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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. v.39 n.70 São Paulo jun. 2006

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

O Clube da Luta: narcisismo, identificação e psicologia das massas1

 

Fight Club: narcissism, identification and group psychology

 

Club de la Lucha: narcisismo, identificación y psicología de masas

 

 

Marion Minerbo*; Carmen Soto de Bakker Silveira; Claudia Cristina Pereira Gomes Antila; Eloisa Helena Rubello Valler Celeri; Ethel Penna; Fábia Badotti Garcia Herrera; Maria Regina Viegas de Almeida; Remo Rotella Junior

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Discute-se inicialmente a diferença entre interpretação psicanalítica e exercício de psicanálise aplicada. Este texto é um exemplo de psicanálise aplicada, pois utilizamos o filme O Clube da Luta para ilustrar os conceitos freudianos de identificação e narcisismo e fenômenos de massa estudados durante um seminário no Instituto. O objetivo do exercício é reconhecê-los em sua forma viva e encarnada no "material clínico" do filme, e ao mesmo tempo usá-los na compreensão do filme. Na primeira parte, o filme narra a psicotização do personagem, enquanto a segunda mostra os caminhos de sua lenta recuperação, isto é, da possibilidade de efetuar a discriminação e o luto pela perda da fusão com o ego ideal.

Palavras-chave: Narcisismo, Identificação, Fenômenos de massa, Psicanálise aplicada.


ABSTRACT

The difference between a psychoanalytic interpretation and the exercise of applied psychoanalysis is initially discussed. This text is an exercise of applied psychoanalysis, using the film Fight Club to illustrate the concepts of identification, narcissism and group psychology. The idea was to recognize them in the film’s "clinical material" and also to use them to better understand the film. The process of becoming psychotic is shown by the character, and then his slow recuperation. This passes by the recognition of the object as a separate being and a process of mourning a state of fusion with the ideal ego.

Keywords: Narcissism, Identification, Group psychology, Applied psychoanalysis.


RESUMEN

Se discute, inicialmente, la diferencia entre interpretación psicoanalítica y ejercicio del psicoanálisis aplicado. Este texto es un ejemplo de psicoanálisis aplicado, pues utilizamos la película Club de la Lucha para ilustrar los conceptos freudianos de identificación, narcisismo y fenómenos de masas estudiados durante un seminario en el Instituto. El objetivo del ejercicio es reconocerlos en su forma viva y encarnada en el "material clínico" de la película y, al mismo tiempo, usarlos para la comprensión de la misma. En la primera parte, la película narra la psicotización del personaje, mientras la segunda muestra los caminos de su lenta recuperación, es decir, de la posibilidad de efectuar la discriminación y la lucha por la pérdida de la fusión con el yo ideal.

Palabras-clave: Narcisismo, Identificación, Fenómenos de masas, Psicoanálisis aplicado.


 

 

Introdução

É importante, para o que se segue, distinguir entre um exercício de psicanálise aplicada e uma interpretação psicanalítica. Cada um tem a sua hora e o seu lugar.

Este é um texto de psicanálise aplicada. Isto significa que um filme foi usado, durante o seminário, para ilustrar, com um bom exemplo, a teoria; para praticar e firmar a compreensão dos conceitos estudados — como se fosse um novo conceito de português, ou de matemática; para reconhecê-los em sua forma viva e encarnada no "material clínico" do filme. A teoria nos é dada a priori; pode, então, ser aplicada ao filme. E isto em dois sentidos: como bússola, orientando nosso olhar e escuta, sensibilizando-os para determinados aspectos, antes invisíveis, ou sem sentido, do que estamos vendo e ouvindo. E como uma espécie de "dicionário" que nos permite fazer uma aproximação, ou uma versão, da linguagem cinematográfica em linguagem psicanalítica. O importante é que a teoria entra e sai intacta (ou quase intacta, pois alguma transformação sempre é inevitável quando algo é usado) deste exercício. Se o exercício for bem feito, o filme pode se tornar bem interessante graças a este recurso. E a teoria se mostra absolutamente viva. No caso, a teoria sobre o narcisismo, sobre a identificação, e sobre os fenômenos de massa. Diante de um paciente espera-se que um psicanalista não faça qualquer aplicação da teoria, mas sim uma interpretação. A teoria será usada para orientar sua escuta, e também brotará, redescoberta, da interpretação.

