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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. v.40 n.42 São Paulo jun. 2007

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

Contendo angústias familiares: mediações metafóricas em intervenções diagnósticas grupais com crianças e pais1

 

Containing family anxieties: metaphoric mediations in an assessment group intervention with children and parents

 

Conteniendo angustias familiares: mediaciones metafóricas en intervenciones diagnósticas grupales con niños y padres

 

 

Mariângela Mendes de Almeida*,I; Silvia Venske**,I; Conceição Aparecida Nazareth**,I; Luciane Faccini**,I; Ida Bechelli**,I; Mary Lise Moysés Silveira***,II; Marcílio Sandoval Silveira****,I

I Setor de Saúde Mental do Depto. de Pediatria da Universidade Federal de São Paulo
II Membro Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Reflete-se aqui sobre o acolhimento e escuta de angústias familiares contemporâneas, através da recepção de crianças e pais numa abordagem psicodiagnóstica interventiva grupal. Favorecendo a investigação, intervenção e encaminhamento, tal recurso facilita a promoção de saúde mental da criança e da família. Integram-se os referenciais da tradição psicanalítica grupal ao trabalho psicodiagnóstico numa vertente interventiva. Enfatizamos as mediações metafóricas proporcionadas pelos instrumentos projetivos utilizados, destacando sua função de condensação de aspectos expressivos quanto às dinâmicas expostas pelos pais e crianças, e seu potencial lúdico como comunicação e como facilitadores na transmissão de nossas indicações terapêuticas. Exploramos a interligação entre o expresso no Grupo de Crianças e no Grupo de Pais, enfatizando o quanto este exercício pode facilitar a compreensão da constituição subjetiva dos pais e filhos que nos procuram, e a continência das angústias familiares, além de contribuir para o desenvolvimento de um olhar relacional psicanalítico e do raciocínio clínico dos profissionais.

Palavras-chave: Angústias familiares, Mediações metafóricas, Psicodiagnóstico interventivo grupal, Saúde mental infantil, Olhar psicanalítico relacional.


ABSTRACT

This paper discusses the possibility of containing contemporary family anxieties through seeing children and parents in an assessment group approach. Such resource facilitates investigation, intervention and possible referrals, promoting the child and family mental health. Psychoanalytic group traditions are integrated to psychological assessment as an intervention. We emphasize the metaphoric mediations provided by the projective instruments used, especially regarding their function of condensing expressive aspects related to the dynamics exposed by the parents and children, and their potential, through play, as communication and as facilitators in the transmission of our therapeutic indications. We explore the interrelation between what is expressed in the Children Group and the Parents Group, emphasizing how much this exercise can facilitate the comprehension of the subjective constitution of parents and children that seek for our help and the containment of family anxieties, besides contributing to the development of a relational psychoanalytic view within professional training.

Keywords: Family anxieties, Metaphoric mediations, Assessment group intervention, Child mental health, Psychoanalytic relational view.


RESUMEN

Discutese aquí la posibilidad de acogimiento e escucha de angustias familiares contemporáneas a través de la recepción de niños y padres en una abordaje psicodiagnóstica interventiva grupal. Tal recurso se muestra efectivo en la investigación, intervención e encaminamiento en el ámbito institucional, facilitando la promoción de la salud mental del niño y de la familia. Integranse los referenciales de la tradición psicoanalítica grupal al trabajo psicodiagnóstico en una vertiente interventiva. Enfatizamos las mediaciones metafóricas proporcionadas por los instrumentos proyectivos utilizados, destacándose su función de condensación de los aspectos expresivos en cuanto a las dinámicas expuestas por los padres y niños y su aspecto potencial lúdico como comunicación y como facilitadores en la transmisión de nuestras indicaciones terapéuticas. Exploramos la interrelación entre lo expreso en el Grupo de Niños e en el Grupo de Padres, enfatizando lo cuanto este ejercicio puede facilitar la comprensión de la constituición subjetiva de los padres y hijos que nos procuran e la continéncia de las angustias familiares, además de contribuir para el desarrollo de una mirada psicoanalítica relacional y del raciocinio clínico de los profesionales.

