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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. v.40 n.42 São Paulo jun. 2007

 

ENTREVISTA

 

Entrevista com Alberto Eiguer: a família em (des)ordem

 

Alberto Eiguer: the family in (dis)order

 

Alberto Eiguer: la família en (des)orden

 

 

A entrevista do presente número foi realizada com Alberto Eiguer, que aceitou gentilmente responder às questões formuladas pelo Corpo Editorial do Jornal. Alberto Eiguer é Membro Associado da Sociedade Psicanalítica de Paris e presidente da Associação Internacional de Psicanálise de Casal e Família. Possui grande experiência no atendimento psicanalítico de casal e de família. Tem contribuído amplamente para o desenvolvimento teórico e clínico da terapia familiar de base analítica através da publicação de vários livros, alguns deles traduzidos para o português, como Um divã para a família: do modelo grupal à terapia familiar psicanalítica, publicado pela editora Artes Médicas em 1989; A transmissão do psiquismo entre gerações: enfoque em terapia familiar psicanalítica, editado pela Unimarcos em 1998; e O parentesco fantasmático: transferência e contratransferência em terapia familial psicanalítica, pela editora Casa do Psicólogo em 1995.

O Jornal de Psicanálise agradece a Alberto Eiguer por esta entrevista.

Jornal: O Jornal de Psicanálise quer discutir no presente número o tema “A família em (des)ordem”. O interesse por este tema, em alusão ao livro de Roudinesco, surgiu da constatação feita por diversos autores de profundas transformações da família na contemporaneidade. Entre estas mudanças se destacam as relacionadas às condições de procriação, à composição das famílias, à freqüente recomposição dos casais e à passagem da soberania paterna para a materna. A partir de sua clínica e considerando sua grande experiência em terapia psicanalítica com famílias, como o senhor considera essas mudanças? Pode-se falar de uma família em desordem? Que conseqüências essas mudanças provocam na constituição subjetiva de pais e filhos?

Alberto Eiguer: Agradeço ao Jornal de Psicanálise a oportunidade de expor minhas idéias.

As mudanças na família contemporânea concernem a seu funcionamento, mas não estou seguro de que a estrutura mude. Muitas dessas modificações encontram-se em outras sociedades, especialmente naquelas que estudam os antropólogos. Acredito que o parentesco não se alterou. Suas leis e suas funções continuam sendo as mesmas. As mudanças são suficientemente importantes para gerar nas famílias desassossego, medo e sofrimento, além de sentimento de liberdade, alívio e euforia quando as pessoas se dão conta de que ousaram transpor as barreiras que as aprisionavam. Em cada um de nós, surge culpa por querer romper com a tradição e fazer diferente de nossos pais e antepassados, e sentimento de triunfo quando nos apercebemos de que o fizemos sem pensar em querer nos mostrar superiores a nossos pais. Parece-me que essas duas linhas atuam constantemente e nos deslocam. Sobretudo, é difícil não ter modelos de referência para alicerçarmos quando abandonamos os antigos. Então, surgem desorientação e confusão. Um de meus artigos chama-se, precisamente, “a família desconsertada” (“a família déboussolée”, sem bússola).

Os mitos familiares, igualmente, se articulam com as representações sociais, mas estas são instáveis.

Essas mudanças se acentuaram nas últimas décadas, embora pudessem ser vislumbradas há muito tempo. Para dizer sistematicamente, o amor é o móvel primordial atual, não a segurança e o calor de um lar estável e perene, como antes se sustentava. Desde a Revolução Francesa a família procura passar de ser “procriativa” a “recreativa”, segundo a frase de Merton. Nessa época triunfou uma corrente que vem desde a Idade Média, anticonvencional; a idéia de eqüidade é preferida à das hierarquias, ao domínio do pai sobre o filho, do marido sobre a esposa, etc.

Na América tudo isto seguiu outro destino, porque os conquistadores desorganizaram a família indígena e logo a família dos escravos. O lugar do pai, por exemplo, foi debilitado antes que isto ocorresse na Europa. E significou uma mudança muito mais catastrófica que a atual. As sociedades americanas, que resultam da síntese das três correntes, indígena, africana e européia, têm evoluções particulares.

Todas as sociedades, mesmo aquelas cuja família não se transformou, apresentam dificuldades familiares, conflitos e desavenças. A enfermidade é universal. Conflitos entre pais e filhos se observam em todo lado e é melhor assim, pois são necessários novos plantios para não se esclerosar.

