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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.39 no.71 São Paulo Dec. 2006

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

Brincar de verdade: um caminho de Lucas1

 

Real play: Lucas' path

 

Jugar de verdad: el camino de Lucas

 

 

Maria Cecília Pereira da Silva*

Membro efetivo, analista de criança e adolescente e docente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Apresento neste trabalho o caminho analítico percorrido por Lucas, um menino de cinco anos, de olhar vivo e curioso, que é muito vulnerável às separações e tem uma grande dificuldade para lidar com sua impulsividade. Descrevo como se deu o estabelecimento da atividade do brincar: passou do movimento repetitivo em que Lucas e eu encenávamos os heróis dos desenhos infantis até o brincar de verdade, como ele mesmo denominou, constituído pela capacidade de brincar e de sonhar. Procuro mostrar como nesse caminho tenho sido a guardiã de nossa história, oferecendo continência e favorecendo a transformação de angústias de separação e agonias impensáveis em experiências disponíveis para serem contidas e representadas.

Palavras-chave: Análise de criança, Brincar, Angústias de separação, Impulsividade, Função analítica.


ABSTRACT

In this paper I present Lucas' psychoanalytical path. He is a five-year old boy who has a lively and curious outlook. He is also very vulnerable to separations and has great difficulty dealing with impulsivity. I report on how the play activity was established: it went from a repetitive movement in which Lucas and I roleplayed children cartoon's heroes up to real play as he himself named it, constituted by his play and dream capacity. My attempt is to show how throughout this path I have been the guardian of our history by offering continence and enabling the transformation of unthinkable separation anguish and agonies in experiences that are available to be contained and represented.

Keywords: Child analysis, Play, Separation anguish, Impulsivity, Analytical function.


RESUMEN

Presento en este trabajo el camino analítico recorrido por Lucas, un niño de cinco años, de ojos vivos y curiosos, que es muy vulnerable a las separaciones y tiene una gran dificultad para manejar su impulsividad. Describo como se desarrolló la actividad de jugar de verdad: pasó de un movimiento repetitivo en que Lucas y yo ensayábamos ser héroes de los dibujos animados hasta el jugar de verdad, como él mismo lo denominó, constituido por la capacidad de jugar y de soñar. Trato de mostrar como en ese camino he sido la guardiana de nuestra historia ofreciendo continencia y favoreciendo la transformación de angustias de separación, así como de angustias impensables, en experiencias disponibles para que sean contenidas y representadas.

Palabras clave: Análisis de niños, Jugar, Angustias de separación, Impulsividad, Función analítica.


 

 

Apresentação

A psicanálise de crianças e de adolescentes é apaixonante. Além de oferecer a possibilidade de acompanharmos o desabrochar de todo potencial emocional, também exige que lidemos com a impulsividade e as situações freqüentes de passagem ao ato, presentes no trabalho com essa faixa etária. Além disso, temos de nos deparar com as vicissitudes de um processo analítico que depende de um contrato com os pais e de sua disponibilidade para um setting de várias sessões por semana, que disputam com outras atividades dos filhos e dos outros membros da família.

Apresento neste trabalho um recorte da análise de um menino de cinco anos. Mostro como se deu o estabelecimento da atividade do brincar, imerso em dinâmicas edipianas, em que a impulsividade, diante de insatisfações, tem sido freqüentemente atuada, exigindo contenção. Ilustro a riqueza de fantasias desse período e a necessidade de contê-las e nomeá-las para integrá-las ao ego, contrastando com aspectos superegóicos extremamente proibitivos, típicos de um ego imaturo que não dá conta de toda a excitação desse momento.

Nesse período da análise, aqui relatado, tenho me ocupado muito mais com a construção de um continente do que com os conteúdos do pensamento, ou seja, com o aparelho necessário para poder pensá-los, conforme definiu Bion. Ferro (1995) aponta que:

(...) isso inverte toda e qualquer aproximação com o paciente (e com as partes psicóticas de cada paciente), porque não mais estará em jogo o trabalho sobre a repressão (Freud) ou sobre a cisão (Klein), mas será necessário um trabalho em direção à fonte: aquele sobre o "lugar" para pensar os pensamentos, sobre o continente antes que sobre o conteúdo (p. 27) (grifos do autor).

Para mim, o trabalho analítico é uma nova relação que em parte transforma as anteriores e que em parte vem se justapor a elas:

... é o funcionamento mental do analista ali, na relação com seu paciente, ali, no seu modo de interpretar ou não interpretar, a sua capacidade de modificar o próprio esquema mental interpretativo, a renúncia a interpretações saturadas e o reconhecimento de uma plena atividade ao paciente (...) que determinam a possibilidade de um novo funcionamento para o paciente (Ferro, 1995, p. 30).

 

Lucas

"Não consigo segurar o menino maluquinho que tem dentro de mim."

Foi assim que Lucas, aos quatro anos, anunciou a sua mãe que algo não ia bem. Além de ser um menino que possui uma grande dificuldade para lidar com sua impulsividade e ser muito vulnerável às separações, Lucas é esperto e divertido, tem um olhar vivo e curioso, e é tão sagaz que por vezes chega a ser desconcertante.

Sua mãe me procurou pela primeira vez em junho de 2004, quando ele tinha acabado de fazer quatro anos. Ela me disse: "Quando Lucas é frustrado, ele tem ataques de raiva homéricos e nesses momentos treme, fala baixo, não consegue segurar sua raiva e me bate". Ao mesmo tempo, ela me contou que ele é muito maduro para sua idade, rápido mentalmente, amoroso e simpático, está bem na escola, seu desenvolvimento verbal, que foi precoce, é bom e nunca apresentou dificuldades motoras. Acrescentou que ele estava muito angustiado com a separação recente dos pais.

