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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. v.39 n.70 São Paulo jun. 2006

 

JORNADAS PESQUISA E UNIVERSIDADE — SPBSP

 

Parábolas freudianas: as narcísicas feridas e o arqueólogo

 

Freudian parables: the narcissistic injuries and the archeologist

 

Parábolas freudianas: las heridas narcisistas y el arqueólogo

 

 

Ana Maria Loffredo*

Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este texto examina as peculiaridades do modo de produção de conhecimento na psicanálise, a partir das analogias propostas por Freud com a arqueologia e a escultura, na perspectiva das resistências implicadas no descentramento da consciência.

Palavras-chave: Epistemologia da psicanálise, Freud, Descentramento da consciência, Resistência.


ABSTRACT

This paper deals with the peculiarities of the production of psychoanalytic knowledge, making use of analogies from the fields of archeology and sculpture, as proposed by Freud in the perspective of the resistances present in the decentralization of consciousness.

Keywords: Epistemology of psychoanalysis, Freud, Decentralization of consciousness, Resistance.


RESUMEN

En este texto se examina las peculiaridades del modo de producción del conocimiento en el psicoanálisis, a partir de las analogías propuestas por Freud con la arqueología y la escultura, en la perspectiva de las resistencias inherentes al descentramiento de la conciencia.

Palabras-clave: Epistemología del psicoanálisis, Freud, Descentramiento de la conciencia, Resistencia.


 

 

Escreve Freud a Fliess, em 03/12/1897: "Desde que comecei a estudar o inconsciente, tornei-me muito interessante para mim mesmo" (Masson, 1986, p. 286). Dessa frase jocosa e aparentemente despretensiosa, emana um tom epistemológico peculiar: no final do século 19, na contramão da ciência "oficial", na qual em um certo desinteresse pelo sujeito repousa a condição da validade de uma disciplina, é enunciado um tipo de saber que, nas palavras de Assoun (1996), "... faz o sujeito se apaixonar, legitimamente, por seu próprio traço no objeto. Só que ele não relança a fascinação narcísica, ao contrário, perturba-a, recordando-lhe a lei do Objeto não sabido" (p. 26).

É assim que o empenho de Freud no sentido de legitimar o inconsciente como objeto passível de investigação, nos moldes "científicos", faz por estabelecer uma tensão no próprio conceito de ciência, temática que atravessa as várias gerações de psicanalistas, descortinando questões cruciais para a psicanálise contemporânea. É que se trata de nomear os dispositivos que permitam explicitar que gênero de "objetividade" e de "realidade" são constitutivos do campo da clínica.

Se Freud não toma para si a paternidade do reconhecimento dos processos mentais inconscientes e da importância da sexualidade reportando-se aos filósofos e, em especial, a Schopenhauer , faz questão de destacar, no entanto, que a psicanálise "não se limita a afirmar em abstrato estas duas teses tão penosas para o narcisismo (...), mas as demonstrou em um material que toca pessoalmente a cada um e o obriga a tomar posição frente a esse problema" (Freud, 1917/1990a, p. 135, grifos meus).

É na perspectiva desse "demonstrar" e desse "material" que me parece fértil a idéia segundo a qual a originalidade de Freud, entre muitas outras coisas, se assentaria na invenção de uma espécie de materialismo que dá conta dos fenômenos assim chamamos inconscientes, como bem discute Assoun (1996), inspirado pelas idéias desenvolvidas por Bataille, em "Matérialisme" (1929/1970, p. 180). Entendo que esse materialismo se explicita enfaticamente na transmissão escrita e oral da psicanálise, no âmbito, por exemplo, do que costumamos apontar como "material clínico".

Aqui se inscreve a radicalidade da expressão de Freud (1909/1990d), no relato da análise do "Homem dos Ratos", quando solicita "um exemplo" dos temores que ameaçavam o paciente1, apresentando, em seguida, uma idéia tão promissora para reflexão o exemplo é a própria coisa: "... se se puder averiguar um exemplo, esteja seguro de que isso é o originário e genuíno destinado a ser encoberto pela generalização" (Freud, 1909/1990d, p. 131)2. Essa passagem poderia valer como modo de operação do método no âmbito da pesquisa clínica, de modo que, nesse tipo inédito de racionalidade instaurado pelo método psicanalítico gerador de teorias e fundamento de uma terapêutica , é preciso "deixar-se perseguir" por esse objeto que "exige re-conhecimento" (Assoun, 1996, p. 27). Nesse fragmento de relato de um caso clínico se explicita como o significado da proposição é sua referência obtida a partir do exemplo, desde que

(...) a fala, ao evocar um pensamento, permite a apreensão da intenção que o preside, ou seja, a de realizar desejo. Se a fala diz algo sobre o pensamento e, ao fazê-lo, diz algo sobre o desejo, então sua função se torna agora mais inteligível: ela permite evocar desejos (Gabbi Jr., 1994, p. 221).

Nesse sentido, a tese de Lebrun (1977), tão bem desenvolvida por Mezan (2002) segundo a qual trata-se de distinguir entre a ciência e as ciências, demarcando um espaço de positividade às "racionalidades regionais", próprias a cada disciplina , legitima as especificidades pertinentes à produção de conhecimento em psicanálise, na qual a convergência entre método de investigação, tratamento e construção teórica é crucial.