Palabras clave: Angustias familiares, Mediaciones metafóricas, Intervenciones diagnósticas grupales, Salud mental infantil, Mirada psicoanalítica relacional.


 

 

Introdução

Como possibilidade de escuta e acolhimento a angústias familiares, uma das portas de entrada para o atendimento no Setor de Saúde Mental no Departamento de Pediatria da UNIFESP se dá através da realização de sessões de triagem e diagnóstico em grupos. Tal recurso vem se mostrando útil na investigação, intervenção e encaminhamento no âmbito institucional, facilitando a promoção de saúde mental da criança e da família.

Para a realização dos grupos, são utilizados referenciais advindos da tradição psicanalítica grupal, integrados às técnicas psicodiagnósticas numa vertente interventiva.

Faz parte do Setor de Saúde Mental do Departamento de Pediatria da UNIFESP o curso de especialização Psicologia da Infância, que, além de oferecer subsídios teóricos para os especializandos, busca inseri-los em atividades práticas que contribuam para a sua formação. Dentre as atividades realizadas no curso, os especializandos participam da realização dos Grupos de Triagem e Diagnóstico, integrados à equipe de profissionais responsáveis pela atividade. Os alunos têm participação ativa tanto no processo grupal junto aos pacientes, como nas discussões realizadas após os atendimentos.

Destaca-se aqui o potencial dessa atividade como oportunidade facilitadora do trabalho em equipe, do trabalho multiprofissional, e como recurso de trabalho conjunto para fins de ensino. Isso se dá pela diversidade de quadros clínicos apresentados e situações técnicas vivenciadas, pelo estímulo ao desenvolvimento do raciocínio clínico, incluindo a formulação e acompanhamento de hipóteses ao longo do processo, e o contato com o olhar psicanalítico, possibilitados pelas discussões semanais entre todos os envolvidos no atendimento.

O presente artigo inclui uma revisão dos aspectos históricos, fundamentação teórica e exposição sobre o processo dos Grupos de Triagem e Diagnóstico, com ilustração através de algumas vinhetas clínicas. Enfatizamos as mediações metafóricas proporcionadas por alguns instrumentos projetivos utilizados, com especial atenção ao Jogo do Presente Imaginário (utilizado com as crianças no momento de fechamento dos grupos). Destacamos aqui sua função de condensação de aspectos expressivos quanto às dinâmicas expostas pelos pais e crianças durante as sessões, e seu potencial lúdico como comunicação e como facilitador para a transmissão de nossas indicações terapêuticas.

Exploramos também a interligação entre o que é expresso no Grupo de Crianças e no Grupo de Pais, enfatizando principalmente o quanto este exercício pode contribuir para a continência das angústias familiares no atendimento a nossos pacientes e para o desenvolvimento de um olhar psicanalítico relacional e do raciocínio clínico de nossos alunos em formação.

 

Grupos diagnósticos infantis: contextualização e fundamentação teórica

O Setor de Saúde Mental da Pediatria na Escola Paulista de Medicina vem trabalhando com Grupos Terapêuticos de Crianças e Grupos de Pais com orientação psicanalítica desde 1962, sob a coordenação e supervisão da Dra. Mary Lise Moysés Silveira e Dr. Marcílio Sandoval Silveira.

É justamente nesta prática que encontramos a fundamentação teórico-prática para o desenvolvimento dos Grupos de Triagem e Diagnóstico Infantil.

Encontramos as primeiras referências em publicações americanas. Slavson (1943), também a partir do foco na psicoterapia, aponta as possibilidades diagnósticas do grupo no trabalho com crianças. Redl (1944) refere-se aos “grupos diagnósticos” como tentativa de desenvolver um novo instrumento de diagnóstico suplementar ao diagnóstico individual. Tais autores dirigem o foco para o fato de que, sendo a relação com outras crianças uma área central da avaliação de saúde ou perturbações no desenvolvimento infantil, dados importantes poderiam advir desta possibilidade de investigação direta.

