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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. v.39 n.71 São Paulo dic. 2006

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

A clínica que nos habita e a que habita em nós: reverso e prosa

 

The clinic that habilitate us and that live in us: reverse and prose

 

La clínica que nos habita y la que habita en nosotros: reverso y prosa

 

 

Fernando Góes TorrecillasI,*; Maria Lúcia Castilho RomeraI,II,**

I Membro Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
II Profa. Associada da Universidade Federal de Uberlândia nos cursos de graduação e pós-graduação

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo apresenta algumas idéias sobre a constituição de possibilidade de trabalho analítico, de encarnação do método e configurações da técnica e do setting, em condições onde os movimentos psíquicos funcionam em alta tensão, mas são mascarados por uma espécie de estado anestésico. Toma em consideração a presença de uma modalidade particular de im-pacientes, cuja estrutura psicopatológica parece se configurar em completa harmonia com o desarmônico mundo contemporâneo. Busca refletir sobre algumas posturas assumidas pelo analista em tais circunstâncias, sobre os riscos e das possibilidades que delas advêm.

Palavras-chave: Método psicanalítico, Psicopatologia contemporânea, Crise.


ABSTRACT

The article brings out some ideas about the constitution of the possibility of analytical work, of the method incarnation and technic and setting configurations, in conditions where psychic movements work out in high tension, but are masked with a sort of anesthetic state. It takes into consideration the presence of an individual mode in im-patients, whose psychopathological structure seems to be configured in perfect harmony with the disharmonious contemporary world. It seeks reflections on some postures assumed by the analyst in such circumstances, from the risks and possibilities which can be supervened.

Keywords: Psychoanalytic method, Contemporaneous psychopathology, Crisis.


RESUMEN

El artículo presenta algunas ideas sobre la construcción de posibilidad de trabajo analítico, de encarnación del método y configuraciones de la técnica y del setting, en condiciones donde los movimientos psíquicos funcionan en situaciones de gran tensión, pero son encubiertos por una especie de estado anestésico. Lleva en consideración la presencia de una modalidad particular de im-pacientes, cuya estructura psicopatológica parece configurarse en completa armonía con el mundo contemporáneo en el que no existe armonía. Busca reflexionar sobre algunas posturas asumidas por el analista en tales circunstancias, sobre los riesgos y las posibilidades que de ellas resultan.

Palabras clave: Método psicoanalítico, Psicopatología contemporánea, Crisis.


 

 

Introduzindo a prosa

No cotidiano de nosso trabalho psicanalítico recebemos pacientes, trabalhamos por períodos maiores ou menores com eles, despedimo-nos a cada sessão e também por períodos mais longos, somos despedidos por eles... Enfim: tantos são os nossos movimentos de aproximação e recuo ao nosso paciente e àquilo que se constitui no entre nós, ou àquilo que nos constitui a partir da transferência, que mister se faz tomar alguns deles em consideração.

Não é raro levantarmos indagação acerca de ser ou não apropriado tomar alguém em análise, e quando isso deve ou quando acontece de isso, das unbewusste, das Es, acontecer. Em outras palavras, a condição de analisabilidade.

Desde Freud, que enumerou, em vários artigos, as condições para se caracterizar alguém em análise, muito assunto esclarecedor tem sido conduzido. Ele próprio, às vezes, fazia uso do método da interpretação em condições bastante distintas daquelas que ele mesmo preconizava como ideais. Por outro lado, em períodos tidos como de diáspora dos pacientes dos consultórios psicanalíticos, quando alguém vem à procura de um de nós, pode soar estranho e algo pedante uma indagação deste tipo: tem ele ou ela condição de análise?

Cada tempo da história da psicanálise reflete e faz refletir uma determinada modalidade de estruturação das relações entre as pessoas e nelas o mundo todo comparece. E como comparece? Através dos inúmeros possíveis sentidos que se produzem via psique. Com Fabio Herrmann (1999) entendemos imprescindível considerar o alcance da psique do real — o reino do sentido humano — na nossa atividade psicanalítica, na nossa clínica, estendendo o alcance da potencialidade de nosso método investigativo-interventivo: o interpretativo.