Já uma interpretação (de um filme, do discurso do paciente) é outra coisa. Não partimos de uma teoria pronta. Munidos de um certo olhar, de uma certa escuta, ou, mais precisamente, adotando uma certa postura diante do objeto, procuraremos criar-achar uma "teoria do filme". Não procuramos a tese central, manifesta, do filme (o filme é sobre x). Ao contrário, prestamos atenção a cenas que nos parecem destoar, de alguma maneira, do senso comum, que não parecem se encaixar em teses fáceis, ou em teorias já prontas. O resultado é algo que nos surpreende, já que não estava dado anteriormente em lugar algum. Exige trabalho, um trabalho de imaginação e de criação, e não de tradução/ aplicação.

Vejamos. Em certo momento do filme funda-se o Clube da Luta, em que o objetivo dos sócios não é bater e vencer a luta. É apanhar e perder. O exercício parte de uma teoria pronta, que podemos facilmente reconhecer: a dor física é uma defesa, serve para estancar outra dor pior, a dor psíquica. Não estranhamos mais a cena do filme. Ela foi encaixada no já sabido. Entendemos.

Já a postura interpretativa, ao contrário, toma em consideração, potencializa a sensação de total estranheza que experimentamos diante da cena. Além disso, apanhar nos repugna, e nos repugna porque não faz sentido em nossa cultura — embora seja natural para os personagens. Nossa estranheza e repugnância são um ponto de partida possível para a interpretação. E então imaginamos que os personagens têm razão: apanhar pode ser a única maneira, no mundo contemporâneo, de não ser cooptado pelo sistema, de manter um mínimo de autonomia com relação ao objeto primário. Mas, ao mesmo tempo, cria-se um sistema de franquias mediante o qual o Clube da Luta passa a ser aberto por todo o país. O movimento de autonomia foi cooptado pelo sistema capitalista. Enfim, esta compreensão, que fica em aberto, já nos exige e sugere um movimento interpretativo que vai além de qualquer teoria já dada.

Feita essa distinção, passemos à exposição de nosso exercício. Antes, porém, uma palavra sobre o processo de produção deste texto. No início do curso, antes da leitura dos textos de Freud e comentadores, foi proposto aos alunos que assistissem ao filme, e que, ao final do seminário, o vissem novamente para o debate na última aula. Segundo os alunos, a diferença entre o antes e o depois do curso foi notória. Antes, era um "filme muito violento", que repugnou especialmente às mulheres. Depois, passou a ser um filme instigante para todos. Este texto é a elaboração, feita pela coordenadora, a partir do debate final. A co-autoria foi dada apenas aos colegas que apresentaram suas idéias por escrito.

O filme abre com uma viagem por algo que vai parecendo uma trama de neurônios com um caráter um tanto surrealista, os quais parecem, finalmente, transformar-se em pele. De certa forma é a sinopse do filme, antecipando que viajaremos pelo interior de um espaço mental, e que testemunharemos a tentativa de construção de uma pele psíquica. A atmosfera surreal da cena sugere que o filme pode ser entendido como um sonho, ou melhor, como um pesadelo, em que situações e personagens carregam significados cambiantes de acordo com o momento em que surgem.

A primeira cena já é violenta e bastante enigmática. Vemos um homem (o ator Edward Norton) sendo interrogado, sob a mira de um revólver, por outro cujo rosto não vemos. Este pergunta algo como2: "Conhece Tyler Durden? Sabia de seus planos para explodir os edifícios?". A resposta, "eu sei porque ele sabe", lança-nos de chofre no campo do duplo: eu e ele somos o mesmo no que diz respeito a esse saber. Ficamos curiosos para descobrir qual a relação entre esse sujeito e Tyler Durden (Brad Pitt). O filme todo é o flashback que nos permitirá responder a essa questão.

Somos apresentados ao protagonista, personagem torturada pela insônia crônica. Adentramos esse universo marcado por um retraimento de tipo esquizóide. O mundo, as pessoas, as coisas, estão a uma enorme distância deste homem que não consegue repouso — no duplo sentido de dormir e de encontrar alguma paz interior. Percebemos seu doloroso isolamento afetivo, o que o mantém num estado de angústia crônica, causa da insônia.

