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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. v.39 n.71 São Paulo dez. 2006

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

Fronteiras no trabalho clínico com casos-limites1

 

Frontiers in the clinical work with borderline patients

 

Fronteras en el trabajo clínico con casos-límite

 

 

Nelson Ernesto Coelho JuniorI,* ; Patricia Vianna GetlingerII,**

I Professor dos cursos de graduação e pós-graduação do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
II Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O texto procura descrever e analisar os elementos comuns (e alguns elementos contrastantes) do atendimento de dois pacientes que podem ser considerados casos-limites. As duas experiências contratransferenciais relatadas são postas em diálogo com teorizações propostas por diferentes analistas no atendimento de pacientes difíceis. O texto procura elaborar, também, a relação dessas experiências com os elementos transferenciais subjacentes. No que concerne às reações transferenciais, são enfocadas a fragilidade das fronteiras do ego, as angústias de separação e intrusão e a tendência à cisão (splitting) no funcionamento egóico. Com relação aos efeitos contratransferenciais deste tipo de funcionamento egóico e de padrão transferencial, são enfocados particularmente os aspectos relativos ao impacto no sentido de identidade do analista e os aspectos que exigem do analista uma maior "elasticidade psíquica".

Palavras-chave: Casos-limites, Transferência, Contratransferência, Fronteiras do ego.


ABSTRACT

This paper aims to describe and analyze the common elements (and some contrasting elements) within the clinical work involving two patients considered borderline. Both countertransferential experiences are described in dialog with theories proposed by different analysts about their work with so-called difficult patients. The paper also aims to elaborate the relation of these experiences to the subjacent transferential elements. Regarding the transferential reactions, the following aspects are emphasized: the fragility of the ego boundaries, separation and intrusion anxieties, and the patient's split ego functioning. The countertransferential effects of this type of ego functioning and transferential standard, particularly those related to the impact on the sense of identity of the analyst and those related to the analyst's "psychic elasticity" are other ideas to be developed within this text.

Keywords: Borderline patients, Transference, Countertransference, Ego boundaries.


RESUMEN

En este trabajo se pretende describir y analizar los elementos en común (y algunos elementos contrastantes) del atendimento de dos pacientes que pueden ser considerados casos-límite. Las dos experiencias contratransferenciales relatadas son comparadas con teorizaciones propuestas por diferentes analistas en el atendimiento de pacientes difíciles. En este artículo también se busca analizar la relación de esas experiencias con los elementos transferenciales subyacentes. En relación a las reacciones transferenciales, son enfocadas la fragilidad de las fronteras del ego, las angustias de separación e intrusión y la tendencia a la cisión (splitting) en el funcionamiento egoico. En lo que se refiere a los efectos contratransferenciales de este tipo de funcionamiento egoico y de patrón transferencial, son enfocados particularmente los aspectos relativos al impacto en el sentido de identidad del analista y los aspectos que exigen del analista una mayor "elasticidad psíquica".

Palabras clave: Casos-límite, Transferencia, Contratransferencia, Fronteras del ego.


 

 

Cada vez que a paciente inicia uma frase, o analista cai dormindo. O tom monocórdio desta jovem paciente provoca intenso sono e praticamente põe o analista a nocaute. Ao final da frase da paciente o analista desperta vívido do sono letárgico, sem saber do que a paciente falava. Nos longos silêncios que se seguem, o analista permanece acordado, tentando recuperar dentro de si não só as informações perdidas, mas, principalmente, a possibilidade de um estado de mente vivo e pensante. Isso se repete inúmeras vezes durante boa parte das sessões, o que leva o analista a costurar uma "colcha furada" de informações desconexas, formada unicamente por inícios e finais de frases. Nesse quebra-cabeça faltam as informações centrais, os elementos conectivos; mas sobram os aspectos emocionais e sensoriais, fortemente vividos pelo analista nesse acorda-dorme, lembra-esquece, vive-morre.

Outra paciente, de meia-idade, provoca em seu analista sensações, emoções e estados de atenção tão extremados quanto esses, mas eventualmente em sentido contrário. Ela preenche a sessão com uma forte tensão e algumas vezes com uma excitação verbal (quase) maníaca de actings in e actings out histeriformes — preocupantes, sem dúvida, mas nunca enfadonhos. A atenção do analista mantém-se fixa e ele segue cada detalhe da comunicação da paciente com ânimo incomum, debatendo vivamente os assuntos por ela propostos. Em muitos momentos o analista se vê convocado a responder de modo totalmente honesto e direto às questões que a paciente lhe coloca sobre seus pensamentos no aqui e agora das sessões, como condição paradoxal para manter seu papel de analista. Com um histórico de surtos que antecedem a análise, não raro esta paciente faz com que o analista passe o fim de semana ocupado, em seus pensamentos, com o que pode ter acontecido com ela em função de alguma coisa dita por ele, ou silenciada, durante uma das quatro sessões da semana.

Este artigo procura explorar os elementos comuns (e alguns dos elementos contrastantes) nos casos das pacientes acima, que podem ser consideradas pacientes "difíceis"2. Em particular, abordaremos as experiências transferenciais e contratransferenciais vividas nas duas análises e seus efeitos nas alterações das fronteiras do ego3 das pacientes e dos analistas. O que se observou nos dois casos foi a fragilidade das fronteiras do ego das pacientes provocando experiências de fragilidade nas fronteiras do ego dos analistas. O texto procura compreender, então, a relação desta experiência com os elementos transferenciais subjacentes, enfocando particularmente a fragilidade das fronteiras do ego, as angústias de separação e intrusão e a tendência à cisão (splitting) no funcionamento egóico de paciente e analista. Com relação à contratransferência, buscaremos expor o impacto no sentido de identidade do analista e os aspectos que exigem dele uma maior "elasticidade psíquica". Evidentemente, os aspectos do funcionamento psíquico apresentados acima estão muito interligados, podendo aparecer na experiência analítica de modo concomitante. Muitas vezes encontramos alguns destes aspectos funcionando em um processo de mútua causalidade. Apesar disso, é possível discriminá-los para acompanhar de perto certos momentos de uma análise e compreender em maior profundidade o funcionamento de alguns pacientes. Não nos preocuparemos em explicitar nossas hipóteses de como os pacientes que motivaram este texto chegaram a ter as dificuldades que têm. Ou seja, não descreveremos a origem e o desenvolvimento de seu sofrimento psíquico. Nossa ênfase recairá na apresentação de algumas características do funcionamento psíquico dessas pacientes e das exigências que elas acabam por criar sobre o analista no desenrolar do tratamento analítico.

