Seja a dissertação de mestrado, seja a tese de doutoramento na universidade, e, aqui em nosso Instituto, fazer o famoso relatório. Que diferenças fundamentais vocês observaram nessas atividades? Em que medida uma auxiliou a outra, ou não? Que questões foram privilegiadas nos dois momentos? É possível fazer investigação psicanalítica na universidade?

Ana Clara: Para minha formação foi muito útil a experiência acadêmica em mestrado, doutorado, pelo aprendizado clínico, metodológico, por ter podido estudar psicanálise numa fase em que eu ainda não conseguia conciliar a formação aqui no Instituto. Foi uma fase em que me dediquei muito ao trabalho na Divisão de Psicologia do Hospital das Clínicas. Embora eu tenha desde recém-formada me dedicado ao consultório, passei muitos anos trabalhando no HC, com o objetivo de ampliar essa experiência clínica e também pelo interesse de participar de projetos de assistência e pesquisa junto a uma população mais carente. Então é uma bagagem que considero muito preciosa, porque permitiu algum amadurecimento que dificilmente teria tido só com o consultório. Essa experiência em pesquisa nos cursos de pós-graduação foi muito motivada pelo trabalho no hospital, no qual necessariamente você tem que fazer essa interlocução interdisciplinar. Então ter como interlocutores médicos, fisioterapeutas, enfermeiros, assistentes sociais foi um estímulo muito grande, você exercitar essa troca de conhecimentos psicanalíticos num campo onde impera o positivismo da ciência médica foi um aprendizado muito grande. E mais recentemente, tendo ingressado na formação aqui no Instituto, essa bagagem facilita a tarefa de elaborar relatório, por exemplo, ou a apropriação do método psicanalítico enquanto pesquisa. O "tripé" da formação permite um aprofundamento psicanalítico que na universidade é muito difícil.

Belinda: Acho que é importante nessa questão discriminar duas coisas. Uma é a pesquisa propriamente psicanalítica tomando como objeto os processos mentais, fazendo hipóteses, descobertas nessa área que estamos tanto falando aqui. A outra, que falamos menos por enquanto, é a contribuição da psicanálise no diálogo com outras áreas do conhecimento. Nesse sentido, a partir da minha própria experiência na universidade, e que tem sido mais dentro do campo das ciências humanas, sociais, da antropologia, mais do que com o diálogo com ciências naturais ou biológicas, vejo que a psicanálise tem uma enorme contribuição para dar. Acho que falta às ciências sociais uma teoria do sujeito, e isso ouvi dito por professores das ciências sociais. Acho que a psicanálise tem essa teoria. Estamos talvez perdendo um grande campo de interlocução, de trabalho, de pesquisa, se nós nos fechamos dentro, eventualmente, de uma comunidade psicanalítica. Podemos chamar, é uma questão um pouco polêmica, de aplicações da psicanálise. Tem todo um campo das ciências humanas, da medicina, das diversas terapias, em que a psicanálise tem um instrumento poderoso não só de investigação como de conhecimento. E aí vejo mais sentido nessa entrada da psicanálise na universidade, porque eu também tendo a concordar com Ana Clara, que talvez o lugar privilegiado para a pesquisa psicanalítica propriamente dita é a clínica. Agora, que daí derivam coisas que possam ser comunicadas não só entre os psicanalistas mas a outros estudiosos, a outras áreas do saber, acho que é fundamental, embora muitas vezes não façamos esse diálogo. A própria psicanálise tem se ressentido da falta desse diálogo, na linha do que a Marina dizia de podermos comunicar a riqueza, a complexidade dos nossos conhecimentos sobre o sujeito. Por outro lado, penso também que outros campos do conhecimento têm coisas para nos auxiliar e acho que muitas vezes nós também criamos barreiras no sentido dessa interlocução e na possibilidade de que nosso conhecimento seja também ampliado. Muitas vezes, por exemplo, lidamos com sujeitos quase aistóricos, como se não tivessem um lugar social, determinações culturais. Temos uma formação aqui no Instituto em que falta toda essa contribuição no sentido de compreender melhor, de pensar essas questões da cultura, da sociedade, e levar em consideração aspectos que é importante discriminar, mesmo do ponto de vista clínico. Será que é importante ou não termos alguma noção de neurologia? É uma questão. Muitas vezes ficamos fechados.

Ludmila: Acho que a maioria de vocês que são psicólogos devem ter tido a mesma herança que eu, quando no inicio da minha profissão e especialmente como docente na universidade, um confronto com a psicologia experimental, com o behaviorismo. E esse confronto obrigou a um estudo maior da psicanálise, porque era um sofrer dia a dia a destituição da própria prática, sendo atacada, questionada, uma destrutividade que fez parte de certo período de nossa história da psicologia. Isso me obrigou a estudar psicanálise para poder defender.

Depois fazendo esses estudos, seja de mestrado ou de doutorado, e ao entrar aqui, a diferença fundamental e de que me ressinto, e que me faz falta mesmo, é o rigor conceitual que está presente nos estudos feitos na academia, na universidade. O enfoque da formação acadêmica de pesquisador é no rigor conceitual e numa busca deste conhecimento que advém das áreas afins, busca-se conhecimento da filosofia, basicamente. Eu me pergunto, quando me coloco no tempo de Freud, um conceito fundamental que ele traz à nossa prática é o da representação. Esse conceito não veio da medicina, não foi da área médica que ele trouxe esse conceito e que se tornou um eixo da psicanálise. Então ele estava imerso na cultura de sua época, na produção de conhecimento mais amplo. Nós, não. Aqui só estudamos os conceitos tal e qual estão postos já, trabalhados pelos autores, às vezes até esterilizados, não permitindo inclusive que se façam ramificações, porque são apresentados de tal maneira que eles próprios se fecham, não oferecem nenhuma possibilidade de aplicação em qualquer outro contexto. Isto empobrece muito a nossa formação e incide diretamente na nossa capacidade de produzir porque nós só poderemos produzir se estivermos apoiados no rigor conceitual e na raiz da formação dos conceitos. Pensando novamente em Freud, em que fontes ele bebeu para construir o conceito de representação? Em que fontes vamos nos alimentar para fundamentar o material que encontramos na clínica e que, às vezes, inclusive nos assusta? Temos falado dessa pesquisa diária, ela nos assusta. Muitas vezes, o clínico apaga aquilo que ele vê surgir porque ele próprio não sabe como dialogar com aquele fenômeno ou prototeoria, como fala Fabio Herrmann. Ele não sabe o que fazer com aquilo, então ou ele minimiza a importância ou faz que não vê, ou adapta a alguma referência teórica que ele já tem e com isso abafa a possibilidade de criar. Disto eu me ressinto porque é de uma pobreza enorme. Eles não replicam, repetem. Nós só conseguimos ter bons seminários teóricos quando os coordenadores trazem, eles próprios, essa formação, então eles nos oferecem esses fundamentos, mas dentro dos limites de um seminário. Poderíamos estudar módulos de Kant, Heidegger, Lévi-Strauss, módulos que pudessem nos dar pelo menos alguma notícia. Às vezes, converso com uma pessoa ou outra que está há mais tempo no Instituto e noto que não tem noção de onde vêm esses conceitos. O corpo conceitual bioniano, ele não inventou, ele estudou, ele construiu, mas, de onde, nós não sabemos.

