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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.39 no.71 São Paulo Dec. 2006

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

A escrita do analista: investigação, teoria e clínica

 

The analyst's writing: investigation, theory and clinical

 

Los escritos del analista: investigación, teoría y clínica

 

 

Leda Maria Codeço Barone*

Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
Profa. do programa de pós-graduação stricto sensu do Centro Universitário FIEO

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autora propõe discutir algumas particularidades da escrita do analista. Sendo a escrita uma exigência do conhecimento científico, que permite a comunicação dos meios e dos resultados de uma investigação, e considerando o trabalho clínico como investigação, a escrita do analista carrega um paradoxo. Ela deve comunicar e ao mesmo tempo resguardar a intimidade da clínica. Porém, o analista quando escreve não é movido apenas pelo interesse científico. As inquietações da clínica, bem como a força criadora da palavra, também o movem. O trabalho realça ainda o aspecto ficcional da escrita do analista.

Palavras-chave: Escrita, Clínica, Ficção, Caso clínico, Investigação.


ABSTRACT

The author discusses some particularities of the analyst's writing. Considering clinical work as an investigation, and writing as a requirement of scientific production that enables communication of methods and results of investigation, the analyst's writing bears a paradox. It must communicate and at the same time preserve the intimacy of the clinical work. The experience of uneasiness caused by clinical work and the creative force of words also prompt him to write. The paper also enhances the fictional quality of the analyst's writing.

Keywords: Writing, Clinical, Fiction, Clinical work, Investigation.


RESUMEN

La autora propone discutir algunas particularidades de los escritos del analista. Siendo lo escrito una exigencia del conocimiento científico, que permite la comunicación de los medios y de los resultados de una investigación y considerando el trabajo clínico como investigación, lo escrito del analista conlleva una paradoja. El debe comunicar y al mismo tiempo resguardar la intimidad de la clínica. Sin embargo, el analista cuando escribe no es motivado apenas por el interés científico. Las inquietudes de la clínica y la fuerza creadora de la palabra también lo estimulan. El trabajo realza adicionalmente el aspecto ficcional de la escritura del analista.

Palabras clave: Escritura, Clínica, Ficción, Caso clínico, Investigación.


 

 

A questão: "É a psicanálise uma ciência?" está posta desde seu início com Freud e ainda aberta a toda sorte de discussões. Há tanto aquelas que pretendem reduzi-la aos limites estreitos da ciência positivista quanto as que pretendem encontrar outro solo para abrigar nossa ciência-artística. Não sendo minha intenção discutir tais posições, faço referência a elas apenas para indicar o lugar onde finco meus pés, pois aprendi com a vida que é importante me posicionar para garantir adequação do problema ao modo de estudá-lo. Há coisas que se podem medir, pesar, contar. Há outras que não. E como diz Herrmann (1997), de maneira muito bem-humorada, tentar medir o que não dá para ser medido é como usar luvas de boxe para desmontar um relógio: é possível amassá-lo, mas nunca entender seu mecanismo.

É sabido que uma das exigências para o estabelecimento de qualquer ciência diz respeito à comunicabilidade tanto dos meios de investigação quanto dos resultados alcançados. Por outro lado, para o psicanalista uma questão importante de sua investigação relaciona-se à manutenção de um espaço de intimidade, de confiança e de sigilo. Assim, um desafio constante para o psicanalista na construção de sua "ciência", ou na produção de seu conhecimento, diz respeito à necessidade de, por um lado, comunicar suas descobertas, e, por outro lado, preservar o espaço de intimidade que a clínica lhe exige. Todo analista, em algum momento de sua clínica, deverá escrever e experimentar a tensão entre estas duas necessidades: comunicar com seus pares suas descobertas e dificuldades, e preservar o espaço de intimidade com seu paciente. A este respeito Freud (1912/1985a), em seus escritos técnicos, defendia a importância de o analista escrever seus casos, salientando o dever com a ciência, mas ao mesmo tempo aconselhava a escrever somente após o término do tratamento para que o interesse científico não atrapalhasse a relação transferencial.

