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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. v.39 n.70 São Paulo jun. 2006

 

CRÔNICA CIENTÍFICA

 

Fantasias a propósito das origens judaicas da psicanálise

 

Fantasies related to the jewish origins of psychoanalysis

 

Fantasías a propósito de los orígenes judíos del psicoanálisis

 

 

Anna Verônica Mautner*

Membro Efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Freud nasceu e viveu em um universo geopolítico onde população local e judeus viviam próximos fisicamente, distantes culturalmente e mutuamente intolerantes. A sua imersão concomitante na cultura local e na judaica foi levada por ele para a universidade em Viena, onde entrou em contato com o mundo moderno da ciência médica. Seus estudos e pesquisas foram influenciados por estes conflitos latentes. É neste turbilhão de culturas, intolerantes entre si, que tem lugar o nascimento da psicanálise, que vai procurar entender o mundo e resolver conflitos sem recorrer à noção de culpa, muito pelo contrário, dando ênfase à compreensão e intimidade, e não ao perdão.

Palavras-chave: Culpa, Terapia da intimidade, Mudança psíquica sem perdão.


ABSTRACT

Freud was born and lived in a geopolitical universe where the local population and the jewish people lived physically side by side, although culturally there was mutual intolerance. This simultaneous immersion in the local and jewish culture was taken by him to the university in Viena where he got it touch with the modern world of medical science. Freud’s studies and researches were influenced by his latent conflicts. It is in this turmoil of conflicting cultures and intolerance that psychoanalysis came forth, developing ideas to understand the world and to solve conflicts without the use of the notion of guilt, of rather emphasizing comprehension and intimacy, instead of forgiveness.

Keywords: Guilt, Intimacy therapy, Psychic change without forgiveness.


RESUMEN

Freud nació y vivió en un universo geopolítico donde población local y judíos vivían próximos físicamente, distantes culturalmente y mutuamente intolerantes. Su inmersión concomitante en la cultura local y en la judía las llevó consigo a la universidad, en Viena, donde entró en contacto con el mundo moderno de la ciencia médica. Sus estudios e investigaciones fueron influenciados por estos conflictos latentes. Es en este torbellino de culturas, intolerantes entre sí, que tiene lugar el nacimiento del psicoanálisis, que procurará entender el mundo y resolver conflictos sin recorrer a la noción de culpa, muy por el contrario, dando énfasis a la comprensión e intimidad, y no al perdón.

Palabras-clave: Culpa, Terapia de la intimidad, Cambio psíquico sin perdón.


 

 

A idéia de culpa como organizadora das relações interpessoais e grupais é tão central que acho difícil imaginar qualquer cultura com herança judaico/cristã desdenhando este sentimento. A psicanálise e os psicanalistas, a teoria e a técnica psicanalíticas, contudo, são uma tentativa de realizar este feito. Tentaremos nos aproximar de uma origem possível deste desejo de entender a mente humana afastando este sentimento. Só mesmo alguma inconsciente influência "bárbara", isto é, resquícios dos povos que habitavam a Europa Central antes da cristianização e dos invasores que por lá estiveram, poderia ter gerado um contexto, uma escala de valores, onde nem culpa nem perdão seriam centrais. Não devemos minimizar nem a importância dos primitivos habitantes da região nem a da longa colonização otomana. Esta parte do mundo foi cristianizada apenas em torno do ano 1000.

Uma das coisas que qualquer terapia da palavra — todas se originam em Freud —, enfatiza é: "Aqui não há culpa — não culpe". E mais: diante de uma confissão de culpa relativa a um sentimento de responsabilidade culposa, não deve ser instituído um clima de perdão entre analista e analisando: analise-se. Debaixo de qualquer dor de culpa, encontramos lembranças de fatos ou atos inconfessáveis, vergonhosos, impublicáveis e, muitas vezes, inenarráveis. Cabe à psicanálise encaminhar a mente na direção do que se procura esconder. As motivações primeiras ou últimas, como queiram, não desaparecem pelo perdão, mas sim pelo confronto ou enfrentamento onde deve predominar um desejo de entender. A dois ou em pequeno grupo, quando conseguimos isto, deixamos aparecer ou apontamos um motivo do mal que foi feito ou mal tolerado, do que perturba. Compartilhar estes afetos é um jeito de lidar com nossa intolerância a nossos próprios atos, intenções e pensamentos indesejados. Nem todos os povos lidam da mesma maneira que nós, ocidentais, com a consciência desses fatos e atos. Coube ao Ocidente, contudo, mais especificamente a alguns povos da Bacia Mediterrânea, converter sentimentos abominados em culpa, ao mesmo tempo criando e garantindo mecanismos individuais e coletivos de perdão. A confissão, o Yom Kippur, a absolvição judicial e outras liturgias sociais isentam o malfeitor de sua própria dor psíquica de culpa.