Consideramos que as duas pacientes possam ser tidas como fronteiriças, embora o que se evidencie, de forma bastante complexa na maioria dos casos-limites, é que apesar de esta nomenclatura procurar abranger de forma mais ou menos uniforme um grande número de pacientes, não raro temos dificuldade em "encaixar" certos aspectos singulares de alguns pacientes nesta grande categoria descritiva. Seja por não apresentarem alguns dos aspectos tidos como típicos, seja por apresentarem, principalmente em algumas fases do trabalho, aspectos mais comuns a uma neurose ou a uma psicose. O que reconhecemos é que a especificidade de cada paciente considerado fronteiriço acaba por questionar ou mesmo recusar descrições muito gerais sobre um suposto modo de funcionamento psíquico. Quando pensamos nas neuroses, sabemos distinguir com um bom grau de clareza, por exemplo, características da neurose obsessiva daquelas da histeria. Recorrer, no caso dos pacientes difíceis, às distinções entre a problemática esquizóide e a problemática narcisista pode ajudar, mas não chega a resolver o problema. De certa forma, as indefinições provocadas nas tentativas de uma maior clareza na demarcação do que seria ou do que não seria um caso-limite é parte da própria marca transferencial-contratransferencial gerada no atendimento a esses pacientes. Tanto os limites e fronteiras psíquicas do paciente são indefinidos, quanto tenderão a ficar indefinidos os limites e fronteiras psíquicas do analista, em contato com a intensidade e primitivismo dos mecanismos psíquicos presentes nesses atendimentos. Assim, ao invés de nos determos em questões gerais sobre as definições e categorizações dos chamados pacientes difíceis, manteremos como foco os dois atendimentos mencionados e a especificidade do que ocorreu em cada um deles.

Comecemos pelas alterações no estado de vigília do analista no atendimento à primeira paciente em questão. Este efeito contratransferencial, bem como todos os seus correlatos que revelam o grau de vitalidade do analista na sessão, é de suma importância, já que no atendimento de pacientes mais seriamente perturbados o recurso à associação livre e a uma escuta em atenção igualmente flutuante em geral não chega a ser suficiente. Neste caso, isso é evidente pela sonolência que vai sendo provocada no analista, que mal consegue seguir o fluxo associativo da paciente. Sua atenção não se mantém, em absoluto, próxima da atenção igualmente flutuante, já que a única flutuação a que sua atenção está sujeita é entre dormir e acordar. O tom de voz opaco e o modo bastante desvitalizado com que a paciente fala certamente desempenham um papel importante neste efeito provocado no analista. As comunicações da paciente não possuem coloração afetiva alguma, estando mais próximas do não-vivo do que do vivo. Ao invés de sentir-se convidado a segui-las, o analista sente-se posto para dormir.

Para tentar entender um pouco mais o que provoca tamanho sono no analista e pensar sobre o tipo de sono provocado, podemos traçar algumas hipóteses relacionando as modulações do discurso da paciente aos efeitos produzidos no analista. O fato de a paciente falar sem manifestar qualquer reação afetiva e de trazer diferentes assuntos com a mesma desafetação talvez aponte para uma distância entre afeto e representação. Parece-nos justo afirmar que suas comunicações não trazem os elementos representacionais de modo suficientemente atrelado aos elementos afetivos, impedindo que o analista possa seguir as associações livres e chegar a um sentido comunicativo (Green, 2002). Os aspectos desvitalizados e não-vivos, que podem aparecer em uma sessão psicanalítica, foram pensados por André Green (2002) a partir de algo que ele concebe como função desobjetalizante. Esta seria uma função psíquica de desinvestimento e desligamento, bastante primitiva, marcada pela pulsão de morte e pelas características refratárias ou "depressivas" dos objetos primários. A ela se opõe, segundo Green, a função objetalizante, de ligação e investimento. Ambas as funções operam a partir de duas diferentes formas de atuação do "par pulsão-objeto", uma vez que Green (2002) pensa a relação entre as pulsões e os objetos a partir de um modelo de mútua implicação. Ou seja, de um lado o objeto convida, desperta, revela e ao mesmo tempo deve conter as pulsões; de outro as pulsões investem e "criam" objetos. Com a paciente do primeiro caso o analista se defrontou, em diferentes momentos, com a presença da função desobjetalizante. O corte no fluxo de vida em geral e na vitalidade com relação aos objetos investidos, entre eles o analista, era o que se evidenciava no tom de voz sonífero da paciente.

Ao lado do sono, com esta paciente, costumam aparecer formas agressivas e destrutivas de desinvestimento, também características da função desobjetalizante. Ela havia tido anteriormente algumas tentativas de tratamento psicológico, e costumava contar, triunfal, que foi dispensada do último por chutar a bola ("dar bicas") na cara da psicóloga. No trabalho com o analista atual não há bolas de futebol, mas o que ele vive se aproxima muito de "bicas na cara". A paciente mostra-se especialmente agressiva na escolha das palavras, embora mantenha um tom entediado e desinteressado. Ela fica calada e solicita que o analista proponha assuntos legais para conversarem, mas tudo e qualquer coisa que ele proponha é considerado horrível, absolutamente desprezível e inaceitável. Diante desses "ataques", o analista costuma ser levado a um completo desligamento do mundo, ficando com a mente vazia. Não pensa, não sente, está acordado, porém semimorto. Durante muito tempo foi-lhe impossível esboçar qualquer reação quando submetido a essas experiências.

