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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. v.39 n.71 São Paulo dic. 2006

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

Pesquisa clínica na psicanálise: caminhos

 

Psychoanalytical clinical research: pathways

 

Investigación clínica en el psicoanálisis: caminos

 

 

Aurea Maria Lowenkron*

Membro Efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro
Profa. da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo se propõe a discutir as relações entre clínica e pesquisa psicanalítica, considerando seu objeto, método e objetivos. Propõe a contextualização de postulações contraditórias de Freud com respeito às relações entre clínica e pesquisa. Se ele afirma que o tratamento e a pesquisa coincidem, então o analista não poderia ser neutro, no sentido de não ter objetivos nem fazer na clínica um approach ateórico, exclusivamente empírico, no processo psicanalítico. Pelo contrário, o psicanalista não pode ser neutro, porque é parte ativa na construção do campo, pois lhe cabe instaurar as condições metodológicas que permitem a análise, começando por enunciar para o paciente a regra fundamental da psicanálise e, por seu lado, mudar a posição de atenção voluntária pela de atenção flutuante. Além disso, o psicanalista conduz o trabalho de acordo com o objetivo de investigação do inconsciente e é norteado por premissas teóricas que serão modificadas pelo que emerge da fala do paciente no campo transferencial. Na parte final do trabalho, é apresentado um exemplo de investigação clínica em psicanálise sobre uma tentativa de suicídio na infância.

Palavras-chave: Psicanálise, Clínica psicanalítica, Pesquisa.


ABSTRACT

The paper is a discussion of the relationship between psychoanalytical treatment and research, considering their object, method and objectives. It includes a contextualization of Freud's contradictory statements about the subject. It is argued that if the psychoanalytical treatment and research coincide, then the psychoanalyst could not be neutral, in the sense that he should not have purposes or make atheoretical, exclusively empirical approaches in the psychoanalytical processes. On the contrary, the psychoanalyst could not be neutral because he takes part on the construction of the field by imparting the fundamental rule to the patient and by maintaining himself in a state of evenly suspended attention in the face of all that he hears. Moreover, the psychoanalyst has the purpose of investigating the unconscious activity of the mind and is guided in his work by some theoretical premises which will be modified by what emerges from the speech of the patient in a transferencial field. In the final part of the paper, an example of clinical research about a suicidal attempt in childhood is presented.

Keywords: Psychoanalysis, Psychoanalytic clinic, Research.


RESUMEN

Este trabajo plantea una reflexión a propósito de las relaciones entre el tratamiento y la investigación psicoanalítica, teniendo en cuenta su objeto, su método y objetivos. Propone una contextualización de las declaraciones contradictorias hechas por Freud con respecto al tema. Si él sostén que el tratamiento y la investigación psicoanalitica coinciden, hay que considerar que el psicoanalista no puede ser neutro, en el sentido de que no debe tener objetivos ni tener un approach "ateórico", exclusivamente empírico, en el proceso psicoanalítico. Por lo contrario, el psicoanalista no puede ser neutro porque es parte activa en la construcción del campo, una vez que enuncia al paciente la regla fundamental del psicoanálisis y, por su parte, cambia la atención voluntaria por la atención flotante. Además, el psicoanalista es conducido en su trabajo por el objetivo de investigación del inconsciente y por presupuestos teóricos los cuales serán cambiados por lo que emerge del paciente en el campo transferencial. En la parte final del trabajo, se presenta un ejemplo de investigación clínica en psicoanálisis sobre un intento de suicidio en la niñez.

Palabras clave: Psicoanálisis, Clínica psicoanalítica, Investigación.


 

 

Muitos psicanalistas limitam sua atividade de investigação à prática clínica nos consultórios sendo que, da imensa massa de material produzida nesse espaço, só uma parte muito pequena é publicada ou comunicada em encontros científicos. "Por diversas e compreensíveis razões, análises quase nunca se publicam", escreve Fabio Herrmann (2004), em um texto no qual defende a necessidade de "trazer de volta ao mundo do debate científico a investigação quotidiana de milhares de analistas", assinalando que, além do trabalho clínico, o método interpretativo pode ser estendido ao sentido psíquico do mundo.

A dificuldade de fazer pesquisa e trazê-la de volta ao mundo do debate científico é que essa atividade implica fazer escolhas, tomar decisões e aceitar riscos de transitar num território não conhecido. Para compassar a caminhada, valemo-nos de referências da obra freudiana para traçar outros textos e práticas que, apesar de diferentes, possam ser reconhecidos como pertencentes ao campo fundado por Freud, por se relevarem do próprio discurso psicanalítico.

Sendo assim, antes de recorrer a outros autores, seguimos a valiosa indicação fornecida por Freud (1923/2003e) para quem busca conhecer a estrutura da disciplina por ele fundada: "A melhor maneira de compreender a psicanálise ainda é traçar sua origem e sua evolução". Como não é possível me alongar aqui nessa fascinante história, mencionarei apenas alguns pontos de referência na trajetória freudiana que servem para balizar e ao mesmo tempo problematizar o terreno em que se desenrola a atividade de clínica e pesquisa.

