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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. v.40 n.42 São Paulo jun. 2007

 

DEBATE

 

A família em (des)ordem

 

The family in (dis)order

 

La família en (des)orden

 

 

No dia 19 de maio de 2007 o Corpo Editorial do Jornal de Psicanálise reuniu-se com as colegas Ana Cristina C. Camargo, Débora Seibel, Neide Aparecida S. Aoki e Regina Maria Rahmi para um debate sobre o tema “A família em (des) ordem”.

O Jornal agradece a participação de todos.

Jornal: A idéia deste tema, em alusão ao livro de Roudinesco, surgiu da observação, amplamente tratada por diversos autores, das profundas transformações da família na contemporaneidade. Dessas mudanças destacamos aquelas relacionadas às condições de procriação, à composição das famílias, à recomposição freqüente dos casais e à passagem da soberania paterna para a materna.

A partir destas constatações, gostaríamos de discutir:

1 &— Como cada uma de vocês observa estas questões em sua clínica?

2 &— Que efeitos ou conseqüências, a partir da observação clínica, observam na constituição subjetiva de pais e filhos?

3 &— Em que medida a psicanálise, seu arcabouço teórico, suas técnicas, seu método, está preparada para dar conta de tais questões?

4 &— Em relação à formação em nosso Instituto, com que relevância essas questões têm sido tratadas?

Débora: Queria agradecer o convite porque esta é uma oportunidade para usufruirmos e divulgarmos no Instituto o que fazemos quase que solitariamente em nossas clínicas.

Trabalho há doze anos como parceira de uma clínica de reprodução assistida e nesta experiência me surpreendo constantemente.

As formas de procriação mudaram muito. Hoje em dia é muito comum as mulheres engravidarem tardiamente, e com isso os próprios óvulos muitas vezes perdem a capacidade reprodutiva. Nesses casos uma alternativa oferecida pela equipe médica é a utilização de óvulos de uma mulher mais jovem. Coordenei um programa de óvulos doados durante cinco anos. Só para se ter uma idéia, são sete ou oito ciclos de óvulos somente na clínica em que eu trabalho.

Essa situação traz outras questões complexas que precisam ser pensadas. Para dar um exemplo, uma moça me veio ao consultório na época em que precisou fazer este procedimento. Seguimos por um período o trabalho, ela engravidou, teve os bebês e recentemente me procurou para uma conversa. Muito angustiada, disse que a cada aniversário dos gêmeos fica muito aflita, ouve comentários do tipo como os filhos se parecem com ela, com sua mãe ou com sua prima. Não sabe que fazer com esse segredo. Sente-se traindo toda a família, e também não está preparada para conversar sobre isso com eles. Esse é um dos exemplos que mostram com clareza a repercussão destes procedimentos e tecnologias.

Podemos, então, pensar que existem de fato situações que estão sendo possíveis do ponto de vista técnico, e com isso a mente se sente sobrecarregada.

Desordem é uma palavra muito forte, até me parece um termo que tem uma conotação moral, como se houvesse uma ordem e, agora, uma desordem. Procuro não enveredar pelo lado da moral.

Leda: Gostaria de dizer que não colocamos ordem do ponto de vista moral, mas no sentido de provocar algo que não pode ser falado. Por que não pode ser falado? Se for natural, tranqüilo, por que precisa ser guardado durante tanto tempo, até às vezes por toda a vida?

Sabemos que esse guardado vai produzir algum efeito em algum lugar.

Alice: E, completando e esclarecendo esta idéia inicial relativa à ordem, pensamos em situações como a de uma avó doadora de um óvulo para a filha impossibilitada de gerar, nascendo uma criança que na verdade é filha de sua própria avó. Perguntamo-nos se a própria tecnologia médico-científica de alguma forma determina uma nova ordem de filiação e, no caso afirmativo, como que isso se coloca e ecoa em nossas clínicas.

Débora: Na verdade, o título nem é de vocês, é do livro da Roudinesco. É um título provocativo.

Penso que existe, sim, uma nova ordem e é muito difícil, porque vislumbra uma coisa um pouco perversa. Então ficamos no limiar da perversão e da transgressão necessária, da ruptura. O rabino Nilton Bonder em seu livro A alma imoral afirma que todo lugar um dia se torna estreito, é verdade, temos de sair. Mas, como? E até onde vamos? É delicado, é difícil. Se isso se der de qualquer maneira, também morremos. Acho que estamos vivendo um momento muito particular. E não penso assim: “Nossa! Que desordem! Que confusão!”, mas sim: “Que diferente! Que perigoso! Que atual!”. O trabalho está ficando mais difícil, ou sempre foi...

Regina: Primeiro quero agradecer a oportunidade de poder participar deste debate e refletir um pouco sobre este tema.

A questão da (des)ordem coloca a família dentro de uma cultura, e o que temos assistido nos últimos anos são profundas transformações culturais. Sabemos, também, que uma das funções da família é inserir o indivíduo na cultura. Então, de saída nos deparamos com a indagação de como ficam as novas representações familiares com essas transformações. Estudá-las faz parte do nosso ofício de analistas e a idéia de campo psicanalítico vem sendo nosso instrumental para podermos trabalhar com família, hoje.

Vindo para cá, lembrei-me de uma frase de Maurice Henry: “Quem não se entregou às enquetes sobre sua família? Quem não leu ardentemente velhas correspondências na esperança de descobrir dos mortos as respostas sobre seus próprios enigmas?”. Temos aí duas palavras: busca e enigma.

O terreno da família é arqueológico, conforme avançamos vamos nos aproximando de várias camadas e nos dando conta de pedaços e fragmentos. Vem-me a idéia de complexo de Édipo fraturado, estilhaçado. É o que temos observado na clínica. As pessoas que nos procuram buscam um sentido para suas vidas, seus enigmas. Há inquietação e, sobretudo, uma aceleração do tempo, tudo muito rápido, é tudo para ontem. Penso que todo o nosso trabalho, no momento, vai em direção da compreensão dessas novas representações. Que modelos poderíamos pensar, dentro dessa configuração contemporânea, que pudessem abarcar essas questões?

Para aprofundar esta reflexão, vou me valer de alguns elementos presentes na Odisséia.

Ulisses se lança em uma travessia que acontece em duas etapas. Há uma série de acontecimentos que o afastam de casa e o jogam numa busca, inicialmente, onde passa por uma guerra, a de Tróia, num pacto de lealdade; e depois, num segundo momento, ele procura retornar, mas encontra dificuldades e se vê lançado numa nova travessia.

Existe um tema secundário: o que acontece em sua casa quando Ulisses vai embora? A ausência de Ulisses leva a pensar, na atualidade, a questão do pai idealizado. Onde está esse pai? É um pai ausente, fraco? O que aconteceu com ele? Na Odisséia existe todo um esforço da família para trazer o pai de volta. É um tema muito forte do momento atual. A casa de Ulisses fica invadida pelos pretendentes, com Penélope tecendo e destecendo, com certa esperança do retorno do marido. O filho, Telêmaco, parte em busca do pai. Se pensarmos na atualidade, o filho pode buscar o pai de várias maneiras, com drogadição, com problemas escolares, com depressão etc. A necessidade de resgatar o pai está presente atualmente. Há outro movimento que reconheço na clínica, que seria o reencontro do casal, Ulisses e Penélope, que é feito de uma maneira muito cautelosa porque ele chega disfarçado de mendigo. Quem é esse marido-Ulisses que volta? Ele está morto e voltou? Isso reflete um eu que não é coeso. São muitos maridos, muitos Ulisses, muitas Penélopes que se reencontram. Essas indagações estão presentes nas colocações dos casais: “É você mesma? Você está comigo?”. Estou-me referindo agora às transformações nos casamentos.