Muito instrutivo a este respeito é lembrar o Diário clínico de Ferenczi (1990), escrito não propriamente para ser publicado, mas que, tendo sido publicado postumamente, revela a necessidade imperiosa da escrita para o analista que faz anotações de suas dúvidas, de suas descobertas, das dificuldades, de suas intuições e teorias ainda não elaboradas. Material este muito rico, que podemos comparar à matéria-prima com que se constrói algo muito refinado ou com uma espécie de manancial que serviu, inicialmente, ao autor e mais tarde a seus leitores, para a construção de seus arcabouços teóricos. Aliás, vale lembrar o comentário de Sabourin (1990), ao citar o trabalho de Johannes Cremerius no qual relaciona uma série de autores cujos escritos devem muito a Ferenczi. Entre eles destaca: Winnicott, Mahler, Little, Masud Khan, Spitz, Natch, Kohut, Searles, Sullivan, Fromm- Reichmann, Rosen, Moreno, Fairbairn, Gunthrip. Segundo Cremerius, "…Ferenczi tornou-se para muitos a pedreira donde extraem o material para seus `novos' edifícios, muitas vezes sem indicar onde fizeram suas descobertas..." (Cremerius, apud Sabourin, 1990, p. 226).

O mesmo se pode dizer da farta correspondência que Freud manteve com vários interlocutores. Nesse sentido é exemplar a correspondência que manteve com Fliess e não menos importante a mantida com Ferenczi.

Pode-se então considerar que a escrita é, para o analista, uma atividade inerente a seu ofício, quase uma necessidade, mas que nem por isso deixa de oferecer certos riscos e exigir cuidados.

Assim, é como psicanalista que me indago sobre as condições e possibilidades de comunicação da investigação psicanalítica. Como o analista investiga? Como cria seus conceitos, suas teorias? E como comunica a investigação clínica a seus pares? A escrita do analista, além de satisfazer um dos critérios importantes da ciência, a comunicabilidade de seus meios e resultados, a que outras necessidades atende e quais seus riscos e cuidados?

Freud considerava a psicanálise como ciência e investigação. Prova disso é o célebre verbete que ele escreveu para a enciclopédia:

Psicanálise é o nome de 1 um procedimento para a investigação de processos mentais que são quase inacessíveis por qualquer outro modo, 2 um método (baseado nesta investigação) para o tratamento de distúrbios neuróticos e 3 uma coleção de informações psicológicas obtidas ao longo dessas linhas, e que gradualmente se acumulam numa disciplina científica (Freud, 1923/1985b, p. 287).

Dessa definição de psicanálise podemos afirmar a tripla dimensão do mesmo gesto. É uma investigação que cura e produz conhecimento. Gesto multifacetado, portanto, complexo e sutil que requer certa delicadeza de apreensão.

Herrmann (2002) afirma que Freud inventou a psicanálise por escrito. Escritor potente que era, ele inventou não só a psicanálise como a si mesmo e a nós, analistas e pacientes, seus personagens. Ele foi mestre em mostrar a imagem que criou para si mesmo. Imagem de desbravador, de conquistador e de profeta. Assim:

Nunca teremos o material objetivo da vida íntima de Freud, pois esta está simultaneamente descoberta e encoberta por uma escrita criativa ficcional. As teorias psicanalíticas também são obras de ficção extremamente refinada. O que não as diminui como ciência, engrandece-as. (...) Se o fundamento da ciência é o fisicalismo, hoje dominante, não há lugar para a psicanálise. Mas se seu fundamento futuro for a ciência do homem, a interpretação, então teremos de estar preparados para reconhecer os direitos da ficção como fonte maior da verdade, coisa que Freud já antecipava e praticou. A sua, como poderia haver argumentado, é uma ciência empírica, natural, da natureza humana… (Herrmann, 2002, p. 20).

Nessa mesma direção segue o comentário de Assoun (1996) no qual nos lembra que, embora o imperativo da verdade fosse radical para Freud, nos escritos das "Cinco psicanálises", ele não pôde deixar de se curvar à exigência do sintoma. Diz então o autor: "Se o metapsicólogo procura explicar o processo, o clínico deve relatá-lo"(Assoun, 1996, p. 226). O mesmo autor, fazendo referência ao lapso de Freud em "O Homem dos Ratos", em que escreve "Poesia e ficção" em vez de "Poesia e verdade", coloca em relevo algo muito caro a Freud: "conjugar poesia e verdade num destino de vida que mostra sua síntese feliz, a de sua própria história" (Assoun, 1996, p. 226). Assim, o de que se trata, para Freud, é a história-do-doente e não a história da doença. Tal atitude, segundo Assoun, gera suspeita quanto à exigência de cientificidade, ao que Freud se desculpa:

Eu mesmo me surpreendo com o fato de as histórias de doentes que escrevo serem legíveis como romances (Novellen) e de a elas faltar, por assim dizer, o carimbo de sério da cientificidade. Devo consolar-me disso pelo fato de esse resultado dever ser imputado à natureza do objeto, mais que a minha preferência (Freud, apud Assoun, 1996, p. 228).