Em obra publicada nos EUA em 1961, Ginot (1979) propõe a triagem grupal como método eficiente para o encaminhamento e seleção de crianças para o atendimento clínico e como forma de atender mais prontamente à demanda institucional.

Anthony (1957), King (1970), Gratton & Pope (1972) também mencionam os grupos diagnósticos breves como parte de toda avaliação diagnóstica e plano de tratamento.

Glasserman e Sirlin (1974), terapeutas argentinas de abordagem psicanalítica, referem-se ao diagnóstico em grupo como um método bastante eficaz para a seleção de crianças para a psicoterapia de grupo, com objetivo também prognóstico, permitindo a seleção de pacientes para grupo da maneira mais adequada a suas características de personalidade e patologia.

Kernberg (1978), psicanalista, coordenadora e participante de grupos de profissionais trabalhando com grupos de crianças em instituições americanas, relata a utilização de grupos diagnósticos na formação de psiquiatras infantis e trabalhos que combinam avaliações individuais e grupais, com integração entre os técnicos participantes dos dois contextos (Liebowitz & Kernberg, 1986).

Em São Paulo, a triagem diagnóstica grupal foi desenvolvida como prática institucional desde a década de 80 em Centros Comunitários e Ambulatórios de Saúde Mental do Estado, a partir da experiência e proposta de supervisores da rede. Tal trabalho foi relatado por Gouveia (1991) e equipe do Setor Infantil do Ambulatório de Saúde Mental do Largo Treze de Maio SUDS-R. 08, São Paulo, da qual fez parte a primeira autora do presente artigo.

Também Ancona Lopez (2002) cita experiência realizada em clínicas-escola de psicologia na cidade de São Paulo, com a introdução do processo psicodiagnóstico grupal interventivo, modificando a rotina institucional, com o objetivo de atender mais e melhor a clientela e também cumprir o objetivo da universidade de criar conhecimento e dar condições para a produção acadêmica.

Além dos benefícios quanto à agilidade dos serviços institucionais, gostaríamos aqui de enfatizar o potencial desta abordagem pela sua especificidade e alcance clínico interventivo. Em artigo anterior (Venske et al., 2005), concluímos que a triagem diagnóstica grupal pode agilizar a possibilidade de intervenção já durante o processo de recepção da clientela, por permitir, desde o início (num momento mais próximo da emergência das ansiedades e da procura pelo serviço), uma visão multifacetada e concomitante da criança em seu contexto interno emocional e social/grupal. A possibilidade de intervenção se dá através de questões e comentários dirigidos ao grupo de crianças ou mães, que visam transmitir compreensões a respeito do que se observa, e que promovem o pensar do grupo e seus membros sobre aspectos considerados relevantes. O potencial interventivo dos Grupos de Triagem e Diagnóstico se demonstra em sua capacidade de produzir mudanças importantes na configuração sintomática ou na dinâmica relacional que sustenta o sintoma, promovendo assim a saúde mental da criança e da família.

Tentaremos exemplificar este processo através de detalhes sobre a proposta dos grupos e de algumas vinhetas clínicas.

 

Grupo de Triagem e Diagnóstico: a proposta

O Grupo de Triagem e Diagnóstico no Setor de Saúde Mental do Departamento de Pediatria da UNIFESP recebe crianças nas faixas etárias de 4 a 6 e 7 a 11 anos de idade, e seus respectivos cuidadores.

Como fruto de nossa experiência, temos dividido os grupos de 7 a 11 em grupos com queixas somáticas/relacionais/comportamentais (atendidos em três encontros) e grupos com queixas escolares relacionados a problemas de aprendizagem (em que se acrescentam alguns instrumentos de avaliação específica e, portanto, se realizam em quatro sessões).

Inicialmente, há um momento de contrato conjunto em que todos (crianças, pais, profissionais e especializandos) se reúnem na mesma sala para explicitações quanto às datas dos encontros, proposta do acolhimento grupal, e importância da freqüência contínua. Após este momento, pais e crianças ficam em salas separadas, cada grupo sendo acompanhado por dois profissionais e, geralmente, dois especializandos.