Logo que me viu, Lucas não teve dificuldade em entrar na sala e explorar os brinquedos da caixa. Brincou com os animais e fez uma fazendinha. Com um jogo de montar construiu um avião. Chamou-me a atenção a facilidade com que interagiu comigo, seu vocabulário extremamente sofisticado, além de uma habilidade motora fina muito apurada. Mas havia uma aflição no seu brincar, como se não pudesse se deter e se divertir com o que fazia: ele estava angustiado.

Nesta ocasião, sua mãe mostrou-se muito perceptiva em relação às necessidades de seu filho e interessada em cuidar de suas angústias, especialmente aquelas relacionadas aos comportamentos agressivos, mas seu pai se colocou contrário a uma intervenção terapêutica e nosso contato se encerrou aí.

Em março de 2005, voltaram a me procurar e nessa ocasião realizei duas entrevistas com os pais. Os pais estavam namorando novamente, mas mantinham-se morando em casas separadas. Lucas passava parte da semana na casa de um e parte da semana na casa de outro. Passavam os finais de semana todos juntos, em geral, na casa da mãe. As queixas eram as mesmas e ambos reconheceram que a separação vinha deixando Lucas muito angustiado. Nessa época, Lucas tinha implicado com uma priminha, criando situações muito complicadas entre os familiares, o que desencadeou esse pedido de análise.

Ela descreve que ao ser contrariado Lucas fica muito bravo, bate e derruba tudo a sua volta2, e acrescenta: "Ultimamente ele está muito medroso. Parece que ele capta o que tem de pior nos desenhos que vê na tevê. Ele diz, por exemplo: `maldito caçador que matou a Branca de Neve'. Só fala em armas de fogo, super-heróis e monstros e nas brincadeiras assume personagens muito violentas. Isso me incomoda muito, a ponto dele perceber. Não entendo de onde vem isso, pois não é repertório de nossa família".

Sua mãe também disse que costuma ter reações muito explosivas diante desses comportamentos de Lucas.

Dessa vez os pais estavam de acordo quanto à necessidade de uma análise para Lucas. Iniciamos nosso trabalho com quatro sessões semanais, de segunda a quinta.

 

O início

Desde a primeira sessão, não teve dificuldade de entrar na sala e estabelecer um bom contato comigo, mostrando-se curioso pelo material da caixa e expressando seus conflitos livremente.

Geralmente, Lucas dramatizava cenas de desenhos e filmes infantis de uma maneira repetitiva com muita descarga de movimentos. Também líamos muitas histórias que ele trazia de casa. Quando ele me contava histórias infantis de filmes ou desenhos animados, que lia ou assistia na tevê, sua memória e seu vocabulário se destacavam, mostrando uma certa precocidade3. Mais tarde, foi significativo descobrir que sua memória era muito boa para um registro cognitivo, mas não para as experiências emocionais.

Durante muitas sessões, eu tinha que ser, literalmente, sua escrava. "Você é minha escrava, não tem direito a folgas, férias ou feriado! Obedeça!", decretava. Nessa brincadeira, Lucas se transformava num ditador ou num bandido muito duro, mandão e autoritário. Era um jogo em que, geralmente, ele ficava muito excitado e se tornava agressivo, extrapolava. Ele tinha necessidade de denegrir e escravizar o objeto de uma forma concreta. Nós brincávamos de bandido e polícia com histórias cheias de desgraças, muito cruéis. Na maioria das vezes, ele era um bandido, imortal, com poderes extras, que sempre vencia e eu uma polícia muito tonta, que ele sempre ludibriava com truques e mais truques. Nessas cenas construíamos, com as almofadas da sala, bases blindadas onde se refugiava. Também brincávamos de jogar guerra com baralho, em que ele ditava as regras do jogo, ficando com todos os reis, valetes e damas e todas as cartas de espada. Era um jogo em que ele tinha todas as garantias de nunca perder. Assim, ele me contava o tamanho de seu desamparo.

Nas brincadeiras de Lucas tudo era de verdade e com muita intensidade4. Ao ser meu dono, com todos os seus poderes, Lucas me apresentava sua carapaça defensiva, indicando a carência de bons objetos em seu mundo interno. A situação de escravização também poderia ser a projeção de sua impulsividade acentuada pelos desejos edípicos.

Desde o início, Lucas tem se mostrado muito sensível às separações. Parece ter medo de que as coisas sumam ou possam sumir. Essa sensibilidade pode ter sido exacerbada com a separação dos pais, que estão sempre submetendo Lucas a interrupções, ora está com o pai, ora está com a mãe. Isso o leva a sentir que separar-se é o mesmo que sumir.

Então, quando nos encontramos após as interrupções, em geral, ele encena histórias de heróis com muitos poderes e armas, defendendo-se de sua ansiedade de separação, aquela que cria um vazio, um vácuo, quase uma ansiedade de aniquilamento, apontando para um self ainda indiferenciado. Assim, ele se aproximava atacando e tentando controlar o objeto. Ocorreu-me, também, que suas pulsões agressivas poderiam ser a expressão de suas angústias de separação relacionadas a vivências mais precoces de rompimento da continuidade do ser5.

Aos poucos, fui percebendo como ele não contava com um continente firme e flexível para que houvesse alguma transformação. Seu pai reflete um continente duro, que cuida, mas não tem ressonância afetiva. Sua mãe reflete um continente flácido, chora e se desespera diante das fantasias onipotentes de Lucas e mostra-se pouco flexível e receptiva afetivamente para suas necessidades infantis. E Lucas, na relação comigo, dramatiza a introjeção deste objeto explosivo e traumatizante6.

Havia sessões em que Lucas começava a dramatizar cenas de robôs do bem e do mal, ou a utilizar a cola, e de repente a situação transbordava transformando o brincar em ato. Quer dizer, ele ficava tão excitado que sua impulsividade tomava conta, perdendo o controle: passava a usar a cola para melecar a sala toda e a mim também, ou mesmo pedia que eu repetisse incansavelmente uma das histórias da Revistinha da Mônica, impedindo qualquer trabalho analítico.