Marina: Eu estou pensando o seguinte, do que você está colocando, talvez justifique muito a escolha de um caminho acadêmico, e a escolha de um caminho de formação clínica de analista. Já tivemos oportunidade aqui na Sociedade de pensar se poderia haver alguma composição para que houvesse aqui também um mestrado ou um doutorado. Foi ficando claro, pelo menos a meu ver, que realmente são duas coisas muito diferentes. Aqui na Sociedade penso que o sentido é outro de nossos encontros, de nossas conversas, de nossas escritas, o sentido da formação. O que você está colocando evidencia que você estava tão intencionada em ir profundamente nas fontes de um determinado tema, que você se encaminhou para a universidade também. No referente a conciliar e a integrar uma formação com a outra, acredito que existe um casamento harmonioso entre fazer uma formação como analista, fazendo sua pesquisa no setting clínico, e um aprofundamento nos conceitos e no rigor metodológico que é próprio da academia. Não imagino como a instituição conseguiria cumprir todas essas metas ao mesmo tempo, então acho que realmente temos que ir para a universidade para uma modalidade acadêmica, e quem tiver o privilégio de participar das duas instituições não deve se abster de viver essa preciosa experiência de formação. Vivo estimulando colegas para irem também para a universidade, até porque é um casamento harmonioso sem que uma coisa se misture com a outra. Membro da Sociedade e mestre na universidade podem cohabitar a mesma mente, sem que precisem estar em fusão.

Leda: Acho que esta é uma questão importante também para os coordenadores dos seminários aqui na nossa instituição. Ao pensar que o conhecimento está na universidade, eles acabam destituindo o conhecimento produzido em nossa instituição e desejando trazer para nosso meio a formação acadêmica.

Marina: Eu tive o privilégio de ter tido pessoas que me acompanharam nos dois espaços que com sua parceria amorosa e respeitosa de alguma maneira me proporcionaram os vôos para a criação. Porque essa liberdade que você precisa sentir para poder criar deve estar presente numa produção e até para depois você poder comunicá-la. Lembrei-me da Frida Kahlo, que concluía: "Para que preciso de meus pés se tenho asas para voar?". Então, podemos prescindir de idéias que nos aprisionem num determinado caminho, se tivermos a capacidade pensante em dia, para poder ter a liberdade de vôo e seguir o caminho, integrando as ofertas.

Belinda: Pelo que Marina está colocando, parece ser mais da iniciativa individual de várias pessoas aqui dentro fazerem esse diálogo com a universidade, ter essa oportunidade de uma participação na universidade que possa levar contribuições da psicanálise ou estabelecer esse diálogo. Outra questão é a da instituição psicanalítica como um todo e se esse diálogo é ou não uma política institucional, como me parece também que há certos determinantes históricos para que haja ou não a abertura para esse diálogo. Estou pensando no sentido de que, de fato, num certo momento, algumas décadas atrás, a psicanálise sentia que ia muito bem, obrigada. Tinha um prestígio tal a Sociedade de Psicanálise que prescindia desse diálogo. Acredito que foi a era da torre de marfim, na qual os psicanalistas ficaram fechados em si mesmos, numa coisa totalmente esterilizada, como se o contato com os de fora fosse contaminar a pureza psicanalítica. Acho que nossos professores são responsáveis por uma certa crise que a psicanálise vive atualmente justamente porque não fizeram esse diálogo, porque esse diálogo serviria para mostrar a que viemos, o que temos a oferecer, para que servimos. Acho que agora estamos em outro momento, num momento maior de crise da própria psicanálise, de crise econômica, e que tem de alguma maneira forçado mais uma abertura maior para o mundo, um pouco mais. Embora ache que há grandes setores aqui dentro que ainda querem se preservar nesse claustro. Mas Kernberg está apontando todos os riscos do não-diálogo, o risco de ser superado por outras concepções inclusive no terreno mental, toda a questão da investigação psiquiátrica, da medicalização. Se não formos a campo dizer o que temos a oferecer, vamos ser aniquilados. Esta questão aqui na Sociedade está ainda no campo das iniciativas pessoais, e não sei o quanto há uma política institucional no sentido de promover esses diálogos.

Marina: E o caminho que a universidade abre em termos práticos é muito rico, porque, sendo mestre e doutor, você se torna credenciado para participar ativamente de bancas examinadoras, de atividades de pesquisa, de ensino, situações em que você dispõe de uma belíssima oportunidade de divulgar o que a psicanálise faz, de ensaiar a pensar o que é a psicanálise e de inserir o olhar psicanalítico em campos distantes e de difícil acesso para a Sociedade e que depois trazemos e retomamos nos enriquecendo aqui em nossas jornadas e congressos. Então é uma abertura de frente mesmo, para além de nossas fronteiras.

Iliana: Agora, seria possível fazer pesquisa psicanalítica na universidade? O que estou falando aqui é de pesquisa com o método psicanalítico.

Spartaco: Pegando sua idéia, estava pensando no Rezende, nessa questão da psicanálise como método pós-paradigmático. Não vou discutir a validade do termo, mas acho uma proposta interessante quando ele lança a idéia de que a ciência precisa de uma renovação. Não só de estar presente no enfoque psicanalítico senão de escrever clínica extensa, sobre isso que observamos e vivemos dentro dos outros ambientes, ou universitários ou de ciência extensa ou até de atendimento na comunidade. E não só em relação à produção científica estritamente, mas também a questão do ensino, onde é mais intensa a necessidade do olhar psicanalítico incidir. Acho tremendamente inteligente a Teoria dos Campos, como uma forma de se chegar a isso, de permitir o acesso, de ter uma escuta muito mais próxima de produções que estão brotando dentro da universidade. Está muito próximo, do ponto de vista conceitual, do que as pessoas da psicopatologia fundamental fazem, embora eles sejam muito mais acadêmicos no sentido "doutoral" do termo. Acho que a Teoria dos Campos está mais com o pé no chão.

Alice: Lembrando a política institucional, o próprio Fabio é o responsável pela Comissão de Pesquisa e Universidade da nossa Sociedade. Assim, já podemos observar uma movimentação aqui dentro de nossa instituição num sentido que vai ao encontro do que você estava falando.

Ludmila: Queria continuar com essa questão, se é possível fazer pesquisa na universidade.