É nesse contexto que o exemplo não é ilustração da clínica, mas, antes, a manifestação do objeto a ser investigado: "... é um verdadeiro esquema intermediário entre o dado clínico e a `coisa' metapsicológica (...) avesso pensado da própria experiência clínica" (Assoun, 1996, p. 48). Está recortada a questão da relação estreita entre a clínica e as ficções metapsicológicas, cuja transparência aparece de modo eloqüente na introdução a "Pulsões e destinos de pulsão":

Freqüentemente ouvimos a afirmação de que uma ciência deve construir-se sobre conceitos básicos claros e definidos com precisão. Na realidade, nenhuma, nem mesmo a mais exata, começa com tais definições. O início correto da atividade científica consiste em descrever fenômenos que, então, são agrupados, ordenados e conectados. Mesmo para a descrição é inevitável aplicar ao material certas idéias abstratas, provenientes daqui e dali, não apenas da nova experiência. (...) Enquanto se encontram nesse estado, colocamo-nos de acordo acerca de seu significado, pela remissão repetida ao material empírico do qual parecem extraídas, mas que, na realidade, a elas se submetem. A rigor possuem, então, o caráter de convenções. (...) Só depois de haver explorado mais a fundo o campo de fenômenos em questão, é possível apreender com maior exatidão seus conceitos científicos básicos e afiná-los, para que se tornem utilizáveis em uma vasta amplitude e para que, além disso, fiquem por completo isentos de contradição. Então, talvez, tenha chegado a hora de confiná-los em definições. Mas o progresso do conhecimento não tolera rigidez alguma, tampouco nas definições" (Freud, 1915/1989f, p. 113, grifos meus).

Fica apontado com firmeza o estatuto de provisoriedade, mesmo dos conceitos básicos, de modo que se garanta a potencialidade criativa na relação de interferências recíprocas entre método de investigação e construção teórica. Considerando-se que a produção de conhecimento se ampara num movimento sutil de arranjos e desarranjos entre invenção e descoberta, deve ser destacado, nas palavras de Fabio Herrmann (2005), que

(...) a zona de eficácia veritativa no processo de criação não se encontra exatamente em I, na invenção, nem em D, na descoberta, mas no meio dos dois: I/V/D. Verdade (V), nesse sentido, não se confunde com confirmação, é promessa de nova produção de saber, possibilidade antecipada (pp. 12-13).

Pois é o campo intersubjetivo da experiência psicanalítica que dá à metapsicologia freudiana suas possibilidades de constituição, podendo-se considerar que o trabalho interpretativo se aloja entre o material clínico e a construção metapsicológica, que é, assim,

(...) a tentativa de dar, dos processos psíquicos inconscientes, uma descrição em termos gerais (para além do trabalho clínico com o indivíduo singular) e, ao mesmo tempo, uma explicação causal (...) Por aí se vê que a psicanálise é simplesmente impensável sem sua dimensão metapsicológica, quer esta seja vazada nos termos que Freud escolheu, quer em outros (Mezan 1998, p. 345).

 

O objeto resiste

Portanto, afirmar que construir uma psicanálise científica foi um projeto explícito de Freud é como chover no molhado: importa delinear, a partir de uma diversidade de ângulos possíveis, como se deu seu percurso para a concretização desse ideal de cientificidade, sem deixar de lado o modo nada modesto com que Freud situa sua contribuição na "História da Humanidade", ao lado de Copérnico e Darwin (Assoun, 1983).

Como se sabe, das três feridas sofridas pela humanidade, com os golpes cosmológico, biológico e psicológico, Freud considerava que a última, provocada pela psicanálise, talvez tenha sido a mais dolorosa (Freud, 1917/1990a, p. 135). A justificativa para as resistências que evoca se vinculam ao registro afetivo e não intelectual, desde que, destacando a proeminência de processos psíquicos inconscientes e de uma sexualidade que não podem ser domados completamente, promoveu o descentramento da consciência e do eu, demarcando, definitivamente, que a consciência não é soberana e que o eu não é autônomo (Birman, 1997).

Uma vez nomeada essa pulsação de resistência, de ordem estrutural e não conjuntural, é parte integrante do trabalho percorrer suas formas multifacetadas, inclusive nesse convite inspirador de Fabio Herrmann, para que se tome "a história da psicanálise como resistência à Psicanálise"... (Herrmann, 2003, p. 79, grifo meu).

Bem, parece que, ao se comemorar pouco mais de um século do destronamento da consciência do centro da vida psíquica, não deixa de ser interessante fazer uma espécie de faxina, deciframento e ressignificação da noção de "inconsciente", considerando-se as interpretações diversas a que está submetido esse termo na comunidade psicanalítica pós-Freud. Como ele, muitos outros conceitos pertinentes ao "campo" freudiano podem ter deixado de ser ferramentas úteis num trabalho de investigação, passando ao estatuto engessado de "entes", quase com existência autônoma. Embora, hoje em dia, joguem-se muitos jogos diferentes nesse campo, isto é, utilizem-se jogos de linguagem muito diversos, todos se julgam psicanalíticos, pretendendo, para si, o lugar de herdeiros autenticados da palavra do mestre.

Vários autores têm efetuado uma leitura do discurso freudiano destacando nele uma oposição teórica representada, de um lado, por uma retórica cientificista e, de outro, por uma retórica hermenêutica, como bem assinalam tanto Monzani (1991) como Birman (1991). Embora essa polêmica já tenha ocupado bastante espaço na literatura psicanalítica, parecendo que esteja um tanto démodée, creio ser relevante relembrar a questão das vertentes do "materialismo da energia" e da "análise intencional", nessa comemoração de cento e cinqüenta anos do nascimento de Freud. No centro da discussão está a convivência do método interpretativo, que representaria a verdadeira inovação do corpo teórico freudiano, com a produção metapsicológica, mais afinada ao cientificismo próprio da psicologia clássica.