A interconexão entre o Grupo de Pais e o Grupo de Crianças é garantida pelo encontro posterior de todos os técnicos para discussão a cada sessão de atendimento.

“Tal processo, do início ao fim, envolve evidentemente intensa participação dos membros de cada grupo, além dos profissionais, como parte da rede de continência, escuta e reflexão sobre as sintomáticas manifestas e aspectos dinâmicos envolvidos”. (Venske et al., 2005).

Passaremos agora a detalhar algumas especificidades que caracterizam a escuta e o funcionamento do Grupo de Pais e do Grupo de Crianças.

 

Entrelaçando narrativas parentais: o Grupo de Pais

Os cuidadores (em geral mães, mas também pais ou avós) são estimulados a falar sobre as dificuldades das crianças, dados do desenvolvimento, histórico pessoal e familiar do paciente em questão. Levantam-se assim as queixas relacionadas a cada criança, associando-as à sua história de vida, com o intuito de conhecer seu contexto psicossocial e refletir conjuntamente sobre aspectos significativos dos vínculos familiares. Durante o processo grupal, é possível perceber, através do discurso dos pais e também de suas interações ao vivo, dinâmicas relacionais que podem, ou não, estar colaborando para a sintomatologia da criança.

Num primeiro momento, garantem-se os relatos de cada um em queixa livre, atravessados, dependendo de cada grupo, de maneira mais intensa ou menos intensa por interações grupais naturais, perguntas, comentários, identificações, questionamentos, manifestações de surpresa, estranhamento. Tal movimento é modulado pelos profissionais, com o intuito de propiciar a participação conjunta no trabalho de esclarecimento de informações, e na criação de um espaço confiável de reflexão sobre aspectos emocionais.

Nas sessões intermediárias, amplia-se a rede de interlocução, agregando-se também, no aprofundamento das queixas, questões surgidas a partir das trocas de informações entre os profissionais/especializandos atendendo crianças e pais. O próprio grupo também vai tecendo conexões entre os membros, ampliando-se a integração grupal.

A última sessão é destinada à devolução dos aspectos principais observados e discussão das recomendações necessárias. Garante-se uma atenção às peculiaridades das necessidades individuais e respectivos encaminhamentos específicos, mas nós nos utilizamos do percurso vivenciado por cada membro e do processo do grupo ao longo das sessões para ilustrar as conclusões diagnósticas, desta forma acompanhadas e vivenciadas por todos. Por exemplo, é comum surgirem, a partir das conversas no grupo dos cuidadores, novas formas de se olhar a criança. É comum que os pais descubram novos aspectos do cuidar e que, ao mesmo tempo que associam suas próprias necessidades emocionais com a maneira como se relacionam com os filhos, apresentem redução no grau de ansiedade e culpa quanto à sua conduta e às condutas da criança.

 

O brincar como narrativa: o Grupo de Crianças

No Grupo de Crianças busca-se observar cada criança individualmente e também na interação com outras crianças.

Num primeiro momento, após a apresentação de todos de maneira compatível com a faixa etária e recursos de verbalização do grupo, procura-se conversar com as crianças sobre sua necessidade de atendimento. Observamos o modo de interação entre elas através de recursos lúdicos (caixa de brinquedos). É proposto também um quebra-cabeça, como forma de investigar, além de recursos interativos (por exemplo, aspectos relacionados à tomada de iniciativa e capacidade de colaboração), também aspectos relacionados à habilidade cognitiva, percepção espacial e agilidade motora.

Durante a segunda sessão, são avaliados aspectos dinâmicos de personalidade com a aplicação de instrumentos projetivos gráficos. Através destes instrumentos auxiliares, a proposta é buscar aprofundar o conhecimento sobre a dinâmica psíquica de cada um dos participantes, na integração com o contexto grupal.

Também são utilizados alguns instrumentos psicométricos, principalmente nos grupos de crianças com dificuldades escolares. A aplicação é coletiva, observando-se, portanto, os detalhes interativos.