Percebi que era fundamental oferecer um continente firme, o que significava que tudo aquilo que não estava sendo útil para o nosso trabalho, para as nossas conversas, deveria ficar fora da sala de análise. Por conta disso, alguns livros e a cola (que ele espalhou por toda a sala) ficaram de fora.

Seus movimentos imprevisíveis somados a uma impulsividade exacerbada, como nos exemplos acima, marcaram o início de nosso trabalho, tornando difícil, para mim, conquistar distância e espaço para pensar. Procurei manter o que era previsível (setting, material da caixa, nossos combinados...), e diante da possibilidade de quebra (transbordamentos e separações) buscava recuperar a previsibilidade (relembrando nossos acordos), com o objetivo de oferecer-lhe firmeza (confiança básica) e flexibilidade (tolerância). Passei a adotar uma atitude que Anne Alvarez (1985) denominou neutralidade fortificada.

Alvarez, em seu artigo"O problema da neutralidade: algumas reflexões sobre a atitude psicanalítica no tratamento de crianças borderline e psicóticas", discute o conceito de neutralidade proposto por Freud, às vezes definido de maneira muito estática, passiva ou continente, mostrando que, em alguns casos, é necessário uma outra atitude psicanalítica para se alcançar alguma ação terapêutica.

Ela propõe que seja cultivada e conquistada uma neutralidade pensante, informada pelas emoções, sensibilidade e percepções do terapeuta, especialmente no trabalho com crianças psicóticas ou borderline. Ela sugere três variações de neutralidade. A primeira variação ou compensação é definida como neutralidade fortificada, proposta no trabalho com crianças psicopáticas ou com estados narcísicos destrutivos em que a distância desejável pode ter sido muito reduzida de início, mas, a partir daí, o terapeuta pode recorrer a fortificações adicionais para manter sua capacidade de pensar. A segunda, a autora denomina missões diplomáticas, ou seja, quando a distância é muito grande e a capacidade de sentir e pensar do paciente autista, esquizóide ou emocionalmente carente, cronicamente doente, está severamente limitada, levando o terapeuta a ocupar temporariamente o lugar de self auxiliar do paciente. Alvarez propõe como terceira variação o uso de postos avançados de escuta, captando sinais de reparação e indícios de desenvolvimento do ego em certas crianças borderline e psicóticas quando apresentam indícios de melhoras.

Era difícil para Lucas distinguir entre seu objeto interno arcaico fraco e abatido e o objeto real. Se eu reagisse demais, me tornava toda superego e ele todo id &– o que não levava a lugar nenhum. Se eu reagisse de menos, o mesmo acontecia. Passei a ficar muito ligada, para não ser apanhada de surpresa. E manter os nossos combinados, colocando limites com força e firmeza, também tem sido fundamental para ser respeitada.

Do ponto de vista contratransferencial sentia dificuldade em manejar o conteúdo trazido na sessão e de mantê-lo em mente. Quando pude assumir essa atitude de neutralidade fortificada, passei a ter a distância para pensar e guardar em minha mente o registro de nossas experiências, o que por sua vez tem permitido que Lucas construa um continente para suas fantasias adquirirem representação.

Além disso, nas situações em que Lucas extrapola, tal atitude favorece que eu sobreviva, suporte e seja capaz de transformar minhas experiências contratransferenciais de desprezo e de derrota. Só assim um objeto e um self menos desprezados começaram a emergir e nosso trabalho a se desenvolver.

Portanto, no trabalho com Lucas, a atitude de neutralidade fortificada tem sido importante para proteger o objeto, dar continência para sua impulsividade e favorecer alguma transformação. Sua dificuldade em aceitar limites e de entrar em algum tipo de rotina tem relação com isso. Dessa forma, procuro acompanhar os movimentos da sessão propiciando alguns limites (continente) e aguardar que algum sentido possa ser encontrado (contido).

 

O pesadelo

Certo dia, ele me contou que costumava ter pesadelos com bruxas que ficavam dentro do armário ou embaixo de sua cama. Podia observar que, em nossa relação, toda vez que ele queria algo, que extrapolava nossos combinados, e eu colocava algum limite ou quando havia algum desencontro entre nós, esse pesadelo se repetia na sessão. Nessas ocasiões, (que ainda acontecem) quando ele mostrava toda sua braveza e entrávamos num "pesadelo", costumava assinalar que alguma coisa tinha se passado ali que eu havia me transformado numa bruxa malvada e ele num bandido. Essa intervenção se transformou numa expressão metafórica a que recorro várias vezes em nosso trabalho analítico. E assim, quando sua impulsividade transborda, com o uso dessa metáfora conseguimos ir além e alguma transformação pode ocorrer, criando espaço para um brincar criativo.

Um dia apresentei-lhe a Bruxa Onilda (Capdevila & Larreula, 1989) e abri uma porta para uma outra interpretação de bruxa. Contei-lhe várias histórias sobre ela, que era uma bruxa muito engraçada, muito atrapalhada, em contraponto à bruxa malvada e assustadora de seus sonhos. Isso inaugurou uma nova fase da análise. Num primeiro momento líamos as histórias, mas de novo, um dia, a exigência da repetição da leitura se transformou num jogo que cerceava nosso trabalho onde ele pervertia o lugar da analista, tentando me controlar e paralisar o processo analítico.

Então passamos da leitura aos desenhos e construção conjunta de histórias da Bruxa Onilda. Puderam, assim, surgir momentos de vínculo mais genuíno. Essas histórias eram feitas com carbono, de tal forma que ele pudesse ter cópias das nossas edições para levar com ele. Criamos várias histórias: Bruxa Onilda vai à Escócia; Bruxa Onilda vai a Roma; Bruxa Onilda vai à Ilhabela com um capítulo em que a Bruxa Onilda vai para o hospital de vassouras; Bruxa Onilda dá a volta no mundo; Bruxa Onilda vai ao Brasil; Bruxa Onilda vai à Espanha, Bruxa Onilda vai à Itália; A história do Incrível Hulk.