O texto exemplar de Ricoeur (1977), que vai nessa direção, é expressão consistente desse ponto de vista, contrapondo o sentido e a força e tecendo uma rede de argumentações para demonstrar que a psicanálise é um saber hermenêutico. Se o ponto de partida desse autor foi considerar no freudismo uma convivência necessária de uma leitura econômica e de uma leitura de sentido como proposta de entendimento do psíquico, seu ponto de chegada acaba por produzir algo exatamente ao contrário do que Freud afirmava: só cabem no psíquico interpretações de sentido, pertencendo o restante ao nível do somático. Desse modo, argumenta Monzani (1991), "... toda problemática específica do freudismo (como conceber um aparelho psíquico que é atravessado por forças; como ele as recebe, transforma e desloca; como, por fim, entender o conceito de `energia psíquica' etc.) foi habilmente posta de lado" (p. 124).

O que o filósofo pretende apontar nesse ensaio é como as várias tentativas de leitura de Freud, empreendidas a partir de ângulos variados, das quais cita as que computa como as mais sérias (Biswanger, Hyppolite, Pribram, Ricoeur), têm tido como produto distorcer, sistematicamente, o pensamento de Freud, através de "lentes"/sistemas filosóficos que lhe são alheios, sejam eles "materialistas", "fenomenológicos", "existenciais" etc.

Nesse contexto, é fundamental resgatar as conseqüências da inovação freudiana, instaurada definitivamente no corte epistemológico efetuado em A interpretação dos sonhos (Freud, 1900/1989d). A primeira proposta teórica de Freud, em Projeto de psicologia (Freud, 1895/1995), apresentava-se no formato hipotético-dedutivo, e a inversão que ocorreu na obra matriz, conforme argumenta Bento Prado, é que esta teoria do aparelho psicológico "... estaria fundada na prática da interpretação, em lugar de fundar essa prática original..." (Prado Jr., 1985, p. 10). Essa tese do caráter originário da situação interpretativa recorta uma nova concepção da própria idéia de teoria, no contexto da época. Estaria aí a marca da originalidade dessa obra: a teoria deixa de ser uma axiomática, donde se deduzem a psicopatologia e os mecanismos do sonho, e, inversamente, é produzida a partir da prática original de interpretação do sentido dos sonhos: "O olhar lúcido que deslinda o emaranhado das significações do sonho (guia e fio condutor dos sintomas da patologia) é um olhar desarmado teoricamente. Que estranha lucidez é essa que não retira sua eficácia da eficácia do conceito?" (Prado Jr., 1985, p. 37).

A nova teoria do aparelho emerge desse novo processo de construção, que marca uma ruptura com a concepção usual da relação entre teoria e prática, entre conhecimento puro e aplicação técnica. O autor pretende enfatizar que "... a interpretação dos sonhos precede e fundamenta a arquitetura da teoria", o que tem como conseqüência enunciar que "... a teoria não tem fundamento objetivo". Seria nessa "surpreendente decisão", que repousaria a marca da originalidade do discurso psicanalítico.

Nessa perspectiva, perseguir o que é próprio do discurso freudiano significa entender suas vertentes energéticas e de sentido como "...indicio de uma problemática teórica e não como um equívoco" (Birmam, 1991, p. 19). Isso não quer dizer que a solução dessa tensão tenha sido alcançada, mas, sim, que é possível desenhar o campo teórico no qual poderia ser tematizada na modernidade.

 

A fala como ato

Pode-se supor que a aparente dicotomia entre uma energética e uma semântica na teoria freudiana seja fruto da oposição entre explicar e compreender, que se desdobra na separação entre afeto e representação, par nuclear das encenações metapsicológicas. Uma alternativa de pesquisa interessante é trazida pela proposta de articulação da metapsicologia com a prática clínica, por meio da utilização da teoria dos atos de fala de Austin (1990), que fornece instrumentos capazes de evitar, eventualmente, os embaçamentos que os pontos de vista de leitura de Freud, citados anteriormente, podem provocar (Gabbi Jr.,1994). Caminhemos um pouco na direção proposta pela natureza dos atos de fala — performativos e fala fundadora —, conforme definidos por esse autor.

Entende-se que o trabalho do analista se orienta no sentido de possibilitar que os atos de fala do paciente falhem, isto é, o analista pretende não responder aos efeitos que o paciente espera provocar nele com sua fala. Nas palavras de Forrester (1990), o analista espera desfazer ou neutralizar os efeitos inconscientes dos atos de fala que o paciente realiza contra sua vontade, procurando dar condições de emergência da fala plena, que o transforma no próprio ato de dizer, estratégia que visa a dar condições de operação do processo primário, no qual a fala como sintoma apresenta-se em toda a sua exuberância. É uma questão obviamente nuclear, considerando-se que, no decorrer do percurso freudiano, a fala — que, inicialmente, era concebida como tendo duas funções, uma evocativa de estados emocionais e outra descritiva — adquire definitivamente o caráter de sintoma, formação de compromisso entre desejos em conflito (Gabbi Jr., 1994, p. 221).

Se a situação de análise espera promover um tipo de processo que promova falhas na fala, supõe-se que o jeito de essa falha ocorrer estará articulado a uma configuração de funcionamento peculiar a cada paciente. Ou seja, o esburacamento/desagregação na fala do analisando promovido pelas estratégias do analista de permitir que seus performativos falhem apresenta as formas de organização do desejo, que são expressas através das brechas/vazios, não recheados por meio da operação do processo secundário.