Na última sessão, as crianças também participam de uma entrevista devolutiva em grupo, como complemento às observações e comentários feitos ao longo do processo. Utilizamos aqui recursos lúdicos, trazendo novamente a caixa de brinquedos para facilitar a reemergência de focos de conflito e aspectos trabalhados nas sessões pregressas, que, de certa forma, podem já conter elementos de transformação através do percurso de expressão no contexto grupal. Tal cenário facilita a comunicação de nossas observações e integra os membros numa experiência vivenciada conjuntamente.

Dependendo da faixa etária das crianças, utilizam-se mais recursos verbais ou mais recursos lúdicos para a integração e explicitação dos dados, porém garante-se sempre que as crianças também sejam informadas de nossas conclusões e sugestões de tratamento e encaminhamento. As crianças são estimuladas a participar com lembranças dos vários momentos de nosso contato, comentários sobre mudanças em si e nos outros que tenham sido notadas, e expectativas criadas a partir desta intervenção. Neste momento tem sido interessante a realização do Jogo do Presente Imaginário, em que propomos que cada criança imagine um presente que gostaria de deixar como lembrança para cada um dos participantes.

Este é também um momento de integração entre os aspectos emergentes no Grupo de Crianças e no Grupo de Pais. A própria criança, muitas vezes, estimulada por sua participação no grupo, experimenta novas facetas, tomando contato com aspectos seus ou do outro pouco exercitados, que podem facilitar sua interação com seus cuidadores. Paralelamente, se conversa também com as crianças sobre possíveis necessidades e dificuldades que os adultos manifestam no contexto familiar (a partir de seus relatos, mas também das impressões colhidas no aqui-e-agora do Grupo de Pais).

A discriminação entre as necessidades do adulto e da criança e o oferecimento de suporte aos pais possibilitam a redução de uma possível sobrecarga para a criança em termos da função que desempenha o sintoma. Por exemplo, crianças das quais se esperava o desempenho de funções pseudo-adultas (como cuidar da arrumação da casa e dos irmãos e sobrinhos pequenos), cujos pais traziam como queixa agressividade, irritabilidade, somatizações ou infantilização, e que demonstraram tensão e muita dificuldade de brincar, puderam ser ajudadas por apontamentos que as traziam de volta para o lugar de filhos. Puderam se beneficiar também com a observação de sutis alterações em seus cuidadores, que, ao longo dos encontros, foram auxiliados a entrar em contato com o grau de exigência imposto à criança, determinado, muitas vezes, por suas próprias necessidades e expectativas.

 

Mediações metafóricas e o Jogo do Presente Imaginário: instrumentos simbólicos de integração dos dados no Grupo de Crianças

Ao longo de nossa experiência com cada grupo de triagem e diagnóstico, observamos o emergir de algumas atividades lúdicas espontâneas complementares, sugeridas pelas próprias crianças ou pelos profissionais a partir de elementos expressos pelo grupo. Tais atividades configuram-se como significativas metáforas condutoras, condensando em potente linguagem evocativa nossa experiência em momentos particulares.

Montagna (2006), lembrando que a palavra “metáfora” nos remete às suas raízes gregas “meta”: mudança, alteração, e “phora”: transporte, descreve a metáfora como um continente para a experiência emocional, ponte do corpo para a mente, do concreto para o simbólico.

Assim, por exemplo, num grupo de crianças de 4 a 6 anos, muito agitado, com queixas de transtornos de conduta, agressividade e dificuldade de concentração, surge, no espaço lúdico da sessão devolutiva, a proposta da brincadeira da “batata quente”, para a qual sentamos em roda, e jogamos uma bola de colo em colo, após um momento de considerável dispersão.

Além da possibilidade de agregar geograficamente as crianças, e contê-las num espaço de possível contato visual e verbal, facilitando a interação entre elas e conosco, podemos, em retrospecto, refletir um pouco sobre a possível função metafórica desta proposta.