"Que tipo de porcelana me define como pessoa?" é uma de suas falas no início do filme. O vazio existencial é tão intolerável que desejaria morrer. Este homem — qual é mesmo o seu nome? — não chega a ser um cidadão do mundo, apesar de viajar muito para a companhia de seguros da qual é um medíocre funcionário. Cidadão dos aeroportos e aviões, esses não-lugares em que se criam vínculos fugazes e descartáveis, tenta preencher o vazio existencial com objetos fetiches. Sua compulsão a consumir coisas caras, de griffe, tem a função de garantir minimamente a sustentação de seu narcisismo precário. "Compro, logo sou." Ao longo do filme, veremos entrar em cena uma ideologia anti-consumista com função libertária: a personagem gostaria de romper com o sistema que o aprisiona a essa rotina ininterrupta e absurda de trabalhar para consumir. No trabalho, nosso homem tem uma relação de submissão rancorosa ao chefe, que, tanto quanto ele, é um rato preso na ratoeira da falta de sentido da vida.

Afinal, o protagonista tinha ou não um nome? Durante o debate, tomamos nossa dúvida como indício contratransferencial da problemática narcísica tratada no filme. Por outro lado, vários colegas se lembravam dos nomes fictícios que assumia nos grupos de auto-ajuda que passou a freqüentar, o que nos fez pensar em falso self. Enfim, seu nome era Jack. Um nome tão comum quanto sem graça e, principalmente, sem sobrenome, identifica à maravilha esse sujeito que se sente um nada, um ninguém, anônimo entre tantos outros Jacks que existem por aí. Certamente não tinha a força e a sonoridade de Tyler Durden, nome da personagem marcante que entrará em cena adiante, e de que tivemos notícia na primeira cena do filme.

A tentativa desesperada para sair do anonimato, para dar um sentido à sua existência, e para escapar da ratoeira do consumo como modo de vida, pode ser considerada o eixo do filme. A saída encontrada por Jack é uma solução psicótica. O filme narra a história de seu adoecimento e de sua cura, mas o interesse maior reside no fato de colocar em evidência a produção de um fenômeno de massa a partir de um sintoma individual.

Entretanto, Jack vai pedir ajuda para o sofrimento causado por sua insônia a um médico. "Quer saber o que é sofrimento?", diz ele. "Freqüente o grupo de auto-ajuda de homens com câncer de testículo. Aquilo sim é que é dor." A posteriori entendemos que sua insensibilidade reedita a falta de continência do objeto primário. Em seguida temos a primeira aparição de Tyler, imagem quase imperceptível, pois dura uma fração de segundo. A seqüência temporal entre a falta de acolhimento do médico e a imagem fugaz de Tyler sugere que o precário equilíbrio mental de Jack começa a ruir quando o sujeito desespera de encontrar seu objeto. Essa imagem já faz parte do pródromo do surto psicótico que o acometerá.

Aceitando a sugestão do médico, Jack começa a freqüentar o grupo de auto-ajuda, embora seja perfeitamente saudável. A dor desses pacientes terminais é "de verdade", em contraste com a irrealidade de seu cotidiano. Por identificação, ele encontra uma forma de entrar em contato com suas próprias dores, mesmo sendo incapaz de dizê-las. Começa a sentir-se "re-humanizado" graças à continência do grupo e, principalmente, de Bob, personagem que terá um papel bastante significativo. Devido ao câncer, este precisou submeter-se a uma orquitectomia, isto é, à castração. O tratamento à base de hormônios femininos tem como seqüela uma gigantesca ginecomastia. O resultado é uma figura grotesca, embora bastante afetuosa, e que nos sugere o par combinado pênis/seio. Acompanhamos passo a passo sua identificação com a dor física e moral, com o sofrimento, a humilhação, a impotência, destes homens que precisaram extrair o testículo, órgão-símbolo da potência, da virilidade, da afirmação narcísica do homem. Percebemos claramente a importância da continência do grupo. Neste, os participantes usam nomes falsos e relatam suas experiências. Depois, em duplas, eles se abraçam, conversam, choram. Primeiro é a vez de Bob, que abraça Jack e chora. Em seguida Bob lhe diz: "Agora é sua vez, pode chorar". E Jack chora, mergulhado nos seios acolhedores de Bob, entregando-se — ao que parece pela primeira vez na vida — a essa experiência que poderia nos parecer ridícula ou piegas, mas é comovente. No seio do grupo e de Bob, Jack experimenta o alívio da regressão através do contato corporal com o outro. Em seguida vai para casa e dorme como um bebê, depois de meses de insônia. Em off, ele conta que ali, nos grupos de auto-ajuda, "as pessoas escutam de verdade, não estão esperando a vez para falar; encontrei a liberdade na perda da esperança". Encontra vida psíquica lá onde a vida biológica se esvai, obrigando os sujeitos a um enorme trabalho mental.