Tomando então o relato clínico como ponto importante da escrita do analista, vale a pena acompanhar as contribuições de Nasio (2001). Ele observa que a expressão "caso" designa para o analista "o interesse muito particular que ele dedica a um de seus pacientes" (Nasio, 2001, p.11). Observa também que o caso serve para trocas com colegas em discussões clínicas ou mesmo supervisão, mas que muitas vezes ele propicia uma modalidade de escrita que denominamos caso clínico. O autor ainda faz uma distinção entre o caso clínico na medicina e na psicanálise. No primeiro modo,

(...) o caso remete ao sujeito anônimo que é representativo de uma doença diz-se, por exemplo, "um caso de listeriose" ", para nós, ao contrário, o caso exprime a própria singularidade do ser que sofre e da fala que ele nos dirige. (…) Quer se trate do relato de uma sessão, do desenrolar de uma análise ou da exposição da vida e dos sintomas de um analisando, um caso é sempre um texto escrito para ser lido e discutido. Um texto que, através de seu estilo narrativo, põe em cena uma situação clínica que ilustra uma elaboração teórica (Nasio, 2001, pp. 11-12).

Ainda no mesmo texto Nasio propõe três funções de um caso: a função didática, a metafórica e a heurística. Destaca na função didática a particularidade que tem o caso para transmitir a teoria por meio da sensibilização da emoção e da imaginação do leitor. Na função metafórica, observa que nos célebres casos da psicanálise (O Homem dos Ratos, Dora, Schreber, etc.) há uma espécie de imbricação entre a observação clínica e o conceito que ela ilustra de maneira a que a observação termine por substituir o conceito tornando-se metáfora dele. Já a função heurística, que supera as outras duas, consiste na capacidade de o caso gerar conceitos. Diz Nasio:

Às vezes, a fecundidade demonstrativa de um exemplo clínico é tão frutífera, que vemos proliferarem novas hipóteses que enriquecem e adensam a trama da teoria. Retomando a figura do presidente Schreber, foi justamente graças às espantosas Memórias de um doente de nervos, comentadas por Freud, que Lacan pôde conceber pela primeira vez a idéia de significante do Nome-do-Pai e a idéia correlata de foraclusão, noções que desde então renovaram a compreensão do fenômeno psicótico (Nasio, 2001, p. 17).

O valor ficcional da escrita do analista é também abordado por Nasio nas seguintes palavras:

Todavia, mesmo que um caso tenha uma função didática, como exemplo que corrobora uma tese, uma função metafórica, como metáfora de um conceito, ou uma função heurística, como a centelha que está na origem de um novo saber, ainda assim o relato de um encontro clínico nunca é o reflexo fiel de um fato concreto, mas sua reconstituição fictícia. O exemplo nunca é um acontecimento puro, mas sempre uma história reformulada. (…) De uma experiência verdadeira extraímos uma ficção, e, através dessa ficção, induzimos efeitos reais no leitor. A partir do real, criamos a ficção, e com a ficção, recriamos o real (Nasio, 2001, pp.17-18).

Partindo da colocação de Nasio de que um caso para um analista designa um interesse especial que o analista tem por um paciente, podemos nos perguntar: o que torna interessante um caso em particular e não outro? São os casos que corroboram as nossas teorias prévias, que alimentam nosso narcisismo, ou são precisamente aqueles para os quais não temos resposta (e eu até me pergunto para quais a temos de antemão?) que nos colocam a trabalhar? Que casos nos colocam a escrever?

Diria que o analista, quando escreve, não é movido apenas por interesse científico. Algo mais lhe põe às mãos a pena exigindo seu trabalho de escrita. Sendo seu trabalho híbrido, a arte da interpretação, o analista é movido tanto pelas inquietações que seu ofício lhe impõe quanto pela força criadora da palavra. O analista, sendo tantos em uma análise, por imposição da transferência, escreve para recuperar o nome próprio, nos ensina Pontalis. Ao emprestar corpo e alma a seu ofício, o analista necessita, ao final de uma análise, escrever para recuperar sua identidade. Quem sabe a escrita possa ser um modo de elaboração do luto do analista. Da mesma forma que a narração dos males em presença do analista o é para o analisando.