Crianças “batata quente” necessitam de uma possibilidade de continência por um grupo de suporte-família, ao mesmo tempo que a procura de nossos serviços diagnósticos e interventivos pelos pais e crianças constitui um convite para que entremos “na roda” e possamos desenvolver com eles uma maneira de lidar com essa turbulência (um “colo” que não se queime com elas?). Ou, indo ainda mais além, talvez esta manifestação lúdica expresse um conflito com o qual não só as famílias, mas quem sabe a própria equipe de profissionais e a instituição, se deparem, ao realizar processos de triagem: nossas limitações para acolher de fato “as batatas quentes”, ou nossa necessidade de passá-las adiante (“o quente da batata”, no caso, pode revelar-se em qualquer exigência que pressione o serviço, que nos move muitas vezes a fazer com que a ação &— encaminhar rapidamente &— preceda a escuta). Neste caso as angústias da família (angústias familiares) são também familiares a nós, profissionais.

O olhar psicanalítico e a constante reflexão sobre os estados internos subjacentes a nossas intervenções são de extrema utilidade no cotidiano de nossa prática institucional e na transmissão de consistência para os profissionais em formação. Acreditamos, também, que o oferecimento dos espaços de pronto-atendimento e dos grupos de triagem, como momentos de escuta receptiva, e de nossa capacidade de elaboração, simbolização e metaforização, até dos próprios impasses e dificuldades, principalmente se exercitados num contexto de criação e reflexão conjunta, pode ser um grande legado às famílias e aos alunos com quem trabalhamos.

Dentre estas atividades lúdicas espontâneas surgidas no contexto dos grupos, destacou-se o Jogo do Presente Imaginário, que passamos a utilizar como procedimento comum em todas as sessões devolutivas das crianças, pelo potencial de condensação e integração dos dados do percurso dos grupos de pais e de crianças, e pela possibilidade que oferece às crianças de participarem ativamente da construção de imagens simbólicas que sintetizam a vivência dos indivíduos no grupo, suas necessidades e expectativas.

Este jogo, que talvez faça parte de uma base comum da “cultura psi”, introduziu-se para nós como uma adaptação de procedimento comunicado no evento Pathways to change, conferência na Tavistock Clinic, Londres, em 2004, por profissionais trabalhando com Grupos de Mães e Bebês, em que se perguntava às mães, também como um jogo imaginário, o que elas achavam que seus bebês gostariam de receber delas, e o que elas gostariam de receber de seus bebês.

Na proposição deste jogo para o fechamento do Grupo de Triagem e Diagnóstico, falamos para as crianças que nestes três ou quatro encontros conhecemos bastante sobre este grupo e sobre cada um deles. (Às vezes, num momento anterior, relembramos juntos o que fez com que cada um chegasse até nós, e comentamos sobre mudanças observadas ao longo dos encontros.) Comentamos que conhecemos também o que cada um sente que precisa e o que os outros precisam para cuidar melhor das suas dificuldades. Dizemos que gostaríamos de deixar com cada um deles algumas lembranças deste nosso tempo aqui. Como falamos de sentimentos, brincamos, desenhamos, contamos estórias, e imaginamos muitas coisas enquanto estivemos juntos, a lembrança que gostaríamos de deixar é também imaginária. Com esta proposição, enfatizamos nosso enfoque em elementos que funcionem como pontes mediadoras do concreto para o simbólico, num contexto de prazer no contato lúdico com nosso mundo mental. O que cada um gostaria de imaginar como um presente para deixar de lembrança para cada um dos outros? O que Pedro gostaria de dar para Alice, por exemplo?

Com a facilitação do elemento simbólico metafórico revestido pelo formato concreto do objeto-presente, as crianças logo se animam a dizer, por exemplo: “Daria uma bola!” (para uma criança que demonstrava vontade, mas muita dificuldade para brincar), “Daria um espelho... para poder se olhar!” (para uma criança muito tímida que não reconhecia em si aspectos de valor). Expandimos então as metáforas, contidas nos presentes oferecidos, conectando-as com as necessidades de cada criança e as interfaces entre o expresso no Grupo de Pais e no Grupo de Crianças. Muitas vezes, as próprias crianças já expressam a oferta de maneira elaborada e amplificada, apresentando-a em forma de sentimento abstrato, extraído da experiência do convívio grupal: “Daria mais tranqüilidade... mais lazer!”, “Não se preocupar tanto com o irmão dela!”, “Ser criança também!”, “Ter carinho da mãe dela, amor!” (para uma criança que se sentia muito exigida nos afazeres de casa e cuidados com o irmão menor); “O papai também poder ser ajudado!” (para uma criança que se preocupava muito com a separação dos pais, que ocasionara um significativo distanciamento entre a criança e seu pai).