 

O brincar de verdade

Em outro momento, após uma sessão muito turbulenta, quando ele pôde viver na transferência toda sua impulsividade com muita agressividade presente, iniciei a sessão seguinte retomando o que havia acontecido. Essa intervenção foi um marco do período atual dessa análise em que a capacidade de simbolização está mais presente. Ao retomar o acontecido da sessão anterior, Lucas expressou um certo alívio ao se assegurar que nem eu, nem a relação, tínhamos sido destruídas. Ele também pôde descobrir que eu não me esquecia das coisas que vivíamos juntos. A partir daí, toda sua impulsividade e destrutividade se transformaram num brincar mais verdadeiro, menos repetitivo e menos reverberativo. Começamos a brincar de "faz-de-conta ou como-se7" e um potencial espontâneo e criativo tem se revelado.

Houve um dia em que Lucas descobriu o que era brincar de verdade. E, como um sonho, o brincar se fez presente. Ilustro essa descoberta por meio de uma seqüência de quatro sessões8.

 

Primeira sessão (segunda-feira)

Quando chego ao consultório, encontro-o na porta do prédio. Ele está adiantado e, pela primeira vez, com sua empregada Maria. Quando me vê, Lucas fica exultante e vem ao meu encontro no carro. Também fico feliz ao vê-lo &– há dez dias não nos encontrávamos.

L &– Oi, Maria Cecília, hoje nós vamos subir juntos, como naquele dia do meu avô, né? (Ele se refere a uma sessão em que também nos encontramos no hall de entrada do prédio, seu avô o deixou comigo e foi embora, pois seu pai viria buscá-lo mais tarde.)

C &– Bom dia, Lucas! Você chegou cedo hoje.

L &– Hoje eu sou o primeiro, né. (Fala em tom afirmativo.)

C &– Sim.

Subimos juntos. Ele entra na sala com uma sacolinha branca, senta-se à mesinha e pede que eu abra o saquinho:

L &– Hoje eu trouxe os Power Rangers.

Dentro do saquinho havia um tigre, um leão-robô com uma águia que encaixava na cabeça do leão, um tubarão e três homenzinhos. Ele fala longamente sobre os vários truques dos bonecos e todos os seus poderes, manipulando-os e me mostrando os diversos encaixes possíveis. Mas ele me diz, um pouco decepcionado, que não tinha trazido nenhum inimigo, embora eu tivesse que ser o inimigo. Então, ele transforma o tigre em inimigo e me dá.

Nós brincamos com os bonecos sobre a mesa fazendo histórias de aproximação, ataque e fuga. Esse era o jeito de se aproximar de mim após as separações mais longas. Então assinalo:

C &– A gente ficou um tempão sem se encontrar, né, Lucas?

Ele fica de pé, arregaça a bermuda e fala que ele está fazendo a roupa do Robin (ele fica muito engraçado), e propõe que a gente brinque de Batman e Robin.

Penso comigo que agora fizemos as pazes depois de ficarmos sem seis sessões e podemos ser novamente amigos: a dupla dinâmica.

C &– Ah! Agora nós somos parceiros!

Depois de brincarmos de Batman e Robin, Batman begins I e II, Lucas se transforma num gorila, rola pela sala, corre de um lado para outro. Recorda-se de uma brincadeira que fazíamos antes dessa interrupção. Nessa brincadeira eu era uma vilã que tinha uma arminha de congelar e ele corria de um lado para outro da sala tentando escapar do meu congelamento. Brincamos disso. Aí ele decide que vai me congelar. Pega uma almofada grande e coloca sobre o meu colo, puxa a moringa9 de água para perto dele e sobe no meu colo.

L &– Eu te congelei feito uma cama.

Eu tento falar alguma coisa, mas ele me diz:

L &– Você está congelada. Congelado não fala. (Entendo que devo obedecer.)

Ele se levanta e diz:

L &– Eu vou fazer xixi, mas eu não vou perder esse tempo. (Fala de forma autoritária e penso que ele me transformou em sua escrava como no início da análise.)

Quando volta, ele sobe no meu colo e começa a me dar uns soquinhos de leve quando tento falar com ele.

Digo que parece que ele está muito bravo comigo porque eu não fico todo o tempo com ele como ele gostaria, e que nessas horas, quando ele sente falta, parece que eu viro novamente uma bruxa malvada.

L &– Mas amanhã a gente vai se ver de novo, né, Maria Cecília?

C &– Vamos sim.

A sessão está no final, ele então me ajuda a arrumar a sala antes de sair.

 

Comentários

Logo que eu o vejo na porta do prédio, percebo como ele estava ansioso por me encontrar. Ele se lembra do dia em que subimos juntos, mostrando que tem um registro daquela experiência, uma integração do tempo e do espaço, e procura em mim a segurança de uma relação única &– assim eu entendo quando ele afirma que ele é o primeiro. Lucas busca um objeto só para ele, disponível e que tenha a função de memória, de se recordar dele, de tê-lo em mente. Essa tem sido a minha função: a de guardar e manter vivo o fio da história dessa dupla, até que ele possa contar com um objeto bom introjetado que mantenha seu ego integrado e sincrônico. Cabe a mim, ainda nesse momento da análise com Lucas, cumprir esse papel.

Num primeiro momento, provavelmente em função da separação, tenho que ser o inimigo (tigre), mas, quando posso falar do tempo em que não ficamos juntos, parece que há um reconhecimento da falta, o que gera um certo alívio e possibilita o nosso encontro. Minha fala, nesse momento, tem essa função regeneradora. Então, ficamos amigos como Batman e Robin e a história da dupla analítica vai se recuperando.

Ele se recorda da nossa brincadeira de congelar, como um gesto espontâneo inventa uma forma de encontrar o meu colo junto com o alimento analítico/moringa-água. Mas, ao mesmo tempo que se revitaliza no reencontro e que fica feliz de me ter de volta, ainda há mágoa em relação ao objeto que falhou em atender suas necessidades e ele me bate de leve e me tiraniza como se eu fosse uma bruxa malvada que o abandonou e que ele quer controlar. Então, novamente, quando posso assinalar essa dinâmica, ele demonstra o desejo de garantia pela continuidade do nosso trabalho, dizendo: "Mas amanhã a gente vai se ver de novo, né, Maria Cecília?".