Jack torna-se dependente dos grupos de auto-ajuda, das mais variadas e terríveis doenças. Ali, todos falam de suas dores num enquadre em que o máximo de anonimato permite o máximo de intimidade. Fala-se da doença, do medo da morte, da solidão, do fracasso das relações familiares. O enquadre desses grupos lembra bastante o enquadre analítico. Ao contrário do mundo, em que as feridas narcísicas devem ser cuidadosamente escondidas para que todos pareçam vencedores, na intimidade do grupo ou da sala de análise elas podem ser reveladas e cuidadas. Enfim, Jack encontra a possibilidade de uma relação de objeto significativa em que não é preciso defender-se, e em que é possível estabelecer uma relação de dependência com um objeto relativamente confiável. Em suma, o grupo funciona como uma família, lugar de trocas afetivas, de pertencimento e aceitação, o que vai dando algum lastro afetivo e contornos psíquicos a Jack.

Nessa peregrinação bizarra conhece Marla (Helena Bonham Carter), uma garota igualmente saudável, igualmente perdida na vida, igualmente dependente desses grupos. Marla representa também uma parte mórbida de si mesmo que, em lugar do consumo desbragado, usa o sexo e as drogas para preencher seu vazio e sentir-se viva. A ilusão de bem-aventurança é ameaçada quando ela aparece nos grupos, denunciando a falsidade da solução encontrada por Jack: não é possível manter o equilíbrio emocional indefinidamente às custas desses grupos. "A mentira dela refletia a minha", diz Jack. A garota funcionará, ao longo do filme, como objeto externo, real, altamente investido, e terá a função de resgatá-lo da loucura.

Em uma viagem de avião conhece Tyler. A afinidade entre ambos é instantânea e maciça, o que caracteriza as relações de objeto narcísicas. Chama a atenção o fato de que ambos estão com a mesma maleta executiva, o que nos remete novamente à questão do duplo, anunciada na abertura do filme. O duplo, por sua vez, vai-nos introduzindo aos poucos no campo da psicose. Parte da conversa entre os dois é sobre bombas, isto é, entra em cena a violência. Tyler tem uma vida bastante não-convencional: vive de fabricar em casa sabão artesanal, o qual, como ficamos sabendo mais adiante, é feito com gordura humana de lipoaspirações. Como veremos, a gordura como excedente é uma metáfora do consumo do supérfluo do supérfluo, ardorosamente combatido por ele.

Voltando dessa viagem, Jack descobre que seu apartamento explodiu e está em chamas. É uma bela imagem da entrada no surto. A polícia investiga o que aconteceu. Os restos mortais de seus caros e preciosos bens de consumo jazem pelas ruas, imagem do psiquismo fragmentado. Não tendo para onde ir, telefona para Tyler, que se dispõe a ajudá-lo. Leva-o para sua casa, que é, em tudo, o exato oposto do apartamento bonitinho de Jack. É uma casa abandonada, caindo aos pedaços, sem qualquer conforto. Agora ele habita a psicose franca. A casa retrata bem essa atmosfera afetiva: é um lugar lúgubre em que tudo está em ruínas, um lugar sufocante, reflexo do que Jack vive interiormente.