Considerando-se a afirmação seminal, pronunciada nos primórdios da pesquisa freudiana, segundo a qual "... as palavras são o instrumento essencial do tratamento anímico" (Freud, 1890/1990f, p. 115), creio que nos importa a crítica de Austin tanto à concepção positivista que pretende classificar os enunciados segundo as dimensões verdadeiro/falso quanto à idéia de que os enunciados seriam representações de estados "internos". Temos aí uma perspectiva promissora para a tematização das especificidades da "fala em análise" e da produção de conhecimento pertinente ao setting analítico.

Pois, embora uma das bases do que se entende por método científico seja ser possível substituir um sujeito de conhecimento por qualquer outro e que os experimentos sejam passíveis de repetição e verificação proposta que traz como fio condutor a idéia de uma comunidade democrática de cientistas , a concepção austiniana dos atos da fala, como argumenta Forrester (1990), "não faz senão revelar o quanto é estranha ao uso ordinário da fala essa noção de sujeito" (p. 109). Se as interpretações do setting analítico tiverem esse ideal científico de simetria como perspectiva, estarão supondo que esses estados da mente deverão ser imitados na mente do ouvinte, ideal de comunicação completamente absurdo na situação analítica.

 

O inconsciente como o reverso da interpretação

De modo que a questão que insiste é: "Que tipo de cientificidade nos traz o discurso psicanalítico? E, a partir daí, nossa idéia de ciência deve ser reformulada ou não?" (Monzani, 1991, p. 131). Trata-se de demarcar que, nesse saber constituído na interpretação, é formulada "... uma concepção de sujeito que funda este campo de interpretação. No discurso freudiano, não existe sujeito sem que se considere, simultaneamente, a existência da interpretação, pois neste discurso o sujeito é, de fato e de direito, um intérprete" (Birman, 1991, p. 14).

Também as concepções de sujeito do inconsciente e de um saber da interpretação recortam os limites e impasses da experiência psicanalítica, que, embora culminem com o irrepresentável, explícito na conceituação de pulsão de morte (Freud, 1920/1990c), tem seus antecedentes vislumbrados desde os primórdios da constituição da psicanálise, quando ao "umbigo do sonho" poderia ser conferido um estatuto conceitual: "Então esse é o umbigo do sonho, o lugar em que ele se assenta no desconhecido" (Freud 1900/1989d, p. 519, grifo meu), está escrito na frase tão famosa. Vinte e cinco anos depois, Freud reafirmará, incisivamente, a respeito da incompletude de uma interpretação: "... não temos mais remédio senão nos familiarizarmos com essa polissemia dos sonhos" (Freud, 1925/1989a, p. 131). É nesse contexto que o conceito de construção ocupa um lugar proeminente (Freud, 1937/1989b), destacando-se o teor necessariamente ficcionante do exercício clínico.

Embora, como nota Strachey (1989), as construções tenham merecido menos espaço que as interpretações, comparecem de modo consistente nos relatos de "O Homem dos Ratos" (Freud,1909/1990d), em "O Homem dos Lobos" (1918/1990b), o qual gravita quase inteiramente em torno desse procedimento, e, principalmente, em "Sobre a psicogênese de um caso de homossexualidade feminina" (1920/1990e). Esse último trabalho já está, portanto, dentro do reinado do segundo dualismo pulsional, que faz tremer em suas bases a busca incessante de uma referência última que esclarecesse e, portanto, dissolvesse as formações substitutivas (Freud, 1895/1995, p. 60). A noção de construção ajuda, portanto, a delimitar com mais precisão os limites do trabalho interpretativo, ao criar algo que não estava presente no registro mnêmico do analisando, tendo como suporte a experiência analítica e testando sua veracidade no material transferencial. Portanto, a rigor, já desde 1900, é possível afirmar que

(...) esse caráter de inacabamento essencial da interpretação não decorre de uma deficiência do método, mas é constitutivo dele. Significa, sobretudo, que não há começo nem fim absolutos, que não há uma verdade essencial e imutável a ser descoberta, e, mais do que tudo, que não há sentido sem interpretação, assim como não há interpretação sem sentido (Garcia-Roza, 1984, p. 71).

Essa amarração do sentido à interpretação e a constatação de uma pluralidade de sentidos, jamais esgotáveis pela interpretação, iluminam através de outro ângulo a questão da verdade no trabalho analítico. Não há verdades imutáveis, mas, sim, um processo de interpretação contínuo, que jamais chegará numa origem pontual e definitiva. Escreve Herrmann (1991):

Do inconsciente, sendo inconsciente nada sei. Sei apenas que o caminho da interpretação foi este ou aquele; por conseqüência, chamo de processo gerador da fantasia ao percurso contrário. Não dispondo de outro modo de conhecer o inconsciente senão o da interpretação, é legítimo dizer que, para fins práticos, o inconsciente é o reverso da interpretação. Mas é ilegítimo (...) dizer que o inconsciente, em si mesmo, é isto ou aquilo. Principalmente se aduzisse que minha interpretação é correta porque descobriu o inconsciente (p. 98).