Se vocês me permitissem dizê-lo desta forma, estamos numa época de transição entre duas variantes de famílias. Por isso é mais complicado; muitos desejaram a mudança, mas ninguém previu que novas dificuldades poderiam aparecer. Porém a liberdade é uma forte aquisição e esperemos que permaneça.

Clinicamente, observa-se crise de autoridade; freqüentemente os pais têm que se haver com filhos que não aceitam as regras. Na medida em que a autoridade paterna é desqualificada pelos outros e por quem teria que exercê-la, a família fica sem o abrigo da lei e surge uma série de condutas perversas. As violências de todo tipo refletem este desequilíbrio, mas as manipulações, o utilitarismo, a depredação são mais graves que a violência, porque mais insidiosos e menos visíveis.

O narcisismo se altera, ignora-se o outro, que se torna quase “invisível”; os integrantes da família sentem-se desvalidos e debilitados no seu amor-próprio.

Acredito que a diminuição de nascimentos é um fato importante. Suas causas são múltiplas: o trabalho da mulher, o temor pelo porvir, a precariedade e desestabilidade econômica. Não sei por que isto acontece; antigamente as dificuldades conduziam as famílias a ter filhos; agora, conduzem a evitá-los.

Jornal: Michel Tort destaca as mudanças derivadas do avanço da biomedicina sugerindo que estas incidem sobre os referenciais simbólicos que regem os elementos constitutivos da identidade &— sexo, nome e filiação. Gostaríamos de saber o que o senhor pensa a respeito e qual a sua opinião sobre o impacto dessas mudanças na transmissão da vida psíquica entre as gerações.

Eiguer: As mudanças na biomedicina dizem respeito a um grupo reduzido de famílias em relação ao resto da população. Quantas são as famílias que recorrem às procriações assistidas por médicos? Quantas são as famílias homoparentais em comparação com as heteroparentais? A questão é que há uma diminuição da fertilidade do casal com relativa queda no número de espermatozóides nos últimos trinta anos, mas não se pode saber se não houve, em outra época de nossa história, uma diminuição semelhante.

Muitos estudos sociológicos referem-se de preferência às elites econômicas e intelectuais para inferir idéias gerais sobre o conjunto da sociedade. Isso as relativiza.

Certos psicanalistas chegam à conclusão de que a função paterna tornou-se caduca, mas pergunto-me se não entenderam erroneamente que a função paterna não significa que o pai a ocupe. Ela pode ser assumida por algum outro: tio, avô, padrasto, amigo ou a própria mãe. A família continua sempre regida pelos mesmos princípios de autoridade e transmissão. Não se há de confundir função com quem a exerce ou acredita exercê-la, ou se diz, na família, que a exerce.

Na Grécia antiga, as avós costumavam contar as lendas sobre os deuses a seus netos, e transmitiam, assim, uma herança simbólica fundamental. Atualmente os avós vivem mais tempo; ocupar-se-ão de transmitir e, para isso, conhecem não somente contos e lendas, senão também histórias da família, algumas esquecidas, outras propositadamente ocultadas, que interessam sobremaneira aos menores.

Jornal: Entre os eventos significativos em relação à família se destacam o nascimento e a morte, ambos objetos de interferências pelos avanços da biotecnologia &— o nascimento desde a contracepção até a aplicação de múltiplas técnicas de fertilização; e a morte por sua postergação mediante o uso de sofisticados aparatos tecnológicos. A partir de sua observação clínica, que efeitos esses fatos produzem na constituição familiar? De que maneira a família enfrenta essas mudanças e qual é sua opinião sobre o alcance delas?

Eiguer: Sugeri-lhes que sofrimentos aparecem entre os membros da família. Aqueles homens que estão acostumados a ser dominadores deprimem-se ou procuram, desesperadamente, proteção em outros personagens, sua família de origem, aventuras sentimentais, amizades, colegas de trabalho. Às vezes se vingam abusando de outros, acossando seus empregados caso sejam empregadores, fazendo negócios extravagantes com o intuito de ganhar muito dinheiro, entram no ciclo da transgressão. Podem adotar a forma de abuso financeiro ou sexual, como o incesto. Trata-se freqüentemente de uma tentativa de recuperar o poder sobre alguém que lhes seja dependente, um subordinado.