É de maneira bastante gradual que, ao longo do filme, vamos percebendo que Tyler é Jack. O espectador é compensado pela espera, e pelo ritmo algo desconexo que deve tolerar até certo ponto do filme. Esse suspense inteligente é a surpresa e a grande sacada do filme — suspense que, infelizmente, se perde numa narração que já traz embutida uma certa interpretação do filme, como essa que estamos apresentando ao leitor. No filme, vamos percebendo aos poucos que Tyler é, em tudo, o oposto de Jack. Forte e corajoso, tem idéias próprias e é carismático. É uma pessoa segura de si e viril: é ele quem conquista a bela, sensual, Marla. Não se submete a nada, não depende de nada e de ninguém. Tem espírito de liderança, todos o admiram, torna-se uma celebridade. Enfim, parece ter conseguido ser sujeito de seu próprio desejo, conduzindo sua vida como bem lhe parece. Em certo momento fica claro que se trata de uma construção delirante de Jack e representa seu duplo. Em nossa interpretação, Tyler representa o ideal de ego de Jack, com o qual se funde na psicose, tornando-se seu próprio ideal. Esses aspectos de Jack estarão ora mais confundidos (Jack-Tyler) ora mais discriminados (Jack e Tyler) ao longo do filme.

Na noite após a entrada no surto seu "novo amigo" lhe pede: "Bata-me com toda sua força". Seu lado Tyler o autoriza a viver e expressar sua violência e Jack vivencia seu potencial destrutivo, que, agora já desconfiamos, está na origem do surto. O que se vê, depois dessa primeira luta, surpreende o espectador: depois de apanhar bastante, Jack-Tyler está feliz, satisfeito, sente-se bem, como que saído de uma experiência revigorante. Sente-se vivo. A dor física parece tornear os limites da própria existência, formando um eu coeso no lugar da experiência anterior de fragmentação. No registro da dor e dos hematomas dá-se a passagem do eu corporal para sua dimensão psíquica.

Encontramos na internet3 uma interpretação bastante interessante do efeito revitalizante de "apanhar" que tanto nos intriga no filme. Segundo Marco Antonio Dassori, o filme "subverte a lógica do sistema ao afirmar que o importante não é bater, mas sim apanhar. Ao "baixar a guarda", abrindo mão do conforto e da segurança, o indivíduo encontraria a verdadeira "liberdade". Ou seja, se o sistema é vivido como uma mãe engolfante, de cujas injunções não é possível escapar, a única maneira de recuperar um mínimo de autonomia com relação ao desejo do objeto primário é abrir mão do desejo de "vencer". Desejar "apanhar" é, paradoxalmente, a única maneira de buscar o próprio desejo.

A luta não se inscreve no campo do prazer erótico, mas no do alívio da dor psíquica. A dor física está sendo usada para estancar a dor psíquica, como ocorre com certos pacientes que se cortam para aplacar sua angústia. No texto Além do princípio do prazer Freud (1920/1976b) nota que pacientes que passaram pelos traumas de guerra não desenvolvem uma neurose traumática caso tenham tido, ao mesmo tempo, um grave ferimento corporal. O aporte de libido necessário para refazer a integridade corporal funciona como um escudo, que protege o sujeito do trauma psíquico. No filme, quanto mais sangrenta a luta, quanto maior a dor física, mais o sujeito se sente vivo psiquicamente. É outra leitura do que acontecia nos grupos de auto-ajuda, em que a dor também tinha uma função estruturante do psiquismo.

Enfim, essa primeira briga funda o que virá a ser o Clube da Luta. A solução sintomática de Jack-Tyler irá, aos poucos, se transformando em um fenômeno de massa. Em pouco tempo, muitos outros homens aderem de maneira entusiasmada a essa atividade altamente estimulante, depois de uma jornada de trabalho totalmente desvitalizado e desinvestido. De acordo com as regras, os membros do grupo podem lutar dois a dois, um contra o outro, em dias da semana prefixados, dentro de um código de ética que deve ser respeitado. Se o grupo de auto-ajuda funcionava como uma família, continente das angústias dos seus membros, o Clube da Luta se mantém e se reproduz apoiado sobre outras funções psíquicas que realiza para seus membros. Do ponto de vista econômico representa um aporte de libido narcísica que falta a esses sujeitos desvitalizados. Do ponto de vista dinâmico, sua ideologia representa a possibilidade de recuperação do narcisismo perdido. Opondo-se ao consumismo sentem-se livres. Em outras palavras, o grupo oferece representações valorizadas que sustentam a identidade do sujeito.