Acho que há também o momento da universidade, o tipo de universidade, tipo de orientadores que temos oportunidade de encontrar pelo caminho, porque existem orientadores que... Tenho uma colega pedagoga que trabalha com psicodrama e jogos dramáticos e que faz um trabalho muito bonito com grupos e famílias carentes, usando jogos. Ela resolveu apresentar esse trabalho para a PUC — no setor de famílias, se não me engano — para transformar numa tese de doutoramento. Ela teve muita dificuldade para ver aceita sua proposta de método de pesquisa, até para apresentar a tese, pois gostaria de apresentar cenas dos jogos em DVD na defesa. Tudo aquilo que era o mais criativo, que era a alma da pesquisa dela, ela teve que expurgar. Foi deixado pouco do que queria, só assim ela conseguiu fazer alguma coisa. Há esse tipo de episódios porque o modelo no qual o orientador se apóia é mais positivista, se não é experimental propriamente, segue alguns cânones que impedem que se façam trabalhos dentro da natureza do que é a psicanálise, que se ouça o objeto do ponto de vista psicanalítico. Eu tive essa oportunidade, encontrei um orientador fantástico, que na própria defesa dizia: "Eu não sei o que, exatamente, fui para a Ludmila, será que fui orientador?". Porque realmente permitiu e acompanhou e o meu trabalho foi psicanalítico, embora não tenha discutido conceitos psicanalíticos. O trabalho foi pouquíssimo conceitual, mas foi o método psicanalítico aplicado.

Spartaco: …com ambiente facilitador, com a continência. O orientador não sabia o que era, mas sabia que era.

Ludmila: Exatamente. Ele sabia, sabia o que estava fazendo lá, era quase um analista.

Leda: A Comissão de Pesquisa e Universidade promoveu, no ano passado, vários encontros para discutir a pesquisa psicanalítica. Entre muitas questões interessantes surgiu a seguinte: é possível um trabalho psicanalítico na universidade? E uma resposta dada por um dos participantes foi muito esclarecedora. Ele nos falou que muitos orientandos vão para o mestrado ou para o doutoramento com o desejo de fazer um trabalho psicanalítico na universidade. Porém muitos deles não têm a condição prévia de analista, e isso é fundamental, pois só se pode fazer um trabalho analítico na universidade se já existe na condição daquele pesquisador a formação de analista. E, naturalmente, também um orientador que aceite e que esteja na mesma condição.

Belinda: Retomando a divisão que o Fabio faz, podemos fazer investigação teórica, conceitual, na universidade, produzindo trabalhos fundamentais que depois serão contribuições importantíssimas para a psicanálise, na medida em que trabalham a teoria psicanalítica, trabalhos estes feitos por não-psicanalistas.

Leda: Embora possam ser importantíssimos estes trabalhos, eles não são propriamente psicanalíticos. São trabalhos sobre a história, sobre a psicanálise e seus conceitos, mas não são trabalhos com o método psicanalítico.

Marina: Considerando minha experiência de pesquisa na universidade, acredito, sim, que é possível pesquisa psicanalítica na universidade. Comecei o doutorado por uma questão clínica, do consultório e não pela universidade. Isto porque recebi uma paciente que me deixou completamente impactada pela intensidade do seu sofrimento e pelos sucessivos enigmas que se apresentavam. Tratava-se de uma menina anoréxica, cujo atendimento foi-me colocando uma série de questões, inquietações e impasses quanto aos limites e alcances do trabalho psicanalítico que eu acabara de iniciar com ela. Assim, com tantas questões para serem investigadas, pensei que necessitava aprofundar-me numa pesquisa se quisesse ajudar essa menina. Pensei ser necessário me equipar com conhecimento conceitual, como falou Ludmila, além do que eu podia aprender com o contato com esta paciente, se quisesse buscá-la do estado pré-morte em que se encontrava. Dessa maneira, minhas perguntas nasceram da premência clínica e minha pesquisa, minha tese, foi gerada seguindo exatamente o mesmo ritmo. À medida que colhia as informações emocionais nascidas do encontro analítico dirigia-me para a teoria, tentando uma constante articulação. Laplanche fala muito disso, quando refere que a pesquisa na universidade é importante, principalmente porque o primeiro passo que o aluno tem que fazer é uma leitura histórica, revendo a bibliografia sobre o assunto. É interessante essa vontade de se inserir, de querer saber o que já foi escrito a respeito, de atualizar nosso campo. Foi muito prazeroso poder compor as questões clínicas naturais que se apresentavam e a coleta das informações de leituras regradas, disciplinadas, e contidas dentro das reuniões da universidade. Foi um caminho em que eu ía e voltava com as hipóteses porque você vai sondando como Freud falava, os caminhos que vêm à frente, mas você tem que estar pronta a modificar tudo, a rever tudo aquilo que você escreveu, isso eu acho completamente psicanalítico. É isso que acho que Leda está falando. É viver na carne o processo psicanalítico, na própria pesquisa, porque somos psicanalistas.

Belinda: Um conceito que é muito útil para pesquisa psicanalítica na universidade é essa noção da clínica extensa. Trabalhos de clínica extensa, talvez não com esse nome, já eram feitos na universidade por Pichon-Rivière e em vários lugares do mundo. A idéia de poder aplicar o método psicanalítico em situações de pesquisa ou em relação a objetos que não são propriamente o da clínica psicanalítica stricto sensu, mas de trabalhar com grupos ou com pacientes de um determinado tipo. No meu caso, trabalhei com desempregados, propus uma clínica social com grupos de desempregados, e pretendi que fosse um trabalho clínico.

Leda: Quero fazer uma ressalva. Uma coisa é trabalhar objetos diferentes, pode ser um texto, uma realidade social, a partir do método psicanalítico. Outra coisa é trabalhar a partir de outro enfoque. Alguém falou aqui no trabalho de Garcia-Roza. Eu acho muito bom o que ele escreveu, mas não é a escrita de um psicanalista, é a escrita de um filósofo, naturalmente muito útil e que traz uma contribuição importante sobre o pensamento psicanalítico. Porém é possível trabalhar psicanaliticamente em pesquisa universitária, por exemplo, o trabalho de Renato Mezan, Freud pensador da cultura. Neste texto, você vê um analista trabalhando.

Marina: Mezan tem um artigo muito interessante referente ao nosso tema, que se chama "O que significa pesquisa em psicanálise", publicada no livro Investigações em psicanálise, organizado por Maria Emília Lino da Silva. Trata-se de uma coletânea de artigos de analistas doutores. É possível, sim, fazer pesquisa em psicanálise. Pensei numa frase de Bleger que fala que quem não usa a fantasia e a imaginação para levantar hipóteses e pensar é apenas um verificador de dados e não um investigador. É exatamente essa a questão que estamos debatendo, ou seja, a possibilidade de ser um psicanalista atuante durante a sua própria pesquisa e nas suas intervenções dentro de qualquer lugar aonde você vá, quer dizer, você tem a idéia psicanalítica introjetada, e pode mostrar como se pode observar, inventar, imaginar, sonhar, como eu estava falando da Frida Kahlo, sem deixar de ter rigor conceitual.