Neste atendimento o analista percebia o quanto o ego da paciente não tinha como realizar suas funções. Muitas vezes o analista se via convocado a exercer algumas das funções egóicas pela paciente, como quando apontava que ela corria riscos importantes, por exemplo, ao dirigir embriagada ou ao conversar ingenuamente com garotos de programa em pontos da cidade. A diminuição do senso de realidade e a separação entre afetos e idéias, impedindo conexões e pensamentos, também podem ser pensadas como resultantes de mecanismos de defesa como a cisão e a recusa. Estes mecanismos não apenas separam afeto e representação, mas criam fossos intransponíveis entre eles, diferentemente do que ocorre no recalcamento. Em função da cisão e da recusa, o afeto não pode investir as idéias, mas passa a funcionar autonomamente e manifesta-se em atuações, ocorrências corporais e inundações mentais. Nas situações exemplificadas acima, o analista fica inicialmente tomado pela angústia, que o impede de discriminar se está lidando com uma paciente que tem atitudes comuns a qualquer adolescente ou se a completa inconseqüência que esta paciente demonstra indica um movimento que pede uma maior atenção. Antes de conseguir se pronunciar sobre os riscos que ele vê sua paciente correndo, ele precisa diferenciar se tanto as atuações externas da paciente quanto o relato delas na transferência são manifestações da pulsão em busca de um objeto, sendo manifestações que precisariam de contenção, ou se são meras provocações, que mereceriam outro tipo de resposta. Pouco a pouco, o analista passou a se dar conta de que a diferenciação destes elementos passava pelo reconhecimento de movimentos em seu próprio psiquismo. Em situações como as relatadas acima, em que o analista acabava por ter experiências de inundações afetivas correlatas às da paciente, incluindo sensações e alterações psíquicas e corporais de algum modo semelhantes às dela, os únicos elementos que o auxiliavam na discriminação necessária eram, paradoxalmente, as próprias experiências afetivas que durante um tempo o inundavam indiscriminadamente.

Assim, as experiências vividas pelo analista de modo correlato àquelas do paciente — seja corporalmente, emocionalmente, em alterações de seu nível de vigília ou mesmo de sua auto-estima e de seu sentido de identidade — são a "fonte mais confiável de dados" (Searles, 1986/2004, p. 203) a respeito da transferência e do funcionamento psíquico do paciente. São eles que fornecem os elementos comunicacionais fundamentais para a compreensão do paciente, muito mais do que aquilo que se escuta enquanto discurso. Na maioria das vezes, é partindo daquilo que é mobilizado pela experiência contratransferencial que o analista chega a compreender os elementos transferenciais, a fazer hipóteses sobre o funcionamento mental do paciente, seus mecanismos psíquicos defensivos, e a relacionar tudo isso a elementos da história pessoal.

Voltando ao caso clínico, o analista é desvitalizado no contato com a paciente e apartado não só do conteúdo narrativo de sua paciente (é apartado de sua capacidade de escuta) como também e principalmente de sua própria capacidade de manter-se acordado/vivo e de pensar. Há vários aspectos sugeridos por este efeito contratransferencial, que somente puderam fazer pleno sentido posteriormente para o analista que viveu a situação. Se continuarmos a acompanhar este pensamento clínico, poderíamos dizer que o analista passa a funcionar na sessão em um estado diferente do seu habitual. Tanto do ponto de vista do estado de vigília quanto do funcionamento egóico em geral, ele passa a funcionar em um estado quase indiscriminado: sua conexão com a realidade é ínfima, sua função de memória em grande medida está "cortada", não mais lhe é possível juntar os elementos do discurso, e em alguns momentos ele não se lembra mais se a última frase, que eventualmente fica ecoando em sua memória sem fazer sentido, foi dita por ele ou pela paciente.

É possível reconhecer aqui alguns dos efeitos contratransferenciais a que Searles (1986/2004) se refere, quando fala nas profundas alterações no modo de funcionamento psíquico e no sentido de identidade do analista, que podem ser mobilizadas durante o atendimento a pacientes fronteiriços. Tais experiências desestabilizadoras, que dizem respeito ao modo de funcionamento psíquico do analista na sessão, são o que lhe revelam, com grau de confiabilidade ímpar, o modo de funcionamento psíquico de seu paciente. Assim, com relação ao primeiro caso clínico, pode-se pensar que as reações transferenciais da paciente mobilizam no analista o funcionamento segundo padrões e estados psíquicos arcaicos, em que quase não há distinção eu-outro (experiências de quase indiferenciação) e em que as suas próprias fronteiras do ego tornam-se mais frágeis e permeáveis. A partir destas experiências contratransferenciais e também com base na literatura sobre casos-limites, podemos dizer, com boa dose de convicção, que os mesmos padrões de funcionamento egóico predominam nesta paciente, levando-a a manter pouca discriminação entre a realidade externa e a interna (fronteiras do ego muito frágeis) e funcionando amplamente a partir de mecanismos regressivos que trazem formas muito precárias de contato com a realidade. É o próprio senso de realidade que se vê abalado. Isso acaba por ser vivido também pelo analista, fazendo com que seu sentido de identidade e senso de realidade cheguem a ficar abalados por longos períodos (como, por exemplo, pelo período em que ele suportou a carga agressiva da paciente, sem esboçar qualquer reação de defesa).