Podemos pensar, a partir disso, formas particulares de aproximação da psicanálise no transcorrer da história e isso passa a configurar o campo onde o trabalho analítico se efetiva. Talvez pudéssemos considerar que a resistência-obstáculo, enquanto elemento fundante da condição do trabalho interpretativo, tomando tal qual camaleão diferentes configurações, assimila da realidade cultural, ou da psique do real, seu estofo, perceptível apenas nos seus contornos. A cada tempo e em cada lugar a resistência se presentifica de determinadas formas. Sendo assim, como têm chegado os "pacientes" da psicanálise?

Antes de mais nada nos têm chegado enquanto falência de substancialidade do humano no ou do nosso mundo representacional. Têm-nos chegado como forma de investigação do real humano, do ser aniquilado e anestesiado, individual e coletivo, do ser desencontrado de sua raiz simbólica.

E o que esperam de nós, psicanalistas? Esperam que possamos proporcionar a mobilização da narrativa acompanhando ou acompanhados pelas artes, pela arte da interpretação mais especificamente, pela abertura do cárcere de um positivismo, de uma padronização massacrante.

A psicanálise, modelo de investigação fundante do psiquismo, da clínica, reabilitando às ciências humanas aquilo que lhes é de direito, é intimada a ser parceira da literatura, da história, recuperando nesta interconexão seu lugar de origem. A psicanálise é conclamada a ser clínica extensa, potencializadora da análise e interpretação de sua própria clínica.

Pois bem, aos nossos consultórios os pacientes têm chegado de um modo muito diferente. Estariam configurando uma nova modalidade de resistência estruturada pela mentalidade social/real/imaginária vigente?

Neste trabalho inicialmente consideraremos questões relacionadas à resistência articuladas ao paciente aqui denominado muito diferente: uma espécie de im-paciente, cuja estrutura psicopatológica parece se configurar em perfeita harmonia com o desarmônico mundo contemporâneo, para aquecer a Prosa. Num segundo momento, serão relatadas duas experiências clínicas, o proseando, considerando este o sentido principal de nosso fazer clínico, de nossa praxis. A conclusão virá a seguir para finalizar a prosa.

 

Aquecendo a prosa

Todos sabemos da importância fundamental que desde Freud é atribuída à resistência — sua função, principalmente. No artigo "O método psicanalítico de Freud" (1904/1976) fica muito claro que o fator da resistência, a partir da repressão, tornou-se uma das pedras angulares da teoria e da técnica psicanalítica, já que a distorção produzida pela resistência possibilitaria o acesso ao consciente do material inconsciente. A partir da resistência, "do minério das idéias não-intencionais", é que se vislumbra o reprimido, o inconsciente, o que não estava sendo tomado em consideração. Poderíamos dizer que "a estrada árdua constitui ainda a menor rota a percorrer" (Freud, 1904/1976, p. 260), o que nos coloca diante do necessário enfrentamento com os obstáculos/resistências que terão a função de instituir o caminho para os fins terapêuticos.

Fabio Herrmann (1989) também atribui um estatuto altamente relevante à resistência, imprescindível na concepção do método, do proceder analítico. No artigo "Interpretação: a invariância do Método nas várias teorias e prática clínicas" esclarece que "a interpretação dirige-se a uma zona determinada pela própria resistência, onde pululam as representações possíveis do par analítico, e a alcança por um efeito de presença" (p. 23). Poderíamos considerar que este proceder a partir ou no sentido do obstáculo, da resistência, é que delinearia a metodologia psicanalítica efetivada através daquilo que este autor denomina ruptura de campo. Concebe o campo de uma relação como o inconsciente em sua ação concreta e a partir daí deriva o conceito de campo psicanalítico como o espaço e o tempo virtual onde se processa a desrotinização, "o avesso do ato interpretativo" (Herrmann, 1991, p. 118). A ruptura de campo é a quebra da rotina tornando possível a emergência do estruturante, do estofo de uma relação, de um inconsciente.