 

O percurso de Freud e a especificidade da psicanálise

Sabe-se que a passagem de Freud dos laboratórios de pesquisa à clínica fez-se segundo um duplo referente: a psiquiatria alemã, inspirada na fisiologia e na neuroanatomia; e a psiquiatria francesa, na qual a dimensão clínica tinha maior relevância. De Brücke, em cujo laboratório de fisiologia trabalhou, Freud trouxe como herança a exigência de adesão às ciências da natureza, o que transparece no empenho por manter, perante o sintoma, o mesmo tipo de rigor característico do pensamento científico e inerente à investigação do objeto em suas práticas anteriores. Mas não foi menor o efeito daquilo que Assoun (1981/1983) denomina, em contraste com a rigidez do método aprendido nos laboratórios, um "desregramento fecundo na prática da observação", mediante o cultivo da descrição clínica aprendido com Charcot, o que permite a Freud escutar de outra maneira a fala dos pacientes.

Ao retornar de Paris para Viena, Freud se dedicou à clínica de "doenças nervosas", uma especialidade exercida por poucos médicos, ao tempo em que, segundo as palavras de Lorenzer (1984/1987), "a histeria, justamente no fim do último século, em Viena, tomou a palavra" (p.185). Sob influência das novas idéias, Freud encontrava-se em condições de tirar conseqüências plenas da reversão da relação médico-paciente que se processava nesse momento. O caso de Anna O., paciente de Breuer, é paradigmático dessa reversão na qual a paciente toma a palavra e inaugura uma modalidade de tratamento batizada por ela de "talking cure". Freud fez daí um ponto de viragem, pois, à medida que escutava de um outro modo a fala de suas pacientes, ele procedia como o arqueólogo que examinava os achados de suas escavações em busca de inscrições cujo alfabeto e sintaxe exigiam um trabalho de decifração. No trabalho de decifração e tradução da linguagem inscrita nos objetos psíquicos investigados, Freud ia reconstituindo as vivências infantis reproduzidas como símbolos mnêmicos nos sintomas histéricos, ao mesmo tempo que formulava a lógica própria do inconsciente, lógica pela qual era possível atribuir sentido ao sintoma. Tratava-se, desde então, de uma atividade de pesquisa, de teorização, de criação de um método próprio e de construção de um cenário propício para a manifestação das produções inconscientes do sujeito. Foi assim que nasceu não só um novo tratamento para as neuroses, mas também uma nova disciplina, a psicanálise, com conceitos, método e objeto próprios.

O novo objeto - o inconsciente - articula-se desde suas origens com um método próprio de investigação, a interpretação, pois é sempre num campo de relações que os métodos são construídos. Método é, sobretudo, relação, sendo indissociável do objeto, do objetivo e da teoria, razão pela qual disciplinas diferentes têm métodos diferentes.

Método é "caminho", caminho (hodós) para um fim, para um além (metá). Inclui os conceitos teóricos e os procedimentos apropriados para a abordagem do objeto, que é um "constructo" da pesquisa. O método surge da exigência de buscar novas concepções, capazes de estabelecer nexos entre elementos da realidade estudada. Os conceitos, portanto, só encontram seu valor quando circunscritos no seu campo de procedência.

No artigo "Interpretar (com) Freud", Laplanche (1988) disserta sobre o método interpretativo da psicanálise e destaca o efeito de aplainamento imposto ao material pelo método, procedimento esse intrinsecamente relacionado com as "regras do jogo" analítico: a associação livre por parte do paciente e a atenção uniformemente flutuante na escuta do analista. Por sua beleza e precisão, a explicação apresentada por Laplanche sobre como a psicanálise interpreta merece ser reproduzida:

Interpretar em psicanálise é, em primeiro lugar, desmantelar e desarticular, de maneira radical, a organização do "texto" manifesto. É, a partir daí, seguir sem perder pé as cadeias associativas que formam uma rede aparentemente desordenada e monstruosa, sem nenhuma proporção nem correspondência com a cadeia de onde saiu. E, se um conteúdo latente acaba por se esboçar, nunca é como uma tradução, no sentido corrente do termo. [...] Interpretar é agarrar-se firmemente às asas do discurso, aceitando não ver mais longe do que o passo seguinte, animado pela certeza única de que as pegadas do caçador-caçado acabarão por desenhar, pela reincidência dos seus numerosos entrecruzamentos, os nós significantes que marcam uma certa seqüência inconsciente (p.25).

O método psicanalítico de interpretação possibilita a análise, a decomposição em elementos. É o que indica Freud (1919/2003d) ao justificar a escolha do termo análise, por analogia com os procedimentos da química. A característica que permite estabelecer essa analogia é justamente a natureza composta, complexa, dos sintomas e de outras atividades anímicas. "Analisar" é decompor a atividade anímica do paciente em elementos desconhecidos por ele para que o material recalcado, liberado das formações patológicas rígidas, possa se inserir em novas cadeias de relações.