A depressão narcísica que está na base do surto de Jack cede quando a libido volta a circular e a investir novos objetos: o líder, mas também o eu-amado-pelo-líder. O grupo funciona como um exoesqueleto que sustenta, de fora para dentro, as frágeis fronteiras egóicas dos sócios do clube. O grupo de auto-ajuda era composto por sujeitos castrados, perdedores, em plena posição depressiva. Aqui, pelo contrário, o ego se percebe coincidindo com o ideal do ego, o que cria um estado hipomaníaco em que tudo é possível. O ideal narcísico de tolerar a dor física, em lugar de fugir dela como os comuns mortais, é essencial para que o ego se perceba como sendo, novamente, seu próprio ideal. Isto, aliás, é ilustrado pela cena em que Tyler queima a mão de Jack com um ácido que produz uma dor excruciante — e Jack deve ser capaz de ser homem o suficiente para suportar a dor.

A ideologia anticonsumista confere um novo sentido à existência. Tyler sustenta que, se as pessoas não sentissem a necessidade de consumir bens absolutamente supérfluos (como Jack fazia em sua outra vida — que, por sinal, é a nossa!), não precisariam trabalhar em serviços de que não gostam, apenas para ganhar mais dinheiro. Poderiam dedicar-se àquilo que realmente lhes dá prazer. Há uma cena violentíssima na qual um oriental é ameaçado de morte, para ser libertado com a condição de voltar a estudar veterinária, sua paixão antes de ser um funcionário de uma loja de conveniência. Os membros do grupo são obrigados a ter, na ponta da língua, um pseudoprojeto pessoal ou um hobby que lhes daria prazer. Obviamente, como "ter um projeto ou um hobby" é uma imposição do líder, não tem nada a ver com prazer ou realização pessoal. Ao contrário, a adesão sem crítica é tão alienante quanto o consumismo que combatem. Enfim, é tão contraditório quanto pretender levar um país à democracia na marra, custe o que custar.

Com tal ideologia libertária, os sócios do clube veneram Jack-Tyler como a um salvador — ele os salvou da existência medíocre e desvitalizada da escravidão consumista. Por outro lado, Tyler exige obediência cega. Aos poucos, a coisa vai crescendo e se organizando, até se transformar em um exército paralelo que visa combater, com ações terroristas, as instituições que fomentam o consumo. O narcisismo dos membros do grupo se sustenta totalmente no fato de pertencerem ao Clube da Luta, o que os torna, a seus próprios olhos, superiores aos outros. Em termos freudianos, estão muito próximos do ideal do ego proposto pelo líder.

O Clube da Luta abre franquias pelo país. Nos termos de hoje, Tyler torna-se uma celebridade. Em termos freudianos, ele se transforma no "pai da horda primeva". Ou, segundo Janine Chasseguet-Smirgel (1992), ele se apresenta como uma mãe narcísica idealizada que permite realizar, através de si, os desejos mais regressivos de seus membros. O líder, longe de ser um pai, é aquele que sustenta a ilusão de fusão regressiva com o objeto primário idealizado.

A figura paterna é de fato expulsa, excluída do grupo, como o Superego. Tudo se passa como se a formação coletiva em si constituísse a realização alucinatória da posse da mãe pela irmandade, de um modo muito regressivo, o da fusão primária. Entretanto, o chefe pode existir (basta pensar nas massas nazistas). A meu ver, ele não saberia confundir-se com o pai: o chefe é aquele que ativa o antigo desejo de união do Ego e do Ideal. Ele é o promotor da Ilusão (1992, p. 73).

A primeira parte do filme narra a psicotização de Jack, o processo de confusão entre Jack e Tyler, enquanto a segunda mostra os caminhos de sua lenta recuperação, isto é, da possibilidade de efetuar a discriminação e o luto pela perda da fusão com o ideal narcísico. A relação com a realidade começa lentamente a se recompor quando seu velho e querido amigo Bob morre em uma missão do Projeto Caos — uma das atividades colaterais do Clube da Luta a serviço da ideologia anticonsumista. Ainda segundo Marco Antonio Dassori (no site já citado), o objetivo do Projeto Caos era

(...) minar a sociedade de consumo por meio de ações terroristas, tendo por alvo organizações emblemáticas, como as empresas de cartão de crédito. Se no começo a empreitada parece obter sucesso, irmanando os personagens, a implementação do referido projeto resulta no nascimento de uma organização de cunho nitidamente fascista, militarizada e despersonalizante que, ao negar o consumismo, também rejeita o humanismo.