Iliana: Muitos orientadores exigem que você já saiba qual hipótese você quer verificar e quais os caminhos da pesquisa, não aceitando uma proposta de trabalho tão aberta.

Marina: Como em qualquer área de nossa formação, temos é que casar bem, fazer uma boa parceria que disponibilize a liberdade de pensamento.

Leda: O que vocês estão falando me faz lembrar minha experiência de doutoramento no Instituto de Psicologia da USP, no programa de Psicologia Escolar. Eu fazia na ocasião minha análise pessoal mas ainda não tinha feito formação analítica. Porém a experiência de análise modificou completamente minha clínica com crianças com dificuldades de aprendizagem. Tive a sorte de encontrar uma criança que inventou uma escrita com caracteres semelhantes aos japoneses, o que suscitou em mim, além de muita curiosidade, muita angústia. E, sem que eu premeditasse, fui afiando minha escuta psicanalítica, talvez mobilizada por meu processo de análise pessoal. Resolvi, então, analisar o caso a partir da psicanálise e dei o seguinte título ao meu trabalho: "De ler o desejo ao desejo de ler". Porém, durante a qualificação, um examinador me alertou: "Leda, ler desejo é coisa de psicanalista. Arranje outro nome para seu trabalho". Mas como nome é coisa séria, e por isso não se muda assim, resolvi me tornar analista.

Ludmila: Vocês lembraram muito bem, só é possível usar o método quem o tenha incorporado. Assim, penso que o candidato só consegue escrever e transformar o seu relatório num trabalho rico, se ele captar essa dimensão de que escrever é como um processo analítico. Escreve-se, joga-se fora, se repara, se constrói, é um processo também, e aí novamente entram o supervisor e os coordenadores dos seminários para trazer essa dimensão para os candidatos, para nos mostrar que o que nós fazemos nos seminários é pesquisa, que também não é uma coisa de fora e que estamos aprendendo a pensar.

Marina: Essa era a sugestão, de que seja incluído também no cronograma da formação um espaço para pensar essas coisas e dar um novo sentido aos registros.

Ludmila: Há, atualmente, uma proposta — da Associação de Candidatos — de discussão de casos entre pares, entre candidatos. Já é um início.

Jornal: No trabalho de Otto Kernberg "Crítica comprometida à educação psicanalítica", também publicado em nosso último número, há um subtítulo, "Ignorância e isolamento científico", no qual o autor relaciona alguns problemas encontrados, de maneira geral, nos Institutos de formação da IPA. São eles: 1 — Um bom número de Institutos ignora implicitamente contribuições psicanalíticas de outras abordagens ou escolas. 2 — Muitos Institutos relutam muito em introduzir informações relevantes das ciências afins a nosso campo em seus grupos de discussão. 3 — Em muitos Institutos psicanalíticos há uma desconfiança da universidade e da psiquiatria e da psicologia clínicas; psiquiatras e psicólogos que passam um tempo importante em meios acadêmicos são suspeitos de não serem verdadeiros psicanalistas. 4 — Negligência sistemática quanto à formação em pesquisa e ao desenvolvimento de uma atitude de pesquisa, que reflete uma perigosa falta de preocupação pela reputação científica da psicanálise no mundo que nos cerca. Em sua maneira de ver, como nosso Instituto se posiciona a respeito dessas questões? Como elas afetam seus "candidatos" e o que os candidatos podem fazer para responder a essas questões?

Marina: Pois o subtítulo do artigo já respondeu: "ignorância e isolamento científico" indicam o que essas pessoas não conhecem, quer dizer, se eles suspeitam, colocam sob ameaça os psicólogos e psicanalistas do seu meio universitário... lamentamos isso, eles têm de se informar melhor e se desvencilhar de idéias aprisionantes ao desenvolvimento. É uma pena que se conteste isso nos dias de hoje. Freud já reconhecia lá em 1919 que a universidade é um grande meio de divulgação da psicanálise.

As bancas examinadoras das quais tenho participado na universidade, inclusive a minha própria no doutorado, eram compostas na sua íntegra por membros da nossa Sociedade de São Paulo, o que fala em nome da integração e respeito à universidade em nosso meio. Nosso Instituto não se isola, ao contrário, faz um diálogo interdisciplinar constante, atento e vivo.

Belinda: Ocorre-me em relação a isto contar que em agosto de 2001 tive a oportunidade de participar do Research Training Program — programa de formação em pesquisa — patrocinado pela IPA junto com a Universidade de Londres. É um espaço que, durante praticamente duas semanas, reúne vários professores de grandes universidades do mundo inteiro que são também psicanalistas ligados à IPA e várias pessoas que são candidatos ou não de Institutos, mas que são pesquisadores e querem de alguma maneira utilizar a psicanálise como instrumento de pesquisa ou como objeto de investigação e vão fazer essa formação em pesquisa. Esse curso é um espaço para debates das diferentes pesquisas tanto dos professores quanto dos alunos que vão lá apresentar seus projetos, e de alguma elaboração ou reelaboração desses projetos, é uma atividade muito intensa e muito rica. Lá eu tive a oportunidade de conhecer muito do que se faz em pesquisa em psicanálise ligada a universidades em vários lugares do mundo. E tem de fato linhas muito diversas de pesquisa, por exemplo o diálogo com as neurociências é uma linha forte de pesquisa, a investigação do próprio processo psicanalítico com instrumentos que são questionáveis também, como por exemplo toda a linha de trabalho de Kachele, que trabalha com gravação das sessões. Mas há uma linha de pesquisa que é extremamente difícil, mas fundamental para a própria sobrevivência da psicanálise e tem investimentos importantes: é a questão de como é que você avalia a eficácia terapêutica da psicanálise; é uma questão que diz respeito diretamente a questões inclusive econômicas. Em vários paises de Europa o tratamento psicoterapêutico é subsidiado, seja por organismos públicos ou privados. Como você prova a estes organismos que atender quatro vezes por semana é melhor do que uma? Porque custa quatro vezes mais. Acho que é uma questão legítima. Por que temos que achar que as pessoas, porque acreditam nos nossos belos olhos, têm que vir quatro vezes por semana ao consultório e que isso é melhor que vir uma vez? E vocês podem imaginar que complexidade de pesquisa tem que ser montada, com vários terapeutas envolvidos, com pacientes envolvidos, investigações pós-análise. Pesquisas assim são fundamentais para a própria sobrevivência da psicanálise, porque tem de haver elementos para poder debater. Nós aqui sabemos dizer, quando alguém pergunta, por que quatro vezes por semana? Quer dizer, há coisas que nós pensamos, temos nossa própria experiência, quem atende quatro e quem atende duas sabe por quê, mas como se diz isso?