Parece que, assim, ao final da sessão, ele pôde me levar com ele até o dia seguinte...

 

Segunda sessão (terça-feira)

Ele entra e pede que eu o recorde da sessão anterior. Eu lhe falo de tudo que a gente fez: dos Power Rangers, do Batman begins I e II com o Batman e o Robin, da cama congelada...

L &– Ah é! Eu te congelei feito uma cama.

Vai rapidamente até a almofada, coloca-a sobre mim e diz:

L &– Fica aí que eu já volto, vou fazer xixi, mas não vou perder esse tempo, hein! (Entendo que ele não quer perder nenhum minuto da sessão.)

Quando volta, coloca a moringa com água perto dele, senta-se no meu colo, bebe a água e fala:

L &– Vamos brincar de cuca, como a gente brincava antes? — E coloca uma almofada no meu rosto.

C &– Ih, o Lucas sumiu. Acho que ele foi embora porque a Maria Cecília não trabalhou com ele tantos dias.

Então ele tira a almofada do meu rosto e eu digo:

C &– Ah, você estava aí, Lucas. Puxa vida, pensei que você tinha ido embora.

Aí ele me esconde e eu falo:

C &– Ih, a Cecília sumiu, a Cecília desapareceu.

Ele se levanta e olha no meu rosto.

C &– Ah, achou, eu estava aqui.

L &– Eu me lembrava que você estava aqui10.

E repetimos a brincadeira.

C &– Ih, cadê o Lucas? Acho que o Lucas não veio hoje.

Ele começa a me dar socos de leve.

C &– Ei, Lucas, a Cecília não sumiu, não esqueceu de você, das coisas que fizemos juntos, e agora ela está aqui.

Ele se levanta, pega um papel e escreve várias vezes seu nome. Depois vai para as almofadas, deita-se e diz que precisa descansar, que ele acordou tonto e com dor de cabeça. De fato, ele não me parece bem de saúde e mostro-me solidária.

Então, ele começa a construir uma cabana com as almofadas da sala e pede que eu o ajude. Ele entra na cabana e pede que eu a cubra com cobertor e pergunte: "Cadê o Lucas, o Lucas sumiu?". Faço isso, ele abre o cobertor e me encontra. Fizemos isso várias vezes.

Aí ele me pergunta de dentro da cabana se eu quero pizza. Digo que aceito e ele diz que não tem. Ele sai, vai até a sua caixa e pega a bacia com massinhas (nossas comidinhas). Fala que vai me contar um segredo em meu ouvido, aproxima-se e dá um arroto e ri triunfante. Sinto isso como algo muito violento e fico processando e pensando o que o levou a esse movimento tão intenso11. Volta para a cabana com a bacia e as massinhas e diz:

L &– Já ficou pronta a pizza. Você quer?

C &– Acho que você ainda está muito chateado comigo pelo fato da gente não ter trabalhado por uns dias.

Ele desmonta a cabana, vai para a caixa e começa a remexê-la. Pega duas arminhas de palito que fizemos juntos.

C &– Você está lembrando de tudo que nós já fizemos aqui, né?

Ele me pede para fazer uma cópia daquelas arminhas de palito para levar para casa. Aí eu digo:

C &– Essas são nossas de brincar aqui... você tem várias armas e Power Rangers em casa... não dá para ter tudo... É chato ver que não dá para ter tudo, né, Lucas?

Ele fica pensativo olhando as arminhas, e diz num tom reflexivo:

L &– É, é muito chato.

Ao conversarmos sobre isso, Lucas está novamente deitado nas almofadas e me fala que está com dor de cabeça e enjoado. Percebo que ele está febril, mas apesar disso ele me ajuda a arrumar a sala ao final da sessão.

 

Comentários

Essa sessão é muito dinâmica e expressiva do nosso trabalho analítico. Está presente o tema fundamental dessa análise, que é a constância do objeto, a continuidade da experiência. Como Lucas se desespera na ausência do objeto, a constância de nossa relação tem possibilitado a construção desse objeto interno. Então, eu tenho essa função de ser a narradora12 de nossa história a dois.

Logo de início, após eu relembrá-lo da sessão anterior, de tudo que havíamos feito, ele se recorda da brincadeira de cuca da qual ele gosta muito. Fica satisfeito com a lembrança, mas precisa ir ao banheiro, deixando registrado que o nosso tempo é muito precioso. Aqui podemos encontrar os elementos de excitação edípicos, tão característicos dessa faixa etária. Ao brincar de cuca, o que lembra o jogo do carretel (Freud,1920), um jogo de faz-de-conta, Lucas elabora o ritmo das separações e mostra sua capacidade de brincar na presença do objeto, constituindo um espaço transicional (Winnicott, 1951/1988b). Quando ele me diz: "Eu me lembrava que você estava aqui", ele esboça a presença de um objeto introjetado.

Sua agressividade também se manifesta em vários momentos dessa sessão de formas distintas. Os socos de leve, talvez, mais do que expressão de braveza, poderíamos pensar que eram expressão de se mostrar vivo e revitalizado no contato com o objeto real, pois logo em seguida, quando ele escreve seu nome, expressão do mundo simbólico, é possível pensarmos que coexistem a raiva e a alegria de estar ali comigo.

Mas quando ele me oferece a pizza, que não existe, e quando arrota em meu ouvido, ele expressa uma agressividade mais franca. Há nesses dois movimentos um certo viés perverso em que ele transforma o alimento/vínculo em algo (arroto) para agredir o objeto. Mas quando reconheço sua raiva e a nomeio, parece que ele pode voltar-se para sua caixa e recuperar o que fizemos juntos, embora ele me desafie pedindo as arminhas (algo fora dos nossos combinados), exigindo de mim que mantenha um continente firme com uma atitude de neutralidade fortificada, como apontei anteriormente.

