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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. v.40 n.42 São Paulo jun. 2007

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

Ter filhos é o mesmo que ser mãe?1

 

Is having a child the same as becoming a mother?

 

¿Tener hijos es lo mismo que ser madre?

 

 

Maria Elisa Pessoa Labaki*

Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autora pretende interrogar quais as condições de possibilidade para a emergência do desejo de maternidade na mulher. A teorização freudiana sobre a sexualidade feminina afirma que o desejo de ter filhos é uma espécie de sintoma que substitui a inveja intolerável do pênis. Nesta teorização de teor patologizante a feminilidade surge assimilada à neurose histérica. Nela não há espaço para o erotismo feminino que não inclui o desejo de ter filhos, nem a maternidade escaparia à lógica falocêntrica que governa as concepções sobre a falta de pênis. O que pensar sobre o desejo por filhos que não resulta de operações psíquicas comprometidas a restaurar o narcisismo ferido da criança invejosa que sobrevive na mulher? Neste caminho, a autora associa maternidade com interioridade e experiência de perda, condição de um modo interior de ser separado do outro. Mais a ver com perder filhos do que tê-los. Com separação, mais que união.

Palavras-chave: Feminilidade, Falo, Maternidade, Interioridade, Separação.


ABSTRACT

What are the necessary conditions for the arising of women’s desire to be a mother? According to Freud’s theory on women’s sexuality such desire is a kind of symptom that replaces the unbearable envy of the pennis. This kind of pathologizing theory relates femininity to hysterical neurosis. It considers feminine eroticism as necessarily related to the desire of giving birth to a child. In this context, motherhood is linked to a pholocentric logic which emphasizes the idea of the lack of pennis. Is there a desire of giving birth to a child that is not related to the restauration of the wounded narcisism of the child? Hence, the author relates motherhood to an inner self knowledge and experience of loss &— to an experience that is closer to loosing children than to having them; closer to separation than to bonding.

Keywords: Femininity, Phallus, Motherhood, Separation.


RESUMEN

La autora pretende interrogar quales son las condiciones para la aparición del deseo de maternidad en la mujer. La teoría freudiana a propósito de la sexualidad feminina afirma que el deseo de tener hijos es un especie de síntoma que substitue la envidia intolerable del penis. En esa teorización, de teor patogizador, la feminidad surge asimilada a la neurosis histérica. En ella no hay espacio para el erotismo femenino que inclua el deseo de no tener hijos, ni la maternidad escapa de la lógica falocéntrica que gobierna las concepciones sobre la falta del penis. ¿Que se puede pensar acerca del deseo de tener hijos que no resulte de operaciones psíquicas comprometidas con la restauración del narcisismo herido del niño con envidia que sobrevive en la mujer? La autora asocia maternidad con interioridad y experiencia de pérdida, condición para un modo interior de separarse del otro. Algo que tiene más que ver con la perdida de los hijos que con tenerlos. Con separación, mas que con unión.

Palabras clave: Feminilidad, Falo, Maternidad, Interioridad, Separación.


 

 

Há algum tempo venho refletindo sobre o tema da maternidade. Maternidade. E não gravidez. A diferenciação é necessária, uma vez que os dois estados se distinguem, não apenas em relação ao tempo em que se processam, mas em relação à natureza de cada um. Sugiro a idéia de que não há resolução de continuidade, mas uma cisão entre gestação e exercício da maternidade. Experienciado após o parto, na maioria das parturientes, o estranhamento da mãe em relação ao bebê pode ser compreendido enquanto expressão de tal cisão. Por mais eficiente que a gravidez seja enquanto preparação para o exercício da maternidade, nada como o parto para desestabilizar. Depreende-se desta ruptura que o desejo que anima uma mulher a engravidar nem sempre é da mesma natureza daquele que a manterá interessada, dedicada e atenta a seu bebê. Uma autora pouco conhecida, Margarete Hilferding, contemporânea de Freud, em um trabalho de 1911 intitulado “Sobre as bases do amor materno”, ousa afirmar, em sua metapsicologia da sexualidade da grávida, que o feto provoca sensações de prazer na mãe, cujas excitações teriam seu término com o parto. A imagem de plenitude narcísica difundida em relação à gravidez encontra nesta hipótese mais um representante. Há gestantes, por exemplo, que não desejam ser anestesiadas a fim de conservarem a sensibilidade orgástica, presente, segundo alguns depoimentos, durante a expulsão do feto no parto natural. De fato, o poder de gerar vida dentro de si mesma, de ser dois num só corpo, pode ser vivido por algumas mulheres como ápice da vivência narcísica. “A gravidez é um parêntese na vivência da falta”, escreveu Tereza Pinheiro (1991) em seus comentários sobre a conferência que mencionei de Hilferding (1911/1991).