Pois bem, "se o rio não está para peixe", ditado popular que expressa dificuldades factuais a serem enfrentadas, torna-se imprescindível o exercício da "ceva", favorecendo a aproximação dos peixes, preparando a água, o terreno, os elementos naturais para que o alimento possa advir. No nosso caso, favorecer ou potencializar os elementos naturais da análise poderia ser, dentre outros tantos procedimentos, tomar em consideração a existência dos obstáculos. Nisso, convenhamos, desde os tempos do velho Freud, ou melhor, do Freud novo, sempre foi aquilo em que a psicanálise mais se especializou, por assim dizer, em fazer. Somos destinados/condenados a superar obstáculos, através da interpretação. É a resistência que nos orienta. Por isso: mãos à obra.

Nosso paciente tem chegado diferente! Mas... até aí não é grande a novidade! Tem chegado muito diferente e muitas vezes nem tem chegado. Bem... aí já é mais complicado. Se ele não chega, não podemos fazer nada. Mas... ele pode não estar chegando porque não estamos sabendo muito bem como recebê-lo, como aceitá-lo. Talvez estejamos esperando receber um paciente diferente e, como o que chega é muito diferente, acabamos por nos atrapalhar um pouco. Ou mesmo não saibamos como reconhecê-lo!?!.

Mas então?! Este paciente que chega, em geral, é aquele que não se "adapta" ao setting, ao dispositivo analítico clássico ou padrão. Como é muito diferente acaba sendo configurado como "muito" resistente e aí pode-se iniciar um confronto, uma luta de forças que muitas vezes acaba em afastamento. Às vezes, afastar é bom, mas, no caso ora em questão, não o é, pois para fazer análise é preciso que analisando e analista estejam juntos. É dessa sujeição que sobrevém o objeto da nossa investigação.

O paciente muito diferente chega com pressa; seu tempo é trabalho, afazeres sem outros prazeres, exigências, carências, ânsia pela incerteza do futuro, nostalgia irada do passado que não foi tão frutífero como gostaria que tivesse sido. Além disso, alienamento do presente, pois este não conjuga o passado e o futuro, não é um constituinte de elos, mas um conglomerado de imagens estranguladas pela premência de garantir-se, sem a necessária noção de continuidade que o sustente, sem tempo de poder "cevar" ou abastecer-se. O domínio é o do campo do real fast. Talvez o nosso paciente muito diferente seja este próprio real para o qual e desde o qual estejamos sendo lançados. Mas este não é exatamente o que pretendemos abordar, por hora. Voltemos àquele que nos procura em consultório.

Em geral, passou por vários especialistas médicos, algum dos quais recomendou-lhe análise, mas ele sequer considerou a indicação, até porque achava ter sido feita muito mais pelo fato de o médico estar sem tempo de atendê-lo com mais atenção e cuidado.

Não raro já passou por outros terapeutas. Define, mais ou menos, alguns como ortodoxos e outros como alternativos, associando características relacionadas ao número de sessões semanais, uso ou não do divã, honorários mais elevados ou menores, a uma e outra destas modalidades ou adjetivos qualificativos dos terapeutas. Faz referência a algum autor clássico como Freud, Klein, Lacan para introduzir uma pergunta que quase chega a intimidar o analista: "Você não é daqueles freudianos ortodoxos?!...é?!!". Afirma que precisa e quer análise mas que não tem tempo e o dinheiro, também raro, precisa ser controlado para aplicações e investimentos, em negócios imprescindíveis à funcionalidade da vida.

Diante de tudo isso poderíamos nos perguntar: o que haveria de ter uma função de "ceva" para que o rio, também, estivesse para peixe? O que na postura do analista poderia promover a potencialização daquilo que está camuflado, anestesiado, submetido, trancafiado na avalanche de certezas, dogmas de uma hiper-realidade que achata todos os valores e que faz do tempo uma noção de descontinuidade ou uma não-noção de passagem?

Para Baudrillard, apud Dantas Jr. (2002), tal hiper-realidade define uma forma de apresentação e percepção da imagem caracterizada como um simulacro, estando ela inteiramente dissociada de seus referentes, dissociando-se de qualquer realidade.