Marina: As pessoas participantes de aulas e conferências em eventos fora do meio psicanalítico vivem isso o tempo todo. Começam uma apresentação explicando às vezes a colegas que não sabem o que é psicanálise, e no debate muitas vezes vêm perguntas básicas, parece que voltamos àquela questão do hermético. A divulgação da psicanálise é que deve ser muito incentivada e aumentada, porque as pessoas não têm obrigação de saber o porquê das quatro vezes por semana. Se nós não contarmos, não têm como saber. Se nós não tivermos isso introjetado para poder contar...

Alexandre: Essa questão do número de sessões é relativa. Já tive a experiência de passar de quatro para duas sessões semanais e observei melhora no contato, houve aumento na disponibilidade do paciente.

Belinda: Então você pode compreender como, para os organismos financiadores desse tratamento, você tem de dizer para que pacientes é melhor duas, para que tipo de paciente é melhor quatro, contar que tipo de problemática se beneficia de um caso ou de outro.

Alexandre: Na saúde pública, se tomamos a psiquiatria e o uso de uma medicação, um neuroléptico, por exemplo, que tem que ser trocado por outro mais caro, há a necessidade de uma justificativa para os órgãos públicos e esta se torna, muitas vezes, difícil de ser fundamentada, já que contamos apenas com a experiência clínica e com nenhum dado de medida mais concreto.

Iliana: A pesquisa de Jimenez que você mencionou, Ludmila, vai nessa direção, é uma tentativa de sistematizar a eficácia terapêutica da psicanálise para diferentes tipos de pacientes, que fatores se relacionam com um bom resultado.

Ludmila: Jimenez relata um atendimento a uma pessoa muito depressiva e ele insiste que ela seja medicada. No início a pessoa não aceita, dizendo que o problema não é de medicamento, seu problema é de vida, mas depois de alguns meses ele a convence. E aí mais alguns meses a pessoa vai embora e ele diz que foi embora porque ela tinha muita dificuldade de enfrentar questões narcisistas. Eu pensei comigo: ela foi embora porque estava tomando medicamento. Ela estava aliviada, a questão principal dela já estava resolvida e não ia tentar ir mais fundo nas questões narcisistas de sua personalidade. Os psiquiatras psicanalistas têm mais facilidade para pensar em utilizar um medicamento que os psicólogos. É a coisa mais rara um paciente meu se medicar. Ou ele se medica procurando um clínico ou psiquiatra por conta própria ou, então, raramente eu digo que seria bom consultar um psiquiatra. Eu contenho ali, ou aumento o número de sessões naquele período, ou direciono mais o que se está tratando.

Spartaco: Tem acontecido na minha clínica algo muito interessante. As psicólogas encaminham os pacientes já querendo que o paciente seja medicado e percebo claramente que está havendo uma dificuldade, um nó no relacionamento transferencial. É algo complicado para interferir.

Ludmila: Talvez você esteja captando um outro momento da formação do psicólogo, o psicólogo muito identificado com a medicação e pouco confiante no seu trabalho.

Spartaco: Acho que não necessariamente pouco confiante, mas algum nó transferencial que faz com que a coisa não ande. Outra coisa que acho interessante colocar é que em um artigo da Marilsa, recentemente publicado no Jornal, aparece a questão da utilização de certos preceitos de clínica extensa na clínica. Nesse artigo, ela propõe um olhar psicanalítico sobre um procedimento farmacológico, por exemplo. Não que você está fazendo psicanálise com o sujeito que está medicando, mas pode lançar um olhar sobre aquele fenômeno que está acontecendo ali, sobre o relacionamento médico-paciente ou mesmo a questão do grupo de trabalho, das pessoas que estão lidando com aquele caso ou com aquela família, mas utilizar-se disso eu acho fundamental. Imagino que os colegas que são psiquiatras aqui, que estão conosco na formação ou estejam já formados, têm de trabalhar com isso, têm um pouco essa concepção, mas talvez não trabalhem com a fundamentação disso que a Marilsa trabalha. Essa idéia é algo bem fértil para irmos adiante na parte farmacológica e em procedimentos que não são psicanalíticos, inclusive as psicoterapias em geral que se propõem uma vez por semana.

Alexandre: Acho inclusive que medicar com conhecimento em análise — ou seja, se você tem formação psicanalítica e atua como psiquiatra — é muito mais fácil, já que se pode medicar baseado numa idéia dinâmica, não apenas em uma idéia fenomenológica. Assim, um paciente em posição esquizoparanóide persistente, mas sem produção psicótica, seria visto pela psiquiatria clássica como um neurótico e receberia medicação para quadros neuróticos, muitas vezes sem bons resultados; no entanto, dinamicamente falando, este paciente poderia ser visto como psicótico, e recebendo medicação para quadros psicóticos obteria melhores resultados. Esta é a minha experiência.

Ana Clara: Mas você concilia no mesmo paciente psicofármacos e psicanálise?

Alexandre: Quando sou procurado para atendimento psiquiátrico, não consigo me despojar do psicanalista que sou. Minha fala é psicanalítica. Quando sou procurado como psicanalista, se percebo a necessidade de utilização de psicofármacos, encaminho para um colega psiquiatra, para um atendimento conjunto.

Ludmila: Inclusive a forma de você medicar se torna mais personalizada e singular.

Alexandre: Às vezes o salto qualitativo se dá na junção de psiquiatria e psicanálise. Há pacientes que passaram por outros colegas psiquiatras e não se deram bem. Com a visão psicanalítica mais a atuação psiquiátrica, houve bons resultados.

Spartaco: Acho que a psicanálise permite este salto não no sentido de você interpretar, mas no sentido de abrir um espaço. Lembrando das consultas terapêuticas de Winnicott, ele abria o espaço para pensar e não estava interpretando a criança ou o adulto, estava abrindo um certo espaço de continência no qual o individuo vai poder trazer a linguagem dele para poder ser trabalhada com o terapeuta, inclusive a respeito da questão do sintoma. Talvez isso nos dê mais acuidade.

Belinda: Sortudos os pacientes que caem nos consultórios de vocês, porque grande parte da psiquiatria hoje está tomada por uma concepção biologicista, farmacológica. Então ainda maior é nossa luta enquanto psicanalistas para dizer por quê, o que nós temos para oferecer, ou por que é melhor fazer análise que tomar remédio. A pesquisa tem um papel importante nisso, inclusive no mundo em que hoje se vive, em que tudo o que se diz é velocidade, a psicanálise é um método que vai contra o modo como a sociedade contemporânea funciona, ela é trabalhosa, lenta, não tem resultados imediatos.