Entretanto, embora sujeito a estes profundos abalos que operam desconexões em muitos níveis, o analista persiste em sua tarefa de recobrar as conexões (suas próprias conexões e sentidos psíquicos internos e aqueles relativos às possibilidades da paciente). O manejo de transferência, que neste caso exige do analista que ele suporte e sobreviva (mantenha-se em reserva) ao impacto das respostas transferenciais, leva o analista a se refazer das projeções desvitalizadas e recobrar sua função objetalizante e possa convidar a paciente a desenvolver essa mesma possibilidade. A dialética da implicação e da reserva, tal como formulada por Figueiredo (2000), é vital para que o analista possa se oferecer como objeto de investimento (ou de desinvestimento), mas também para que proteja suas fronteiras egóicas e, de forma geral, suas funções psíquicas de um total aniquilamento. Ou seja, para que essas funções psíquicas continuem sendo investidas pelo próprio analista e postas em funcionamento a favor de si e do paciente ele precisa sustentar a reserva na implicação. Trata-se, como sugere Figueiredo, de uma "reserva de si para o outro" (2000, p. 21). Já a implicação, como veremos mais adiante nos comentários sobre o segundo caso, configura-se na análise como um meio para que "partes mais ou menos importantes da `pessoa real' do analista sejam disponibilizadas para certos usos e invenções do paciente" (p. 33). Mas são o permanente movimento e o contraste entre reserva e implicação que garantem que o analista possa de fato favorecer o restabelecimento (ou o estabelecimento) das fronteiras do ego dos pacientes, necessárias para o desenvolvimento da análise e, de uma maneira geral, para a vida. No caso até agora comentado, a persistência do analista em tentar costurar uma "colcha inteira" apesar de dispor somente de informações desconexas, sobrevivendo ora ao sono incontrolado ora aos ataques agressivos da paciente, pode ser compreendida como um processo desta natureza. Tal processo está amplamente relacionado ao modo de funcionamento psíquico da paciente, que transforma suas próprias experiências em "colchas furadas", cheias de buracos. Com efeito, esta paciente tem uma amnésia quase total com relação a sua infância, e, embora ela tenha iniciado esta análise quando ainda era adolescente, sua amnésia também se estende a esta fase da vida.

De acordo com Searles (1986/2004), a amnésia infantil não é incomum nos casos-limites. Nos textos deste psicanalista, com larga experiência no atendimento de pacientes esquizofrênicos e fronteiriços, há a indicação de que pacientes fronteiriços experimentam a dor psíquica como algo insuportável. A amnésia, muitas vezes, torna-se uma defesa contra experiências negativas que mobilizam afetos de coloração negativa, como culpabilidade, tristeza, medo, ódio, caracterizando experiências que evocam graus insuportáveis de dor. Essas experiências mobilizam intensamente as angústias de separação, com relação às quais o paciente fronteiriço dispõe de poucos recursos psíquicos para lidar. A impossibilidade de suportar a dor decorre da extrema fragilidade egóica frente à perda do objeto, frente à separação e também frente aos afetos agressivos que tais experiências podem suscitar. E desemboca, muitas vezes, na predominância da função desobjetalizante sobre a objetalizante.

Os diferentes tipos de amnésia desta paciente e sua falta de memória e conexão, compreensíveis também como efeito da função desobjetalizante, não se restringem aos eventos da infância e da adolescência, mas convertem-se em um certo "funcionamento amnésico", que interrompe toda e qualquer conexão e/ou ligação. Assim, ela não estabelece ligações entre seus pensamentos e seus sentimentos (sentimentos, propriamente ditos, são dificilmente reconhecíveis por ela, mesmo quando apontados pelo analista), não estabelece causa e conseqüência entre suas ações e as dos outros, não relaciona uma sessão a outra, enfim, não faz uso de qualquer elemento conectivo.

Ao também ser vítima de um funcionamento psíquico que o leva a colecionar "buracos amnésicos" e estados de mente vazia correlatos aos da paciente, o analista vê-se mobilizado a persistir na busca nas conexões, para não sucumbir ao esquecimento amnésico. Do ponto de vista da experiência emocional durante a sessão, ele se torna o encarregado de estabelecer, junto com a paciente ou mais propriamente por ela, as mínimas relações entre cada um dos episódios narrados e entre esses episódios e os sentimentos por eles evocados. Através de perguntas simples como "o que você achou disso?", "por que você acha que isso aconteceu?", "isso foi igual àquela outra vez?", "a sua reação e a dos outros foi semelhante?", o analista vai procurando estabelecer ligações e buscando ajudar a paciente a fazer o mesmo. Com isso o analista se oferece e oferece seus próprios pensamentos como objetos que convidam à ligação da pulsão. Do ponto de vista do funcionamento psíquico, este recurso o leva a diminuir em si os efeitos da ampla carga de identificação projetiva e dos efeitos desobjetalizantes a que está sujeito, diminuindo também os efeitos correlatos na paciente. Deste modo, a partir de uma solicitação transferencial, o analista passa a exercer — no lugar da paciente e por ela — algumas das funções egóicas que faltam a ela, tais como a de atenção, memória e conexão entre conteúdos. Apesar de ser levado pelas mesmas solicitações transferenciais a funcionar de modo semelhante ao da paciente, ou talvez exatamente por sofrer este impacto, o analista é levado a descobrir, em si, os recursos para não sucumbir. Depois de conectar profundamente as experiências psíquicas e emocionais da paciente e de chegar eventualmente a se misturar (quase simbioticamente) a ela — momento de intensa implicação — torna-se possível ao analista, mais cedo ou mais tarde, recobrar seus recursos psíquicos e retomar seu lugar de analista — recobrando suas reservas.

Depois de dois anos de tratamento, em um determinado momento o analista sentiu que não suportava mais o tipo de vínculo agressivo e a função desobjetalizante que predominava. Ele estava disposto a manter a análise, mas pela primeira vez não estava disposto a mantê-la a qualquer preço. Sentindo-se completamente esgotado — porém com uma vitalidade inédita neste caso, que lhe conferia uma capacidade nova para se proteger dos "ataques" desferidos pela paciente — deu um "xeque-mate". Disse à paciente que estava disposto a continuar o trabalho desde que ela não mais o tratasse como "saco de pancadas". Ao colocar-se como alguém que não suporta tudo, o analista possivelmente ofereceu contenção ao movimento pulsional, que por sua vez era despertado na paciente pela própria presença do analista. A contenção oferecida pelo analista paradoxalmente afastou a paciente das sessões por duas semanas, mas, no retorno, seu nível de agressividade diminuiu muito. Em alguns momentos começou a ser possível para o analista reconhecer que a paciente podia, com a sua ajuda, iniciar formas rudimentares de conexão entre idéias e afetos. Mesmo quando a tonalidade afetiva principal era agressiva, ocasionalmente o analista passou a se sentir "investido" agressivamente, ou seja, vitalizado em sua função e em alguns momentos podendo recuperar sua capacidade de se oferecer como objeto.