São questões complexas que exigem um minucioso e profundo estudo de fatores multideterminantes. Para o que se pretende neste ensaio, poderíamos dizer que para o enfrentamento dos obstáculos que concorrem na clínica contemporânea, reveste-se de fundamental importância a posição do analista no sentido de sustentar um modelo metodológico essencial na sua prática, qual seja, o psicanalítico-interpretativo por ruptura de campo.

Para isso, parece necessário colocar-se o conceito de interpretação numa espécie de depuração buscando o seu sentido original. Nesta perspectiva é que reencontramos o conceito de ruptura de campo, anteriormente definido, contribuição original de Fabio Herrmann, desdobrado da noção de absurdo encarnado na interpretação1.

Para recuperar ou revigorar a matriz de produção de conhecimento da psicanálise: em seu método interpretativo foi preciso ou é preciso, como argumenta o autor anteriormente citado, generalizar o conceito do inconsciente freudiano para que os analistas em seu ofício possam voltar a se encantar com a investigação e a criação fazendo muito mais com Freud, Klein, Lacan, Bion, Winnicott, e não somente como estes geniais descobridores.

Barros (2001) é contundente ao afirmar que o grande desafio da clínica contemporânea é o de "atualizar o conceito de inconsciente e recuperar o prestígio da palavra como elemento transformador das estruturas inconscientes" (p. 64). Ao psicanalista destina-se uma peculiar forma de prosa...

 

Proseando

Duas experiências clínicas poderão ser úteis para nos ajudar a examinar esta questão. Cada uma delas diz respeito a cada um dos autores. Foram condensados em dois personagens elementos de alguns analisandos. Tais personagens veiculam realidade e ficção, fruto de elaborações e fantasias. Representam aquilo que apreendemos como elo comum na especificidade de cada uma das pessoas que com cada um dos analistas re-constituíram tempos de suas vidas.

O leitor perceberá a existência de uma troca no uso dos pronomes, terceira pessoa do plural para primeira pessoa do singular, tendo-se em vista a especificidade da experiência analítica.

Na primeira, uma pessoa, por volta de quarenta anos, procurou análise dizendo que queria "ser prática" e para isso precisava de um índice de resolutividade muito alto para seu problema: insônia, ansiedade, irritabilidade, desprazer com a vida, coisas que estavam interferindo na sua vida pessoal e principalmente profissional. Provocou-me certa surpresa quando me disse: "Eu quero ver a química". Acredito que diante de meu olhar meio desentendido ela logo acrescentou: "É claro que eu quero ver o meu lado emocional e por isso estou aqui, mas, se eu estou com depressão como parece, deve ter alguma coisa de química... é a minha química que está em jogo e eu estou muito mal mesmo!". Passou a discorrer sobre os inúmeros remédios que tomara após visitar outros inúmeros médicos clínicos, psiquiatras, gerontologistas etc. Alterava sua medicação por sua própria conta e, por isso, não voltava ao médico, indo, então, procurar algum outro.

Eu não conseguia acompanhá-la, pois ela me falava tantos nomes de remédios, para alguns descrevendo a composição, que eu me sentia impedida, por assim dizer, tamanha a avalanche de informações, de formar alguma idéia sobre o que ela me dizia. Ou melhor, a única idéia que me ocorria era a de que aquela pessoa havia entrado em lugar errado e que não iria ficar comigo. Fiquei em silêncio não propriamente por opção, mas porque tentava manter-me respirando, sustentando a minha sobrevivência em meio a tanta "química", armas biológicas... talvez!?!? E, também, para que pudesse aguardar as questões emergenciais que pudessem advir.

Em um certo momento fez referência ao nome de um farmacologista, dizendo ser muito famoso, e acho que aí, diante da pausa que ela fez para fazer comentários sobre este médico, eu pude ser habitada por algum delineamento de uma segunda idéia. Eu não conhecia o profissional ao qual ela fazia referência, mas fixei o nome de origem árabe e o associei ao nome de um médico que estava muito presente na mídia, no transcorrer daqueles dias, pois cometera um brutal assassinato decepando o corpo de sua amante. Então pensei: "Creio que estou diante de uma pessoa com a alma esquartejada". Sensibilizou-me esta apreensão e, a partir daí, eu já não mais achava que ela entrara em lugar errado. Lembrou-me Carlos Drummond de Andrade: "Bater à porta errada costuma resultar em descoberta".