Apesar disso, ao final da sessão, sinto-me penalizada ao vê-lo febril e penso que talvez seu pedido para levar a cópia das arminhas estivesse relacionado a estar se sentindo indefeso e frágil para ficar sozinho, e que precisava delas para se separar e ir embora mais protegido.

De fato, no dia seguinte, recebo um recado de sua mãe se desculpando por avisar tão em cima da hora que Lucas acordou febril, não estava se sentindo bem e não viria à sessão.

 

Quarta sessão (quinta-feira)

Ele chega pontualmente com sua avó. Fala "oi", entra na sala e me pergunta:

L &– O que a gente estava mesmo fazendo naquele dia?

Recordo-lhe o que fizemos enquanto ele se volta para sua caixa, abre e pega as arminhas de palito. Digo que no final tivemos uma conversa sobre as arminhas de palito. Ele novamente começa a me pedir uma cópia, de uma forma mais desafiadora, como se estivesse testando se eu manteria ou não o nosso combinado.

Repito o que havia dito na outra sessão, discriminando que há coisas específicas de nossa relação. Ele logo se levanta, parece satisfeito com a minha resposta, pega a almofada para fazer caminha, senta-se no meu colo e esconde meu rosto com outra almofada e brincamos que eu sumi: "Cadê a Cecília?...", e ele me acha. Depois faço o mesmo com ele, mas ele começa a me bater de leve e fala num tom bem autoritário:

L - Fecha o bico.

Depois me bate de novo e vou falando pausadamente:

C &– Você está feliz de me ter de volta... mas você está me batendo... é, a gente não se encontrou ontem... mas eu estava aqui... não sumi... não me esqueci de você nem de tudo que fizemos juntos...

Ele pega a moringa e bebe a água. Desce do meu colo, pega as peças de um jogo de ligue-ligue e monta um braço mecânico. Volta, coloca a almofada no meu colo e me diz que devo fazer o que ele manda. Pede para eu colocar a almofada no meu rosto. Penso comigo que esse é o seu jeito de controlar o objeto na busca de recuperá-lo.

Então, ele escorrega do meu colo e me diz que tem um braço demolidor. Deitado no chão vai me dando as coordenadas da próxima cena:

L - Vamos brincar de demolição? Eu sou o demolidor do bem e você é o demolidor do mal. Agora eu preciso escolher qual herói eu vou ser e qual herói você vai ser. Eu vou ser o demolidor do bem que tem este braço de demolição.

Levanta-se, fecha as cortinas da sala e começa a me contar a história.

L &– Eu estava na prateleira (sobe na mesa) e eu pulei com meu tênis demolidor e começaram as lutas.

Nessa hora, ele faz muitos sons e começa a lutar, dar socos de faz-de-conta em mim e eu nele. Ele segura as minhas mãos e me dá um choque, eu fico tremendo como se tivesse levado um choque de verdade. Ele reafirma que era cheio de armas. Ele fala muito, vai narrando o que eu deveria falar e fazer e vai encenando o papel do demolidor, dizendo:

L &– Aí ele subiu na prateleira de novo (mesa) e dali ele pulou no telhado, deu a volta e pulou na prateleira de novo e você estava com uma rede de choque. E eu tinha uma arminha que dava choque nas pessoas. Aí pulei no robô demolidor e soltei você e aí consegui bastante estática para matar você. Mas você conseguiu resistir porque seu poder era de fogo, de estática e de lava.

C - Ah! assim eu não morri.

L &– Aí eu podia conseguir golpes de água para te enfraquecer e não te matar. Aí eu comecei a usar estática (faz vários sons e corre no lugar). Aí foi tanta estática em você que você conseguiu ficar com um poder de estática. Aí eu pulei na prateleira.

Então, ele pára, abre as cortinas e fica reflexivo brincando com fios e assinalo que tomasse cuidado ao puxar os fios da cortina porque ela poderia cair. Ele os solta e pega uma roldana em sua caixa que tem um cordão muito longo com um gancho amarrado na ponta. Tranqüilamente, ele começa a enrolar o fio na roldana de um jeito muito concentrado e introvertido. Quase no final encontra um nó e diz:

L &– Maria Cecília, você pode tirar esse nó?

C &– Claro!

L &– Quer brincar comigo? Vamos brincar de escalar? Então enrola aqui como você fez outro dia. (Pede para que eu enrole e prenda o cordão no trinco da porta.) Agora prende em outro lugar. (Prendo no trinco da janela e ele pega a outra ponta do fio que sobrou e enrola no pendurador de toalha.)

C &– Agora está tudo bem preso e bem ligado, assim como o Lucas e a Cecília.

Ele pega a almofada grande, coloca embaixo do fio, depois coloca o banquinho, as outras almofadas sobre o banquinho, o cesto de lixo e o cobertor cobrindo tudo.

L &– Olha que legal! Fiz uma toca!

C &– Um cantinho protegido para nós dois.

Pendura os seus tênis no fio e diz:

L &– Olha, é um varal! Olha o meu quintal!

Ele está realmente feliz com o que acabou de construir.

C &– Cada hora vira uma coisa, né? Que legal!

L &– É a minha toca, minha casinha, minha cabana. Ei, eu já tinha uma cabana. A minha avó precisava ver, né?

Pega o tapete e a gente coloca sobre a mesa e aumenta a sua cabana. Ele está muito feliz e me pergunta:

L &– Você gostou da minha cabana e do meu quintal?

Digo que gostei e ele me convida para brincar com ele. Diz onde será minha casa e que devo ir visitá-lo. Bato na porta e ele me recebe dizendo:

L &– Você gostou da minha casa?

C &– Quando foi que você construiu essa casa? Que casa legal!

L &– Hoje mesmo.

C &– Puxa vida, você trabalhou muito! Como as formiguinhas!

L &– Quer dar uma volta no meu quintal?