Este "mergulho profundo" no mundo psíquico da paciente, ainda que penoso, é o que lhe permite acesso aos dados analíticos mais relevantes. Em continuidade, a saída do analista desse estado psíquico pressupõe a restauração de suas fronteiras egóicas e de seu sentido de identidade, e confere à paciente a possibilidade de se beneficiar desse processo e progressivamente construir suas próprias fronteiras de ego.

O que vemos ocorrer com o analista, no segundo caso clínico apresentado, também é da ordem da contaminação pelos estados psíquicos da paciente (havendo fragilização das fronteiras de ego) e, mais uma vez, resulta em situações em que ele exerce funções egóicas no lugar e pela paciente. Diferentemente do que ocorre com a primeira paciente, entretanto, nesta situação o grau de vitalidade do analista na sessão aumenta ao invés de diminuir. Além disso, embora a excitação verbal e emocional da segunda paciente contamine o modo de escuta do analista, ela não chega a impedir que ele escute o conteúdo narrativo da paciente (conteúdo representacional). Ao contrário, nas sessões com esta paciente, o analista fica absoluta e exclusivamente atento ao que ela narra e sente-se convocado a entrar na discussão "de igual para igual". Mas isso também se configura como uma alteração do estado de atenção do analista, já que ele fica impedido de experimentar as oscilações que naturalmente ocorreriam se ele pudesse escutá-la com uma atenção igualmente flutuante, e pudesse pensar, em seu próprio tempo, quais intervenções seriam mais analíticas. Tal condição ideal de escuta é o que poderia levá-lo, por exemplo, a relacionar os afetos e a excitação vividos pela paciente (e por ele), em sessão, às questões propriamente transferenciais ou ainda às situações por ela narradas. Mas o que ocorre, impedindo esta condição ideal, é que a paciente costuma manter a atenção de seu analista presa a seu relato e exige dele uma presença total, absoluta. O analista sente que ela é profundamente dependente dele, quase em um nível vital, e ele não pode "desgrudar" dela um minuto — como se faz com uma criança que está começando a andar e a explorar os perigos do mundo, mas ainda não sabe diferenciar um apoio sólido e confiável de um maleável e impróprio. Ele sente que sua paciente vive como um "molusco sem casca", algo como o que Britton (2003) define como pacientes de pele fina (thin skin pacients): pacientes muito aderentes, que preenchem e chegam a "colonizar" o espaço psíquico do analista.

O analista, por sua vez, chega a se identificar com os elementos primários projetados pela paciente, correndo o risco de vir a funcionar de modo semelhante a ela, vendo suas próprias fronteiras egóicas tornar-se mais frágeis e permeáveis e tornando-se, ele mesmo, identificado com a condição de "molusco sem casca". É assim que ele acaba por ficar dominado pelo impacto da carga afetiva que inunda a sessão, impedido de recusar a atenção e a presença absoluta que a paciente lhe exige. Nestas circunstâncias, ao ter o seu espaço psíquico "colonizado" pela paciente, o analista passa a funcionar em grande medida segundo os mecanismos de defesa operantes na própria paciente, ficando apartado da possibilidade de estabelecer conexão e sentido entre a excitação psíquica, o conteúdo afetivo e o conteúdo do discurso da paciente.

Do ponto de vista do funcionamento psíquico da paciente, podemos ver aqui a fragilidade de um ego cujas fronteiras não estão bem definidas. Ser muito aderente, tentar preencher e "colonizar" o espaço psíquico do analista podem ser tentativas primárias e regressivas da paciente de perceber e (numa visão otimista) "construir" suas fronteiras de ego. O que o analista vive contratransferencialmente aponta nesta direção, pois ele é convocado a colocar-se absolutamente disponível, tanto em sua qualidade de atenção nas sessões como através de sua disponibilidade telefônica nos finais de semana. Desta forma ele está lá para conter qualquer excedente de angústia da paciente, que, não conseguindo contê-la a partir de suas próprias fronteiras, acaba por transbordá-la sobre o analista. Em muitos momentos a paciente procura fazer com que "caibam" no psiquismo do analista (e, como veremos, não só no psiquismo) suas emoções, seus pensamentos, bem como elementos e objetos com sua marca. Certo dia a paciente comentou que não agüentava mais as revistas muito sérias que ficavam na sala de espera do consultório (consultório em que o analista atende sozinho), e perguntou se poderia trazer algumas mais do seu gosto. O analista consentiu, mas pediu para ver as revistas antes. Eram Calvin e Batman, em inglês, e o analista concordou que as novas revistas ficassem junto com as outras na sala de espera (vale dizer que fizeram muito sucesso com os outros pacientes). O fato de o analista ter deixado que ela trouxesse e deixasse as revistas na sala de espera parece ter sido uma grande surpresa para ela, e teve um efeito bastante favorável. Podemos pensar aqui que, mais do que uma "invasão" da paciente, esse fato revelou o pedido e a possibilidade da construção de novas fronteiras para ambos. A aceitação das revistas, assim, pode ter levado a paciente a sentir que agora ela "cabia" concretamente no (consultório do) analista. De certo modo, foi preciso aumentar a "elasticidade" do analista, de seu psiquismo e de sua sala de espera. As novas fronteiras, conjuntamente construídas, puderam gerar mais proximidade e inclusão, embora para este processo tenha sido fundamental haver alguns outros limites que pudessem gerar distância e exclusão (não era todo e qualquer pedido da paciente que era acatado pelo analista; pelo contrário, os pedidos que visavam alterar algo fundamental do setting eram, em geral, recusados).