A mãe faz parte do jogo. Observamos que as mães costumam valer-se de um filho ou de uma filha para se opor ao pai. Formas de perversão adotam a perspectiva de um vínculo mãe-filho(a) possessivo, asfixiante, que impede o filho de evoluir, no qual ele se torna o desejo, o pensamento, a alma da mãe. Perde aqueles que lhe pertencem. A família do psicótico o mostra com dramática freqüência.

É difícil para os indivíduos entender que o poder não dá a felicidade... Os adultos têm medo de perder; as manipulações são, no fundo, atos de desesperança. Conflitos inéditos aparecem entre filhos e pais idosos. Ocupar-se destes últimos requer muita paciência. Nós trabalhamos com famílias e casais de pessoas de terceira e quarta idades e vê-se que o casal é conduzido a conviver de maneira não prevista por eles; custa-lhes reconstruir o vínculo sem os filhos e os netos ao lado. Aparece, nos filhos, desejo de se desfazer dos pais. Uma forma reativa é fazer o impossível para mantê-los em vida, custe o que custar.

Ao mesmo tempo, o rival edipiano já não tem combatividade. Para um jovem, um combate com alguém que já não quer combater perde o sentido.

Jornal: Consideramos que sua contribuição sobre a transmissão da vida psíquica entre as gerações destaca uma questão muito importante para Freud e para Ferenczi: a questão da realidade do trauma. Enquanto Freud afirmava: “Não acredito mais em minha neurotica”, Ferenczi nos dizia: “As fantasias histéricas não mentem”.

Monique Schneider, em seu artigo intitulado “Trauma e filiação em Freud e em Ferenczi”, considera que para Ferenczi &— em especial em seus artigos “Análise de crianças com adultos” e “Confusão de línguas entre adultos e crianças” &— o vínculo entre a teoria do trauma e a questão da filiação não é acidental na medida em que, para ele, a essência do encontro de uma geração com a outra é sempre problemática. Schneider nos diz: “A criança traumatizada não guarda dentro de si, imutável, a recordação das experiências traumáticas, como se fosse o pivô em torno do qual organizaria seu sistema de lembranças e defesas. Não há aqui ‘corpo estranho’ no centro do novelo subjetivo, porque a violência é de outra ordem. Não apenas ‘a coisa’ transmitida se vê destruída, mas ainda a destruição alcança a própria psique infantil: a criança não conserva tanto dentro de si algo destrutivo e persecutório, mas o próprio esconderijo ao qual este algo poderia ser conservado é descrito como tendo sido destroçado”. De que maneira esta concepção de transmissão traumática entre as gerações contribuiu para o desenvolvimento de suas teorias sobre a transmissão do psiquismo entre as gerações? Em que medida as ideais de Ferenczi com relação ao trauma contribuíram para a construção de seus pressupostos?

Eiguer: Em geral, os terapeutas psicanalíticos de casal e família (TPCF) são ferenczianos ainda que não o saibam. A maneira de interpretar os traumatismos, de entender o transgeracional, é testemunho. Os traumatismos que concernem aos antepassados estão em jogo, em sua dramática realidade e em suas conseqüências, aderidos às proibições de falar, de questionar, de investigar, ante a vergonha que geram. Surgem angústias indizíveis e irrepresentáveis, que geram traços vazios no ego dos sujeitos que se transmitem de modo insidioso até engendrar condutas enigmáticas nos membros das gerações mais novas. As criptas vazias são os esconderijos aos quais Monique Schneider se refere.

Por outro lado, há uma teoria conjuntural do trauma, mas a forma de entendê-lo conduz, progressivamente, a conceber uma teoria da estruturação do psiquismo baseada nos fatos traumáticos da vida do infante. Isto confirma a teoria dos vínculos intersubjetivos.

Laplanche não é o primeiro a falar do enigmático como força de vinculação. Bion o fez à sua maneira. No entanto, Laplanche insiste sobre algo que é essencial: a sedução traumática, resgatando assim a Ferenczi, embora com um viés universal e inconsciente. Todo lactante vê-se confrontado a potentes induções excitantes que provêm do significado sexual de gestos e fantasias inconscientes nos pais. Vemos isso num simples exemplo. Laplanche assim diz: o que uma mãe sente quando dá o seio ao filho é mais do que carinho, mais do que sua satisfação de poder alimentá-lo e prazer ao vê-lo, divertido, brincando com o bico do seio. O peito é para ela, também, um lugar de erotismo, cruzado por uma infinidade de fantasias e lembranças; ela reprime isto, certamente, mas a criança não está ainda preparada para entender este outro sentido. Então o pressente agitadamente, ficam-lhe perguntas sem respostas.