Através desta possibilidade vislumbrada, pude postar-me em um estado que denomino suspensão-suspeição 2 da realidade. Momentos depois, ainda em meio a alguns comentários sobre medicação, desconforto, ela acentuou sua insatisfação com tudo da sua vida e revelou-me ter estado uma semana antes em um cirurgião plástico para fazer correção em todo seu corpo e algumas partes do rosto e dos braços: "Eu queria mudar tudo, ia ficar lá direto e tomar anestesia geral, mas a amiga que foi comigo não poderia ficar lá e então eu resolvi adiar... Voltando para casa é que eu pensei em você, em vir conversar com você. Eu não quero fazer uma análise longa pois não sei se eu já te disse mas eu fiquei mais de seis anos em terapia... e... na época foi bom para eu entender uma série de coisas de minha vida familiar infantil, mas agora... não... quer dizer, não sei se quero isso!?! Preciso ser prática!".

Enquanto ela ia descrevendo as partes, que sofreriam correção em seu corpo, eu fui sendo tomada por uma sensação de quase vertigem ligada a um corpo esquartejado. Apreendi que os registros a mim fornecidos eram de uma natureza corporal. Parecia ser esta a sua maneira possível de pensar e de se comunicar. Seria esta uma maneira dela de pensar ou dela-mundo?

Herrmann (1997) entende mundo como "uma unidade concebível pelo pensamento e pela emoção que nos confronta de fora cara a cara, ao mesmo tempo em que nos determina de dentro a medula do ser psíquico" (p. 133). O pensamento em ato ali veiculado advinha daquilo que este autor caracteriza como uma forma de representação da realidade, imposto por assim dizer, por um movimento de fusão entre o pensamento e a ação: "ato puro".

De uma perspectiva um pouco distinta da anterior, mas ainda na tentativa de depuração do conceito de interpretação, Canestri, apud Barros (2001), sugere que o que melhor caracteriza a psicanálise atual é uma forma de interpretar que incorpora o processo de escuta e o processo subseqüente ocorrido em nós mesmos.

Neste sentido, a minha vivência emocional era, por assim dizer, evocada por uma experiência sem representação, como uma espécie de essência da identificação projetiva, ou como uma representação em ato do mundo em que vivemos. A interpretação não teria por função apenas a revelação de significados ocultos, escondidos da consciência pela repressão, mas também a de processar uma verdadeira invenção de significados ausentes. A interpretação adviria, também, do tomar em consideração a forma autoritária do regime de pensamento vigente, sustentadores imperceptíveis de nossas relações cotidianas.

Minha preocupação aumentou, diante de sua pergunta, num tom de quase indiferença, como se tudo aquilo não tivesse muita importância a despeito de todo sofrimento que ela expressava e me transmitia: "O que você acha? Não sei se é caso de terapia? Ah! Eu já fiz por tanto tempo!?".

É bem provável que, neste momento, carregando a angústia que ela projetara em mim, além da sensibilização que experimentara ao depreender a condição de pessoa perdida, desamparada de si mesma, submetida a tantos esquartejamentos, eu tenha assumido uma postura meio des-esperada — no sentido de não esperar dela uma possibilidade de busca de ajuda para além daquela que ela estava me comunicando ao procurar-me. Disse-lhe que não sabia se ela precisava de terapia pois só tinha esparsos indícios do que isto representava para ela, mas sabia que ela precisava de um atendimento emergencial pois sua desesperança era visível, inclusive, com seu próprio corpo, sua morada principal. Propus a ela que nos encontrássemos o maior número de vezes possível durante um período de tempo e depois iríamos ver se ela iria ou não fazer terapia ou análise.