Acontece que esta posição acima carrega em seu bojo o ideal falocêntrico, que fundamenta a teorização freudiana mais conhecida em torno do erotismo feminino, sobretudo no que concerne ao desejo das mulheres de terem filhos. A proposta que introduzirei neste artigo, e que é fruto de uma pesquisa mais ampla sobre o tema do Materno, que venho desenvolvendo no âmbito do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre o Feminino do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, propõe que a maternidade pouco ou quase nada comporta do desejo de engravidar, ou de ter filhos, considerado nos termos narcísicos e falocêntricos, até então difundidos.

Não estou com isso discordando da suposição de que a gravidez pode ser vivida como um triunfo narcísico. Ao contrário; sim, pode, se o foco do processo for o eu narcísico. Ocorre que, a partir de uma perspectiva, a maternidade, sob uma determinada óptica, não se realizaria pela via do narcisismo. Enquanto investimento no devir e no exercício permanente de diferenciação, a maternidade precisa perder. Se, como afirma Freud (1915/1976), a descendência é uma das poderosas formas de homens e mulheres buscarem satisfazer seu narcisismo frustrado infantil, a maternidade, para acontecer, solicita um esforço contrário, de despreendimento de si. Isto é, de separação de um ideal projetado no bebê que reflete as ilusões narcisistas da mãe e suas representações de filha ideal. Se a gravidez mantém a simbiose de um corpo para dois e o parto faz a ruptura, então, com o nascimento, mãe e filho precisam, cada um a sua maneira, se haver com a imposição da separação e o apelo que faz para a diferença, alteridade.

O esforço de separação presente na vivência da maternidade, que procuro formular, encontra em uma proposta de Piera Aulagnier (1985/2001) apoio teórico interessante. Diz ela ser necessário que a mãe separe do corpo real do bebê o representante pré-forjado em sua mente durante a experiência gestacional. O trabalho aqui refere-se à necessidade de dar vida ao bebê real, por um lado, separando-o do bebê imaginado, mas por outro apoiando sua existência exatamente na representação imaginada dele. A separação aqui é “... o complemento necessário para estabelecer um estado de união entre o bebê imaginado e o real” (p. 143).

No entanto, nosso problema se verifica quando tomamos a trajetória da sexualidade feminina em Freud. Por que as mulheres querem ter filhos? A resposta a esta pergunta é delineada em um trabalho de 1917, mas encontra o apogeu para sua teorização em 1933, em um conhecido trabalho sobre feminilidade. Ocorre que toda a trama explicativa que Freud desfia acerca do motor e fonte do desejo feminino de ter filhos concebe a relação da futura mãe com seu filho como a de uma credora com seu banco. Beneficiária que é de uma espécie de gratificação narcísica por um antigo débito que a natureza-mãe tem com ela: não tê-la feito homem.

Nota-se que esta teorização de Freud em torno de desejo de ter filhos entra em conflito e se choca com a formulação anterior de que a maternidade solicita um esforço de perda narcísica e investimento no objeto. Não de ganho! Para encaminhar este impasse teórico, optei primeiro por realizar um percurso nos textos freudianos sobre sexualidade feminina, nos quais explicita sua posição a respeito do desejo da mulher de ter filhos. Em seguida, proponho uma reflexão sobre a experiência de perda do filho, do falo, da ilusão narcísica como condição de possibilidade para a emergência da mãe na mulher. Veremos, então.