Ele vai preparar um piquenique para a gente levar para o passeio na cachoeira do quintal do seu terreno. Ele pega a bacia com massinhas, que representam as comidinhas, e pede para eu perguntar o que ele está trazendo ali embrulhado e ele responde:

L &– Um piquenique para o nosso passeio. Vamos?

C &– Vamos.

Passeamos, vimos a cachoeira. Já estávamos no final da sessão. O clima era de um sonho a dois. Opto por lhe dizer baixinho que era hora de terminar e ele responde ao pé de meu ouvido:

L &– Está na hora de eu ir embora?

C &– Sim.

L &– Só mais um pouquinho...

Então ele vai a minha casa, bate na porta e eu digo que estou fazendo uma arrumação (já estou guardando as coisas). Logo em seguida a essa visita, ele concorda em terminar e me ajuda a desmontar a cabana, embora quisesse deixá-la montada (eu também). Enquanto isso ele diz:

L &– Hoje a gente brincou de verdade, né, Maria Cecília? Adorei fazer a cabana com o varal.

C &– É, Lucas, hoje a gente brincou de verdade... e nós dois tínhamos a força do bem e do mal...

Ele me ajuda a guardar as coisas em sua caixa e a arrumar as almofadas, coloca o tênis e sai feliz ao encontro de sua avó.

 

Comentários

Nessa sessão, fica ainda mais evidente sua vulnerabilidade às separações. É possível observar como a carência de continuidade leva à desvitalização e à quebra de uma rede que dê sustento à continuidade das experiências emocionais. O reencontro e a elaboração da separação surgem nessa sessão de várias formas, em várias fases. Essa sessão é, também, a expressão de sua capacidade de brincar (Winnicott,1971/1975, pp. 79-93), a brincadeira que vai surgindo da interação. É a expressão do brincar criativo, com simbolismo e imaginação, muito diferente daquele brincar do início do nosso trabalho, que era extremamente compulsivo, repetitivo e até mesmo evacuatório.

O início dessa sessão é uma elaboração da falta da sessão de quarta-feira. Lucas começa resgatando o que havia acontecido entre nós no outro dia e eu me transformo na guardiã, naquela que mantém o vínculo e a continuidade, quem faz o elo. Especialmente com a perda da sessão anterior, ele confia que eu seja a memória, saiba o que fizemos juntos e que recorde, preenchendo o buraco causado por nossa separação.

Quando ele me pede uma cópia das arminhas, mantenho-me firme em nossos tratos, procuro discriminar que há coisas específicas de uma relação e há coisas específicas de outra.

Ele continua processando a separação/reencontro quando brinca de caminha e bate em mim. Parece que ele vive a sessão perdida como um fato absoluto em que eu sou a culpada. Nessa hora, procuro apontar essa indiscriminação. Ele reconhece a falta e o reencontro, bebendo água da moringa (leite/alimento analítico).

Quando Lucas fica à mercê do objeto e experimenta a dependência, ele logo tem que virar o herói poderoso/ditador. Isso me faz pensar na experiência de inferioridade da criança diante do mundo adulto: quando ele sente a dependência do objeto e percebe que não pode controlá-lo, constrói defesas onipotentes e se transforma nesse herói demolidor.

A brincadeira da demolição também é uma referência à sessão que desapareceu, que foi demolida; e eu tenho que ser literalmente o objeto mau, o inimigo que será derrotado, mas, ao mesmo tempo, também sou poderosa, pois ele permite que eu sobreviva aos seus ataques.

Ao assinalar que sobrevivo aos seus ataques destrutivos ("Ah! assim eu não morri"), Lucas faz uma mediação ("Aí eu podia conseguir golpes de água para te enfraquecer e não te matar"), se alivia ao discriminar suas fantasias da realidade, e reencontra o objeto. Essa intervenção marca a virada da sessão e, a posteriori, posso dizer, da própria análise.

Ele passa desse brincar para a ação, quando tenta estragar minha cortina, mas, com uma pequena intervenção, ele aceita o limite colocado. Nesta brincadeira, ele ainda estava processando a separação.

Ele, então, me pede para amarrar o cordão para ele escalar e, assim, me conta que também tem memória das coisas que fizemos juntos. Surge o brincar com todas as suas características.

Tendo retomado com segurança a relação comigo, ele se sente acolhido e com liberdade para fantasiar e para brincar. Na construção de sua toca/cabana/varal/quintal/cachoeira, Lucas vai se admirando com o que é capaz de fazer e vai tendo novas idéias que vão surgindo da imaginação, como associação livre (varal, quintal, cachoeira...). Cria-se um campo de ilusão (Winnicott, 1951/1988b) em que o apaixonamento está presente. Lucas precisa desse olhar de encantamento. E assim, estabelece-se um círculo benigno13.

Nessa brincadeira, nós pudemos ser parceiros, amigos, companheiros, e Lucas é generoso (piquenique) e criativo.

Nessa sessão, ao invés de ser uma brincadeira em que tudo era de verdade, tudo se transformou num verdadeiro brincar e inaugurou um novo modelo de relação de objeto: "Hoje a gente brincou de verdade, né, Maria Cecília? Adorei fazer a cabana com o varal".

Essa análise tem tido, cada vez mais, uma característica específica: a de girar em torno da angústia de perda da continuidade da relação e do alívio que ele sente de encontrar em mim o registro da nossa história, de perceber que ele permanece em minha mente e que pode recorrer a mim para encontrar suas coisas. Durante a interrupção das sessões, ele vive situações muito desestruturantes, fica desesperado de não conseguir me guardar dentro dele, de não conseguir me manter em sua mente14, e a Maria Cecília que desaparece se transforma numa bruxa, ou mesmo num vazio sem nome. Minha função de ser guardiã da nossa história e aquela que mantém o vínculo tem sido fundamental. Esta função de manter o objeto vivo na mente me fez pensar que Lucas era capaz de se lembrar das histórias, mas não de quem as contava. Quando ele me reencontra e eu lhe relembro o que fizemos na sessão anterior, ele vai construindo a confiança em mim como a depositária de nossa história a dois. Assim, tenho sido o fio que tece a narrativa dessa análise. Ao costurar, sua agressividade cede (sede) e surge alguma capacidade para suportar a dor mental15. Então, além de ter que manter um continente firme, flexível e receptivo, a constância do objeto tem sido fundamental nesse processo analítico.