Confesso que não lhe dei muita chance de não acatar ou de desistir da possibilidade de vir para o atendimento. Penso que seria preciso criar uma condição de análise através da própria análise. Ela estava alí, quase "indiferente", em alguns momentos, à sua real precariedade. Em um certo momento me disse: "Apesar de estar tão mal eu não sei se estou doente, pois eu estou fazendo coisas, produzindo!". Sintonizada ou sintomatizada com as características do mundo contemporâneo, onde o mercado é que rege as relações, ela não conseguia um ligeiro afastamento ou pausas que lhe facilitassem a visão de seu esquartejamento. Parecia não possuir recursos representacionais que a levassem a uma expressividade verbal. A representação lhe era imposta. A hiper-realidade tamponava a angústia do Ser desta pessoa e ela naufragava na química, sua arma biológica tão aparente e tão escondida ao mesmo tempo. Ela não possuía recursos para usar uma arma verbal. E... o verbo se fez carne... Seu próprio corpo, linguagem-ato, não lhe cabia. Requeria cortes. Parecia desenraizado no aparecimento da "química".

A decisão por mim tomada foi prontamente acatada por ela, não sem reservas. Pediu uma alteração de preço e que não deixássemos os horários todos fixos, pois ela não poderia atender a todos. Interessante é que, posteriormente, ela me disse que sua vida era atender a todos. Fizemos os ajustes necessários com dois horários semanais fixos e dois ou três variáveis/flexíveis e que seriam combinados no início de cada semana. E assim em meio aos desencontros fomos nos encontrando.

Na segunda experiência clínica, poderá ficar mais clara a questão da constituição da condição de análise a partir de um emergente crítico e de intenso sofrimento psíquico.

Um executivo de uma companhia multinacional me procurou para análise. É estrangeiro, mas já domina bem o nosso idioma. Viaja constantemente para várias partes do país e também para fora dele. Casado há vários anos, não tem filhos e sua mulher vive em seu país de origem.

Quando me procurou apresentava um quadro típico de ansiedade, com somatizações. Tinha dores no peito, falta de ar, dores de cabeça, sensação de morte iminente, dormia mal e começava a ter alguma dificuldade para trabalhar. Às vezes, levantava-se indisposto, precisando se esforçar para ir trabalhar, e tinha dificuldades para se concentrar e organizar sua agenda de compromissos. Aí começava um pequeno colapso em sua estrutura psíquica. Algo estava saindo de um compasso e ele precisava de ajuda.

Nosso primeiro contato foi bom. Sensibilizou-me aquela situação de um homem "despatriado" no tempo e no espaço. Ele parecia flutuar e, no entanto, requeria um lugar mais continente para poder sobreviver. Algo precisava ser feito.

Como ele viajava muito, e por o analista estar atendendo em São Paulo e Uberlândia, fizemos um acordo de atendimento, onde algumas sessões seriam realizadas em São Paulo e outras em Uberlândia. A princípio, isto seria muito bom e oportuno, mas, em princípio, quebrava, por assim dizer, algumas regras do setting. Seria um risco, mas optei por corrê-lo. Os horários e o local eram definidos quase semanalmente, pois ele tinha acesso à sua agenda com o máximo de quinze dias de antecedência. Quando, por alguma razão, ele ou eu tínhamos que suspender um horário já marcado combinamos que haveria reposição deles.

Estava casado havia vinte anos; não puderam ter filhos e isso tinha sido uma grande frustração em sua vida.

Alega que o casamento estava em crise, agravado pelo envolvimento que tinha tido com uma colega de trabalho, cerca de vinte e cinco anos mais nova do que ele. Quando iniciamos o trabalho sua ansiedade e seus conflitos em relação ao casamento e esse novo relacionamento eram intensos. Teve uma significativa melhora sintomática quando decidiu pela separação da esposa e passou a ver nessa nova mulher e mulher nova em sua vida, sua alma gêmea. Era um estado mental de euforia e idealização evidentes: "Nunca me senti tão feliz em minha vida!". Era difícil para mim lidar com essa nova dinâmica que se foi estabelecendo entre nós. Tentava pensar, junto com ele, sobre o sentido deste apaixonamento. Mas, se no início sua angústia era favorecedora desta possibilidade de pensar, sobre essas e nossas experiências emocionais, agora ele se mostrava esquivo, as faltas às sessões eram mais freqüentes, parecendo que temia perder essa felicidade conquistada. Mas sua jovem amante, de uma forma intempestiva para ele, voltou para seu antigo namorado, dizendo que ainda o amava. Sua des-ilusão foi enorme. Voltaram os sintomas físicos e os laços comigo ficaram mais estreitos.