Se a interpretação jamais se apaziguará no encontro com uma verdade absoluta, a relação da produção do inconsciente com o próprio método interpretativo é fundamental. Continua Herrmann (1991):

(...) o ponto de fuga da veracidade interpretativa, que a dimensiona radicalmente, é a reversibilidade entre método e inconsciente, que se deduz do fato de que só se pode saber do inconsciente pela inversão dos passos metodológicos que o descobrem, sendo que estes não explicariam a eficácia clínica se não se identificassem realmente, mas de forma invertida, com o próprio inconsciente (p. 101).

 

O arqueólogo e o escultor

Bem, retomemos o belo texto "Construções em análise" (Freud, 1937/1989b). É ali que se autentica a analogia entre o trabalho do analista e o do arqueólogo, tão cara a Freud e tão prenhe de conseqüências. O trabalho de ambos é "idêntico", embora o primeiro trabalhe em melhores condições, tendo acesso a mais material auxiliar, porque se dirige a algo que está "... vivo, não a um objeto destruído..." (p. 261). O arqueólogo depara-se com objetos que apresentam partes irremediavelmente perdidas, ao contrário do objeto psíquico, cuja pré-história é perseguida pelo trabalho analítico. Pois, neste caso, "todo o essencial se conservou, embora pareça esquecido por completo; está ainda presente de algum modo e em alguma parte, só que soterrado, inacessível ao indivíduo" (p. 262, grifos meus).

É afirmado que tanto se persegue o esquecido "...a partir dos indícios que este deixa atrás de si, dizendo melhor, temos de construí-lo" (p. 260), como também que "... todo o essencial se conservou em alguma parte", como algo que tivesse existência. Há o encontrável e nomeável e há o inomeável, desde que não encontrável, e que, portanto, deverá ser construído.

Aí está, num dos últimos textos de Freud, a dupla vertente subjacente a toda sua produção teórica: de um lado, um ideal de cientificidade condizente a sua época, que o levou a instrumentalizar-se de uma noção de verdade enquanto correspondência, lançando-o na aventura da busca incessante de uma referência ("está em alguma parte"); e, de outro, a ênfase na plasticidade/polissemia das palavras, de que se deriva que o método analítico deve prescindir da busca das origens da qual, ao que tudo indica, Freud nunca abriu mão completamente. É assim que escreve, em um tom conformado, o brilhante cientista do final do século 19: "... não temos mais remédio, senão nos familiarizarmos com essa polissemia dos sonhos" (Freud, 1925/1989a, p. 131, grifo meu).

As analogias das quais Freud se servia ao tratar do fazer e dos afazeres do analista são pistas instigantes de pesquisa para seus sucessores. É o caso do texto exemplar em que a figura inspiradora de Leonardo da Vinci (Freud, 1905/1989) é o veículo que presentifica as diferenças entre a sugestão e a análise, por meio da imagem dos procedimentos da pintura, per via di porre, colocando substâncias e cores numa tela em branco, e da escultura, per via di levare, retirando da pedra tudo que recobre as formas da escultura nela contida (p. 250).

Costa (1994) formula uma hipótese interessante sobre essa passagem, considerando que os caminhos que seus seguidores trilharam, formando o vasto panorama da psicanálise pós-Freud, convergiram em duas versões básicas distintas de interpretar essa injunção técnica de Freud.

A primeira versão, que parece tomar Freud ao pé da letra, desenha como objetivo do trabalho analítico, seja no decorrer do processo, seja no final da análise, atingir a forma e o conteúdo da escultura escondida. Espera-se dar voz a um existente mudo (está lá, é só achar) que só falava o idioma do sintoma e que passa a encontrar a representação de palavra adequada (sabemos que, para Freud, a neurose é um rompimento da ligação entre a representação de objeto e a de palavra). Essa linhagem tende à vertente nominalista de Freud: a escultura pode ser vista como trauma real, lembrança traumática, fantasia traumática, complexo imagóico recalcado ou "verdade histórica" ou "história objetiva de vida", como distinguiu Freud no final do texto "Construções em análise" (Freud, 1937/1989b, p. 270). O fato acontecido e guardado a verdade vem à luz, rememorado e nomeado através do campo transferencial, onde aparece, viva, uma fatia do passado inconsciente, infantil e sexual.

A segunda versão corresponde a uma crítica da versão anterior. Há, claro, o inconsciente, mas a verdade não é histórica, se entendermos com esse termo as histórias que podemos contar sobre nós mesmos. Para essa leitura, a verdadeira escultura escondida é a arquitetura da linguagem. É esta uma matriz ou estrutura, um a priori, anterior à condição social e inerente ao humano. Inatingível, embora geradora das regras de constituição que se fazem a partir dela. Essa matriz permite, portanto, a passagem do acontecimento sem sentido para um acontecimento com significação. É ela que delimita o que, do vivido, poderá se transformar em narrativas possíveis ou dizíveis conscientemente, isto é, dela depende o sentido das interpretações que o sujeito dá de sua história, independente de suas intenções conscientes ou do intérprete.

O inconsciente, segundo esse ponto de vista, não é um depósito, não contém imagens, eventos ou conteúdos descritíveis sob a forma de narrativas, ou seja, "auto-consistentes na lógica dos enunciados" (Costa, 1994, p. 11). O inconsciente possui as propriedades da "estrutura da linguagem", não existindo nele "histórias do sujeito", mas sim, um "sujeito da estrutura". Embora singularizado por traços lingüísticos, estes não o descrevem, não o predicam, não dizem nada de positivo sobre ele. O sujeito da estrutura lingüística é nomeado por um significante que não o qualifica, singularizando-se apenas pela diferença com outros significantes do mesmo tipo.