Mas o inédito do objeto e do método da psicanálise traz conseqüências também sobre o estilo da escrita que comunica essa experiência. Para descrevê-la da maneira mais rigorosa possível, Freud viu-se impelido a se distanciar dos cânones científicos da época. Por sua formação científica, percebia com estranheza que os relatos escritos por ele se parecessem com contos:

Tenho de consolar-me com a reflexão de que a natureza do assunto é evidentemente a responsável por isso, e não qualquer preferência minha. A verdade é que [...] uma descrição pormenorizada dos processos mentais, como as que estamos acostumados a encontrar nas obras dos escritores imaginativos, me permite, com o emprego de algumas fórmulas psicológicas, obter pelo menos alguma espécie de compreensão sobre o curso dessa afecção (Freud, 1895/2003a).

Freud enunciou outras características distintivas da psicanálise que, assim como a escrita psicanalítica, também não se enquadram nos parâmetros acadêmicos das outras ciências, apesar da insistência de Freud em inscrever a psicanálise como disciplina no campo científico. Ademais, com a exclusão da psicanálise dos meios acadêmicos, foram as sociedades psicanalíticas que se constituíram como fóruns privilegiados não só da formação de analistas, mas também da comunicação e do debate sobre o conhecimento psicanalítico produzido, a começar pelas teorias sexuais infantis.

Mas, para contextualizar a afirmação de Freud de que deve ser sem premissas que o analista entra em campo, só devendo permitir-se especulações teóricas depois de concluída a análise, é preciso não perder de vista o ideal de cientificidade no qual fora formado. Este ideal supõe uma neutralidade do pesquisador, o que garantiria a separação entre sujeito e objeto preconizada pela regra da objetividade científica. A ciência moderna, para atender às exigências de objetivação e universalização, pretende operar a exclusão do sujeito, como particularidade, de seu saber e da língua na qual o expressa.

 

A pesquisa clínica: uma investigação sem teoria?

Sobre a atividade de pesquisa na clínica, os pontos de vista do fundador da psicanálise não são unívocos. Por um lado, Freud (1912/2003c) sustenta que a coincidência entre pesquisa e tratamento é, indubitavelmente, uma característica que confere valor à psicanálise, mas, por outro, afirma existir oposição entre os objetivos de tratamento e de pesquisa:

Não é bom trabalhar cientificamente num caso enquanto o tratamento ainda está continuando — reunir sua estrutura, tentar predizer seu progresso futuro e obter, de tempos em tempos, um quadro do estado atual das coisas, como o interesse científico exigiria. Casos que são dedicados, desde o princípio, a propósitos científicos, e assim tratados, sofrem em seu resultado; enquanto os casos mais bem-sucedidos são aqueles em que se avança, por assim dizer, sem qualquer intuito em vista, em que se permite ser tomado de surpresa por qualquer nova reviravolta neles, e sempre se os enfrentam com liberalidade, sem quaisquer pressuposições.

É pertinente a preocupação de Freud com a consolidação do lugar do analista frente ao risco de que o afã de pôr à prova uma hipótese teórica prejudicasse a escuta em atenção livremente flutuante, que, não sendo comandada pelo processo secundário, exige do analista estar mais atento ao texto do sujeito, deixando-se trabalhar por ele, do que ao saber teórico:

A regra para o médico pode ser assim expressa: "Ele deve conter todas as influências conscientes da sua capacidade de prestar atenção e abandonar-se inteiramente à `memória inconsciente'. Ou, para dizê-lo puramente em termos técnicos: "Ele deve simplesmente escutar e não se preocupar se está se lembrando de alguma coisa'" (Freud, 1912/2003c).

Mas avançar na cura analítica "sem qualquer intuito à vista" não significa que o analista prescinda de premissas e de modelos teóricos, sem os quais não poderia se situar na experiência. Não só as teorias do analista, mas também as teorias de que o paciente se vale para dar sentido às suas vivências. Para a psicanálise, em contraste, é impossível aceder a essas condições, uma vez que não pode renunciar a dar a palavra ao sujeito, sendo este um de seus mais importantes traços distintivos desde os tempos inaugurais. Admite-se, portanto, que a neutralidade é um mito da ciência (Japiassu,1975), contra o qual o principal argumento que se opõe é o de que nenhum conhecimento é neutro, e sim interessado, sendo esta a condição de possibilidade para alcançar seu objetivo de aproximação à realidade, que, na prática psicanalítica, é a realidade psíquica do paciente.

A abstinência do analista não é o mesmo que neutralidade. Assinalei em outro artigo (Lowenkron, 1996) que, embora a posição do analista exija a supressão de julgamentos e a colocação em suspenso das próprias impulsões desejantes, seu trabalho nada tem de neutro. Como se depreende da leitura dos escritos sobre técnica de Freud, a atitude recomendada não é a de neutralidade, mas, ao contrário, a de favorecer a instauração de condições propícias para que as vivências inconscientes do paciente possam ganhar expressão.