Ao perder Bob, Jack não mergulha numa depressão narcísica. Ao contrário, recupera seu lado mais humano e esta é a ocasião para que se dê o reconhecimento da alteridade do objeto. O filme mostra que Bob é a primeira pessoa no grupo que pode ser chamado pelo nome e sobrenome, e que merece um enterro digno.

Em seu processo de refazer contato com a realidade, começa a se interessar por Marla, e preocupa-se em protegê-la dele-Tyler. E começa a ser crítico, tanto com relação às ações predadoras do Clube, quanto com relação às franquias. Já não está fundido com a ideologia do grupo. Agora fica horrorizado com o ideal que criou. Combatê-lo passa a ser seu novo ideal.

Já fora do surto, percebe que ele-Tyler havia criado um plano para destruir certos edifícios, símbolos do capitalismo e do consumismo. Vai à polícia e entrega-se. Quer reparar os estragos. Mas a própria polícia pertence ao Clube da Luta, e não aceita opiniões divergentes, nem do próprio Tyler. "Você nos avisou que diria isto, e não era para aceitar." Aqui vemos como o psiquismo se torna refém de seus objetos internos. Não é simples livrar-se deles. É então que começa a entender que está sendo ameaçado por uma parte de si mesmo que já não lhe serve.

Agora, no caminho da cura, o conflito se desloca e a luta passa a ser totalmente interna: Jack de um lado, e Jack-Tyler de outro. A cena final, em que Jack dá um tiro em si mesmo, mostra a morte simbólica de seus aspectos denegridos, desvalidos, desvitalizados, que tornaram o surto psicótico, e especialmente o sintoma — a criação de Tyler —, tão necessário à sua sobrevivência psíquica. Ou, em outra interpretação, morre a ilusão psicótica de ser o ego ideal e tudo poder... Faz-se o luto pelo narcisismo perdido. Em seu lugar, um ideal do ego mais evoluído pode surgir.

Um fator decisivo em sua recuperação foi perceber que, apesar de todas as suas "fraquezas", Marla gostava dele-Jack. Ela obviamente não conhecia Tyler, isto é, não percebeu que Jack estava em surto. Achava-o apenas um tanto instável, complicado. Marla faz as vezes de objeto primário no processo de fundação, ou melhor, de instauração mínima de um narcisismo de vida. Aos poucos ele vai ocupando um novo lugar subjetivo, diferente da auto-representação do "corretor de seguros medíocre". Na cena final, ambos assistem à implosão dos edifícios imponentes, simbolizando o desmoronamento de um modo de vida fundado na necessidade narcísica de adesão acrítica aos signos de prestígio criados pela sociedade de consumo.

Em nossa interpretação, o filme mostra como a solução sintomática de um indivíduo pode se transformar num fenômeno de massa. O fenômeno se alastra, inclusive para fora das telas. Mateus da Costa Meira, estudante de medicina da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, em 5 de novembro de 1999 atirou sobre a platéia que assistia a Clube da Luta no Shopping Morumbi. O rapaz de vinte e quatro anos matou três pessoas e feriu seis. Antes disso atirara no espelho do banheiro. Disse ter problemas psíquicos e já ter sido internado. E ainda: "Sei que prejudiquei várias pessoas, mas era uma coisa que precisava ser feita".

O delírio individual se transforma num fenômeno de massa porque encontra eco em muitas pessoas que se identificam com Jack. Os sócios do Clube da Luta coincidem no fato de precisarem de Tyler para dar algum sentido às suas existências. Como diria Freud, em Psicologia de grupo e análise do ego, Tyler é o "ponto de coincidência entre seus egos". Podemos imaginar que Mateus se considerava mais um sócio do Clube da Luta, engajado num atentado terrorista a um dos templos do consumo em São Paulo. No filme, após o enterro de Bob, alguém diz: "Na morte, um membro do Projeto Caos tem um nome". Na vida real do mundo contemporâneo o sujeito só tem de um nome se, e quando, consegue sair do anonimato deixando de ser um Jack. E, de fato, Mateus se transforma em Mateus-Tyler ganhando visibilidade na mídia com o seu ato.