Alexandre: Às vezes o paciente está num sofrimento tal que não consegue nos escutar e, após uma intervenção médico-farmacológica, se alivia, adquirindo, assim, condições mais propícias para pensar. Portanto, não vejo a psiquiatria atrapalhando a psicanálise, de forma alguma. É uma junção ótima, porque a análise atua em um contexto, mediado pela palavra, e a psiquiatria, pelo psicofármaco. Uma não pode prescindir da outra.

Marina: Vou fazer uma ligação com o que estávamos falando antes: se houver conciliação dentro de cada profissional das duas formações, os dois modos de pensar o paciente, será exatamente aí que se abre a possibilidade da multidisciplinaridade. Aí chegamos à resposta dessa questão de como se posiciona nosso Instituto a respeito do relatório porque quanto mais pessoas encontramos aqui, que tenham essa conciliação interna com respeito a várias disciplinas ou as contribuições como a antropologia, ou seja, quanto mais integrado isso estiver dentro de nós, mais condições vamos ter de divulgar nosso trabalho de comunicar nossas pesquisas, e acho que nosso Instituto está favorecendo esse tipo de situação. Vemos pelas jornadas que temos tido aqui em nossa Sociedade, que convocam profissionais de outras áreas, integrando as várias disciplinas, essa articulação com a medicina, neurociências — lembrem-se da visita de Mark Sohlms, nossas jornadas integrando a COWAP com temas jurídicos, artes, filosofia. A busca desse equilíbrio vai se constituir num beneficio para todos nós e favorecer a associação mente-corpo. Acho que nosso Instituto pensa a psicanálise em articulação viva com o mundo em suas mais variadas dimensões.

(): Isto também depende de uma política institucional.

Marina: Sim. E está havendo, vocês não acham? Acho que estamos conseguindo isso.

Olhem essa banca da qual eu lhes falei — quanto aprendi naquele dia! —, a idéia de demonstração do Alceu, de os monstros... Como já apontei, a banca era constituída integralmente por membros da Sociedade de Psicanálise. Foi muito importante...

Fui chamada para uma banca na Universidade de São Paulo composta por colegas de outras sustentações teóricas, com o objetivo de trazer as contribuições da psicanálise. Foi muito interessante, era uma banca onde as pessoas se ocupavam de Piaget, o conceito de objeto de Piaget, e foi muito rico. Foi uma troca respeitosa e aberta de vários modos de pensar o tema da candidata. É um caminho, estamos começando, estamos num processo muito rico de intervenção fora da Sociedade.

Ludmila: O que eu gostaria de comentar a respeito é que eu não sei como era antes. Pelo que eu tenho ouvido e que vocês mencionam, acho que era um pouco mais fechada, menos ofertas de fora. Então o que eu posso dizer é que sou uma felizarda porque entrei no Instituto num momento que, a mim me parece, está sendo muito rico, há muitas ofertas. Há certos seminários aqui que me dão raiva de morar em Londrina, fico pensando como é que eu poderia fazer — é impossível. O curso de Shakespeare, por exemplo, adoro literatura, eu também tenho formação em literatura. Agora a Sandra Schaffa com um trabalho sobre Moisés e o monoteísmo. Não dá para perder. Quando imagino que deve ter um número de dez pessoas, quando muito, assistindo, dá raiva de morar longe. E fora isso as jornadas como essa que você lembrou, sobre pesquisa, foram chamadas pessoas muito interessantes.

Marina: O simpósio médico, não é? Foi sensacional, participei da comissão do último e estou participando desse também. No último, nós tivemos seiscentos médicos participantes, então foi uma experiência muito rica, ortopedistas, oftalmologistas, ginecologistas, cardiologistas, dermatologistas, etc.; organizamos mesas compostas por residentes e um psicanalista, onde se discutia um tema, por exemplo, cirurgia e psicanálise. Havia um professor, muitas vezes o titular da cadeira, depois o residente, o graduando, o preceptor, o psicanalista, todos juntos para discutir cada questão proposta.

Ludmila: Você vê, quanta gente estava lá, e como gostaram.

Jornal: Uma vez realizada, a pesquisa em psicanálise, que se dá em um contexto especial, necessita também de um terreno adequado para ser transmitida. A recepção do resultado de uma pesquisa clínica realizada por outros profissionais é possível apenas para os "iniciados", e essa passagem da mente do pesquisador para outras mentes tem resultado diverso, já que "em cada cabeça uma sentença", e cada cabeça dessas precisa estar apta para transformar o material oriundo do pesquisador. Essa condição a meu ver gera uma dificuldade especial para a idéia científica e de pesquisa em psicanálise, pois as verificações são subjetivas e basicamente acessíveis aos habilitados no campo da metapsicologia. Gostaria de ouvi-los a respeito.

Ana Clara: O que eu pensei em relação a essa questão é que na verdade essa comunicação de resultados de pesquisa não se deve dar apenas aos iniciados, ou seja, se pensarmos por aí, a psicanálise seria uma ciência fechada que não se propõe ao diálogo interdisciplinar. Então o que me ocorre é que onde uma pesquisa se desenvolve com o rigor do método psicanalítico, como comentei antes, ela permite a apreensão de fenômenos que dizem respeito às experiências humanas e que portanto podem ser compartilhados. Havendo esse compromisso com a verdade de uma experiência emocional, esse fenômeno pode ser comunicado. A coerência, a organização desse material, faz sentido quando ele é apresentado mesmo para os não-iniciados, e claro que tem de haver uma preocupação com o interlocutor e que ele se constitua enquanto tal por interesse próprio, tal como é na prática do setting clássico. Por exemplo, não adianta um psicanalista querer convencer um grupo de médicos sobre determinantes inconscientes na etiologia de uma determinada doença física se esse grupo não está interessado. Havendo esse interesse, a sua pesquisa se desenvolve porque tem uma demanda, então ao comunicar os dados, a interpretação desses dados, o psicanalista vai levar em conta as condições desse interlocutor de apreender as questões nessa comunicação. Analogamente é o que se faz com a interpretação junto ao paciente no divã, procurando uma aproximação de linguagem nessa comunicação, e resistências podem surgir, mas é possível analisar o porquê dessas resistências. Quando a experiência do pesquisador faz sentido, de fato ele experimentou alguma coisa que realmente trouxe um "heureca com H", a comunicação pode se dar porque está se tratando ali de algo compartilhado e que de fato trouxe uma vivência que faz esse sentido. Temos que ter esse compromisso de transmissão, essa consideração e interesse dos que estão querendo nos ouvir.