Com efeito, a clínica mostra que os pacientes não costumam chegar como analisandos já prontos e que as regras do jogo analítico precisam ser introduzidas pelo psicanalista. É para objetivos relacionados à instauração do campo específico no qual a psicanálise se processa que convergem as recomendações de Freud (1914/2003d) nos Artigos sobre técnica. A primeira delas consiste em enunciar para o paciente a regra fundamental de tudo falar, descrevendo as imagens que surgem e evitando selecionar temas. O analista, por sua vez, deve manter-se à escuta em atenção flutuante, mas intervindo para favorecer a retomada do fluxo das associações quando estas se interrompem. Não respondendo às demandas de gratificação, abstendo-se de dar conselhos ou de fazer julgamentos, o analista sustenta o interesse pelas produções psíquicas do paciente sem, no entanto, privilegiar nenhuma comunicação, até que um sentido venha a se delinear a partir da trama do discurso enunciado no campo imantado pela transferência, podendo então ser formulado como interpretação.

Os critérios e o enquadramento clínico recomendados por Freud indicam claramente que, na psicanálise, o objeto não é dado, mas construído e reconstruído mediante operações metodológicas específicas. A finalidade é instaurar as condições adequadas à investigação do inconsciente, segundo certas regras que o analista introduz e que, se o paciente aderir, possibilitam o tratamento.

Entender a atividade clínica como indissociável da produção de um saber e de uma atividade de pesquisa envolve a renúncia ao mito da neutralidade analítica, à ilusão empirista de que o objeto se oferece como dado, como evidência, pois não existe investigação sem construção do objeto, sem instauração das condições metodológicas mais adequadas para a abordagem deste. Portanto, a análise deve ser pensada como esforço de construção de um campo específico e o analista como implicado nesse processo.

Freud, pesquisador incansável da vida psíquica, terapeuta revolucionário e teórico profícuo, fundador de um campo de discursividade extremamente original, na verdade não separaria investigação, pensamento teórico e escuta clínica. Se não dispusesse de hipóteses e de pressupostos teóricos, como se orientaria em suas investigações de modo a chegar ao conjunto de resultados que levaram à construção de um saber complexo como é a psicanálise? Complexo, vasto, mas aberto a reformulações advindas tanto de exigências do próprio pensamento como de situações que ele depreendia da realidade da clínica e do mundo. Por isso, a recomendação feita aos analistas por Freud (1912/2003c) no sentido de adentrarem o terreno da clínica "sem quaisquer pressuposições" pode ser entendida principalmente como uma medida de cautela contra o perigo da surdez do analista, uma forma de resistência deste ao inconsciente, que conduz à doutrinação do paciente e à estagnação das descobertas psicanalíticas. Esse ponto de vista ganha reforço quando lemos no caso do Homem dos Lobos (Freud, 1918/2003e) que para elucidar questões teóricas é preciso testá-las nos casos e nas situações particulares.

Piera Aulagnier, psicanalista profundamente comprometida com a clínica de onde extraía as questões fundamentais de suas pesquisas rigorosamente conduzidas, argumenta contra a crença de que a teoria não toma parte do processo e da própria escuta analítica. Ela aponta a dissociação entre a exigência oficial de conhecimento da teoria na formação do analista e a surpreendente recusa em admitir a aplicação da teoria à prática analítica, como se fosse através de uma espécie de dom inato, de um estado de virgindade teórica ou de suposta ignorância que o analista teria acesso a um inconsciente detentor da verdade:

(...) tudo se dá como se o perigo real representado por um saber teórico que se quer ao abrigo de qualquer questionamento, ainda que fosse às custas de excluir da escuta e do olhar todo fenômeno perturbador, só poderia ser evitado separando o tempo e o espaço do trabalho do pensamento, do tempo e do espaço da escuta (Aulagnier, 1989, p. 16).

Aulagnier compara a teoria psicanalítica a uma história da ontogênese do desejo e a relação analítica a "um encontro entre um analista-historiador, que possui sua versão desta ontogênese, e historiadores leigos que defendem a sua [...], graças à sua crença numa identidade temporal e espacial entre o eu e a totalidade da psique" (p. 13). A análise corresponde a uma troca de "conhecimentos" entre o saber teórico do analista, que põe a serviço de sua escuta uma versão supostamente universal da história infantil, e a versão que o paciente oferece de sua história, com os afetos complementando e servindo de ponte entre esses dois discursos. Catalisada pela transferência, uma nova construção pode surgir a partir daí, permitindo a passagem do universal da teoria ao singular de cada história.

Se o analista tem a teoria, o paciente tem a certeza de viver os efeitos da "coisa" cuja nomeação lhe falta. A proposta de pesquisa defendida por Piera Aulagnier consiste em verificar "como se opera, no exercício de nosso ofício, esta ligação entre o já-conhecido de uma teoria e o ainda-não-conhecido ao qual nos confronta o discurso que escutamos" (1989, p.17), preservando espaço para pensamentos imprevisíveis e às vezes incompreensíveis. Se é fácil estar de acordo com os termos dessa proposta, bem difícil é viver a angústia suscitada pela presença de pensamentos incompreensíveis e resistir à tentação de, por meio de intervenções arbitrárias, impor ao paciente como "verdades" interpretações produzidas para preencher as lacunas de nossa compreensão.