Esse modelo possibilita a integração de estilhaços, de pedaços, que vão abrindo novas possibilidades de transformação na intimidade do trabalho clínico.

Ocorreu-me agora uma vinheta clínica, de um homem que chegou num processo de separação. Era procedente do exterior, veio quando criança em uma travessia transatlântica. Casou, teve filhos e se tornou um homem bem-sucedido. Num determinado momento, sua mulher lhe diz que não está mais satisfeita. Ele inicia, então, uma busca dentro si mesmo. Nesse momento de separação, lembra que sua avó havia colocado em sua mala uma máquina de fazer macarrão. Ele pega esta máquina e faz macarrão com o filho. Nesse processo, lembra-se do que a avó lhe dizia: “Olha, você faz macarrão, mas o que resultar disso não vai ser somente culpa sua, vai depender da farinha, do tempo, de várias coisas”. Esse reencontro com lembranças da avó recupera dentro dele o menino que brincava e contava com as mãos seguras da avó a lhe indicar uma determinada direção. Tinha rompido com essa avó e, de certa forma, tinha se transformado num marido muito severo com sua própria mulher. Ele reconhece isso. Recupera essa mulher forte que ao mesmo tempo o fascinava e o aterrorizava. Lembranças que quando tecidas e retecidas vão transformando pedaços estrangeiros da avó, da mulher, o que possibilita a sua própria integração.

Alice: Então, a partir do que você falou, a própria cultura pode fornecer subsídios para pensarmos essas novas subjetividades que estão surgindo.

Ana Cristina: Estou muito feliz de estar aqui.

A escolha a partir de que parâmetros ordem-desordem e quais expectativas começamos a falar sobre família, e de que família tratamos, me faz pensar que tenho duas clínicas muito fortes e diferentes. Parte do tempo atendo em consultório de psicanálise e, numa outra parte grande do tempo, sou coordenadora de uma instituição que trabalha com crianças e famílias da favela atrás da Ceagesp. Recebo famílias das mais diversas, e bem pertinho umas da outras, uma do Alto de Pinheiros (considerado bairro nobre da cidade) e outra do outro lado, com configurações e constelações bastante diversas, mas que colocam questões às vezes parecidas.

O Jornal de Psicanálise ressalta na carta-convite a discussão sobre a passagem da soberania paterna para a materna.

Do meu ponto de vista, percebo que o que passou para a mulher foi um acúmulo da maternagem ou o que é materno, e não a soberania. Vejo isso nas duas clínicas. Vejo situações que ficam em função da soberania materna, mas que na prática não acontecem. Vou dar um exemplo, só para mostrar como é esta clínica que fica para lá do Alto de Pinheiros. Nós recebemos adultos no período da noite, crianças pequenas no período da manhã (sete a onze anos) e adolescentes no período da tarde. As noites são dedicadas às famílias, mas não necessariamente às famílias dos adolescentes e jovens, mas a pais e tios acima de dezoito anos, jovens que vão tocar violão ou jogar; a grande maioria são mulheres que vão bordar, que ficam conversando e contando as histórias das famílias.

Numa dessas famílias que eu acompanho há muito tempo, a mãe tem cinco filhos; um freqüenta a instituição na parte da manhã, outro na parte da tarde e um terceiro já saiu e está trabalhando numa marcenaria. A mãe vinha muito pouco, falava muito pouco. Carroceira, ela acompanhava o marido no trabalho de coleta de reciclados das redondezas, até que viu a possibilidade de aprender a bordar. Nos últimos dois anos, recebeu muita encomenda e percebeu que poderia ganhar dinheiro com este trabalho ao invés de acompanhar o marido, puxando a carroça com ele. A família começa a sofrer, então, uma desestruturação com essa nova recomposição. A mãe muda de lugar na família, e esta, de status. A primeira vez que vendeu algo, recebeu um dinheiro que antes nunca chegava até ela, já que quem ia vender a mercadoria reciclável era o marido e, com isso, bebia. A partir do bordado, ela começou a receber dinheiro. Olhava suas mãos e falava: “Ana, foram essas mãos!” E eu disse: “É, mas são essas mãos que também coletavam, puxavam carroça! Agora essas mãos estão recebendo pela primeira vez o dinheiro e você pode dispor disso”. Ao mesmo tempo que via o crescimento dessa mulher, via também a desordem que se instaurava na dinâmica familiar. Não era mais aquela que podia suportar tanto um homem bêbado, não estava mais em casa para cobrar dos filhos para que saíssem na hora certa para ir à escola ou procurar um trabalho. A recomposição familiar também sofria com essa modificação de status.

Nós estamos aqui discutindo ordem/desordem, falando em acompanhar famílias, adolescentes ou crianças que recebemos nas transições entre as fases que passam. Penso que é isso que a gente pode, sem ser moral nem caricato, chamar de desordem. Poder acompanhar os momentos dos jovens no consultório, dessas mulheres na instituição, repensar também que lugares estão ocupando os maridos. É uma grande riqueza que vejo no consultório e na clínica, poder pensar junto com as pessoas o momento de transição que estão vivendo, onde o tempo todo se instalam novas configurações. É disso que se trata. Como é que um psicanalista pode acompanhar as turbulências que a vida impõe a seu cliente, sejam elas de que ordem forem, à medida que elas acontecem.

Estava lendo outro dia o artigo da Cíntia Buschinelli sobre a busca das raízes das mais diversas formas, a menina questionando se é parecida com os pais ou não. No caso tratava-se de crianças de óvulos doados que iam à internet para saber de onde veio tal óvulo. Como é que nós, analistas, podemos estar cada vez mais preparados para atender essas turbulências das novas configurações?

Acabou acontecendo no consultório eu ser chamada para fazer assistência técnica de regulamentação de visitas ou de guarda familiar, algo, aliás, que nem gosto de fazer. Depois fiz um histórico do número de crianças e adolescentes que atendi, dos adultos e casais separados, com questões de adoção. Nos três casos onde fui chamada a desempenhar esse papel, o pai queria ficar com os filhos. As questões que chegavam para mim eram complexas, algo impensável, até discuti na minha família de origem e eles queriam saber se eu apoiava a situação.

Poder pensar essas constelações sem nenhuma expectativa anterior de como devem ser é a maior utilidade nossa ao receber quem nos procura.

Regina: Você estava falando e eu me lembrei da experiência que estou tendo como coordenadora do curso de atendimento em orientação familiar, no Instituto Sedes Sapientiae. As pessoas que nos procuram vêm trabalhando com famílias em hospitais, tribunais, ONGs e abrigos. Tendo em vista a velocidade com que as transformações vêm ocorrendo, existe a necessidade de buscar um sentido, a tessitura de uma mentalidade que articule a herança genética às contribuições dadas pela cultura. Nosso trabalho procura desenvolver uma escuta que possibilite ir pensando essas transformações. O importante é oferecer a disponibilidade e a sustentação no encontro com as raízes. Lembrei um ditado chinês que diz: “Ter filhos é dar asas e raízes”. Às vezes vemos as asas, mas não as raízes. Nosso trabalho tem por finalidade reconstituir ou resgatar essas raízes que essas crianças pensam que não têm.