Temos considerado de muito benefício a possibilidade do envolvimento das crianças nesta atividade simbólica ao mesmo tempo coletiva, mas que integra os aspectos individuais emergentes no contexto do grupo, sintetizando os dados principais de nosso conhecimento sobre cada criança e grupo familiar ao longo do percurso nos grupos. Tal atividade facilita também a compreensão pelas crianças de nossos encaminhamentos, já que estes geralmente vão ao encontro das necessidades ilustradas imageticamente pelos presentes imaginários.

 

Famílias em desordem: recortes

Tentaremos agora entrelaçar aspectos manifestos nas sessões grupais das crianças e dos pais de um Grupo de Triagem e Diagnóstico de crianças de 7 a 11 anos, realizado em três encontros (originalmente 5 crianças, 3 meninos e 2 meninas).

Como ponto de coroação de nossas reflexões, utilizaremos o Jogo do Presente Imaginário, já que este condensa aspectos da demanda inicial formulada tanto pelo discurso parental quanto pelas manifestações da criança, e aspectos do percurso nos grupos. Iremos nos deter portanto nas crianças que estiveram presentes em todas as sessões, incluindo a sessão de finalização: Bernardo, Diana e Eduardo.

Bernardo, de 7 anos, é apresentado por sua mãe no Grupo de Pais como muito nervoso. A mãe também se apresenta agitada e bastante impaciente ao relatar o comportamento do menino. Diz que na escola “ele é normal”, mas em casa corta tudo o que vê com a faca ou tesoura, “briga muito na escola... se a professora briga com ele, ele se faz de inocente, abaixa os olhos e se enche de lágrimas”. A mãe diz que a família o acha “lerdinho” e “sonsinho”. A mãe diz não saber o que acontece, ele só fala que “dá uma coisa na cabeça dele” e depois começa a chorar, mas faz questão de demonstrar para a mãe tudo o que faz. A mãe comenta com bastante impaciência que Bernardo está na primeira série e não sabe ler. Conta que seu filho já fez diversos exames médicos e os médicos constataram que seu pulso e os batimentos cardíacos estão acelerados. Além disso, ele tem muita dor de cabeça.

A mãe associa o comportamento de Bernardo ao do pai, que tem a tendência de desmontar tudo, porque trabalha com manutenção e conserto de equipamentos. Diz que o pai tem um bom relacionamento com o menino, mas que é ausente porque trabalha bastante.

Na segunda sessão do Grupo de Pais, contrariando tal atestado de ausência e desafiando o matriarcado do grupo composto só de mulheres cuidadoras, aparece o pai de Bernardo (em resposta a nosso constante convite também à presença do casal de pais). Este se mostra interessado em participar da sessão, trazendo a mesma queixa do filho relatada pela mãe. Associa também este comportamento do menino ao seu próprio, dizendo ter sido muito curioso na infância. Diz que são três filhos e que acredita que algo falte ao menino, por isso ele pode estar apresentando este comportamento. Diz que ameaça castigo ao menino, mas é a mãe que o executa. Reconhece que dá pouca atenção ao menino, que provavelmente sente muito sua falta, além disso, se propôs a realizar mais atividades com o filho, promovendo assim uma aproximação entre eles. Comenta, em tom confessional, que é mais apegado à filha caçula e que isso pode gerar ciúmes em Bernardo. O pai apresenta boa capacidade reflexiva e reconhece que está reproduzindo com seu filho a mesma relação que vivenciou com seu pai, de distanciamento e frieza. Comenta que não gostaria que fosse assim. Reconhece aspectos positivos do filho, dizendo que o garoto é inteligente, sabe os caminhos para chegar ao hospital, e que ele ficou feliz por terem vindo juntos nesta sessão.