 

Sobre a tomada de notas: relato ou registro?

A natureza do material escrito com que trabalhamos em psicanálise merece discussão: trata-se de registro ou de relato?

Há quem defenda a utilização de instrumentos de gravação para obter dados mais objetivos, supostamente mais confiáveis, para a pesquisa científica. É certo que os registros em áudio ou em videogravação, embora tenham inconvenientes, podem fornecer informações detalhadas para o observador não presente à situação de entrevista e até mesmo para os participantes dela, pois registra passagens que escapam ao aqui e agora do encontro clínico. No entanto, mesmo os especialistas em métodos de análise do discurso baseados em gravações de entrevistas reconhecem que nenhum registro é totalmente objetivo, havendo sempre um recorte subordinado às premissas teóricas que orientam a investigação, privilegiando tal ou qual objeto, interpretando os fenômenos observados segundo determinados enfoques. O que se ganha de um lado se perde de outro. O importante é optar de maneira informada, fundamentando a escolha do objeto e do instrumento, com noção do alcance, mas também dos limites de cada opção.

Pesquisadores que trabalham com análise do discurso no campo da sociolingüística interacional admitem que decisões sobre a transcrição não podem ser tomadas senão com referência aos pressupostos teóricos e às hipóteses do autor. Ochs (1979) reconhece a influência do observador no fenômeno observado. Para ela, a transcrição deve ser entendida como uma construção, "um processo seletivo que reflete definições e metas teóricas do pesquisador" (p. 44). Na mesma linha de pensamento, Jane A. Edwards (1992) lembra que as transcrições sobre as quais trabalham os analistas do discurso são, em verdade, artefatos, "constructos" adequados e mesmo imprescindíveis aos objetivos a que se propõem: "A transcrição é necessariamente seletiva e interpretativa, mais do que exaustiva e objetiva" (p. 367).

Para a maioria dos psicanalistas, parecem consistentes as objeções apresentadas à pretensão de fazer um relato literal do que se passa no encontro psicanalítico. A qualidade dos afetos em jogo no campo transferencial e o sentido emocional que sustenta a estrutura organizadora do discurso em suas diversas apresentações constituem razões de peso levantadas contra a possibilidade de se retratar fielmente uma sessão de psicanálise.

Visando manter livres a escuta e a memória inconsciente, Freud (1912/2003c) também desaconselhava a tomada de notas integrais durante as sessões: "Far-se-á necessariamente uma seleção prejudicial do material enquanto se escrevem ou se taquigrafam as notas, e parte de nossa própria atividade mental acha-se dessa maneira presa, quando seria mais bem empregada na interpretação do que se ouviu". Além disso, não estava convencido de que relatos exaustivos tivessem valor de provas convincentes, pois aqueles que "não estão dispostos a levar a sério análise e analista tampouco prestarão atenção a acurados registros literais do tratamento".

No entanto, a tomada de notas sempre foi considerada um procedimento necessário para reunir material com vistas à publicação de um artigo científico sobre o caso ou de investigar uma produção psíquica, como os sonhos. Para estudar os sonhos, investigar os sentidos latentes e as operações envolvidas nos processos oníricos, Freud anotava os que lhe haviam sido relatados por outras pessoas e os seus próprios sonhos, junto com o registro de associações a propósito deles. Nos casos clínicos, tomava nota de sonhos, de histórias de vida, de relatos, lapsos, datas, enfim, de tudo que lhe parecia significativo do material clínico. Freud registrava-os de memória e anotava à noite ou então algum tempo depois dos atendimentos, enquanto a "lembrança do caso ainda estava fresca e aguçada por meu interesse em sua publicação", como informa nas notas preliminares do caso Dora (Freud, 1905/2003b).

A julgar pela literatura, até hoje, ao coletar material clínico para publicação, discussão com colegas e pesquisa, o procedimento da maioria dos analistas se aproxima bastante do método de tomada de notas seguido por Freud. Mas, algumas vezes, outros meios também são empregados. Eu mesma, numa etapa preliminar de escolha do instrumento a ser utilizado numa pesquisa sobre a clínica, fiz algumas gravações de entrevistas psicanalíticas para análise posterior. Ao término dessa experiência, percebi que, com ajuda do registro em áudio, ficavam evidentes certas manifestações sutis dos afetos do campo transferencial e contratransferencial presentes no tom de voz, nos ritmos da fala, nas pausas, hesitações, uso de marcadores do discurso, etc., aos quais muitas vezes não prestamos atenção. Mas considerei, por outro lado, que a introdução de elementos heterogêneos à relação analista-paciente cria dificuldades adicionais para atender à exigência da regra fundamental da psicanálise. Além disso, as gravações também não possibilitam o compartilhamento de fenômenos que pertencem ao campo das transferências - terreno principal no qual se desenvolve a relação psicanalítica - com pessoas que se encontram fora desse campo.