Ludmila: Acho que realmente temos que nos preocupar com a linguagem que usamos, porque acho até um desrespeito usar uma linguagem cifrada. Até, às vezes, vejo aqui nos nossos seminários, as pessoas começam a apresentar, principalmente, infelizmente, quando usam a teoria bioniana; então, referem-se à representação em K, representação em não sei que letra. Porque a pessoa teve uma experiência em K, ou dirigiu-se a O. Gente! Isso não quer dizer nada, isso quer dizer algo na hora de descrever, de apresentar para os iniciados. Não faz sentido. Faz sentido como um recurso de raciocínio, de formação daquele conceito, simplificação de um certo código lingüístico, mas não como comunicação. Acho que está havendo uma desqualificação da própria teoria naquele momento. Um uso leviano da teoria e pedante também. E que também demarca quem está dentro, quem está fora. De uma maneira tão simples é possível produzir os efeitos que o Kernberg aponta no artigo dele.

Eu tenho uma experiência de quando fui fazer o mestrado e, como sempre, me debatia com a questão da escrita. Lia aquelas dissertações de mestrado e também eram assim, chatas de ler. Dizia para minha orientadora que gostaria de poder escrever de uma maneira que qualquer um pudesse ler. É a pretensão que a gente tem. Logo depois da defesa, li uma crônica do jornalista Mario Prata em que ele fazia uma reflexão, dizendo que pessoas, às vezes, o procuravam falando de seus planos de pesquisa, e elas falavam com tanta paixão, com tanta riqueza de detalhes, com tantas idéias que ele se empolgava, e ao final, quando elas lhe mostravam o trabalho que fizeram, era um trabalho tão chato, tão feio, tão desagradável. Ele se perguntava onde fora parar a idéia inicial. Escrevi minha dissertação e entreguei para uma senhora datilografar. Quando fui buscar o trabalho ela me disse: "Olha, é a primeira vez que eu datilografo um trabalho que, sabe, eu fiquei pensando em mim". Então, com aquela frase, minha defesa estava feita. Eu acho que é essa preocupação que nós devemos ter com nosso interlocutor, em primeiro lugar respeitá-lo.

Belinda: Continuando um pouco nessa questão, que eu acho interessantíssima, da linguagem da psicanálise, me ocorreu que o próprio Freud tinha essa preocupação de ter continuamente uma interlocução, grande parte das vezes com pessoas que não conheciam psicanálise ou então que se opunham à psicanálise, e o texto dele caminha muito neste sentido, da interlocução com estas pessoas. Outro aspecto do texto dele é que muitas vezes está próximo do texto literário, muito menos do texto científico mais comum, tanto é assim que o único prêmio que ele ganhou na vida foi como escritor e não como cientista. Eu tenho a impressão que é interessante porque eu escuto muito na própria universidade, de professores que trabalham com a questão da epistemologia da ciência, o quanto a linguagem literária é mais propícia para descrever o nosso objeto do que propriamente a linguagem dita mais científica, segundo os moldes da organização do artigo científico. Acho que a gente comunica quando a gente se aproxima desse campo, o campo da literatura está afim ao nosso. E aí concordo inteiramente com você, o quanto essas outras linguagens muitas vezes servem mais a propósitos políticos, de não ser compreendido, de criar uma relação com o autor, isso acontece em Bion, de criar muito mais uma mistificação do que propriamente de compreensão do texto dele.

Ludmila: O que é um desrespeito com o autor.

Belinda: É, e com todos nós.

Marina: Você falou da linguagem literária. Sabe o que Winnicott fala sobre a questão da psicanálise na universidade? Ele diz que dentro da universidade deverá existir um espaço para uma verdade poética. A isto se dá o nome de pesquisa psicanalítica. É lindo, está no livro Tudo começa em casa e o artigo chama-se "O preço de desconsiderar a pesquisa psicanalítica".

Belinda: Porque é na poesia que mais facilmente se transmite à alma.

Marina: É também uma maneira de transmitir de uma maneira compreensível, de sair do jargão da linguagem hermética. Também pensei outras idéias inspirada no prefácio lindo que vocês fizeram no último número do Jornal, quero inclusive cumprimentar a equipe. Quando vocês falam da identificação e das diferenças, achei empolgante e me lembrou a questão do Alexandre. Por quê? Porque é uma grande forma de comunicação quando vocês falam sobre tornar-se analista quando vai havendo um processo de identificação na apreensão das coisas, e ao mesmo tempo uma diferenciação. Estava pensando no leitor de uma tese ou de um relatório, ou qualquer tipo de produção escrita. Para haver uma comunicação verdadeira é necessário que o leitor vá se identificando com aquilo que ele lê, que faça sentido, vinculação com o ser dele. Ou não, acontece o contrário, que é o que você falava do recalque primário, que justamente vai negar as coisas não conhecidas, e que se apresenta numa leitura onde você não está em sintonia com o que está sendo transmitido. A diferença pode gerar uma outra pesquisa que caminha para outro lado e com isso vamos expandindo, ou seja, a forma de comunicar o que fazemos, discordamos ou pensamos, tem que "garantir" um pouco desse tipo de funcionamento mental do retorno.

Ana Clara: Posso dar um exemplo? Na minha tese de doutorado estudei idosos e envelhecimento e convidei para participar da banca, que foi interdisciplinar, um professor titular da cadeira de neurologia do HC. Um dia antes da defesa ele me chamou para conversar e fiquei com algum receio: o que será que iria comentar? Conceitos psicanalíticos, interpretações, o que será que ele achou?! Mas o que ele queria comentar era o seguinte: "Olha, Ana Clara, nesse item aqui que você falou do funcionamento primitivo da mente, de Melanie Klein, várias questões aí, sabe que me fizeram pensar muito no que eu vivo aqui no hospital com a equipe de neurologistas? Comecei a entender o que se passa numa reunião administrativa do departamento, porque é essa guerra que ‘essa mulher’ aqui está falando...". Foi tão gratificante! Quando eu escrevi, durante a elaboração do texto eu estava procurando mesmo me comunicar com os médicos, neurologistas, porque o trabalho tinha a ver com o contexto do hospital.

Ludmila: Queria acrescentar um comentário: às vezes, quando falamos que a psicanálise se aproxima da literatura e da poesia, algumas pessoas podem entender isso como excesso de metáforas, e aí as metáforas se sobrepõem e também não dizem nada. Acabam ocupando o próprio lugar do código, da própria riqueza do material.

Alice: Ou talvez os processos, porque na verdade, se você pensar em condensação, deslocamento, presentes na poesia, falando de linguagem, são processos que se aproximam dos processos usados na psicanálise.

Belinda: E por outro lado a importância da metáfora, porque estamos sempre nos havendo com essa questão de como podemos falar daquilo que é inefável, daquilo que não foi dito ainda, por isso a metáfora é necessária.

Ludmila: Ela é parte da literatura e da poesia, mas não pode se transformar ela própria numa coisa rígida, ou num enfeite.