Nesse caso, o radicalismo subjacente a essa corrente, no procedimento per via di levare, é que, ao se retirar o excesso que encobre a escultura, descobre-se uma "escultura vazia", ou melhor, um vazio de escultura, que é um esqueleto formal. Assim, a verdade do sujeito inconsciente não se aloja nas narrativas de sua história real ou fantasiada, não se subordina às categorias do verdadeiro/falso, certo/errado, desde que o inconsciente e seu sujeito não são isto ou aquilo, mas simplesmente são. Isto é, são uma cadeia de significantes que nada significam. A estrutura da linguagem é anterior ao sentido e os conteúdos descritivos de história, subordinados a ela, lhe são secundários. Nessa perspectiva, a metáfora da "escultura escondida" seria o mito epistêmico infantil da psicanálise (Costa, 1994, p. 13). O trabalho analítico pretende mostrar como de um determinismo estrutural originou-se um sujeito do desejo e, nele, sintomas e histórias de vida "... são meros acasos retrospectivamente racionalizados como história psicológica (Costa, 1994, p. 13)3.

O que é instigante na argumentação de Costa é que essas duas versões tão visceralmente opostas, uma procurando um sentido no "cheio", no baú recheado, outra delineando-o no esvaziamento radical, apresentariam um ponto de interseção ao definirem uma posição, de certa forma, dogmática, do que seja "o verdadeiro". Parecem gravitar em torno de uma espécie de "centro": seja ele chamado um eu, um sujeito ou uma estrutura vazia. Em linhas gerais, há um agente promotor ou subjacente que se destaca do conjunto de forma privilegiada.

Em um caso, o ideal do processo psicanalítico visa à descoberta do verdadeiro sentido histórico de um evento inconsciente e, em outro, do verdadeiro sujeito do desejo, estruturado como uma linguagem. Na visão estrutural, o mito da interioridade se desvanece, ocorrendo o descentramento em relação à consciência por duas vias: pela origem alteritária do eu (que dispensa qualquer interesse numa gênese do eu) e pela diferenciação entre o(s) eu(s) empírico ou fenomênico (moi) e o sujeito estrutural (je). Entretanto, parece que, a contragosto de sua proposta original, a visão estrutural, ao se opor à metafísica da mente e à visão realista das sensações e imagens internas, acabou escorregando para uma "... metafísica da falta e do desejo" (Bezerra, 1994, p. 138).

Ambas as versões apresentadas pretendem atingir um verdadeiro sujeito do inconsciente, seja estrutural (mesmo que esteja na superfície, como diz Lacan), seja histórico (nas profundezas abissais da psique). Isto é, ou se trata de uma "escultura escondida", ou de uma "estrutura invisível".

Nos dois casos, "... imagina-se um sujeito distinto das atividades que o formam" (Costa, 1994, p. 14). Sabemos que no neo-estruturalismo o significante é definido como o que envia o sujeito a outro significante. E o significante-sujeito, embora possua tudo o que os outros significantes da língua têm isto é, define sua identidade de forma relacional pela diferença que estabelece com outros significantes , é também um "significante à parte", especial, colocado "... num nicho teórico exclusivo que imanta todos os demais" (p. 15).

O que quer dizer que o sujeito é efeito do significante e cabe, também a ele, simultaneamente, pôr em andamento a cadeia significante. Pois uma linguagem sem sujeito não pode estabelecer a identidade ou diferença semântica de seus termos. Como o sujeito não é uma pedra, isto é, por ser atravessado pela linguagem, expressando a capacidade de intencionalidade, a maneira como é "marcado pelo significante" tem repercussões no desejo e o sensibiliza às mudanças da língua. Ser sensível às inovações da língua significaria "ter consciência de mudanças"? Mas isso significaria o paradoxo de admitir a consciência no inconsciente. Ou seja, para acompanhar a plasticidade e variabilidade da língua falada a qual todos conhecemos, ou melhor, da qual dizemos que temos consciência é necessário explicitar um significante especial que faça na estrutura o que a consciência faz no sentido, na fala ordinária. A questão que se pode colocar é se essas concepções, a contragosto de seus autores, ainda estariam presas a uma filosofia da consciência embora encobertas por um formalismo sofisticado.

Lembremos que a crítica da filosofia analítica da linguagem à filosofia da consciência, como desenvolve Tugenhadt (1982), não é tanto por se tratar sempre de uma consciência de objeto, mas por serem estes referidos a representações, das quais Freud se serviu amplamente no decorrer de toda sua obra.

No contexto dessas idéias, é relevante que o aparelho psíquico freudiano seja, basicamente, um aparelho de memória, evidência que transparece no esquema do capítulo VII de A interpretação dos sonhos (Freud,1900/1989d), no qual a consciência, num dos extremos do eixo, percebe algo que já foi organizado pelos sistemas intermediários. Nesse quadro, a consciência é função da memória, e não da percepção, não sendo imediata, desde que é mediada por uma representação de objeto, oriunda da representação de palavra articulada à representação de coisa, conforme explicita a amarração conceitual presente no artigo "O inconsciente" (Freud, 1915/1989c).

O sujeito procura, portanto, re-encontrar. Nesse sentido, é irrelevante que se trate de consciência de um objeto, pois, como insistiu Freud, o que a pulsão tem de menos específico é seu objeto. No âmbito da discussão desse momento, é relevante destacar que o aparelho psíquico freudiano, mesmo tendo descentrado a consciência, se ancora em representações, o que significa situar a linguagem entre a mente e o mundo. Portanto,não basta enfatizar a função inconsciente da maior parte da psique, para se livrar dos fundamentos de uma filosofia da consciência, cuja herança na psicanálise freudiana poderia ser detectada na instância eu e nesse gancho à noção de representação.