Talvez a resposta de Pontalis (2002), a uma entrevista para o Jornal de Psicanálise, esclareça um pouco mais nossa questão. Diz ele:

(...) acho que um analista que jamais teria experimentado a necessidade de escrever, mesmo que para si próprio (se isso tem algum sentido, escrever pra si mesmo…), de transcrever em palavras, numa folha de papel, num caderno íntimo ou em folhas soltas, alguma coisa, estaria completa e problematicamente satisfeito. Um analista que poderia dizer que nas suas sessões não há resíduos, insuficiências, que suscitem a vontade de tentar resgatá-los sob outra forma, seria um analista, a meu ver, demasiado contente consigo mesmo (Pontalis, 2002, pp.39-40).

Creio que esta colocação abre o lugar da escrita do analista. O analista escreve para dar conta do resto, dos resíduos transferenciais e da insuficiência de seu saber que é construído na sessão e que logo se perde no momento seguinte exigindo nova elaboração.

Também Viñar (2005), psicanalista uruguaio, em entrevista para o Jornal de Psicanálise, pode contribuir para os questionamentos desse trabalho. Diz ele:

Um dos pilares da psicanálise é a livre associação e a atenção flutuante, ou seja, matéria fluída e errática. É como o ar que está em toda parte, mas, se tentamos pegá-lo com as mãos, não sabemos quando o agarramos. Penso que a escrita funciona para o analista como uma âncora, como o limite, como alguma coisa que pode dar um ponto, como o fio de uma agulha solta ao dar a pontada. A escrita é como dar a pontada a tudo isto que está voando, errático por todo lado. Ela reúne, dá forma ao informe. É como um momento de calmaria para depois poder reatar essa vertigem que é sempre estar em atitude de associação livre. É um momento de ancoragem, de pausa que implica ver onde estamos situados (Viñar, 2005, p. 52).

Teorizar é encontrar um caminho para significar alguma coisa. Teorizamos quando escutamos nosso paciente. Construímos microteorias, prototeorias que vão se confirmando, outras não, e que na maioria das vezes acabamos encontrando já formuladas por outros psicanalistas. Mas é preciso deixar vivo o processo de criação de teoria e o espaço da escrita é exemplar para este exercício.

A escrita do analista então é um momento teorizante da clínica de consultório ou extensa que conjuga verdade e poesia, ficção verdadeira.

A escrita permite afastamento do jogo transferencial, vivo e turbulento, com o paciente favorecendo ao analista recobrar a capacidade de pensar.

Também permite a comunicação com seus pares, o confronto de idéias.

E finalmente, a escrita deixa restos para novas investigações.

 

Referências

Assoun, P.-L. (1996). Metapsicologia freudiana: Uma introdução (Dulce Duque Estrada, trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.        [ Links ]

Ferenczi, S. (1990). Diário clínico. São Paulo: Martins Fontes.        [ Links ]

Freud, S. (1985a). Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad. Vol. 12, pp.147-159). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1912.)        [ Links ]

Freud, S. (1985b). Dois verbetes de enciclopédia. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad. Vol. 18, pp. 285-312). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1923.)         [ Links ]

Herrmann, F. (1997). Investigação psicanalítica. Jornal de Psicanálise, 30(55/56), 7-18.        [ Links ]

Herrmann, F. (2002). Debate: O caso clínico, sua narrativa. Jornal de Psicanálise, 35(64/65), 9-27.        [ Links ]

Nasio, J.-D. (2001). Que é um caso? In J-D. Nasio, Os grandes casos de psicose (Vera Ribeiro, trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.        [ Links ]

Pontalis, J.-B. (2002). Entrevista com J.-B. Pontalis. Jornal de Psicanálise, 35(64/65), 29-47.        [ Links ]

Sabourin, P. (1990). Perdão mútuo: Sucesso final. In S. Ferenczi, Diário clínico (pp. 265-273). São Paulo: Martins Fontes.        [ Links ]

Viñar, M. M. (2005). Entrevista com Marcelo Viñar: Tornar-se analista. Jornal de Psicanálise, 38(69), 39-55.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Leda Maria Codeço Barone
R. Alceu de Campos Rodrigues, 46/38 V. Olímpia
04544-000 São Paulo, SP
Fone: 3045-9064
E-mail: ledabarone@uol.com.br

Recebido em: 10/11/06
Aceito em: 14/12/06

 

 

* Do Instituto de Psicanálise da SBPSP. Doutora em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da USP. Profa. do programa de pós-graduação stricto sensu da UNIFIEO.

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