 

Meninas e bonecas

A boneca é minha. Não, é minha. É minha!! E as meninas, então, começam a brigar para decidir, pela força, de quem é a boneca. Aquela que vencer terá reassegurada sua posse e o triunfo pelo poder alcançado. Ter posses e poder, apoderar-se de coisas, guardá-las, colecioná-las, aprisioná-las. Sentir-se em vantagem, especial, prenhe de ótimas ofertas, forte, onipotente e luminoso. Conhecidos como traços de caráter, estados da libido infantil como estes tingem o jeito de ser do sujeito adulto. Estilos mais anais, fálicos, orais ou genitais desenham os movimentos por meio dos quais a libido se orienta investindo os objetos, mais ou menos parcialmente, segundo o grau de fixação e regressão. Por exemplo, a criancinha, em quem predomina uma tendência anal, gosta de prender sua aranha no vidrinho e sentir o domínio da situação. Gosta também de puxar o rabo do gato e ver que sua ação desencadeia efeitos imediatos, causando comoção no felino. Aquela cuja oralidade mostra-se proeminente escraviza os pais demandando cada vez mais indiferenciação em relação a eles. E a criança fixada na fase fálica poderia tornar-se uma consumidora de videogames, outros objetos de consumo, ou desenvolver fobias, por exemplo. Tudo isso podendo mais tarde, em maior ou menor grau, ser arrastado para a vida adulta e permear as formas de o sujeito se relacionar com suas moções de desejo &— contidas e limitadas pelos diques que impõe a realidade do outro, subjetiva, material ou moral. Como lembra Abraham (1921/2005) em um de seus claros exemplos, a criança que foi obrigada a educar-se no exercício de defecação, antes que estivesse preparada para isso, poderá tornar-se um adulto dócil, e que obedece a ordens, não porque ama, mas porque teme seus educadores. Temor este que poderá ser deslocado para seus pares, levando o sujeito ao isolamento.

Esta breve introdução, sobre o mérito dos investimentos libidinais na infância, tem como função reproduzir a atmosfera teórica freudiana a fim de preparar a reflexão em torno das formulações sobre as condições de possibilidade de emergência, na mulher adulta, do desejo de maternidade segundo Freud. Sabe-se que um dos maiores legados freudianos entrelaça a teoria psicopatológica de formação das neuroses com a conceituação sobre o campo da sexualidade infantil, incluindo, sobretudo, a teoria da libido e suas fases pré-genitais. Tardiamente formulada (Freud, 1923/1976d), é a autocracia da fase fálica no intercurso do complexo de Édipo, que carrega o tributo pelo desejo das mulheres de terem filhos. Originada na forma de teoria sexual infantil &— de onde vêm os bebês? &—, a descoberta pela criança de que a mãe carrega filhos dentro de seu corpo, ainda que nasçam pelos intestinos, permite que a castração desta seja, enfim, percebida pela criança. E seu ventre cheios de bebês visto como compensação pela falha.

Mas é no texto de 1925 “Algumas conseqüências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos” que o desejo de ter filhos surge associado à inveja do pênis, como um sintoma mesmo dessa dor intolerável, e se transforma em emblema fálico deslocável por entre representações que compõem a dimensão erótica feminina. Nesta posição, não há como negar uma tendência a patologizar o desejo de ter filhos.

 

A mulher, a inveja e seu ressentimento vitalício

De fato, a teorização mais tardia freudiana em torno da sexualidade feminina (Freud, 1931/1976e, 1933/1976) parece fazê-la coincidir com a neurose, especialmente com a histeria, no que concerne a sua visão mais estrutural em torno do complexo de castração e inveja do pênis. Isto é, o drama da menininha rumo à construção de sua sexualidade adulta passaria pelo impacto traumático da visão de uma falta real em seu corpo, o pênis que não está lá, e pela vivência de desapontamento profundo em relação à mãe, responsabilizada por ela por tê-la feito incompleta, despossuída. E, no fim das contas, a visão da mesma falta na mãe, bem como a universalização de tal percepção como característica das mulheres, induziria a menininha a crescer sentindo-se parte de um grupo inferior e odioso. Daí operando um sentido de desqualificação das mulheres, na medida em que repercute nela o ódio que sente pela mãe, descoberta, a um só tempo, incapaz e castrada. Portanto, determina Freud, no interior deste quadro de ódio à mãe, três destinos se abrem para a sexualidade feminina: a inibição neurótica, a masculinização e a reversão da libido para o pai com o concomitante desejo de receber filhos dele. Esta última configurando o que ele chamou de atitude feminina normal (Freud, 1933/1976).