Entretanto, como a rede de complexidade se adensa, na trilha das eventuais ambigüidades das invenções freudianas, deve ser destacado que esse nominalismo, que, em suas origens, se reportaria a Stuart Mill (Freud,1891/1977), corresponderia a uma das vertentes filosóficas de fundamentação de suas investigações, com certeza a mais estreita em termos de seu potencial heurístico e francamente em desacordo com as posições teórico-metodológicas tão bem condensadas, já em 1900, na metáfora do "umbigo do sonho" (Loffredo, 1999).

 

O descentramento radical no desvanecimento de um centro

Voltemos às metáforas da escultura escondida e da estrutura invisível. Costa, englobando-as no que foi definido por Rorty (1991) de "ideal de autopurificação", propõe outro caminho para o trabalho analítico, delineado pelo que esse autor denomina "ideal de auto-enriquecimento", que poderia ser enunciado pela seguinte máxima pragmática:

... não pergunte "o que realmente sou"; "qual meu verdadeiro eu"; "o que de essencial existe em mim". Pergunte: "como posso redescrever-me, de maneira a viver uma vida melhor ou mais bela". (Rorty, 1991, p. 146, citado por Costa, 1994, p. 21).

Trata-se de uma operação per via di porre, desde que "... não visa a descobrir o que está realmente lá, oculto na ficção de um inconsciente gasoso, nem tampouco na superfície de uma estrutura invisível, prêt-à-penser ou prêt-à-parler" (Costa, 1994, p. 21). O que está subjacente, nesse caso, é uma concepção de sujeito muito diferente das nomeadas em outras teorias da linguagem, conforme apresenta Rorty, inspirando-se em Davidson (Bezerra, 1994, p. 156).

Uma vez abandonada a noção de representação para descrever a linguagem, é esta substituída pela noção de crença, entendida como regra para a ação. A crença é instaurada, mantida e modificada como respostas a eventos, e não por deliberação racional ou efeito da operação de significantes. Isso não tem nada a ver com sua maior ou menor adequação na representação da realidade. Também a noção de desejo apresenta-se articulada, nessa concepção que rejeita a existência da "mente", como algo não substancializável. Não é algo que habita o sujeito, prévio à ação, e coordenando-a de fora. Não se trata nem de algo existente nas profundezas do psíquico, nem de algo subjacente à superfície do lingüístico, que inspira a ação de forma invisível: "Inscrito na linguagem, presente na ação, o desejo é aquilo que é visado. Não há linguagem sem desejo, nem há ação não-desejante. A intencionalidade da linguagem e da ação é a expressão do que chamamos desejo" (Bezerra, 1994, p. 157). Devendo ser assinalado, como o faz Bezerra, que, se não há um essencialismo mentalista, também não se trata de um desejo estrutural a que estariam subordinados todos os desejos empíricos. Pois isto apenas significaria trocar o fantasma na máquina pelo fantasma entre as linhas (Costa, 1989).

Daí a definição de sujeito: "Uma rede de crenças e desejos que deve ser postulada como causa interior do comportamento lingüístico de um organismo singular" (Rorty, 1991, p. 123, citado por Bezerra, 1994, p. 157). Importa enfatizar que este sujeito não possui esta rede, ele é essa rede. Segundo a concepção de Davidson (1982), como há conflito entre os subconjuntos da rede, que não apresentam coerência interna entre si (como concebe Freud com os sistemas Inc e Prec/Cc, que funcionam segundo leis próprias), essa rede supõe uma subjetividade clivada. Em suma, "...sujeito passa a funcionar como um nome coletivo e designar todos os eus, todas as formas de articulação de crenças e desejos que o organismo singular é instado a organizar, e que podem ser postulados como causas de seus comportamentos" (Bezerra, 1994, p. 157).

O que é interessante em tudo isso é como Freud, trinta e três anos depois de definir o caráter sistêmico do inconsciente, afirmará nas Novas conferências:

O mais antigo e melhor significado da palavra "inconsciente" é o descritivo; chamamos inconsciente a um processo psíquico cuja existência somos levados a supor, porque o deduzimos a partir de seus efeitos, e sobre o qual, entretanto, nada sabemos (Freud, 1933/1989e, p. 65).

Nesse contexto, importa menos defini-lo do que acompanhá-lo em seu modo de operação, pois o que o caracteriza é uma atividade. Creio que aqui se inscreve uma perspectiva fértil a partir da qual se colocam questões sobre e para a psicanálise. A utilidade da filosofia analítica da linguagem para tratar de certos impasses em que se debate a teoria psicanalítica repousa em sua possibilidade de oferecer uma outra opção metodológica para lidar com as noções de sujeito, inconsciente, desejo, intenção e consciência.

Dizer, como o faz a filosofia analítica, que o sujeito nada mais é que um efeito de linguagem significa falar do sujeito sem necessitar de nenhum outro referente, exceto as palavras ou proposições que o definem. O eu deixa de ser um nome próprio e transforma-se numa partícula mínima identificadora na sentença. O segundo Wittgenstein, o das Investigações filosóficas, é o fio inspirador maior dessa corrente, que pode ser esclarecida com o comentário de Gabbi Jr. (1994): "Como ele, acreditamos que o interesse da teoria psicanalítica está em questionar nossas formas habituais de ver as coisas, na medida em que ela ressalva e enfatiza constantemente a polissemia presente na linguagem" (p. xvi).