Nos momentos em que a paciente relata suas paixões (sempre um pouco delirantes) por dois homens fundamentais de sua vida, nos quais há sempre "deduções" que não correspondem à realidade, o analista costuma conversar abertamente sobre as suas "hipóteses", estabelece um debate sobre a plausibilidade de sua versão, propõe versões alternativas, mas sempre considerando a situação como uma conversa em que duas opiniões são debatidas (porque é assim mesmo que entende) e não como se estivesse se deparando com uma construção delirante. A paciente parece aceitar muito bem essa forma de diálogo. Embora se exalte, tentando convencer o analista, se acalma ao final e parece encontrar um lugar para sentimentos que inundavam seu psiquismo (e suas relações) e eram extravasados por todos os poros. O analista procura sobreviver aos grandes fluxos de sentimentos e pensamentos, criando um limite flexível e diálogos absolutamente sinceros, embora em muitos momentos tenha se sentido tomado pelas intensidades pulsionais da paciente. Responder a perguntas para tentar escapar e ajudá-la a escapar dos becos sem saída foi muitas vezes um dos únicos recursos possíveis ao analista. Comentando atendimento de casos difíceis, Figueiredo (2000) sugere que esses casos "... são aqueles que colocam à prova nossas reservas: exigem uma atenção constante, uma prontidão de resposta, uma sustentação verbal e mesmo física que ameaçam esgotar todas as nossas reservas" (p. 33). No caso aqui tratado, o analista evidentemente percebe que o que costuma gerar alguma contenção e mudança na intensidade das sessões não é necessariamente o conteúdo das respostas, mas as respostas como um "ato". Ou seja, a paciente pede conivências, o analista oferece embates de diálogos sinceros e alternâncias de implicação e reserva. A identificação com a dupla experiência do ir e vir do contato, do aproximar-se e afastar-se nos diversos momentos da sessão e de ver despertadas e acolhidas as diferentes cargas pulsionais é o que pôde, neste caso, ajudar a constituir as fronteiras egóicas possíveis.

Aprofundando a hipótese da necessidade de constituição das fronteiras do ego desta paciente, podemos considerar inicialmente que ela tem uma estrutura egóica com fronteiras pouco definidas em que o objeto interno não está plenamente diferenciado do objeto externo. Além disso, nas experiências que provocam frustração, podemos verificar pelo excesso de angústia decorrente que tanto o objeto externo quanto o interno podem não sobreviver. Esta incerteza de sobrevivência também é vivida pelo analista, que muitas vezes fica angustiado durante todo o final de semana, por exemplo, com a sensação de que algo que ele tenha dito possa ter deixado a paciente tão transtornada que eventualmente ela seja reconduzida a um surto ou a uma desorganização profunda. Na maioria das vezes, as apreensões do analista não passam de efeitos contratransferenciais que não se realizam, já que a paciente retorna muito bem do final de semana, aumentando a sensação do analista de oscilar entre sentir-se imprescindível e sentir-se inútil e descartável.

Como se sabe, o uso que o paciente fronteiriço tende a fazer do objeto é irregular. Portanto, o lugar em que o analista é colocado efetivamente oscila entre ele ser visto como único e imprescindível e como frustrador e descartável. No caso da segunda paciente, a experiência contratransferencial do analista evidenciava o quanto ela projetava aspectos idealizados em objetos externos, que assim podiam funcionar, temporariamente, como elementos que a ressegurassem de seu valor. As projeções primárias — em especial as identificações projetivas — eram tão freqüentes e violentas, que o analista sentia como se o ego da paciente ficasse "esvaziado" e todo o valor passasse, momentaneamente, a ser depositado em um objeto externo (que muitas vezes era ele mesmo, o analista). Em termos econômicos, pode-se dizer que esta paciente tinha dificuldades na manutenção do investimento dos objetos internos e, com isso, acabasse por investir maciçamente os objetos externos, eleitos segundo as circunstâncias. Como aponta Catherine Chabert (1999), esse mundo externo superinvestido é vivido por esses pacientes como impossível de ser modificado, o que aumenta sua sensação de impotência e de dependência do objeto. O objeto acaba ocupando todos os espaços (de pensamento, de fantasia, de investimento e de desejo) do paciente, e costuma ser pressionado para estar disponível a manter-se "ligado" ao sujeito, pois é vivido como um reassegurador narcísico. Esta costumava ser a experiência do analista nos finais de semana relatados. Paradoxalmente, o objeto é circunstancial, pois, a cada vez que for vivido pelo sujeito como causador de frustração ou de dor, perde sua "função" e precisa ser momentânea ou definitivamente abandonado. Muitas vezes, esta desidealização do objeto decorrente das experiências de dor e frustração contamina também o ego, e isso pode resultar em diferentes experiências de esfacelamento e despedaçamento tanto do ego quanto do próprio objeto.

O tipo de presença e atenção que a segunda paciente aqui trabalhada costumava exigir do analista talvez possa ser pensado como semelhante a algo que Green (1988) observou em sua clínica, e formulou como sendo a necessidade de um excesso de presença do analista por parte de alguns pacientes fronteiriços. Poderíamos dizer que a impossibilidade de manter a certeza de que o objeto interno sobreviverá (objeto que algum dia foi externo), ou seja, o medo da ausência absoluta, acabe por levar esta paciente ao que Green denominou a necessidade de uma presença absoluta. Para dar acolhimento e ao mesmo tempo fornecer alguma experiência de fronteira à paciente que fazia exatamente esta exigência ao analista, ele muitas vezes recorreu a formas de implicação. Como dito acima, o analista respondia de forma honesta e direta a perguntas da paciente durante a sessão, por exemplo, quando respondia sobre como ele estava se sentindo ou sobre mudanças em seu fluxo de pensamento. Em muitos momentos a paciente dizia: "Acho que você agora está pensando em outra coisa, não ouviu nada do que eu disse". Se esse fosse o caso, o analista confirmava do modo mais objetivo possível a percepção real da paciente. Muitas vezes ele chegava a expor sua opinião pessoal acerca de assuntos públicos, sempre verificando o quanto a paciente precisava deste retorno como reasseguramento narcísico e que efeitos sua postura técnica trazia. O analista sentia que a paciente necessitava permanentemente de provas de que ela era reconhecida, e responder às suas perguntas objetivamente e de forma completamente honesta tinha como efeito garantir alguma forma de reconhecimento à paciente; reconhecimento de que ela era alguém que merecia essas respostas. Mas é preciso apontar que, se houve efeito benéfico à paciente por esta forma implicada de proceder, ele se deve ao contraste entre reserva e implicação, no sentido sugerido por Figueiredo (2000), muito mais do que pela implicação, de forma isolada. Os riscos da "pura implicação" já foram apontados por muitos analistas, mas não custa lembrar que é particularmente entre os casos-limites que reconhecemos pacientes que "... nos chamam para um `aqui e agora' desesperado no qual, sob o impacto da urgência da demanda de implicação, corremos o risco de perder completamente a posição de analista" (Figueiredo, 2000, p.33).