A crítica que faço, junto com diversos autores (Badinter, 1985; Kehl, 1998; Sigal, 2002), em relação a esta posição da teorização freudiana, é que ela conserva a mulher em um estado de ressentimento vitalício, cujas vicissitudes vão determinar quaisquer escolhas que faça, tanto aquela considerada neurótica, quanto a normal. Será, enfim, responsável por todo um estilo feminino de ser. Mais facilmente transgressoras, narcisistas e inseguras &— uma vez que nada têm a perder, pois já perderam &—, se a mulher se torna neurótica, inibida ou frígida, é porque seu sentido de inferioridade sexual não permite a ela se entregar e desfrutar sexualmente da experiência de ser penetrada por um homem. Se, diferente, ela escolhe mulheres para amar, é porque se identifica com o pai e recusa aceitar o relacionamento objetal sob o regime das diferenças sexuais, mantendo-se infantil numa relação narcísica que repete a sua primeira relação homossexual de amor com a mãe. E, por fim, se ela finalmente escolhe entregar-se aos homens, e ter com eles filhos, é porque conseguiu ver neles a figura paterna que irá preenchê-la com o substituto para aquilo que a mãe, por estar submetida ao mesmo mal, não pode sanar.

Ou seja, não há, na última acepção freudiana sobre a sexualidade feminina, espaço para a mulher que não deseja ter filhos sem que seja homossexual. Tampouco o desejo da mulher por um homem, com quem possa ter filhos, traduz o investimento de amor objetal segundo o regime das diferenças sexuais. Nada além do final da linha, o desejo feminino é o que sobra diluído nos deslocamentos da libido narcísica da mãe para o pai, deste para o pênis, do pênis para o filho... Nada de errado com a noção de inveja do pênis. Apenas que possa ser reformulada levando-se em conta sua efemeridade à luz do feminino que não sucumbiu à onipresente histericização.

Mas, antes de prosseguirmos nas articulações entre sexualidade feminina e desejo de maternidade, é preciso um aparte em relação ao lugar e utilidade na teoria da noção de falo. Embora a hegemonia em torno da ausência ou presença do pênis não soe mais tão bem - e este artigo é exemplo &—, a meu ver, a noção de falo continua operativa em relação a determinados achados clínicos e psicopatológicos. O falo, poucas vezes nomeado por Freud, mas apropriado por Lacan para o lugar de significante da falta primordial que atravessa a condição humana, e que coexiste à linguagem enquanto enunciação de desejo, continua tendo o seu mérito conceitual, uma vez que opera um deslizamento da noção de falta para além da imagem do pênis. Em outras palavras, é um conceito que propõe desencarnar do órgão genital masculino a marca da presença/falta. Faço este aparte porque, embora eu me alinhe com tendências atuais da psicanálise, que criticam o falocentrismo, continuo encontrando utilidade nesta noção aplicada à prática clínica, principalmente com os casos de histeria.

Nosso próximo passo, então, incluirá, primeiro, uma discussão um pouco mais detalhada a respeito do desejo de ser mãe, ainda sob a óptica falocêntrica da inveja do pênis. Depois, introduziremos uma outra posição de Freud (1917/1976g), não muito lembrada mesmo por ele, que versa sobre o desejo de maternidade quando os determinantes de uma neurose estão ausentes, em que a inveja do pênis não se mostra participativa. É curioso como esta acepção manteve-se em um lugar de discrição nos meandros da teorização freudiana sobre o erotismo feminino. Talvez Freud (1923/1976d, 1924/1976b, 1931/1976e, 1933/1976c) estivesse deveras entusiasmado com as repercussões da teorização acerca da fase fálica e das relações primárias de objeto mãe/filha, a ponto de ter deixado de lado o caminho da teorização sobre o erotismo feminino não-neurótico.

Formulada em 1917, no texto “As transformações do instinto exemplificadas no erotismo anal”, esta discreta concepção interessa aqui porque propõe uma outra saída, nem tanto regressiva, nem puramente narcísica, para o erotismo feminino, e que não se encaixa nos parâmetros do funcionamento histérico. Silvia Alonso e Mario Fuks (2004), em seu livro Histeria, dão destaque a esta parte perdida da teorização freudiana sobre a sexualidade feminina.