Laplanche inaugura, assim, várias pesquisas que levam a considerar que o originário está composto por aquelas marcas irrepresentáveis animadas por energias não ligadas, não articuladas, e que se herdam dessas experiências precoces. Diferentemente de Laplanche, a ênfase não está no sexual, senão nas frustrações, nos abandonos, na violência, nos microtraumatismos, sem esquecer, na verdade, o sexual. A teoria do trauma é evocada porque ajuda a entender como se puderam gerar aquelas marcas irrepresentáveis. A angústia é, por si, traumática; fez refração em seu momento sem poder se ligar completamente. Como, por exemplo, os traumatismos do nascimento, do desmame, da ameaça de castração, da arbitrariedade do simbólico: lei, língua, ordem do parentesco, traumas nas gerações anteriores.

J. Moreno afirma que o excesso de inscrições não permite que ocorram representações de coisa e de palavras. Por isso, revelam-se predispostas as conexões vinculares. Os estudos de R. Roussillon sublinham as “agonias primitivas”; C. e S. Botella ocupam-se, com esmero, das dificuldades de figurabilidade, das cicatrizações que não aconteceram e que deram lugar às falhas da simbolização. Roussillon sugere que as novas simbolizações não conseguem apagar os aspectos não simbolizados anteriormente. O narcisismo ficou fragilizado.

Quando lança a “fórmula” de que a afiliação surge das falhas da filiação, e que se estende a toda vinculação, R. Kaës diz algo parecido. O vínculo desbarata a negatividade. Os sujeitos do vínculo estabelecem ali pactos denegáveis a partir do fato de que cada um dispõe de algo que não pode ser dito, nem representado. A negatividade os une.

Nesses autores, entende-se, devem-se sublinhar as “falhas” e “o falido”, compreendidos de maneira diferente da falta ligada à castração, já que são apresentadas de preferência no sentido de uma carência radical e inconsolável. Parece-me que foi Bion quem deu uma perspectiva a essas problemáticas e resolveu, para nosso melhor esclarecimento, por que o mistério do irrepresentável está em constante busca de vinculação. Os elementos beta ficaram como que frustrados de não terem sido acolhidos pela capacidade alfa da mãe nos anos de crescimento. Então, erram como alma penada, em busca de outras psiques que os “descondensem”, ou seja, que desenredem suas múltiplas implicações entreveradas e tão incômodas, e dando-lhe um sentido. A criança quer saber, aguçada pelo seu desejo de verdade (vínculo K).

Nem Laplanche, nem Rousillon, nem C. e S. Botella dão-se conta de que essa maneira de entender o originário, com seus irrepresentáveis, que se agitam num movimento incessante, leva inevitavelmente a considerar o outro como um partenaire ineludível a fim de resolver os enigmas provocados. Em todo caso os autores em questão afirmam que somos todos “filhos” do traumático. Passamos de uma teoria do traumático como conjuntura a uma teoria estrutural do originário que adota o modelo do trauma.

Jornal: Considerando o conceito de Édipo nuclear no marco teórico psicanalítico por sua importância na estruturação do psiquismo, como o senhor considera a interferência das novas configurações familiares sobre a estruturação edípica? Frente às novas configurações familiares o conceito de Édipo ainda permanece neste lugar central?

Eiguer: Em psicanálise, o complexo de Édipo foi entendido em relação com o dos pais, cujo superego intervém na formação do superego do filho. Então o transgeracional opera como um elemento do complexo, dando-lhe um viés particular, já que o filho não me parece que possa ir além do que seus pais como pessoas e como vínculo de casal puderam realizar. Se o complexo do Édipo do pai (ou ambos os pais) foi perturbado por incidências violentas, como por exemplo um incesto, um assassinato, tudo isso se transmite. Um dos efeitos pode ser um incremento da angústia de castração, outro a tentativa de transgressões sexuais. Notou-se que certos incestos fraternos têm algo a ver com condutas incestuosas em gerações anteriores. Acredito, no entanto, que o mais difícil é chegar ao nível da fantasia em si, ou seja, que os irrepresentáveis perturbem a capacidade básica de fantasiar, figurar e pensar. Na clínica nós nos perguntamos, quando a interpretação histórica não dá resultados, se a indagação pré-histórica não seria útil.