 

Referências

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Britton, R. (1994). Mantendo coisas em mente. In R. Anderson (Comp.), Conferências clínicas sobre Klein e Bion. Rio de Janeiro: Imago.        [ Links ]

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Winnicott, D. W. (1988b). Objetos e fenômenos transicionais. In D. W. Winnicott, Textos selecionados. Da pediatria à psicanálise. (3ª ed., pp. 389-408). Rio de Janeiro: Francisco Alves. (Trabalho original publicado em 1951.)        [ Links ]

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Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1971.)        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Maria Cecília Pereira da Silva
R. Joaquim Antunes, 490/94
05415-001 São Paulo, SP
Fone: 3081-9159/ Fax: 3554-0024
E-mail: mcpsilv@gmail.com

Recebido em: 10/12/06
Aceito em: 14/12/06

 

 

* Membro efetivo, analista de criança e adolescente e docente da SBPSP. Doutora em Psicologia Clínica e Mestre em Psicologia da Educação pela PUCSP.
1 Este foi o trabalho de conclusão de minha formação como analista de criança e de adolescente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Agradeço a minha supervisora deste caso, Izelinda Garcia de Barros, com quem muito aprendi sobre as vicissitudes da infância e da adolescência tanto do ponto de vista técnico como do teórico-clínico. Às minhas queridas colegas e amigas Alice Paes de Barros Arruda, Joyce Kacelnik, Maria Thereza de Barros França, Regina Elizabeth Lordello Coimbra e Sandra Regina Moreira de Souza Freitas, agradeço pela leitura cuidadosa e suas contribuições enriquecedoras.
2 Essa situação me leva a imaginar uma vivência de explosão do self, em que o ego fica fragmentado e dominado pelo id, quando não há registro nem da passagem do tempo nem das experiências, ficando sem recordações.
3 Precocidade é sempre um descompasso entre o desenvolvimento emocional e o desenvolvimento intelectual.
4 Seu brincar se aproximava mais ao que Hanna Segal (1955/1991) denominou equação simbólica.
5 Winnicott (1949/1988a) aponta que para que haja um desenvolvimento saudável do psique-soma precoce existe a necessidade de um ambiente perfeito, "necessidade que é absoluta, para que a continuidade do ser não seja interrompida" (p. 245).
6 "Bion sugeriu que um objeto que falha em introjetar &– isto é, uma mãe que não consegue absorver as projeções do bebê &– é percebido pela criança como hostil a qualquer tentativa de identificação projetiva ou a qualquer tentativa da criança de conhecer a natureza de sua mãe. Portanto, a criança tem a idéia de um mundo que não quer conhecê-la e não quer ser conhecido" (Britton, 1994, p. 122).
7 Ferro (1995) destaca que o jogo nasce na relação com a mãe que cuida e que estabelece com a criança profundos intercâmbios comunicativos através de jogos caracterizados por sons, balbucios e verbalizações que seriam acompanhadas psiquicamente por identificações projetivas recíprocas que propiciariam o transitar, o reconhecimento e a transformação, via rêverie materna, destes estados emocionais. "Essas relações primárias são o lugar onde se constituem o conto de fadas e o jogo" (p. 77).
8 Estas sessões se seguiram a um feriado prolongado em que ele ficou sem seis sessões.
9 Tenho entendido a moringa como um representante do alimento/objeto bom e acolhedor que ele vai recuperando ao longo dessa sessão e de outras também.
10 Em outra sessão, quando eu não o achava, ele dizia: "Eu estou aqui". E eu brincava com ele que eu estava virando uma vovó gagá, que não o tinha visto, e ele ficava muito excitado com a brincadeira de me chamar de velha gagá. Às vezes eu lhe dizia nessa brincadeira: "Ah, o Lucas foi embora, porque a Cecília não vai trabalhar com ele sexta, sábado e domingo...".
11 Nessa hora o que conta não é tanto a atividade interpretativa decodificadora, mas a real operação de transformação das identificações projetivas do paciente que a mente do analista deve ser capaz de realizar (Ferro, 1995).
12 Antonino Ferro (2000) utiliza o termo narrativa para definir a maneira de o analista participar com o paciente da construção de um significado, de uma forma dialógica, a respeito do que se passa na sala de análise, sem grandes cesuras interpretativas. Como se o par analítico construísse junto uma peça teatral, em que seus enredos crescem, se articulam, se desenvolvem, às vezes nos surpreendendo e sem uma verdade pré-constituída. Em lugar de interpretação, Ferro propõe denominar esta forma de proceder transformação co-narrativa ou co-narração transformativa (pp. 17-18).
13 Winnicott (1954-1955/1988c) define esse fenômeno como o trabalho de integração que o bebê repetirá inúmeras vezes para distinguir a mãe-objeto da mãe-ambiente, eu e não-eu, em que o bebê desenvolve o sentimento de preocupação por sua mãe envolvendo o nascimento do sentimento de culpa. A culpa surge com a junção das duas mães e do amor tranqüilo e excitado, do amor e do ódio e da elaboração da própria impulsividade (p. 270).
14 Como se lhe faltasse um processo para produzir alguma coisa que pudesse ser mantida em mente ou não ter uma mente que pudesse manter coisas em seu interior (Britton, 1994, p. 121).
15 É possível observar uma mudança na forma de brincar de Lucas esboçando o começo de uma capacidade de simbolização. Hanna Segal (1955) apontou como o conceito de simbolização de Melanie Klein depende do estágio da posição depressiva em que se toleram substitutos e a dor mental.

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