 

A maternidade sob a óptica infantil e falocêntrica

Como já mencionado, a teorização sobre a sexualidade feminina desenvolvida na década de 30 estabelece que a maternidade é uma conquista da mulher normal que aceita sua condição de castrada, que, não obstante, trabalha para obter uma espécie de prêmio de consolação (Kehl, 1998) pela falta do pênis. Qual seja: primeiro ganhar do pai um filho, depois obtê-lo do homem. Desejo este que, para Freud, corresponde à etapa mais avançada de subjetivação da sexualidade feminina na mulher. Iniciada com o abandono da identificação com a mãe fálica, que caracteriza a posição masculina na filha mulher, o desejo de gerar um filho traduzir-se-ia como o emblema de feminilidade. No interior de operações simbólicas inconscientes, que mal se distinguem no psiquismo, e que fazem equivaler fezes, bebê, dinheiro (Freud, 1917/1976g), o filho teria para ela o estatuto de uma justa compensação por sua inferioridade orgânica (Freud, 1923/1976d, 1924/1976b, 1925/1976a, 1933/1976c). Diz Freud que as mulheres “compreendem que a natureza dá bebês a elas como substitutos para o pênis que lhes negou” (Freud, 1917/1976g, p. 161). E em outro momento afirma que “a renúncia ao pênis é tolerada mediante uma tentativa de compensação: desliza do pênis para o bebê” (Freud, 1924/1976b, p. 223). É o mesmo que dizer que o homem dá a ela filhos tentando reparar a ferida narcísica aberta com a percepção da ausência de pênis.

Nota-se que tal concepção freudiana acerca da origem do desejo na mulher por filhos ressalta sua porção narcisista que apela para um restauro no eu. Espécie de formação de compromisso entre o instinto de preservação da espécie e o pulsional narcísico, o desejo por filhos corresponde a um sintoma histérico, expressão do retorno deslocado para o filho do desejo recalcado da menininha de portar o pênis. Assim, sexualidade feminina surge alinhada e assimilada à histeria (Alonso & Fuks, 2004).

Do ponto de vista da variedade e riqueza com que se revestem as manifestações do sintoma, o desejo de ter filhos sugere também configurar uma busca pelo objeto-fetiche. Isto é, se ter o filho é a prova de que a percepção sobre a falta estava errada, ou, ao menos, de que pode ser driblada, mediante a presença de um substituto obliterante, então a premissa de castração perde temporariamente seu efeito e a mulher grávida que carrega seu bebê no ventre é elevada ao estágio de completude narcísico/fálica (Pinheiro, 1991).

Na minha opinião, o desejo de ter filhos, pela óptica falocêntrica e segundo as leis do narcisismo, tal como realçado nesta vertente da teoria freudiana, traduz o predomínio de uma organização sexual feminina que, ou não prosseguiu para além do estágio fálico, ou a este período regrediu. Implica pensar numa sexualidade feminina que não alcançou a organização genital adulta. Presa na ordem do falo, é para sanar a falta de completude que este filho foi concebido. Sob o domínio de portar (ter) o falo, simultaneamente a ser o falo do filho, a maternidade assim determinada busca completude, tornar-se, finalmente, una. De fato, sabemos que algumas depressões no pós-parto repercutem a dimensão de dor narcísica ocasionada pela perda do filho. “Perda da ilusão de completude e do gozo sem mediação da gravidez” (Pinheiro, 1991, p. 123), o parto recolocaria a mulher fixada no estágio fálico frente a frente com sua castração não elaborada.

Portanto, podemos concluir sem hesitação que, embora histeria e sexualidade feminina não tenham sido por Freud alinhadas de forma explícita, em seus textos mais conhecidos sobre o tema, é em relação à função que cumpre o desejo de ter filhos na histeria que Freud está se referindo. Não ao desejo feminino de ter filhos e ser mãe. Afinal, qual o destino da sexualidade feminina, e qual o lugar reservado à maternidade, nos casos em que os determinantes de uma neurose estão ausentes?

 

Maternidade: separação, interioridade

O que pensar sobre o desejo por filhos na mulher que atingiu a organização genital adulta? De que desejo se trata neste em que a busca pelo filho não resulta de nenhuma operação psíquica comprometida a restaurar o narcisismo ferido? Isto é, como conceber este desejo segundo a lógica da diferença sexual, que enxerga o órgão sexual feminino, e todos os deslocamentos daí decorrentes em relação à feminilidade, não como algo diminuto ou inferior, mas enquanto positividade? Como conceber o desejo por filhos que não se encaixa na lógica da posse, mas naquela que privilegia o amor objetal e as relações de troca? Que desejo é este que se produz por uma falta que não traduz a perenidade da inveja infantil? Enfim, estamos diante de questões que, a despeito de despatologizarem o desejo por filhos, não são comumente interrogadas.