Enfim, haveria duas maneiras de interpretar o deslocamento coperniciano promovido por Freud, ao retirar a consciência do centro da vida psíquica (Bezerra, 1994). De um lado, considerando que esse centro estaria noutro lugar; a análise se voltará, então, a sair do superficial em busca do profundo, do ilusório em busca do verdadeiro, do contingente em busca do essencial. A outra maneira inspirada pelas idéias que estão sendo exercitadas aqui , representada pela linguagem antiessencialista de Rorty (1989), que se ampara nas concepções de Davidson (1982), Wittgenstein (1979) e Austin (1990), entende que essa novidade instaurada por Freud "... põe abaixo todas as distinções tradicionais entre o mais alto e o mais baixo, o essencial e o acidental, o central e o periférico. Ele nos deixa com um sujeito que é um tecido de contingências..." (Rorty, 1989, p. 32).

Nesse caso, uma leitura possível e mais radical do descentramento freudiano seria entendê-lo como uma provocação ao abandono da necessidade de um centro, e, portanto, de algo como um agente ou estrutura, não importa se consciente ou inconsciente, que pudesse operar fora dos enunciados através dos quais o sujeito se apresenta. A linguagem é uma atividade que apresenta, desvencilhada da missão de representar algo que preexiste a sua enunciação. Não serve de veiculo a um sentido, mas o realiza como ato (Bezerra, 1994, p. 151). Inscrita numa prática social, é concebida como um conjunto de ferramentas que se volta para atingir certos objetivos na interação com outros homens e com o mundo. Daí a famosa frase de Wittgenstein: "O significado de uma palavra é o seu uso na linguagem". Seu sentido é investigado por meio das regras estabelecidas nos diversos jogos de linguagem.

Com a expressão "jogo de linguagem" fica firmemente assinalada a pluralidade de usos em que se manifesta a linguagem, o caráter social e histórico das regras que lhe são subjacentes. E, principalmente, a proposta de que se possam apreender as experiências lingüísticas sem que seja necessária qualquer definição da essência da linguagem. Ou seja, é absolutamente prescindível qualquer definição precisa, formal ou metafísica desse "ente" abstrato que se chama "A Linguagem".

Mesmo a teoria estrutural, embora se afaste de qualquer sentido pré-lingüístico, isto é, de qualquer referência que daria sentido às palavras, acaba configurando "A" linguagem como uma cadeia de elementos vazios de sentido que se "recheiam" secundariamente de sentido, a partir do jogo de diferenças entre os significantes.

Também a perspectiva de que dizer é fazer (Austin, 1990) nos dá novos elementos para tratar da clássica oposição representação e força, brevemente anunciada no início do texto. Sendo a linguagem uma ação e a fala um ato lingüístico desenvolvido na interação com o meio, é sempre intencional o que significa não só que visa um objeto, mas que também é necessariamente animada por uma tensão que permite que se realize. A característica de ser performativa é, portanto, algo próprio à linguagem e não um acessório opcional (Bezerra, 1994, p. 151).

Enfim, trata-se de capturar qual a relação do inconsciente esse objeto que resiste, ao provocar resistência com a linguagem, pois é nela que se assenta a adjetivação do humano e a possibilidade do trabalho analítico. De qualquer forma, ocupar-se da natureza do inconsciente, seja ela lingüística seja biológica, é uma questão desprovida de interesse. Embora, sem dúvida, possa ser um "jogo de linguagem" a mais, cujas regras, como sempre, estarão ao gosto da contemporaneidade de seus jogadores. Como esse exercício de reflexão que agora se finda.

O que importa mesmo é não perder de vista, numa espécie de vigilância epistemológica, que a estrutura íntima desse objeto, como nos adverte Freud (1937/1989b, p. 262), em um de seus últimos trabalhos, "...esconde, entretanto, muitos segredos".

 

Referências

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Endereço para correspondência
Ana Maria Loffredo
R. Padre Bento Dias Pacheco, 33 — Pinheiros
05427-070 São Paulo, SP
Fone: 3815-0833
E-mail: anamloff@usp.br

Recebido em: 29/05/06
Aceito em: 29/06/06

 

 

* Do Instituto de Psicanálise da SBPSP.
1 "Havia pessoas, moças, que me agradavam muito e por quem eu sentia um urgentíssimo desejo de vê-las despidas. Mas, ao desejar isto, tinha um sentimento estranho, como se algo devesse acontecer se eu pensasse nessas coisas, e devia fazer todo tipo de coisas para evitá-lo". Ao responder a Freud, indica como exemplo desses temores: "Meu pai morreria". Para espanto do analista, que, por sua vez, comenta: "Nessa oportunidade, escuto assombrado que seu pai, por quem se inquietam seus temores obsessivos de hoje, tinha morrido há vários anos" (Freud, 1909/1990d, p. 130).
2 A tradução de textos em língua estrangeira, quando não explicitada nas Referências, deve-se à Autora.
3 Fica claro por que Lacan (1978), expoente máximo dessa corrente em psicanálise, privilegia a narração, em detrimento da narrativa, pois a primeira permite ter acesso ao verdadeiro objeto da análise, da ordem do simbólico o je; a segunda, por sua vez, articula-se a essa formação sintomática, que atua na dimensão do imaginário e se origina na percepção o moi, que tende assintoticamente àquele, sem que jamais coincidam plenamente.

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