Neide: Quero em primeiro lugar agradecer a oportunidade de poder estar aqui!

Gostaria de contar a experiência de trabalho que tenho feito no interior do Estado onde resido.

Penso que o psicanalista tem sido chamado a prestar um trabalho de inestimável valor à comunidade. Tenho recebido uma demanda muito grande das escolas das cidades vizinhas e da minha, solicitando palestras e cursos para pais e professores. O que tenho percebido ao longo desta experiência de mais de vinte anos falando com comunidades no rádio, na tevê e em grupos, é que os pais encontram-se muito perplexos e inseguros frente às mudanças aceleradas de nossa sociedade. A família, como reflexo deste período pós-moderno, nos dá mostras de falta de intimidade, onde a correria e o borramento de limites se fazem constantes. Quando as escolas solicitam ajuda, querem que o assunto a ser abordado seja sobre limites. Tenho tentado mostrar que limite é conseqüência posterior ao estabelecimento de um vínculo afetivo, que muitas vezes se encontra tênue; deve-se levar em conta que as crianças respondem ao afeto e não às regras. As pessoas estão muitas vezes absorvidas com a vida concreta, sem espaço para a paternidade, a maternidade, o psiquismo. Tenho usado como modelo a idéia da construção de uma ponte. Não dá para construir da metade do rio para a frente. Quando alguma coisa está dando errado com o filho e surgem sintomas, os pais tentam se aproximar, mas aí fica difícil porque não foi construída essa ponte desde o início. Há um grande ganho quando o psicanalista pode ajudar nesse reencontro. Neste sentido lembramos M. Klein quando nos fala da necessidade de reparação, sobre perdoar os pais da infância, suas faltas, seus erros e suas dificuldades, para que alcancemos assim condições para adquirirmos paz e capacidade de amar. É preciso retomar a ponte afetiva do vínculo. Hoje vemos bebês em creches ainda tão novinhos, precocemente afastados de suas mães, em escolas onde os pais observam os filhos via internet, mas sem estarem de fato presentes, como se distantes garantissem que está tudo bem. Algumas escolas impedem os pais de visitar os filhos na hora do almoço porque depois da separação eles choram e dão trabalho, então acham melhor impedir que os pais tenham maior aproximação. O tempo de privação tem sido muitas vezes longo e precoce, interferindo no crescimento emocional, faltando o tempo mínimo necessário para construção do vínculo. Antes de se colocarem as grades-limites, é preciso haver essa ponte vincular afetiva.

Alice: D. Ligia Amaral costumava dizer: antes de existir a ponte, no seu lugar havia uma pinguela.

Neide: À medida que os pais vão abrindo espaço para os filhos, se deixando cativar, vão lhes dando entrada para que ocupem lugar em suas mentes. E os filhos, na interação, vão construindo os pais e vice-versa. Vemos que muitos não estão conseguindo exercer a função de paternidade e maternidade, respeitando a hierarquia da diferença geracional, exercendo autoridade, dando limites básicos, definindo espaços (lugar para dormir, refeição na mesa, etc.), dificultando assim a organização da mente, que se estrutura, em grande parte, a partir da organização externa. A criança precisa se assegurar de que é importante, descobrindo quem ela é pelos olhos dos pais, olhar que a legitima e desenvolve sua identidade. Percebemos que a convivência amorosa, e ao mesmo tempo o estabelecimento de limites, está falha. Outro dia numa escola, uma mãe muito jovenzinha disse: “Trabalho o dia todo, à noite vou estudar; o único tempo que tenho para ficar com minha filha é quando eu chego da faculdade”, ou seja, ela não tem tempo. A criança fica esperando, procurando lutar por esse espaço junto aos pais, sacrificando o descanso, o crescimento, o brincar, porque precisa da relação afetiva. A falta de tempo e espaço de continência pode levar ao engodo de se tentar tampar um buraco, abrindo outro. Muitos filhos dormem no quarto dos pais, às vezes porque é o único momento que encontram para conviverem juntos, comprometendo a elaboração da situação edípica, da vivência de ser o terceiro excluído, se diferenciar e ter alteridade. Pode surgir superproteção como substituto de um vínculo afetivo verdadeiro e a negligência em relação aos cuidados através das terceirizações. É preciso, portanto, reconstruir vínculos e relações esgarçadas, buscando possibilidades de criar vivências de interação afetiva. Torna-se cada vez mais necessário falar dessas coisas para os pais, porque eles muitas vezes negam a importância de sua presença e participação. A família parece ser hoje um espaço onde cada um fica ilhado no seu quarto com todo seu instrumental, com uma enorme dificuldade para o encontro. Ainda assim, sabemos que a família é o melhor lugar para se desenvolver uma mente, apesar das transformações que a família tem sofrido hoje. Quando Stalin propôs que se extinguisse a família para que as crianças fossem criadas pelo Estado, a Rússia virou um bordel. O próprio Stalin disse: “Que voltem às famílias!”.

Temos efetivamente que repensar, trabalhar, orientar, estar junto, dialogar sobre as situações básicas e fundamentais com os pais para que possam abrir um lugar mais arejado dentro de suas mentes para acolher seus filhos. É aí que entra nossa participação, para que os encontros de pais e filhos, cuja profundidade e importância nós conhecemos, sejam de crescimento e riqueza para ambos.

Débora: Vi uma notícia no rádio outro dia a respeito de uma pesquisa nos Estados Unidos com jovens que não jantavam em casa e outros que jantavam. Aquelas famílias cujas refeições eram feitas em conjunto tinham um índice infinitamente menor de baixa escolaridade, drogadição e depressão, do que as famílias que não faziam as refeições em casa. Achei interessante.

Leda: Ainda nessa primeira questão, vale a pena pensar, em relação à formação em nosso Instituto: com que relevância essas questões têm sido tratadas?

Débora: Tenho me sentido contente em relação a isso. Quando entrei no Instituto senti-me temerosa,na expectativa de como poderia compartilhar minhas experiências. Mas noto que cada vez mais tem sido aberto espaço para conversarmos honestamente, sem precisar dourar a pílula, daquilo que realmente se faz quando estamos sozinhos em nossos consultórios.

Leopoldo Nosek, relembrando Freud, diz que temos de dar figurabilidade ao indizível. Então, quando estamos diante daquela situação totalmente esdrúxula, vamos tentar de alguma maneira figurar o que acontece. Eu uso muitas metáforas. Estou-me lembrando agora de uma história que contei num encontro da Cowap, que foi a única coisa que me ocorreu quando uma paciente trouxe uma situação tão complexa que eu me senti desprovida de recursos para conversar inicialmente. Naquele momento me veio à mente uma história também citada no livro A alma imoral.

Leda: Quer contar para nós?