No texto de Freud de 1917, o desejo da mulher não-neurótica terá como projeto construir uma relação objetal com um homem, em que a alteridade seja considerada, não só em relação às diferenças sexuais, mas, também, em relação à possibilidade de a libido investir um objeto total. Em poucas palavras: o desejo da mulher é por um homem. E Freud complementa dizendo que, quando o desejo por filhos emerge, o desejo infantil de possuir o pênis surge apenas como um “reforço libidinal inconsciente” (p. 162). Se quisermos traduzir esta espécie de desejo na linguagem do falo, ainda que para negativizá-lo, não se trata aqui de desejar um homem para preencher-se, em sua falta narcísica, mas de suportar viver sabendo que ninguém poderá suplantar tal falta porque ela só existe na medida em que se acredita ter alguém para endereçá-la. Nestes casos, surpreendentemente, a mulher não se casa com a mãe, mas com um homem, outro, estrangeiro e desconhecido. E, dentro do leque de possibilidades que se abre com o regime de trocas com este outro, a maternidade poderá, ou não, ser uma das vias do erotismo em direção a ele. O pênis do homem, por sua vez, será agora elevado ao posto de objeto intercambiável, passível de ser encaixado no espaço côncavo da mulher para a obtenção do prazer genital a dois, segundo o regime de mutualidade, reciprocidade. Aqui, dá-se a passagem do amor narcisista para o objetal. A mulher deseja ter prazer com o homem e não obter o prazer do homem.

O erotismo feminino, que inclui o desejo de ser mãe nos moldes que acabo de apresentar, revelaria um trabalho que poderíamos chamar de trabalho do feminino. Na medida em que resultaria de uma tendência em acolher a perda, sim, não como falta recalcada, recusada ou ressentida, a ser ressarcida, mas como condição de existência de um modo interior de ser separado do outro para todo o sempre. Assim construída, a maternidade teria mais a ver com perder filhos do que com tê-los. Com separação mais do que com união. E se incrementa na medida em que se organiza enquanto posição na perda, dando à mãe possibilidades de, com a separação, identificar-se com o bebê.

Embora a passividade esteja aí subsumida na posição feminina, não diria que predomina. Ser mãe, e isto sabemos com Freud, pressupõe o exercício ativo de sedução, fundamental, sem a qual não aconteceria a necessária subversão do corpo biológico em erógeno. Tampouco, a sobrevivência do bebê, desaparelhado que é quando nasce para seguir independente. A posição depressiva está aqui implícita e cria na mãe a condição de possibilidade para sua doença, belamente descrita por Winnicott (1956/2000): preocupação materna primária, estado ativo de devoção receptiva e sensibilidade exacerbada da mãe identificada com o bebê de que cuida.

A espera de um filho, durante a gravidez, bem como o investimento de desejo no filho que será adotado, deveria dotar a mãe com esta capacidade de perda da imagem ideal do bebê, sem a qual a criança não se subjetivaria. Não havendo subjetivação, tornar-se-ia, na melhor das hipóteses, um simulacro da psicopatologia materna. Assim, mãe devotada é aquela que se esquece e deixa nascer um projeto de alteridade.

Para finalizar, uma nota sobre a amplitude do que pode ser abarcado no interior do tema do Materno. Se a maternidade guarda relações estreitas com o trabalho do feminino, ela não seria um estado privilegiado da mulher. Mas, sim, uma condição que poderia instalar-se no homem, no contexto das homoparentalidades, e, ainda, noutros espaços de reverberação do pulsional, como a clínica psicanalítica.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Maria Elisa Pessoa Labaki
R. Simão Álvares, 936 &— Pinheiros
05417-020 São Paulo, SP
Fone: (11) 3031-9764
E-mail: mpessoa@uol.com.br

Recebido em: 31/05/07
Aceito em: 14/06/07

 

 

* Psicóloga, psicanalista, mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae; professora do Curso de Psicossomática do mesmo Instituto; autora do livro Morte, São Paulo, Casa do Psicólogo, 2001 (Coleção Clínica Psicanalítica).
1 Versão modificada de trabalho apresentado na II Jornada Temática - “Interlocuções sobre o feminino: na clínica, na teoria, na cultura”, organizado pelo Grupo de Estudos e Pesquisas sobre o Feminino e o Imaginário Cultural Contemporâneo, coordenado por Silvia Leonor Alonso, do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Em São Paulo, Instituto Sedes Sapientiae, nos dias 25 e 26 de maio de 2007.

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