A teoria do transgeracional atualiza a idéia de Freud da transmissão da lei, mas, diferentemente dele, que acreditava na herança biológica dos caracteres adquiridos, aquela lhe outorga uma explicação intersubjetiva ligada à experiência.

Reconsiderar o complexo de Édipo fica, ainda, uma tarefa a ser realizada.

Em relação com a modernidade, penso que sacode a teoria do Édipo, mas não a desmorona. Quem pensa de outro modo, se refere principalmente à diferença entre os sexos, que tenderia a desaparecer, não tanto à diferença entre gerações. Em primeiro lugar, digamos que a maneira de entender a diferença dos sexos tem um ponto frouxo em Freud, sua base biológica. Em segundo lugar, entende-se muitas vezes a diferença entre os sexos como o ponto de partida de um conflito de dominação de um sexo sobre o outro. Simplesmente falo que, se a liberação feminina ocorreu para passar da dominação do homem sobre a mulher para a inversa, então não valeu a pena. Deve ser a ocasião, ao contrário, de uma transformação radical dos vínculos entre os sexos, não de poderio senão de coordenação e emulação. Não somente chegar à eqüidade, mas desconstruir o sentido mesmo do sadomasoquismo que esta relação supunha.

Vai-se descobrindo quanto as mulheres são férteis em criatividade e invenção e o fazem de maneira muito original, matizada por sua feminilidade. Descobre-se, também, como os homens desenvolvem o engenho para as tarefas antigamente reservadas às mulheres, na casa, com os filhos, nas tarefas manuais, nas relações sociais.

Em suma, a diferença de sexos segue tão vigente como outrora. Forja-se em contato com cada um dos pais, como resultante de conflitos de rivalidade e identificações segundo duas vertentes:

1) Identificação por continuidade, onde o estreito contato de pai-filho lactante possa permitir que o filho embeba-se com o pai do mesmo sexo no tocante ao seu gênero (identificar-se com o feminino da mãe, caso seja uma filha, por exemplo), e:

2) Identificação por contigüidade, na qual a criança se identifica com quem foi, em algum momento, seu rival edipiano.

Jornal: Considerando estas mudanças observadas na contemporaneidade e sua incidência na constituição das famílias, em que medida a psicanálise ou a terapia familiar psicanalítica, suas construções teóricas, suas técnicas, seu método estão preparados para dar conta de tais questões?

Eiguer: As TPCF obtêm um amplo ângulo de observação; as modificações que aparecem são analisadas em virtude do jogo transferência-contratransferência. Dando seguimento à trajetória das perguntas sobre o Édipo, acrescento dois exemplos:

1) O conceito de vínculo permite-nos entender que as identificações por continuidade estão sobredeterminadas pela identificação primária e pelo fato de que o desejo do pai interage com o da criança. Deseja o pai que o masculino e/ou o feminino se desenvolvam no seu entorno segundo determinadas características. O semelhante ou o alternativo é tido em consideração quando se tem o desejo de que a criança se construa harmoniosamente segundo seu gênero. Por que alternativo? Porque um pai pode induzir que sua filha seja feminina da maneira pela qual ele anseia que o seja, por exemplo.

2) Na prática, a família recomposta ensina-nos que seu sofrimento está ligado com certa nostalgia da família anterior, do pai que já não vive com ela, se porventura for este o caso.

Isto se acompanha de impaciência, por não entender como é difícil, para cada um, retomar o curso de uma carreira pela metade.

Quatro novas problemáticas ajudam a redefinir os vínculos familiares: respeito, reciprocidade, responsabilidade e reconhecimento &— os 4 R do vínculo intersubjetivo.

São questões que se destacam agora com mais nitidez. Numerosos integrantes das famílias carecem de capacidade de reconhecimento. Pede uma criança, por exemplo, que o novo pai, o novo cônjuge da mãe, reconheça a grande consideração pelo pai biológico e que ela não decidiu que os pais se divorciassem etc. Mas costuma abandonar sua demanda de reconhecimento para entrar numa cega oposição.

Jornal: Como o senhor vê nos dias de hoje &— levando em conta as dramáticas transformações na ordem familiar &— as contribuições da terapia familiar psicanalítica?

Eiguer: A terapia familiar psicanalítica (TFP) tem um papel de esclarecimento quando os conflitos se desencadeiam pelo tipo de mal-entendido que mencionei. Mudar é muito mais difícil do que se pensa. Também devemos examinar os mitos que ocasionam estragos, aqueles que exigem tributos a uma idéia e pessoa do passado.