Débora: A paciente chegou à sessão contando que ela não ia me falar o que tinha decidido fazer na clínica de reprodução assistida com o médico. Perguntei por quê e ela respondeu: “Porque você não ia aceitar”. Mas logo decide me contar: vai engravidar com óvulos doados, sem o marido saber. Isso num contexto de redução da redução da redução, pois havia toda uma complexidade da história pessoal, que a gente sabe que cada caso traz. Nós duas ficamos, em seguida, em silêncio. E ela disse: “E então...”. “E então...”, respondi com esta história que talvez não esteja cem por cento correta:

“Era uma vez uma moça que tinha uma criança que morria de fome. Ela morava numa aldeia muito pequena, e era uma judia religiosa. Ela ganhou uma galinha de presente mas precisava saber se o animal tinha condições de ser abatido segundo os preceitos judaicos. Ela pediu à mulher do rabino que levasse a galinha para que o rabino avaliasse. A mulher do rabino chega com a galinha, ele olha nos livros, olha para a galinha, olha os livros, olha a galinha e diz: “Não!”. A mulher volta, olha a galinha e olha a moça, olha a moça e olha a galinha e diz: “Sim, pode dar para a criança comer”. Volta para o rabino, que lhe pergunta: “Você disse que não podia?”. Ela responde: “Não, eu não disse que podia”. “Mas como??”, diz ele. A mulher responde: “Você olhou os livros e olhou a galinha. Eu olhei a moça e olhei a galinha”.

Nós temos livros internamente. Apesar dos muitos livros que lemos em nossa formação, não ficamos com eles concretamente. Acho que devemos nos preocupar em olhar, escutar nossos pacientes, que muitas vezes, até em função de um superego muito exigente, vêm com livros na cabeça, com o que podem, ou não podem, devem ou não devem fazer. Nós vamos em outra direção, olhamos para aquele que está conosco, e isso nos norteia.

Neide: O fato de estarmos aqui debatendo, enfocando esse tema no Jornal, mostra que está havendo espaço para pensar, num enfoque mais solidário, incluindo a profilaxia. Tivemos recentemente, no Congresso Brasileiro de Porto Alegre, salas sobre terapia familiar e transgeracionalidade que estiveram superlotadas. Quando se toca no tema família, percebe-se uma demanda significativa de interesse. Faço parte do grupo de família que Lia Cypel coordena há sete anos no Instituto de Psicanálise, onde temos esse momento semanal de reflexão sobre a constituição do casal e das famílias. A jornada de família que acontece a cada dois anos aqui na Sociedade tem encontrado muita receptividade. Há muita procura de pessoas interessadas no tema. Notamos, então, que há interesse das pessoas, buscando o que a psicanálise tem a oferecer. As famílias vêm cada vez mais procurando espaço para pensar ao invés de atuar, buscando junto aos profissionais luzes que lhes dêem alguma direção.

Vejo como muito pertinente a abertura de nossa Sociedade de Psicanálise ao se inserir na comunidade, reconhecendo a necessidade de pensar sobre as novas estruturações familiares.

Regina: Acho que a formação aqui no Instituto oferece um arcabouço teórico muito sólido e particularmente me sinto muito satisfeita com o que venho recebendo. Acho que há uma abertura, estamos passando por um momento especial no sentido de começar a abrir questões centrais e fundamentais para recolocar a psicanálise dentro de um momento atual.

Temos um instrumental tão rico que podemos usar no consultório, em situações das mais diversas, e isso confere uma flexibilidade na atuação do analista. É aí que se encontra a riqueza da nossa formação.

Ana Cristina: Adorei a história da galinha! (Risos.) É poder ver na prática como tudo se passa, algo que me inquieta desde pequena! Penso que as coisas só ganham um sentido, de fato, na medida em que existe a experiência concreta.

Eu sou do interior, de Araçatuba, e vim para São Paulo aos dezesseis anos para fazer formação. Durante cinco anos, logo depois de formada, trabalhei aqui e em Araçatuba porque, lá, acontecia. Vinha para cá, estudava, fazia supervisão, atendia meus três gatos-pingados e ia para lá, onde trabalhava das oito às oito. É ótimo estudar, mas as coisas ganham colorido na prática, fazem sentido no trabalho, para ver o que funciona e o que não funciona, e poder pensar a respeito. Lembro de ficar sumamente incomodada em reuniões onde as pessoas falavam daquele único paciente e o outro ia embora, a metade da clínica ia embora. Temos que falar de verdade sobre o que se faz. Quando estamos aqui reunidas e ela nos conta a metáfora com que foi possível dar figurabilidade ao que estava vendo acontecer à paciente, que precisava encontrar um jeito de ajudar, estamos tornando útil um encontro. Os encontros, se podem fazer sentido, é o único jeito que vejo para continuar acordando e trabalhando. Não há dúvida que precisamos ler. Precisamos ler e ver, rachaduras das casas, óvulos de outras mulheres que ganham filhos de outras, e o que for, mas sempre com verdade.

Noutro dia eu estava no meio de uma briga grande por causa da remoção de uma das favelas perto do Ceasa, e ali os moradores estavam se reunindo numa associação porque os grandes empreendimentos estavam chegando à divisa da favela. A favela localiza-se entre um lançamento imobiliário de uma grande incorporadora e uma área de um dos maiores conglomerados brasileiros e o mercado imobiliário, claro, quer é jogar a favela para longe, para lá, e para lá. O que tentamos fazer é dar voz àquela população que não tem chance nem, por enquanto, condições de falar... Como é que pensamos São Paulo? Hoje eu me vejo como alguém que se utiliza desse arcabouço, que tanto estuda e preza, como um instrumental rico para pensar como é a cidade que vivemos, o espaço que vivemos, o país que vivemos, como é que recebo um garoto no consultório que vem com babá, motorista, segurança, de um dos condomínios mais fechados, como é que vejo essa distância entre uns e outros, e sei que, quanto mais longe jogo essa favela daqui, mais alto será o condomínio que virá. Essa diversidade de poder viver as duas situações é muito rica e fertilizadora para as duas clínicas. Ver as coisas, poder intervir de verdade, poder pegar uma criança que está aprendendo a fazer refeições juntas, como Débora falava, ver como come, como atravessa uma rua. Há um exemplo claro na instituição onde eu trabalho. Os garotos, quando terminam o período da manhã e saem da Acaia, vão direto para a escola. Saem ao meio-dia e meia e vão sozinhos para a escola, bem próxima. Começamos a receber reclamações direto das pessoas da rua, do frentista do posto, dos vizinhos dali com relação às crianças jogando pedras, mexendo com pessoas da rua, riscando carros, atravessando faixa errada. Passamos a acompanhar os meninos, com professores, do momento em que saem até a porta da escola. Começou como um gesto de: vamos cuidar de vândalos. Dois dias depois de iniciada essa ação, percebemos outra conotação, não mais uma atitude repressora com uma criança, mas um cuidado, como deveria ter sido feito antes. É assim que vai uma criança de sete anos à escola, acompanhada, alguém ensinando como é que é uma banca de jornal, o que tem dentro de uma banca, como se cumprimenta, como se atravessa uma rua, como dar bom dia para outra pessoa. Perdemos toda a noção de que a gente aprende acompanhando, vendo fazer.

Beatriz: Recentemente li sobre uma questão que está sendo muito divulgada sobre crianças com “déficit de atenção”. Neste artigo relacionavam essa questão com o “déficit de atenção” dos pais, e pensei no déficit de atenção dos pais para com os filhos e para com eles mesmos. Pensei que também temos visto muita referência aos adultos com os chamados “transtornos bipolares”, e os idosos com Alzheimer. Não podemos pensar no “déficit de atenção”que estamos tendo com todos nós?