Nesses dois anos e seis meses que estamos juntos, essa situação de rompimentos e retornos se repetiram algumas vezes. Ele se entregava, totalmente, nessas reconciliações parando com tudo que estava fazendo. Fazia planos de casamento com ela, que considerava a mulher de sua vida até ter nova decepção. Numa dessas reconciliações, interrompe a análise por quatro meses, retornando quando foi novamente abandonado.

Em uma das primeiras sessões desta segunda etapa, colocou que se dera conta de ser pouco criativo e que ele queria poder criar. Pareceu-me um indício de consciência de que "produzir" não é "criar" e que estar em análise remete-o a criar. Criar o quê? Tempo que ele não tinha tido para si. Criar condições para estar consigo e com o analista (outro). Creio que ele voltou por ter considerado que ensaiava comigo uma possibilidade de criação a dois, mesmo que isso o desalojasse, por completo,de sua formação sintomática, ameaçando suas defesas. Tal possibilidade de criação e da construção do ser em análise havia-se constituído, provavelmente, na potencialidade da postura metodológica psicanalítica por mim adotada no nosso trabalho que havia sido interrompido.

Concomitantemente a isso, esse homem de quase cinqüenta anos, passa a se envolver com inúmeras mulheres-namoradas, prostitutas, colegas de trabalho. Ele me dizia, entre admirado e surpreso, que, quando mais jovem, se considerava uma pessoa tímida e sem jeito para conquistar as mulheres e, agora, ia conquistando, uma após outra: "Outro dia estava contando as mulheres que conheci este ano e cheguei a dezenove. Não é incrível!?!".

Enquanto o ouvia ficava pensando que sentido teriam estas conquistas exibidas, orgulhosamente, para mim, como troféus. Ele denominou nossas sessões novela e a cada capítulo ia-me descrevendo suas aventuras amorosas. Eu, talvez até pelo tempo que estávamos juntos, sugeri que um bom nome para esta novela fosse "O direito de nascer". Aquele homem, com ares de adolescente, parecia só poder estar-se reconhecendo através dos, por mim chamados, troféus e de uma espécie de "hipermovimentos". Ele um dia trouxe uma lembrança de sua infância ocorrida em um país centro-americano, em uma família rica, onde era cuidado por inúmeras babás e empregadas domésticas. Como a rotatividade das empregadas era alta, ele foi cuidado por mulheres, por assim dizer, em movimento. Uma espécie de atordoamento psíquico-representacional é flagrante. Uma outra lembrança da adolescência era o seu sonho de ser um playboy, imaginando-se com carrões e mulheres bonitas. Essas lembranças foram estabelecendo algumas conexões com suas experiências emocionais atuais, dando-lhes novas significações. Como também em uma outra sessão ele descobre que esta jovem mulher por quem se dizia tão apaixonado, na realidade, deveria existir tão somente em sua imaginação.

Em uma de suas aventuras, uma também jovem mulher engravida. Sua filha, em quem ele colocou o nome da avó materna, está com quatro meses. Seu desejo de pai se realizou, mas... este já é um outro capítulo desta novela.

Entendemos que o trabalho que se iniciou e que se vem desenvolvendo desde então, nos dois relatos, configura o que Fabio Herrmann (2005) vem delineando como clínica extensa. O próprio autor não a considera uma novidade ou uma idéia nova mas... somente "a vasta medida em que o método ultrapassa a técnica" (p. 19).

A extensão da clínica seria o retorno ou a recuperação do método interpretativo enquanto fundamental à experiência psicanalítica ou ao movimento de criação da psicanálise. A habitação do que é mais peculiar ao exercício do psicanalista: o trânsito pelo insensato, pelo que está por vir, pela destinação de ruptura representacional promovida pela lente psicanalítica.