Ao se referir à relação entre analista e paciente, Searles (1986/2004) aponta como no trabalho analítico é importante o analista reconhecer que as figuras da transferência são sempre resultado de uma "psicopatologia a dois" e que a transferência inclui um conjunto de elementos reais da personalidade do analista. Ele sugere que o paciente fronteiriço possa chegar a conhecer e fazer uso (consciente ou inconsciente) de determinados elementos reais da personalidade e mesmo da vida do analista. Embora Searles afirme que no tratamento de pacientes fronteiriços seja muito importante valer-se do silêncio para favorecer as vivências simbióticas, em muitos casos — como no da segunda paciente mencionada neste texto — é possível que o silêncio seja vivido como um abandono profundamente desorganizador. Ao contrário, as respostas precisas e verdadeiras do analista criam um clima de diálogos absolutamente sinceros e honestos. Tais respostas realistas parecem prover o único reasseguramento narcísico assimilável pela paciente naquele determinado momento, fundamental para possibilitar a manutenção do tratamento e, paradoxalmente, a posição de analista.

Responder a questões diretas colocadas pela paciente, por exemplo, não pode ser confundido com responder em termos da realização do desejo transferencial inconsciente da paciente. No caso em questão, conversar sinceramente com a paciente não vem a ser um impedimento do trabalho analítico nem uma atuação por parte do analista, mas é uma das condições para que a situação analítica e o vínculo transferencial sejam preservados. Através destas conversas, além de possibilitar o reconhecimento acima referido, o analista passa a exercer a função egóica de contato com a realidade, impossível para a paciente nesses momentos. Em outras palavras, podemos dizer que, a partir de uma dialética entre reserva e implicação, as fronteiras egóicas vão sendo (re)construídas, as distinções entre dentro e fora vão sendo reasseguradas e a possibilidade de um funcionamento psíquico menos cindido vai sendo desenvolvida.

O que se está concebendo aqui como funcionamento psíquico cindido poderia ser compreendido, em termos mais propriamente kleinianos, como funcionamento esquizoparanóide. Assim, seria possível dizer que, em momentos mais claramente regredidos, as pacientes apresentadas neste artigo funcionam somente na posição esquizoparanóide. Como se sabe, é característico do modo de funcionamento desta posição conceber pensamentos e sentimentos como entidades palpáveis e/ou como forças que destroem objetos, geram transformações, aparecem e desaparecem por si mesmas. Se retomarmos um episódio da análise da segunda paciente, poderemos ver esses aspectos em funcionamento e verificar, mais uma vez, as reações contratransferenciais mobilizadas no analista. Em um certo momento da vida, esta paciente escreveu duas cartas, com muitas páginas cada, para um professor que foi uma grande paixão não-correspondida. Ela acreditava, literalmente, que teria posto nas cartas seus sentimentos e pensamentos e que, ao enviar as cartas para o professor, sem dúvida esses "elementos" (sentimentos e pensamentos) teriam saído de sua vida e passado a fazer parte da vida do professor. Este parece ser um fenômeno psíquico semelhante àquele que Ogden (1984) descreve como sendo uma forma de reificação e transposição de fenômenos mentais. O interessante é que a paciente, por volta do segundo mês de análise, deu ao analista cópias feitas à mão dessas duas cartas e pediu para ele lê-las e guardá-las. Durante os meses que se seguiram, algumas vezes a paciente fez referência a "episódios" (como se fossem episódios vividos, que na realidade não passavam de histórias — pensamentos e sentimentos) contidos nas cartas. Para o analista, a referência a um desses "episódios" era sempre uma surpresa e ele possivelmente demonstrava isso, de um modo ou de outro. E, a cada vez que isso ocorria, a paciente olhava-o com estranhamento, como se o que ela dissesse fosse absolutamente óbvio, e como se as experiências descritas fossem também do analista. Ainda que estupefato, o analista levava a paciente a sério, ao mesmo tempo que procurava com cuidado restabelecer as diversas distinções entre realidade interna e externa, entre fantasia e realidade — talvez como um recurso para lidar com esse estado de estupefação. De modo muito parecido com o que ocorre quando responde objetivamente às questões que a paciente lhe coloca, aqui o analista também é chamado a exercer a função egóica de contato com a realidade. Ao simultaneamente oferecer-se como alguém que considera plausíveis e implausíveis as colocações da paciente, o analista cria espaços e intervalos que possibilitam a constituição das fronteiras do ego.

Poderíamos supor que em algum nível, de forma semelhante ao que ocorre como reação contratransferencial no primeiro caso aqui apresentado, as respostas objetivas que o analista fornece, sua implicação, assegurem para ambospaciente e analista — um grau de contato com a realidade externa que os alivia. Nos casos em que o analista precisa sustentar por longos períodos os aspectos transferenciais profundamente indiscriminados do paciente, é difícil afirmar se ele recupera suas possibilidades discriminatórias para si (para a sobrevivência de sua própria capacidade psíquica) ou para ajudar o paciente a desenvolvê-las. Tenderíamos a dizer que este processo é simultâneo: ao restabelecer a confiança em suas próprias fronteiras egóicas, recobrando o sentido de identidade que havia ficado ameaçado pela carga transferencial, o analista possibilita ao paciente a experiência correlata.