Como ficam a função paterna, o convívio diário, e o que eles propiciam?

Quando chegou o microondas na minha casa, tive uma certa crise: acabou a hora do jantar! Quem vai querer chegar na hora para jantar e encontrar a comida quentinha? Sentar à mesa? Não estou querendo voltar para trás, mas há um outro sentido. Estou pensando na questão da função, e como ela será exercida. Falávamos que a psicanálise desenvolve a escuta, ajudando a pensar, transformando momentos de crise. Como estamos escutando nesse momento essas transformações?

Regina: Essa indagação, por mais que a gente pense, estamos sempre descobrindo. Na sua colocação há uma idéia básica de que o humano se constitui no vínculo, de poder (con)viver, (com)partilhar, isto que vai ser internalizado e vai se constituir numa rede de identificação afetiva e é o que sustenta. Se partimos de um modelo de muita abertura, laissez-faire em termos de criança e adolescente, perdem-se a presença e a firmeza. Isso é o que se chama de função paterna norteadora. Senão, é abandono. E temos uma geração que está o tempo todo solicitando, pedindo presença e firmeza nos nossos consultórios, nas nossas instituições.

Neide: O próprio setting da psicanálise com horário, local, analista disponível para acolher o paciente, vai oferecendo modelos para a elaboração da moldura na família, tantas vezes sem contornos. As crianças esperam os pais chegarem do trabalho. Mas qual é o tempo real e o que ocorre quando chegam? Mil coisas para darem conta. Onde fica a disponibilidade para a criança, que está puxando a perna deles, que chora, que quer limites, e que depois acaba desistindo e vai se isolar no seu cantinho? Essa questão do abandono tem acontecido com freqüência. Daí a sintomatologia do vazio, muitas vezes preenchida com sensualidade por conta de necessidades corporais e afetivas não atendidas. Nossa sociedade está muito voltada para o consumismo, em que os pais se justificam que estão sobrecarregados, para dar um futuro para as crianças, mas como ter futuro negligenciando-se o presente? É o degrau construído agora que vai possibilitar o apoio para se conquistar a auto-estima e encontrar forças e asas para voar no devido tempo. Acho que o exercício da função paterna ao dar os limites necessários e da função materna oferecendo continência e acolhimento realmente é essencial, por isso gostei muito de termos esse encontro aqui, visando nosso compromisso em colaborar para que haja uma consciência maior de todas essas necessidades. Qualquer um de nós poderia ter mandado uma idéia por escrito, como também se faz viável em outros momentos, mas a diferença hoje está nessa emoção do encontro, que está promovendo reflexão. A criança, fruto, talvez, de uma demanda narcísica dos pais, nem sempre é vista por ela mesma, e é preciso usar espaços como o que temos aqui para atrair as pessoas, para virem dialogar conosco sobre todas essas questões. Já existem trabalhos profiláticos, terapêuticos, mas ainda é muito pouco, temos que pôr a mão na massa mesmo e estar abertos e atentos para oferecermos nossa contribuição.

Marta: Gostaria de saber como vocês vêem a construção da identidade em casos clínicos de filhos que crescem em famílias com identidade de gênero.

Regina: Função materna e função paterna não necessariamente têm a ver com identidade de gênero. Hoje em dia existem uma série de organizações familiares onde muitas vezes a mãe exerce uma função paterna e o pai, função materna. O importante é que as duas funções estejam presentes, pois isso é o que estrutura o núcleo do eu.

Ana Loffredo: Estou gostando de como a conversa está rolando, porque fico com a impressão de que estamos conseguindo pensar juntas. Está-se falando de palavras densas como identidade, raízes. A Ana Cristina enfatizou uma denominação territorial que me levou à seguinte questão: formas de traumatismos são excessos da contemporaneidade, stress, onde as funções paterna ou materna estão comprometidas. O que me ocorreu, então, refere-se ao Instituto ou à nossa Sociedade de Psicanálise, agora que acabou de acontecer o congresso de Porto Alegre inclusive, em relação a como nos constituímos enquanto território nacional. Como podemos denominar o que é próprio em termos de nossas raízes, de nossa identidade, eu sou do interior, você também é do interior. Os territórios foram nomeados. A pergunta que fica é: de alguma forma estamos sendo consistentes para que todos tenham territorialização? O que é próprio, neste momento, tanto como constituição de cidade, brasileira, como na nossa formação como psicanalista? Quanto levamos a sério essas questões? Quando a gente vai começar a falar português nos congressos?

Débora: É interessante essa questão dos territórios, porque liga com uma questão de inclusão e exclusão, e isso é uma problemática do Instituto, da cidade, do país e do nosso mundo mental. Mas também traz algo de fundamental para o psiquismo, que é a singularidade. Na minha clínica, atendo mulheres que não conseguem engravidar naturalmente. Essa problemática é fundamental, porque, se eu não sou como todas as mulheres, eu não sou. Se eu não sou, não existo, que é o problema das favelas, se não existo, sou quase transparente, ninguém me vê. Posso levar um chute e passo para lá, para o outro lado da marginal ou não sei onde.

Só para dar um exemplo pessoal, perdi meu pai muito garota numa época em que meus colegas estavam em outra situação. Eu era a única que tinha essa história esquisita. Na clínica da infertilidade, também há muitas histórias esquisitas.

Outro dia fui a um aniversário de criança e havia crianças com quatro e cinco anos. Soube que muitos haviam passado por tratamentos, tinham gêmeos, trigêmeos. Pensei: há uns anos as pessoas iam aos Estados Unidos para solucionar o problema de infertilidade. Hoje muitos de nós têm ou tiveram um caso de infertilidade no consultório, segundos casamentos, pais que são também avós. Estão surgindo essas questões dentro dos congressos, isso está mais freqüente. Nessa medida a contemporaneidade nos leva a repensarmos a própria clínica.Temos um pensamento que nos norteia, mas que não nos limita, nem nos tira a singularidade.

Leda: Só para complementar essa pergunta: Há alguma coisa que nos une como psicanalistas. Que seria isso que nos une?

Débora: De meu ponto de vista o que nos une é um desejo de preservar a singularidade de cada um que nos procura. Nós não queremos uniformizar o ser humano. Não queremos a clonagem psíquica, queremos a personalidade individual de cada um que chega.

Neide: Estava pensando nessa questão de cada um se identificar com um lugar, uma região determinada. A busca por uma identificação. Um tempo atrás li sobre o depoimento de um mendigo de rua chamado Sr. Sebastião, numa revista que estava premiando o melhor projeto de solidariedade. Ele era pedreiro, tinha uma firma clandestina, sem regularização. Caiu do alto de um prédio e foi arrastado até a esquina para não comprometer ninguém; levado para um hospital, ninguém foi visitá-lo e ele se deu conta de sua solidão. Quando saiu do hospital, procurou os companheiros e não havia mais firma, nem barraco, ninguém. Recuperou-se por um tempo na casa de uma tia que o tinha criado. E então foi para a rua, como morador. No retorno ao hospital, o médico o chama pelo nome: Sr. Sebastião! Ficou impactado, porque na rua não tinha nome. Pôde recuperar então a lembrança de ter ganhado um prêmio na escola de literatura. Vai para uma biblioteca e acaba lendo Machado de Assis. Começou a fazer teatro de rua. O sonho dele é ir a Hollywood e contar sua realidade (o sonho de Hollywood...). Afirma que quer ver o sorriso na face das pessoas quando faz teatro de rua, e sente que colabora para resgatar a dignidade humana.