Comparando as vantagens e as desvantagens do emprego de instrumentos de registro direto de entrevistas psicanalíticas e considerando as peculiaridades do encontro psicanalítico, optei, em outros trabalhos, por reservar um horário logo após o término de sessões para fazer anotações, visando conseguir uma melhor aproximação do ocorrido. Sem pretender a sua reprodução na íntegra, procurei respeitar, na medida do possível, a literalidade e a sintaxe do discurso ou de partes dele. Na redação, preservar a fidedignidade não é tarefa fácil, pois, como Freud percebeu desde logo, as narrativas de histórias de vida se assemelham mais a textos literários do que a relatos objetivos dos textos científicos. Também os estilos de fala são pessoais e difíceis de transmitir a um leitor, de modo que, no texto escrito, alterno trechos de relatos com transcrições "textuais" ou, rigorosamente falando, o mais próximo da fala do paciente que a lembrança permite. Com exceção de interferências contratransferenciais mais intensas, ligeiras mudanças ocorrem sem prejudicar o sentido do que se deseja comunicar. Há, no entanto, certas palavras, expressões ou frases proferidas que possuem grande pregnância para a escuta do analista, razão pela qual somos capazes de retê-las na memória com precisão e frescor surpreendentes. Alguns exemplos: "Eu morri quando meu avô nasceu", disse uma mulher, num lapso memorável, em sua primeira entrevista comigo. "Isso tudo vai dilacerando o meu cérebro", outra, quando narrava episódios de violência familiar. Essa jovem tinha relações familiares marcadas por violência, sofria de obesidade e de hipertensão arterial grave e parecia muitas vezes estar "a pique de sofrer uma ansiedade inimaginável", como dizia Winnicott (1962/1983) a respeito do estado de tensão de um bebê com fome. Ela pedia tratamento para seu filho de cinco anos, que fizera uma tentativa de suicídio1.

Quando participo de pesquisas na condição de orientadora, utilizo também outro tipo de material, que consiste em observações anotadas em meus diários de supervisão. Neles, registro livremente fragmentos do material relatado que me parecem mais enigmáticos, curiosos ou significativos, além de algumas intervenções mais marcantes e de comunicações feitas durante a apresentação do material, tais como pensamentos e comentários espontâneos. Anoto também impressões pessoais, expressões de afetos imprevistos que invadem a cena, intercorrências, lapsos lingüisticos, esquecimentos, hipóteses, possíveis articulações com teorias e conceitos, etc. Na análise dos dados, essas notas podem ser bastante esclarecedoras, cumprindo função similar à do material da livre associação na situação clínica.

Na etapa seguinte, quando são feitos os recortes com o objetivo de construir o texto para apresentação e publicação, é preciso levar em conta, além da apresentação do material pertinente aos objetivos da pesquisa, também a organização do material de modo a torná-lo inteligível para o leitor. No entanto, para não ferir o compromisso ético de sigilo, é preciso omitir dados que poderiam favorecer a identificação do paciente, mesmo que tais omissões possam dificultar a compreensão do caso. Permanece, ademais, o problema dos temas, cujos sentidos sempre escapam às tentativas de reprodução, por mais rigorosa que elas sejam, como escreve Fabio Herrmann (1991):

Os temas, no transcorrer do tratamento analítico, são como fios que se estendem longitudinalmente, ondulantes, surgindo e desaparecendo, entrelaçados. Tal configuração é um dos responsáveis pela dificuldade do relato clínico, já que o sentido de cada palavra proferida numa sessão é o elaborado produto da evolução de temas que se vêm trançando, o que faz do pretenso relato literal do material clínico pouco mais que uma singela ilusão de objetividade (p.101).

Mas as dificuldades e ressalvas apresentadas não nos eximem da responsabilidade de enfrentar com os meios de que dispomos o problema da comunicação científica de material clínico, condição indispensável para a discussão e o enriquecimento da atividade prática, teórica e de pesquisa, indissociáveis em psicanálise.

 

"Autoria e submissão": um exemplo de pesquisa clínica

Selecionei, para ilustrar, uma pesquisa realizada sob minha orientação por Heloísa Machado Micheletti (2003), cujo objeto de investigação foi construído em torno de um caso de tentativa de suicídio na infância. A questão da pesquisa foi formulada a partir do atendimento psicanalítico de um menino de cinco anos, "Rafael", que havia feito uma tentativa de suicídio tomando remédios da mãe, logo após presenciar uma discussão familiar. Na primeira entrevista, a mãe, "Socorro", contou que, nessa discussão com o irmão com quem morava e que a mandava embora de casa, dissera que seria melhor não ter filho e que tomariam veneno, ela e os filhos. Atendido num serviço de emergência, o menino declarou que tomara todos os "remédios" (comprimidos) que havia no frasco com a intenção de se matar.