A necessidade que o analista sente de aumentar sua "elasticidade psíquica" costuma ser um dos principais efeitos contratransferenciais no atendimento de casos-limites, possivelmente como uma reação às angústias conseqüentes à fragilidade das fronteiras do ego do paciente. Ainda que não tenha sido nosso objetivo discutir as causas e origens dos casos-limites, vale lembrar que alguns autores concordam que o paciente fronteiriço não tenha ultrapassado satisfatoriamente a fase de simbiose mãe-bebê na direção de um ego com funcionamento predominantemente individualizado. Searles (1986/2004) é um dos que compreendem que as reações transferenciais do paciente fronteiriço têm suas raízes principais em um estágio do desenvolvimento egóico anterior à diferenciação mundo interno/externo, eu/outro. Segundo ele, "os lugares transferenciais em que o paciente fronteiriço coloca o analista são estranhamente diferentes daquele em que o paciente neurótico o coloca" (Searles, 1986/2004, p. 198)4. Em sua experiência, ele comenta que muitas vezes percebe o paciente reagindo ao analista como se este fosse uma força sinistra, ou um aspecto isolado do pai ou da mãe, ou um corpo, ou alguma parte anatômica da mãe etc. O paciente é capaz, por exemplo, de transferir para o analista o aspecto agressivo-violento do pai, e por muito tempo vê-lo somente dentro dessa perspectiva.

Esta é uma das hipóteses para compreender o modo da primeira paciente apresentada nesse texto de reagir às intervenções do analista. Durante o longo período em que toda e qualquer intervenção do analista era violentamente rechaçada, desvalorizada e ridicularizada, a sensação do analista era a de que uma hélice gigante e afiada vinha girando em sua direção, causando um efeito aniquilador e mortal. Acompanhamos Searles (1986/2004) quando ele atesta que tais conteúdos ou estruturas bizarras da transferência, bem como o valor de realidade quase psicótico que o paciente atribui ao analista, desafiam o próprio senso de realidade e identidade deste. Nos dois casos clínicos aqui apresentados, houve momentos em que os analistas chegaram a se sentir desafiados e "empurrados" a ter seu papel transferencial, como sua única realidade subjetiva. No primeiro caso, em função do conteúdo e da virulência mortífera das identificações projetivas em questão, muitas vezes, ao final da sessão, o analista sentia necessidade de lembrar-se exatamente de quem ele era, de qual o seu valor para seus outros pacientes, de sua importância para seus familiares etc. Somente assim lhe era possível sair do estado psíquico e emocional em que muitas vezes ficava durante e após as sessões, para então recuperar sua capacidade de ser e de pensar. No segundo caso apresentado, as experiências de perda de sentido de identidade são tão intensas quanto estas e as reações do analista são proporcionalmente contundentes.

Embora os efeitos transferenciais e contratransferenciais possam ser muito desagradáveis, profundamente intensos e por vezes duradouros, sem dúvida obtêm-se muitos dados analíticos através destas experiências que exigem "elasticidade psíquica". As alterações no sentido de identidade do analista, bem como as alterações e oscilações em seu estado de vigília, são uma fonte bastante confiável do que se está desenrolando na transferência, inclusive em seus aspectos recém-desenvolvidos. É um desafio "submergir" nesta condição indiscriminada entre analista e paciente, eu e outro, acorda e dorme, vive e morre, para de quando em quando reencontrar alguma condição discriminada e a possibilidade de experiências de fronteiras suficientemente constituídas. Por outro lado, esse exercício de "elasticidade psíquica", com alternância de implicação e reserva, é o que traz a possibilidade de suportar os efeitos transferenciais e contratransferenciais intensos e a condição necessária para que se faça um uso analítico deles, viabilizando fronteiras vitais em lugar de intensidades mortais incontidas.

 

Referências

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Searles, H. (2004). My work with borderline patients. Lanham, Md: Rowman and Littlefield. (Trabalho original publicado em 1986.)        [ Links ]

Stone, M. (Ed.) (1986). Essential papers on borderline disorders. New York: New York University Press.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Nelson Ernesto Coelho Junior
Av. Prof. Melo Morais, 1721 — Cid. Universitária
05508-900 São Paulo, SP
E-mail: ncoelho@usp.br

Patricia Vianna Getlinger
Al. Lorena, 1304/608 — Jd. Paulista
01424-001 São Paulo, SP
E-mail: pgetlinger@uol.com.br

Recebido em: 15/08/06
Aceito em: 02/10/06

 

 

* Doutor em Psicologia Clínica (PUC-SP) e Professor dos cursos de graduação e pós-graduação do Instituto de Psicologia da USP.
** Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
1 Agradecemos a Myriam Uchitel, Marion Minerbo e Luís Claudio Figueiredo pela leitura e pelos importantes comentários e críticas a uma primeira versão deste trabalho.
2 O problema terminológico em torno da definição e da classificação destes pacientes vem sendo discutido por vários autores, já há algumas décadas (cf. Stone, 1986). No presente texto nossa opção é a de tratar, com certa liberdade, os termos "borderline", "casos difíceis", "casos fronteiriços" e "casos-limites" como sinônimos, aceitando as diferentes opções dos diversos autores que tomamos como referência. Remetemos o leitor interessado no tema à esclarecedora discussão apresentada por Figueiredo (2003).
3 O estudo do funcionamento psíquico de pacientes fronteiriços pode nos levar a uma melhor compreensão das noções de "fronteiras do ego" e de "sentimento do ego", tais como propostas originalmente por Paul Federn (1953). Segundo Federn, o ego tende a ser delimitado por meio de fronteiras variáveis e tende a se modificar com cada pensamento, cada afeto e cada percepção ocorrida. Ele ainda sugere que a ampliação e a expansão das fronteiras do ego devem também ser pensadas como resultado de novas identificações, novas ligações, que têm, no entanto, a tendência a repetir as já existentes.
4 Tradução livre dos autores.

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