Nós somos deste país, como diz a Débora, cheio de contradições, divisões de direitos, paradoxos, mas o importante é desenvolvermos cada vez mais um olhar humanizador.

Hanna Arendt, em seu trabalho sobre os nazistas, percebeu que os torturadores não reconheciam como semelhante aqueles que eram mandados para fuzilamento e assim justificavam seus atos.

A sociedade apela para a massificação e robotização, enquanto nós, pensadores da alma humana, temos a função de olhar cada ser e propor a construção de espaços que promovam o desenvolvimento da singularidade.

Débora: Numa prisão todos têm a mesma roupa, o mesmo cabelo.

Ana Cristina: Em relação à singularidade penso que, assim como a mulher busca na clínica ser mãe, os moradores dessa favela também estão buscando algo, ambos querem se sentir fazendo parte.

Pensando como brasileiro, este é um país com muitas raças, todas as cores, todas as caras, o passaporte mais valioso do mundo. Precisamos parar de fazer de conta que não é assim. Quando eu brinco me referindo aos territórios que fazem parte de São Paulo, é porque consigo ver como de uma rua para outra muda a cidade! Uma das funções do Instituto é fazer aproximações, é fazer com que Boaçava fique mais perto da Leopoldina, e Leopoldina seja mais próximo de outros bairros. Pois eles lá também não se permitem sair dos bolsões, são crianças que nunca saíram do bairro e, quando saem, só conseguem sair como marginais, como pedintes e não como pessoas que têm direito a transitar pelas ruas. Pode parecer curioso, mas o Parque Villa-Lobos tem dois portões, um que é mais próximo do Ceasa e outro que é mais próximo do Alto de Pinheiros. São freqüências totalmente reguladas por onde se entra, e, se a molecada entra e quer ir para outro lado, lógico que não tem placas e ninguém vai barrar o acesso, mas isso vai ser veiculado por todo tipo de ação através dos guardas e dos monitores do parque, porque daquela linha que não se vê, dali não se passa. Então é serviço de todo brasileiro ir rompendo com esses muros invisíveis. Só quem se propõe ver que códigos são esses é que vai poder saber que existem. Leva muito tempo.

Estão divulgando agora o nível escolar do ensino público no Brasil. Há quanto tempo se sabe disso? Quando a gente vai se preocupar de verdade, sabendo que isso é a causa mais importante de não se saber falar direito? São milhares de crianças que estão na quinta ou sexta série analfabetas. Fazer isso ser mais presente no dia-a-dia da gente que é brasileiro é muito importante. São muitas caras e quem puder falar tem que falar.

Tem que ter espaço para isso aqui dentro no Instituto, para podermos conhecer os dois lados. É mais fácil achar que há apenas um jeito de trabalhar. Mas não é assim. Adoro fazer consultório, mas existe sofrimento tanto na clínica da infertilidade como na clínica das mulheres que nunca tiveram esse problema, muito pelo contrário, nascem bebês a cada minuto.

Tem que pôr na roda tudo isso.

Regina: Estava aqui pensando na questão da migração.

Como é que ficam as raízes quando as pessoas migram? Quando se vai para outro território, como fica a identidade? Há uma série de trabalhos interessantes nesse sentido. Marvin Margolis (2002), didata da Sociedade Psicanalítica Americana, relatou, numa reunião com os candidatos do Instituto de Psicanálise de São Paulo, que haviam desenvolvido uma série de trabalhos com a comunidade; esses jovens, em termos de identidade, não se sentiam nem índios nem americanos, o que desencadeou uma série de episódios depressivos seguidos por suicídios nos adolescentes filhos de emigrantes indianos.

Lash (1987) tem uma metáfora interessante: “Se jogarem ao mar toda a sua herança cultural, o nada toma o lugar da cultura.”. O fato traumático pode tomar proporções onde a cultura vai para a cripta. O sofrimento irrepresentável despoja a sua própria história como se os seus ancestrais nunca tivessem existido.

A questão do território é central quando nos tornamos analistas pois estamos continuamente tecendo nossas fronteiras.

Ana Loffredo: O Jornal espera veicular a temperatura dos candidatos, tanto é que estamos fazendo esse debate.

Em relação a essa pergunta, falando agora de modo bem objetivo, a formação dos candidatos, especificamente no nosso Instituto, está abarcando essas questões enquanto estrutura curricular, seminários, grupos de estudo? Estamos mergulhando para valer nessas questões ou apenas bordejando, como se diz?

Débora: Aqui se faz a formação livremente. Tenho procurado encontrar o que preciso para o trabalho que faço no consultório, que é complexo, não só através dos seminários, dos congressos, das atividades teóricas, mas também das supervisões e da própria análise pessoal. Penso ter encontrado um caminho de muita liberdade e tenho com quem compartilhar e receber material que, efetivamente, posso usar. É daquelas roupas que você compra e usa. Não aquela roupa bárbara que você tem e fica no armário, não usa nunca. Hoje é sábado, estou aqui, está ótimo. Segunda-feira, vou me sentir satisfeita de ir ao encontro de outras pessoas que possam me completar, num trabalho que é tão solitário.

Por outro lado, também penso que podemos mais, sim, ter uma interação maior com a comunidade, com a literatura, com a arte. A psicanálise pura não dá conta. Percebo isso na clínica e sinto necessidade de outros referenciais para poder dar conta.

Ana Cristina: Quando a Leda me chamou para participar deste debate, perguntei a ela se não haveria problema, porque eu acabo de me desligar formalmente do Instituto. Comecei minha formação aqui, mas não faço mais parte do quadro do Instituto. Foi importante como foi feito o desligamento. Fui entrevistada, queriam saber dos motivos que me levaram a fazer essa opção e gostaria de explicar para vocês, dando meu depoimento.

Sempre gostei muito de trabalhar.

Fiz anteriormente formação no Sedes porque não tinha naquela época condições de bancar análise didática, já que o que ganho sempre fez parte do orçamento doméstico. Lá era considerada uma outsider. Era interessante porque meu analista e meu supervisor eram da Sociedade, eu mesma participava de congressos, escrevia trabalhos que apresentava na Fepal, mas como convidada. Não era do Instituto, mas percorria um caminho paralelo onde tinha todo um relacionamento com as pessoas, mas não com a instituição.

Alguns anos atrás pensei que estava na hora de vir formalmente para cá. Comecei uma outra análise, pois quando entrei no Instituto não estava em análise. Mudei de analista depois de um ano e meio de análise didática, uma vez que aquela análise didática não me satisfazia, e comecei análise com um analista que não era didata.

Leda: O que você fala levanta uma questão importante da formação do analista que será tema de uma série de discussões aqui em nossa Sociedade. Trata-se da análise do analista. Creio que ter que interromper uma análise que está funcionando bem para iniciar outra, regulada pela instituição, com um didata tão capaz quanto seu próprio analista é uma ingerência na vida das pessoas que querem fazer formação. E esta questão merece uma ampla discussão.

Ana Cristina: Nem foi uma mudança, pois eu vinha de uma análise longa antes de entrar aqui.