Falei-lhes de uma situação clínica precisa: das “novas famílias”, surgidas das procriações assistidas através da medicina, homoparentais, que redesenham o caminho das famílias adotivas, uma situação que é mais conhecida para nós. Deve-se tecer o vínculo paterno-filial, pais e filhos. Não é tarefa fácil. Aproximam-se guiados pelo afã de brindarem-se amor num nível latente, porque os traumatismos vividos com seus vazios, enigmas, marcas irrepresentáveis os atraem reciprocamente, como antes o assinalei. Sobre suas falhas e padecimentos construirão a nova relação, quando chegam a admiti-lo. Alguns viveram a dor de não poder procriar, os exames e árduos tratamentos. Outros, as crianças, o abandono, a falta de assistência. Ambos, a ruptura com seu passado ancestral. Juntos se reconhecem na sua desesperança e em seu desejo de emergir. A tudo isto ajuda o fato de que morem juntos na mesma casa.

Chamei a atenção sobre a existência de um tipo de vínculo particular, que se baseia em trocas cotidianas, tarefas domésticas comuns e ritualizadas pelas quais se conhecem melhor e podem se amar e fundar sua intimidade: vínculo da coabitação. Esta noção apresentei melhor em meu livro L’inconscient de la maison, de 2004.

Jornal: É possível a extensão dos conceitos e técnicas desenvolvidos ao longo de anos de sua experiência com a terapia familiar psicanalítica para a clínica psicanalítica individual? Ou melhor, qual o trânsito possível entre estas duas modalidades de trabalho: a clínica psicanalítica individual e a terapia familiar psicanalítica?

Eiguer: Efetivamente, esta é uma pergunta importante. A transferência de idéias é um fato. Aqueles analistas que praticam análise familiar estão bem instrumentados para entender a reciprocidade intersubjetiva. Sentem seus pacientes com intensidade e não temem sentir-se próximos de sua dor porque comparar-se com grupos familiares os instrumenta para entrar e sair com facilidade de sua vivência contratransferencial. Não temem perder sua identidade porque sabem que há uma parte de identidade comum em cada vinculo. Um deles é aquele que tecem com o paciente.

É assim que a TFP inscreve-se no amplo e pujante campo do movimento da intersubjetividade.

Citarei algumas contribuições da TFP à psicanálise:

1) Os estudos sobre o transgeracional e o originário no funcionamento intersubjetivo.

2) A necessidade de entender que cada vínculo familiar, filial, conjugal, fraterno, com o objeto transgeracional está em inter-relação com o outro.

3) A reconsideração do narcisismo como um produto ao mesmo tempo coletivo e recíproco e nos aspectos tróficos e construtivos.

4) Uma contribuição específica à compreensão das construções em análise.

5) Uma explicação das resistências na cura que consegue diferenciar as identificações projetivas do paciente daquelas que provêm de seu meio e das que é o objeto.

Jornal: Como é a formação do terapeuta familiar psicanalítico? É necessária a formação prévia de psicanalista?

Eiguer: Requer uma análise pessoal e bases conceituais sobre o freudismo. Depois, vários anos de teoria e clínica com um período de integração a um psicodrama em grupo, antes de começar a formação prática com supervisões, co-terapia e participação em grupos de pesquisa.

A segunda pergunta pode-se inverter. Certas pessoas sugerem-me que é necessário fazer uma formação de terapeuta familiar psicanalítico antes da formação para psicanalista. Assim sucede de fato, na França, e com certa freqüência.

Jornal: Que outra questão o senhor gostaria ainda de desenvolver?

Eiguer: Gostaria de lembrar que fundamos em Montreal, há poucos meses, a Associação Internacional de Psicanálise de Casal e Família &— da qual tive a honra de ser escolhido seu primeiro presidente &—, constituindo este o lugar ao qual estão convidados a aderir aqueles que desejam trocar experiências, investigar, criar, promover e apoiar as ações dos governos e das organizações não-governamentais, neste domínio. A AIPCF conta com mais de seiscentos membros de vinte e um países, e reúne trinta e sete associações nacionais. O Brasil está bem representado, o que me orgulha e regozija.

Manifesto-lhes meu reconhecimento pelas perguntas estimulantes e de grande atualidade.

 

Tradução de Marta Ursula Lambrecht.
Revisão de Carmen Aurazo.

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