Jornal: Como sabemos, não há uma unanimidade a respeito do que se entende por pesquisa em psicanálise. Há tanto aqueles que defendem a pesquisa clínica com o método psicanalítico (Herrmann, Viñar e outros) como aqueles que defendem também a pesquisa empírica dentro e fora da situação analítica. Como vocês consideram essa questão?

Belinda: Também já falamos bastante a respeito.

Ana Clara: O próprio Fabio Herrmann, em seu livro Pesquisando com o método psicanalítico, aponta para a viabilidade de associação da pesquisa empírica com o método psicanalítico, na clínica extensa, incluindo estatística. Ele ressalta que o importante é que não se confundam, mas que esta conciliação é por vezes necessária e existe demanda para isso. Quando surge na comunidade uma demanda para um estudo "extra-setting convencional", por que não conciliar conceitos psicanalíticos com uma investigação, usando dados estatísticos que possam ser úteis para esclarecer algum fenômeno para um grupo amplo, ou um grupo social?

Marina: André Green falou sobre isso e teríamos que nos inspirar nele para estarmos alertas para o perigo das simplificações. É um perigo reduzir, simplificar coisas tão complexas de vida da psicanálise, simplificação que nós mesmos podemos fazer com nosso objeto de estudo até por conta de uma necessidade empírica, porque na pesquisa clínica, uma coisa que nós não falamos muito aqui, acho que teríamos que estar colocando, nós podemos comunicar a pesquisa clínica dentro de uma referência singular, e é uma das coisas mais fascinantes da psicanálise. Então mostramos ao público o que está ligado na pesquisa empírica, no positivismo, na verificabilidade e nas estatísticas, como é possível, sim, se fazer produção científica ancorada na singularidade de um atendimento clínico, por exemplo, e que este caso único pode comunicar descobertas tão profundas e qualificáveis quanto um estudo estatístico feito, por exemplo, com mil pessoas do grupo controle A, comparadas com as do grupo controle B. Nós mostramos isso para a comunidade científica: que a singularidade de cada caso, de cada situação analítica, é potente também para estar comunicando achados, descobertas, com rigor científico nesse sentido que estamos falando, coerente com nosso objeto de estudo, que caminha junto com a subjetividade como um todo.

Ana Clara: Acho importante salientar as contribuições do Fabio, que quando você pensa em "campo", por exemplo, você pode encontrar singularidades em "sujeitos coletivos", pois, se há uma questão comum que os leva ali para essa investigação, isso pode configurar uma singularidade daquele grupo enquanto subjetividade grupal.

Marina: Exatamente, porque a questão não é antagônica, procurar a singularidade do coletivo, do normativo, pois o psicanalista não está comprometido em classificar ou enquadrar seus pacientes em entidades nosológicas, em manuais, códigos internacionais de doenças. Não estamos comprometidos com esses objetivos.

(): O método privilegiado em pesquisa psicanalítica é o estudo de caso. Nesse sentido, e voltando novamente à questão do relatório, em que medida ele se constitui ou não como um estudo de caso?

Marina: Essa é uma pergunta que constantemente nos surpreende: "Mas quantos casos a senhora atendeu para poder chegar a este tipo de conclusão?". Resposta: "Nós não nos fechamos em conclusões, preferimos as inconclusões".... Nossas respostas são no sentido de abrir, até as próprias inquisições desta ordem.

Belinda: Nessa mesma linha, as próprias descobertas de Freud são feitas a partir de alguns estudos de casos e você vai ter uma investigação profunda de cada caso.

Ludmila: Nós não podemos esquecer que a psicanálise tem como objeto o humano, o fenômeno humano e os processos mentais onde quer que eles apareçam, e a pesquisa empírica é uma produção humana, portanto não pode ficar excluída do campo da psicanálise, como instrumento, como recurso ou como objeto, também ela, de estudo. Acho que se nós olharmos sob essa perspectiva poderemos avaliar em que medida esses instrumentos podem ser usados e ser muito eficazes em nossa prática.

Belinda: Nesse sentido, lembrei um trabalho precioso que foi a dissertação de mestrado da Vera Stela Telles, em que ela dizia justamente o quanto as contribuições da psicanálise, principalmente por avaliar a transferência, revolucionaram toda a concepção da relação sujeito-objeto, a própria idéia da separação sujeito-objeto. Também o plano da psicanálise pode trazer elementos para repensar a pesquisa empírica, principalmente quando o outro objeto é um ser humano. Qual é o impacto do pesquisador sobre o objeto?

Spartaco: Referente a esse item que estamos tocando, tenho uma passagem interessante referente à minha ligação com a Teoria dos Campos. No meu primeiro ano da formação, estava num seminário com a Marion e ela pediu que nós escrevêssemos alguma coisa baseada um pouco na linha psicanalítica e um pouco na Teoria dos Campos; ao mesmo tempo coincidiu de eu ser convidado para dar uma palestra num congresso de psiquiatria sobre eletroconvulsoterapia e fiquei tentado a aplicar o método analítico. Tratava-se de uma palestra sobre o mito da electroconvulsoterapia, o mito sobre a agressividade terapêutica; na medida em que fui estudando para ver se eu ía encarar essa dupla proposta que estava no horizonte, achei o texto de Freud sobre conquista do fogo. Esse primeiro contato do homem com o fogo, da descoberta da potência da agressividade e da iluminação ao mesmo tempo. E na medida em que fui me aprofundando na leitura dos textos referentes à electroconvulsoterapia, das reações contrárias, da intensa reação que existe contra o tratamento, ao mesmo tempo da verificabilidade da eficácia do procedimento, tive a impressão de que estava em jogo uma noção de desamparo. Ao verificar cientificamente que um procedimento de tamanha agressividade (no mínimo conceitual) tem eficácia e tira a pessoa do estado de estupor e salva vidas, ficamos num certo desamparo. "Como é que pode?" Através desse texto sobre a conquista do fogo, percebi que havia ocorrido uma ruptura de campo: "Preciso escrever"; e aí escrevi e foi um trabalho interessante que fez o link. Senti que podia escrever alguma coisa que tinha utilidade inclusive de comunicar um pouco para platéia que: "Não são somente vocês, nós também ficamos até como clínicos um pouco assustados com a própria utilidade de um método como esse".

Jornal: Queremos agradecer a todos a oportunidade desse debate e ao mesmo tempo dizer que ficamos impressionados com o alto nível da discussão.

Alice: Os debates têm sido muito especiais. Abre-se um espaço para essa troca de experiências e a sensação que nós do Corpo Editorial temos e das pessoas que têm participado é que têm sido experiências muito vivas e enriquecedoras. O debate, além disso, é um dos elementos do Jornal de que as pessoas falam muito depois, isto se repete e reverbera na divulgação.

Ludmila: Gostaria de parabenizá-los e a todos da equipe editorial por este excelente trabalho que vêm desenvolvendo.

Spartaco: Também gostaria de agradecer e parabenizá-los.

Creative Commons License