Acho que se trata de uma situação pessoal, um conjunto de fatores que não caminharam a contento; talvez tenha vindo procurar uma roupa importante de se usar, mas que não me caiu bem ou não me coube. Análise didática não me satisfazia. Os cursos teóricos não acrescentavam tanto para quem já tinha estudado profundamente Freud. Sentia necessidade de ter mais discussões de uma clínica social. Não me sentia feliz.

Penso que não posso fazer uma crítica com consistência porque talvez não tenha dado o tempo necessário para compreender, de fato, o que estava acontecendo. Mas acho interessante continuar discutindo.

Minhas relações com os analistas permanecem. Fui para outra análise. Fui fazer mestrado em psicanálise com Fabio Herrmann e a clínica extensa. Talvez faça doutorado na USP. Não sei, ainda estou pensando. Vinte anos de clínica, de trabalho, vendo as coisas acontecerem de verdade me fazem sentir na obrigação de falar e de escrever. Não sei bem como nem onde, mas, com certeza, vou encontrar debates para fazer, lugares para discutir, e, se fizer mais sentido, numa hora volto para cá.

Acho que precisam acontecer mais discussões sobre a amplitude da vocação da psicanálise no Instituto.

Regina: Fico triste com esta notícia porque a Sociedade perde com a saída da colega.

Numa das entrevistas que a Roudinesco deu quando visitou o Brasil, ela menciona o trabalho do analista em duas pontas, no consultório e na clínica social, algo comum na França, já que a maior parte dos analistas tem clínica privada e social. E isso tem uma grande repercussão na sociedade francesa. Acho que aqui, talvez, esteja começando.

É importante, porque aquilo para que ela chama atenção na entrevista é que o trabalho social é visto como algo de menos valia. Como se este trabalho não fosse recolocar a psicanálise dentro do momento atual, da importância que isso tem! É fundamental ter esse tipo de troca, e ir abrindo essa possibilidade de prática e de discussão, inclusive na nossa formação.

A Roudinesco, no seu livro, fala sobre a perda da verticalidade na família e traz a idéia de uma família horizontal. O modelo que fica é o modelo em rede. A palavra rede sugere momentos nos quais se está conectado por períodos de movimentação a esmo. Uma rede serve de matriz tanto para conectar quanto para desconectar. Não é possível imaginá-la sem as duas possibilidades. Lembrei-me do caso de uma moça que estava plugada numa relação virtual e dizia: “Ah, nem precisa odiar para desconectar, é só apertar a tecla e deletar”. Depois, num outro momento, diz: “Hoje vou sair por aí e vou beijar uma boca”.

Percebo que vêm chegando agora, na clínica, crianças, adolescentes, jovens com uma linguagem nova e uma comunicação que ainda não compreendemos.

Jornal: Numa entrevista a nós concedida por Marcelo Viñar (JP vol. 38, 2005, nº 69, pp. 45-46, 48) em que comenta seu trabalho “Subjetividade y mutación civilizatoria”, ele assim se posiciona: “Creio que temos que dialogar, ler, pensar junto com historiadores da contemporaneidade, com historiadores da sensibilidade. Temos que ler todos que pensam o mundo de hoje e suas mudanças... Para quê? Para questionar nossas noções mais básicas. Função paterna, ou função simbólica ou função de corte e função materna, ou função de apoio ou de narcisação têm hoje uma flexibilidade que é distinta da família de antes”.

1 &— A partir da sua clínica, você concorda com esta afirmação de Viñar?

2 &— Que conseqüências podemos tirar dessa sua afirmação?

3 &— Voltando à formação, como estas questões vêm sendo tratadas na nossa Sociedade e o que se pode fazer em sentido mais amplo para dar conta de nossa ignorância?

Regina: A clínica nos leva a pensar, como eu dizia anteriormente, que precisamos pesquisar e conhecer melhor questões de comunicação e linguagem usadas por nossos pacientes. Seria frutífero dialogar com antropólogos, sociólogos, comunicadores e educadores, profissionais que pensam a subjetividade, pois isso possibilitaria a ampliação da compreensão de como estas novas formas de expressão interferem na construção das novas representações.

Ana Cristina: Falando de computação, blogs, Msn, relações virtuais, bocas, acho que quando temos filho adolescente começamos a entender um pouco mais essas questões, mas acho importante a postura que se assume frente aos novos relacionamentos humanos e formas de comunicação. Como dizia antes, a princípio não sou contra; são só formas diferentes e muitas vezes também carregam em si possibilidades de encontros genuínos.

Um dia fiz uma viagem de ônibus ao lado de uma pessoa que não parava de falar. Eu ia de São Paulo para Araçatuba e ela já vinha de João Pessoa. Lá por Bauru, pensei que não tinha jeito, era melhor conversar. Soube, então, que ela vinha da Paraíba para conhecer uma família com quem vinha se correspondendo pela internet e acabaram encontrando uma série de afinidades. Juntou dinheiro, as férias e veio. E, de fato, havia uma família esperando por ela na rodoviária quando chegamos.

Adorei essa entrevista de Viñar. Ele diz que alguém aprende não porque lhe ensinam, mas porque está em atitude de aprender e eu concordo inteiramente. A gente está aprendendo o tempo todo, basta procurar e não estar bloqueado, não deletar a princípio uma relação que está para acontecer.

Regina: Existe um jogo chamado Second life, onde você projeta una vida virtual. Você escolhe casa, filhos, enfim, monta uma vida onde as pessoas conversam entre si pelo computador. Há o relato de um rapaz cuja mulher, com quem ele está interagindo, está grávida, e ele nem tem a curiosidade de saber quem é esta pessoa que participa com tanta intensidade de sua vida virtual. Ela tem uma vida? É casada? Tem filhos? Poderíamos colocar a vida real como first life? Que representações são essas que vão se criando em termos de vínculo?

São essas pessoas, entre outras, que falam “vou beijar uma boca hoje na balada” que chegam ao consultório para conversar.

Leda: Vocês falam de aspectos diferentes de uma mesma questão.

É muito interessante quando Ana Cristina diz: “Ela vem para encontrar uma família” e a paciente da Regina diz: “Vou beijar uma boca”. Neste segundo caso, não é mais uma pessoa que está dentro de uma organização. É uma boca apenas.

Neide: Apesar deste esfriamento das relações temos recebido, em nossos consultórios, pacientes em busca de acolhimento. O desprezo aparente por relacionamentos de intimidade tem ocultado o desejo e a necessidade de construir vínculos estáveis e profundos. A secretária eletrônica nem sempre é aceita. O paciente se ressente quando não é pessoalmente atendido, quer um lugar que lhe seja familiar, precisa de escuta.

Estamos observando o desejo das pessoas de encontrar parceiros e as barreiras que impedem a construção e continuidade do vínculo. Precisamos mesmo juntar experiências, compartilhá-las, promover encontros para pensarmos sobre os frutos, ora saborosos, ora azedos, de nossa época e cultura.

Débora: Alguém falou que somos analistas com aquilo que a gente é e não com o que a gente sabe. Penso que realmente o maior perigo é querer ser analista com o que sabemos. Não sabemos nada diante da singularidade de uma pessoa que chega para nós!

Tenho a impressão de que este desamparo e essa dor de não saber são muito difíceis para nós como analistas. Por isso, acho que análise pessoal é o segredo do negócio. A análise livre é a melhor escola do analista, por ser o lugar de maior liberdade e também onde a gente pode se desesperar e buscar saídas. Temos, sim, que estar contemporâneas e conversar, não se fechar. Mas penso que vamos levar a vida toda aprendendo. Fazer alguma coisa já é bastante. Penso assim.