É difícil imaginarmos nossas vidas sem esses recursos sociais de alívio. No entanto, até hoje, tantos mil anos depois do Código de Assurbanípal e dos Dez Mandamentos, vivem ainda povos que regulam a vida social a partir de pensamentos mais próximos à magia, aos tabus e aos sagrados. Fora da esfera dominada pela herança judaico/cristã de culpa, são as formas de intimidade que geram tolerância, aceitação e exclusão social. Dão-se no que hoje denominamos foro íntimo. Sim, tratamos aqui de exclusão, pois existem vergonhas, atos contra si ou outros, que minam nossa auto-estima de forma a nos impedir de encarar nosso semelhante. Consciente de certos atos, excluímo-nos ou somos excluídos.

Pois, então, vejamos com o que Freud nos brinda. Com um confessionário onde não é o perdão que alivia e sim a intimidade gerada pela ausência de acusação, conseqüentemente, pela ausência de perdão. Nosso setting é um maravilhoso confessionário dominado por tolerância e intimidade cerimoniosa. Uma relação íntima, face a face, que nos reinsere no mundo dos vivos — nós, transgressores envergonhados por fatos e atos inenarráveis, escondidos nos desvãos e criptas do inconsciente. O psicanalista nem inclui nem exclui, não culpa nem absolve — continua convivendo em cerimoniosa intimidade apesar de ele, transgressor, ter perdido a face. Este esquema, bem sabia Freud, sem poder nomeá-lo, foi de fato uma praga que ele nos legou.

Nasceu e foi criado num mundo quase na fronteira do Oriente, onde, por seiscentos anos, os mouros do Império Otomano conviveram com os povos locais, então chamados de bárbaros pelos gregos e romanos. A cristianização desta região, como já disse, conta com cerca de mil anos, o que é muito pouco para que não só promova a mudança revolucionária judaico/cristã do perdão, mas especialmente, para eliminar os traços das culturas anteriores. Transformar vergonha em culpa é designar ou atribuir a algum patriarca o poder de perdoar. Seja este Deus, Estado, Código ou Santa Madre Igreja. Usando os parcos resíduos de cultura otomana, mongol ou de outros bárbaros, aliando-os à sua herança judaica e à presença dominante do cristianismo, Freud dá à luz a psicanálise.

Neste momento, não podemos deixar de lado que a ânsia edípica de negar o pai foi também um catalisador de partes importantes da teoria psicanalítica. O mundo não começou há cinco mil anos, nem há dois mil. Povos e culturas, nações variadas povoavam o mundo muito antes da Grécia, Macedônia, Assíria e Babilônia, e os recursos elaborados para sobrevivência psíquica por estes povos não desapareceram, ficaram reservados dentro de alguma cripta pouco visitada daquela civilização. Estes valores e idéias empoeiradas, que nunca ganharam espaço nas tipografias, portanto não estavam nem escritos nem impressos, ganharam forma e nome no ato do nascimento da psicanálise.

Os ingredientes deste ressurgimento demandaram a presença de um gênio, no caso Freud, de um momento histórico e de uma certa geopolítica formada de uma colcha de retalhos de nações que não conseguiam ser Estado.

Freud, não podendo se alimentar diretamente só da cultura local, não deixou de assimilar este não aparente, obscuro, estranho, e, com essa influência inconsciente aliada à herança cultural judaica, partiu para a modernidade, onde o pai, judeu, humilhado atuou como fermento edípico. Lançando mão dos traços culturais implícitos e explícitos, organizou um sistema moderno que quase se adaptou à medicina então moderna. Com um só gesto Freud atinge pai e organização social agressora. Afinal o Ocidente não foi desde sempre anti-semita? Afinal, Freud não era filho de um judeu que não ousava levantar a cabeça quando agredido?

 

 

Endereço para correspondência
Anna Verônica Mautner
R. Tupi, 267/102 — Santa Cecília
01233-000, São Paulo, SP
Fone: 3667-8234
E-mail: amautner@uol.com.br

Recebido em: 20/04/06
Aceito em: 11/05/06

 

 

* Membro Efetivo da SBPSP.

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