Dias depois da tentativa de suicídio, o menino ateou fogo em objetos da casa por duas vezes. O quadro sugeria a presença do que chamamos "insuficiência psíquica" tanto da criança como de sua mãe, agravada e desencadeada pela violência do ambiente no qual viviam. Depois das primeiras entrevistas com a mãe e com o menino, muito pouco foi dito por eles sobre a tentativa de suicídio, introduzindo-nos num campo cercado de silêncio, de ausência de palavras, onde explosões violentas e passagens ao ato eram freqüentes.

O caso instigou questionamentos sobre o que poderia significar o impulso para a morte nessa criança tão pequena. Por que, naquele momento, a morte apareceu como o remédio e por que o remédio da mãe foi o meio para tentar a morte? Em torno dessa pergunta é que, posteriormente, foram formuladas as questões da pesquisa.

Desde o início dos atendimentos as sessões eram anotadas para serem levadas à supervisão, de modo que quando a idéia da pesquisa surgiu já havia uma boa quantidade de material clínico disponível. Duas hipóteses de estudo sobre o que teria movido o menino na tentativa de suicídio foram consideradas: a de submissão e a de autoria. Em outras palavras: numa situação extrema, estaria Rafael se submetendo drasticamente à violência esmagadora do enunciado materno de um voto de morte? Ou, mais do que desistindo da vida, estaria buscando a autoria de sua própria morte? Nesse caso, como conceber tal autoria na infância?

As hipóteses foram construídas a partir de uma dupla origem: o material clínico e a perspectiva teórica adotada. Em conformidade com as características do caso, o referencial teórico escolhido que tinha como eixos principais a teoria de representação de Piera Aulagnier e a noção de ambiente facilitador de Donald Winnicott. Desse modo, a investigação se situava no campo das teorias sobre os processos originários do psiquismo e de suas repercussões na vida do sujeito, quando o seu funcionamento psíquico é atingido por situações que são traumatizantes por excederem a capacidade de ligação e metabolização do vivido.

O objetivo era compreender, a partir de um suposto impedimento da função de facilitação ambiental, que tipo de registro psíquico poderia estar implicado no comportamento suicida de nosso pequeno paciente. O estudo foi iniciado com sucessivas leituras do material clínico das sessões complementado por anotações de supervisão, de onde foram recortados os segmentos incluídos na pesquisa. Evidentemente, a parte selecionada de extenso material registrado correspondia a uma parcela pequena, mas representativa e significativa para o objetivo desse estudo.

A tarefa seguinte consistiu na revisão teórica e aprofundamento dos conceitos. As principais foram as teorias de Winnicott e de Piera Aulagnier. Da teoria winnicottiana, foram úteis sobretudo as idéias ligadas ao papel do ambiente facilitador sobre o funcionamento psíquico e a constituição do self, bem como as conseqüências de sua falha, que Winnicott teorizou construindo categorias como as de falso-self, submissão, colapso psíquico (breakdown) e suas relações com o suicídio. De Piera Aulagnier (1979) foi de grande valor a noção de violência da interpretação e o modelo de funcionamento psíquico que tem como eixo a atividade de representação. Esse modelo permite pensar os processos de metabolização do vivido que constituem a matéria-prima de três modalidades de representação, regidas pelo processo originário (pictograma), primário (fantasia) e secundário (representação ideativa, enunciado). Na relação mãe-criança, foram destacadas as noções de violência primária e de violência secundária. A primária é violência por ser uma intromissão materna no espaço psíquico do filho, é oferta de sentido e introdução de uma ordem heterogênea ao funcionamento do infans2, mas é necessária e estruturante porque contém elementos a partir dos quais um eu pode vir a se constituir. Em contraste a violência secundária opera contra a constituição do eu, pois se vale do atributo de necessário da violência primária para impor-se ao sujeito com o objetivo de forçá-lo a conformar-se ao desejo do outro, que é o único beneficiário dessa violência. Esse arcabouço teórico serviu ao objetivo da pesquisa, pois ajudou a pensar o impulso suicida, conduzindo às formulações sobre a atualização do pictograma de rejeição e de desvanecimento (fading) do eu, que, em situações extremas, podem deixar o sujeito submetido ao modo de funcionamento do processo originário, sendo capaz de fazê-lo lançar-se num acting out impulsivo ou suicida. Essa condição corresponde a um modo de atualização de uma forma primordial de representação que traduz uma vivência de destruição (pictograma de rejeição) de um si mesmo-outro. Mais precisamente, já que se trata de um pictograma, modo de representação no qual não existe separação do objeto, seria a destruição de uma zona corporal-objeto complementar, o que pode ser dito como "o mau seio leva consigo a má boca" (Dayan, 1990, p. 32). Isso é possível porque uma atividade autônoma de pensar e do comportamento só se consolida a partir de determinado limiar, que coincide com o declínio do complexo de Édipo e com a operação do recalcamento secundário, que exclui uma série de enunciados do espaço do eu.