Ana Cristina: Acho que vai levar a vida toda e as que estão por vir...

Comecei a escrever um texto que falava de diferenças de linguagens. Por mais que nos imaginemos treinados como alguém que sabe um pouco, o tempo inteiro me vejo na situação de ser surpreendida, porque falamos de um lugar distante daquilo que imaginávamos.

Tenho experiência de estar entre jovens bem marginais, mesmo, garotos de dezessete, de quinze anos, ligados ao tráfico de drogas. Outro dia eu conversava com eles sobre minha expectativa de vida, de não querer viver muito. Um deles me perguntou: “Ô Ana, quantos anos você tem?” “Quarenta e um”, respondi. Ele disse: “Já era...”. Naquela hora, por mais que eu, com mais de dez anos de convívio entre garotos onde a expectativa de vida já é baixa, tenha me surpreendido, acreditei que podia abarcar o conhecimento que estava tendo diante do mundo.

Recentemente vivi outra situação patética.

Lá na instituição, alguns casos podem vir a ser encaminhados para psicoterapia. Uma terapeuta me telefonou avisando que ia se atrasar para o atendimento e pediu para eu avisar o garoto. Cheguei para ele e disse: “Tua terapeuta ligou e disse que está presa no trânsito”. Ele nem me deixou acabar de falar e se desesperou, gritando: “Não! Ela, não!!! Presa....”.

Neide: Falávamos do desamparo do analista e de sua capacidade negativa em relação ao saber. Nosso encontro aqui, hoje, me parece interessante como um bom objeto para nós analistas &— mesmo que tenham sido levantadas questões para que nem de longe tenhamos arranhado respostas, mas levantaram-se algumas poeiras e incômodos que provavelmente nos desinstalem da posição de platéia para ocuparmos nossa posição no time que promove o pensar. Em algum sentido, de alguma maneira cumprimos a função para a qual fomos convocados, pois tivemos oportunidade de nos nutrir das experiências e da riqueza do encontro para novas reflexões e propostas.

Leda: Há muitos anos tive oportunidade de receber um menininho cujo atendimento me ocorre agora.

O garoto tinha seis anos e sua mãe me conta que seu nome ia mudar. Ela havia sido casada com um homem bem mais velho e, enquanto ainda estava com ele, engravidou de um antigo namorado. Mesmo sabendo que o filho não era dele, pois nem transavam mais, este homem registrou-o como tal, até porque, na posição que tinha, não poderia jamais ser filho de outro. O garotinho foi crescendo e virando a cara do pai biológico. Foi na época em que começaram a surgir os exames de DNA. O pai biológico, se antes não queria saber do filho, agora passa a exigir um exame e a paternidade do menino. Então, o garoto, que estava inclusive sendo alfabetizado, que tinha um nome alemão e passava as férias na Europa com familiares daquele homem que já nem era mais marido da mãe, teve que mudar de nome.

Na primeira vez que nos vimos, este garoto, que não estava entendendo nada, fez um desenho: uma árvore que tinha abacaxi, uva, limão, banana. Achei muito interessante.

É um caso que aponta para o que estamos falando aqui, hoje.

Regina: Temos uma idéia de ordem, quanto à formação familiar, com diferenças de gerações, de sexos, de pais e filhos. Temos internalizado um modelo de família vertical. O que percebemos, na atualidade, é que a característica &— será que é desordem? &— mudou. Os modelos se ampliaram, há uma diversidade de formas.

Agora falamos do casamento seqüencial ou segundo casamento. Há um pai com quem a criança mora e o pai biológico. Há a mulher do pai... Ainda não foram cunhadas no vocabulário palavras que nomeiam os novos integrantes do grupo familiar que estão surgindo a partir dos recasamentos. Por exemplo, para se referir à madrasta, os filhos do pai falam “a mulher do meu pai”. Da mesma forma, os filhos da mulher falam “o marido da minha mãe”. Essa é uma forma significativa de nomeá-los: é como se a relação só tivesse a ver com o pai ou a mãe, e nada a ver com eles enquanto filhos.

Beatriz: Fico pensando assim: a criança tem um monte de avós mas ao mesmo tempo não tem. Acaba não tecendo a história, não tendo a narrativa. E é isso que vai dar um sentido.

Noutro dia estava ouvindo sobre diferentes orfandades, conforme a narrativa. É muito diferente um orfanato onde as crianças são filhas de heróis de guerra que morreram e dos quais se orgulham e um orfanato em que todos têm vergonha de onde vieram, do pai preso, ou desconhecido morto.

O orgulho das próprias origens é o lado positivo das questões narcísicas, sobre as quais precisamos pensar.

Débora: Para complementar o que a Bia falou: essas mulheres que têm filhos através de óvulos doados, por exemplo, na maioria preferem o segredo, talvez porque se envergonhem da própria biografia. O dia em que a gente, como sociedade ou como analista, for legitimando que não é feio, que somente pôde ser desse jeito, não é grave nem louco, então vai haver lugar para o segredo vir à luz e ser publicado assim. O segredo é também decorrente da cultura.

Regina: Falando de biografia, essa figura do avô também mudou. A casa da avó era o lugar das histórias familiares que se teciam e iam ajudando a criança a constituir a identidade mais ampla, ou da rede familiar, os almoços de família. Isso também está mudando.

Neide: Estava me lembrando de Bion, quando nos alerta que a verdade é para a mente o que o alimento é para o corpo, salientando a importância de se ter uma história e enriquecê-la com as experiências, aprendendo com elas...

A função do analista está justamente no comprometimento com a verdade. Quando as ilusões e invenções tomam o lugar da verdade, o indivíduo se vê aprisionado. Então, como Freud nos sugere, temos que trabalhar na escultura muito mais do que na pintura, ajudando nossos pacientes a se livrarem dos excessos, inclusive transgeracionais, que carregam.

Como analistas, temos que estar o tempo todo lembrando que a verdade é o que liberta, e assegurar esse espaço de interioridade para que a ilusão e o artifício não a substituam, apenas complementem.

Ana Cristina: Acho que a verdade é a verdade do tempo, como a Débora falou. Na hora em que se puder ver a verdade, que aquela mãe é mãe deste jeito, o tempo a legitima.

Estamos vivendo um tempo intermediário, somos parte dessa estrutura onde as relações são verticais. Quando falamos do garoto que precisa ser acompanhado até a porta da escola é porque ele vai aprender com os adultos. Isso não se faz em relações horizontais, que carecem de hierarquia, atemporais. As construções são verticais.

Leda: Isso destrói a capacidade de construção da criança.

Ana Cristina: Temos de dizer que a criança vai entender isso quando for mãe, ou avó. Isso é muito verdadeiro.

Existem coisas que passam a ser possíveis com o passar do tempo e isso não pode ser apressado. Existe “enteado”, mas não existe nome de mãe cujo filho não veio dela. Vai existir, sim. Vai ter nome essa mãe que gera através do óvulo doado. Vai haver o tempo para essas coisas, mas a gente não tem a menor noção de quando vai chegar.

Jornal: Chegamos ao final de nosso debate, que foi bem rico, e em nome do Jornal, agradecemos novamente a todos pela participação.

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