Inversamente, o fenômeno de massa encobre delírios individuais. Para Mateus, ele não está louco: apenas é mais um sócio do Clube da Luta. O problema é que, no caso de Mateus, ele não fazia parte da massa. Afinal, o Clube da Luta é uma ficção. Há um erro de cálculo: ele atira sozinho e é preso. Há outro engano: no filme, os membros do Clube da Luta não chegam a atentar contra a vida de terceiros. Seu alvo é o sistema, ou então, lutam uns contra os outros, mostrando que se trata muito mais de uma luta interna — relativa ao mundo interno — do que externa. E, mesmo quando lutam contra terceiros, o objetivo, como vimos acima, é apanhar, e não bater. Há uma cena em que cada um dos sócios deve provocar os transeuntes na rua até que um deles perca a paciência e o espanque. Mas esse objetivo nem sempre é fácil de se atingir. Por fim, no filme todo ninguém morre, exceto Bob.

A luta é também uma metáfora do conflito psíquico. Há duas cenas bastante engraçadas que expressam a intensidade e concretude desse conflito. No escritório, certo dia Jack enfrenta seu chefe e tem início uma luta. Entretanto, o alvo de Jack não é o chefe odiado, mas ele mesmo. Vemos Jack socando a si mesmo até cair, bastante ferido. A outra cena se passa numa garagem, em que Jack decide enfrentar Tyler. O espectador vê os dois se engalfinhando, mas o sistema de segurança do prédio grava em vídeo uma cena em que Jack luta com ninguém, dando socos no ar. Nesse momento fica claríssimo que Tyler é um objeto interno. O mesmo objeto que fora idealizado tornou-se persecutório e deve ser destruído.

Mateus não captou essa sutileza, provavelmente porque no surto psicótico o conflito precisa ser totalmente projetado para fora do espaço psíquico: os inimigos realmente estavam nas poltronas do cinema. A incapacidade de simbolizar impede que se distinga ficção de realidade. O que não invalida a idéia de que todos nós podemos, em algum momento, precisar de algum tipo de Tyler para constituir nossa identidade e dar sentido às nossas vidas.

 

Referências

Chasseguet-Smirgel, J. (1992). O ideal do ego e o grupo. In J. Chasseguet-Smirgel, O ideal do ego (pp. 69-81). Porto Alegre: Artes Médicas.        [ Links ]

Dassori, M. A. Nota 10. Recuperado em 17 abr. 2006 no site http://adorocinema.cidadeinternet.com.br/filmes/clube-da-luta/critica22.html.        [ Links ]

Freud, S. (1974a). Sobre o narcisismo: Uma introdução. In S. Freud. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 14, pp. 89-119). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1914.)        [ Links ]

Freud, S. (1974b). Luto e melancolia. In S. Freud. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 14, pp. 275-291). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1917.)        [ Links ]

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Freud, S. (1976b). Além do princípio de prazer. In S. Freud. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 18, pp. 17-85). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1920.)        [ Links ]

Korman, V. (1977). Teoría de la identificación y psicosis. Buenos Aires: Nueva Visión.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Marion Minerbo
R. João Moura, 647/152 — Pinheiros.
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Recebido em: 20/04/06
Aceito em: 25/05/06

 

 

* Membro Efetivo e Analista Didata da SBPSP. Todos os co-autores são analistas em formação no Instituto de Psicanálise da SBPSP.
1 Este texto é produto do seminário "Narcisismo e Identificação", que aconteceu no Instituto da SBPSP no segundo semestre de 2005. Trata-se de uma síntese do debate sobre o filme O Clube da Luta, com o qual encerramos o seminário. A proposta foi interpretá-lo à luz dos textos estudados durante o curso. Devo a Luís Claudio Figueiredo a sugestão deste filme. Agradeço também por sua leitura dedicada e comentários preciosos.
2 Tal como na apresentação de material clínico, não é a fidedignidade objetiva dos diálogos do filme que nos interessa, mas a fidelidade ao sentido que captamos.
3 Site //adorocinema.cidadeinternet.com.br/filmes/clube-da-luta/critica22.html.

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