Reunidas as ferramentas teóricas e o material clínico da pesquisa, procedeu-se ao seu cotejamento e à análise e discussão das hipóteses ou vias de interpretação possíveis, considerando-se, sob diversos aspectos, as dimensões de submissão e de autoria do ato suicida. Não sendo possível seguir, aqui, todos os passos e movimentos dessa etapa da pesquisa clínica, apresentarei dois parágrafos que resumem as conclusões e os desdobramentos sugeridos:

Ante as duas possibilidades, aparentemente contraditórias, optamos pela formulação de uma hipótese mais abrangente, que comporta o paradoxo da dupla implicação de passividade e atividade, de submissão e autoria, como possibilidade interpretativa para o agir de Rafael no momento em que tenta o suicídio ingerindo os comprimidos da mãe. Como procuramos demonstrar com o auxílio do material apresentado, foi essa a versão que se revelou mais próxima da clínica, com a marcada instabilidade de modos de funcionamento psíquico e as flutuações extremas de produções imagéticas e discursivas, tal como se configuraram, até este momento, à nossa escuta e experiência transferencial.
Destacamos, por fim, os desdobramentos que a análise dos possíveis modos de funcionamento psíquico presentes no ato suicida desta criança traz à reflexão clínica, no sentido de balizar intervenções adequadas para situações críticas como a de Socorro e de Rafael, e outras tantas duplas [...] com atos dramáticos e uma história ainda a construir sobre seu passado, presente e futuro (Micheletti, 2003, p. 61).

 

Caminhos de uma pesquisa psicanalítica

Pesquisar é "buscar com cuidado, procurar por toda a parte; informar-se, inquirir, perguntar; indagar profundamente, aprofundar" (Houaiss, 2001). Requer disciplina, criatividade e método. Método psicanalítico, se o que se quer buscar pertence ao campo da psicanálise. E, sendo tão diversos os fenômenos que podem ser apreendidos pela perspectiva psicanalítica, múltiplos serão também os procedimentos de pesquisa. No entanto, para encontrar alguma resposta, é preciso formular perguntas.

Quando se dedica ao tratamento de pacientes, o psicanalista interroga, investiga, pesquisa Mas, como assinalou Freud, o trabalho clínico sofrerá prejuízo se durante a sessão a atenção do analista, em vez de flutuar livremente, estiver orientada para um tema específico e se deixar desviar daquilo que surge do paciente.

Mas existem outras formas de pesquisar no campo da psicanálise e uma delas é a pesquisa clínica que acontece no só-depois do atendimento, embora não necessariamente depois do término do tratamento. Essa não pode caminhar sem formular suas questões e objetivos, sem fazer recortes e escolhas. Para realizar o trabalho sobre o texto da pesquisa é importante, mas não basta, entregar-se às associações e à atenção flutuante. Pesquisar requer uma nova atividade de pensamento que se soma à anterior e que transcorre em processo secundário. Ou, se aceitarmos a noção introduzida por Green (1972), em processo terciário. Neste, está presente um modo de funcionamento psíquico em que existe, além do processo primário e do processo secundário, uma possibilidade de circulação e comunicação entre ambos.

Para deixar ver como o trabalho de pesquisa se processa realmente (em contraposição a idealmente, como de hábito procedem os autores das inúmeras obras, mesmo aquelas apresentadas como de "iniciação" ou "introdução"), apresentei resumidamente os passos de uma pesquisa sobre um caso clínico de tentativa de suicídio na infância, no qual investigação no tratamento e pesquisa clínica sobre o caso não se confundem.

Desse modo, quis demonstrar que a legitimação da pesquisa psicanalítica não deve ser buscada por meio da adesão a uma racionalidade científica impregnada de parâmetros gerais que pretendem recobrir qualquer campo de pesquisa, sem levar em conta suas especificidades. Na psicanálise como disciplina, são as particularidades das produções psíquicas do sujeito, de grupos humanos e da cultura; no tratamento psicanalítico, são as vivências que se presentificam em contextos relacionais e transferenciais, que, por sua natureza, não podem ser quantificados.

No entanto, assim como acontece em outros campos do saber, para ser reconhecida como pesquisa em condições de debater suas formulações com interlocutores habilitados, a psicanálise deve manter suas especificidades mas também precisa apresentar claramente os conceitos com os quais opera, enunciar as questões que visa elucidar, o material da pesquisa, as condições de obtenção do material - operações, instrumentos e procedimentos adotados -, além da indicação dos passos da análise desse material e da formulação das conclusões da pesquisa.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Aurea Maria Lowenkron
R. Décio Vilares, 22/502 — Copacabana
22041-040 Rio de Janeiro, RJ
E-mail: aurealowenkron@uol.com.br

Recebido em: 20/08/06
Aceito em: 02/10/06

 

 

* Membro Efetivo da SBPRJ. Doutora em Ciências da Saúde pela UFRJ. Profa. da UFRJ.
1 Na pesquisa realizada a partir desse caso, que será apresentado como ilustração mais adiante neste trabalho, essa moça foi chamada pelo significativo nome de Socorro e o menino foi apresentado como Rafael.
2 O termo infans é escolhido justamente porque se trata, como indica a sua etimologia, do que é sem fala.

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