A construção da condição de análise, a partir da própria análise, equivale a dizer que o método psicanalítico mantém-se invariante e alteramos aquilo que circunscreve ou emoldura o dispositivo analítico. Mantendo a postura interpretativa — suspensão-suspeição dos sentidos dados — e uma escuta no sentido da obliqüidade3 do discurso do paciente, almejamos o acesso a uma modalidade de produção de conhecimento que possa facultar a assunção do ser em condição de análise. Já não mais nos chegam pacientes dentro do modelo proposto para o atendimento tradicional ou padrão. Temos que estender a clínica psicanalítica dentro de sua própria lógica.

 

Finalizando a prosa

O fim é a própria clínica, as condições e as possibilidades de sua existência. Acabamos por constatar que há o possível e o necessário, aquilo que podemos e o que deve ser feito.

Impregnados que somos, os psicanalistas, com uma postura indagativa, imprescindível é mantê-la, sustentando com firmeza a dúvida inquietante mesmo em momentos em que as certezas dogmáticas, sempre parciais e funcionais, nos queiram seduzir. Melhor do que acreditar que o paciente agora que chegou tem ou não tem que ficar, talvez, seja confiar que se nos mantivermos como possível companhia as condições necessárias para estarmos juntos poderão advir. Suspendendo o conhecimento que se julga ter e suspeitando que não haverá outra saída, a não ser saber pelo que aí for dado, aguardamos que as questões, lentamente, se formulem, às vezes em concomitância com as respostas, que só terão este estatuto após o reconhecimento da pergunta.

Com tal paciente têm sido traçadas possibilidades de encontro com esta prerrogativa, espaço onde possa se estilhaçar e se reconstituir de forma a ampliar seu sentido de busca e encontro do ser perdido. Tal espaço pode se transformar em um tempo de redesenhar os contornos da subjetividade constituída pela via da inter-subjetividade. Por sofrer, busca e, às vezes se encontra... ou desencontra.

E assim também tem sido o movimento da clínica psicanalítica neste novo século, momentos de buscas, encontros, desencontros e montagem de pedaços que são parte e todo mais do que a parte de um todo. A clínica é construção que nos habita pelos movimentos do método interpretativo.

Por fim, caros leitores, não contamos nada de novo. O novo é a nossa forma peculiar de contar. E cada conto aumenta... a nossa presença analítica!

 

Referências

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Endereço para correspondência
Fernando Góes Torrecillas
R. Itacolomi, 601/83
01239-901 São Paulo, SP
Fone/fax: 3129-8701
E-mail: fetorrecillas@terra.com.br

Maria Lúcia Castilho Romera
Av. Floriano Peixoto, 615/308
38400-102 Uberlândia, MG
Fone: (34) 3296-7985
E-mail: mluciaro@terra.com.br

Recebido em: 10/12/06
Aceito em: 14/12/06

 

 

* Médico. Membro Associado da SBPSP.
** Psicóloga. Membro Associado da SBPSP. Doutora em Psicologia. Profa. Associada da Universidade Federal de Uberlândia nos cursos de graduação e pós-graduação.
1 Segundo Leda Herrmann (2004) ao empreender o trabalho de desvelamento do método Fabio demonstra que além de ser uma forma de conhecimento o método psicanalítico é, também, uma propriedade da psique, do próprio objeto. E parece ser na determinação desta espessura ontológica do método que se presentifica o que esta autora chama de "idéia de dupla face — método/absurdo" e que alicerçou todo o pensamento de Herrmann culminando na Teoria dos Campos (p. 20).
2 No texto "Postura interrogante-interpretante" (Romera, 2002) defini tal estado como uma postura de desvelamento de sentidos, interrompendo o sentido dado para facultar a emergência de outro(s).
3 Expressão utilizada, oportunamente, pelo colega Sergio Blay, no seminário eletivo "Questões básicas sobre o método psicanalítico" da SBPSP, 1º sem 2003, coord. Odilon de Mello Franco Filho.

 

 

Nos campos interpretantes
De prosa revertida
Fulgurante penumbra
De luz
Incandescente
Her man
Ele e Ela
Quantos es?...és ?!

Ao Fabio com saudade

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