A presença do pai de Bernardo, trazendo aspectos reflexivos de sua relação com o menino, e demonstrando uma disponibilidade de participação pressuposta antes como ausente, faz com que as outras mães fiquem muito atentas e mobilizadas por seu relato, associando aspectos próprios na relação que estabelecem com cada filho.

Enquanto isso, na sala das crianças, Bernardo parece bastante angustiado, mas tem alguns movimentos de aproximação dos colegas. Quando nos dirigimos a ele, para qualquer solicitação, mesmo quando lhe perguntamos o nome, seus olhos ficavam marejados. Parece ao mesmo tempo desejoso de contato, seus olhos brilhando, expressando carência e necessidade de vínculo, e ao mesmo tempo transbordam em seu rosto ruborizado. Sua brincadeira com a caixa lúdica gira em torno de temas bastante contidos. Envolve-se nas brincadeiras com os outros meninos, mas deixa os conteúdos mais agressivos e ameaçadores por conta dos outros. (O morto fica de fora, a guerra é do outro lado.)

No quebra-cabeça Bernardo interage, mais à vontade com os colegas, mas parece um pouco temeroso, falta-lhe autoconfiança. Parece frágil emocionalmente, sensível, em sofrimento. Nos desenhos, quando solicitado individualmente, se dispõe a realizá-los emocionado, quase chegando a chorar. Consegue escrever a partir de estímulos individualizados, inicialmente diz não saber escrever e precisa de referências concretas. Na leitura, tem dificuldade de reconhecer sua própria produção, conseguindo reconhecer somente algumas sílabas. Copia, mas não decifra o que foi copiado. Entretanto demonstra agilidade mental e uso de estratégias elaboradas para resolver impasses, mostrando que não há impedimentos de ordem cognitiva.

Bernardo fala pouco, mas é muito expressivo, fala com o corpo, com o olhar, parece ter muita vontade de falar e se comunicar. Ao mesmo tempo, não consegue achar um espaço para expressar suas dificuldades.

Quando indagado sobre a queixa da mãe, de que ele corta as coisas, diz que é verdade, mas que não faz mais. O cortar as coisas é interpretado pelos pais como expressão de raiva e oposição. Conversamos com os pais e também com as crianças, sobre uma outra maneira de pensar sobre estas manifestações. Será que Bernardo não se sente também assim, picotado, com medo de se despedaçar, de se desmanchar em mil pedacinhos? Será que ele corta os pedacinhos, não para agredir, mas justamente para demonstrar sua angústia, mostrar como ele se sente? Vimos no grupo como ele se sente tão frágil, talvez ameaçado quando nos aproximamos dele, ao mesmo tempo que quer muito se vincular e estabelecer contato. Bernardo parece se sentir acolhido por nossa intervenção, e isso repercute no grupo, já que todos foram testemunhas de seu estado de mobilização emocional. Desta forma, comunicamos a todos nosso interesse por busca de compreensão de suas manifestações, juntando assim, para eles e para seus pais, “pedacinhos” de cada um que, muitas vezes, ficam cortados, espalhados, sem sentido e acolhimento.

No momento do Jogo do Presente Imaginário, Bernardo se mostra muito tímido e, inicialmente, mal consegue falar, apesar de mostrar-se muito comunicativo através de sua expressão facial, ruborizando-se, umedecendo os olhos, e sorrindo empaticamente. Comentamos que Bernardo se comunica com o olhar, com sua expressão, e que durante todas as sessões ele esteve muito envolvido com os outros membros do grupo, mesmo que nem sempre se manifestando com palavras. Estamos sentados no chão, e quando chega a vez de Bernardo receber os presentes ele rápida e ansiosamente diz que não quer nada, sorrindo expressivamente e encolhendo-se num agachamento em concha. Brincamos que ele parece querer ficar meio invisível ali, para que ninguém fale dele ou preste atenção nele. Será que um presente para ele poderia ser uma tinta que faz a gente ficar invisível? Bernardo sorri, sintonicamente. Por outro lado, comentamos que percebemos sua vontade de ser visto, de ser compreendido em suas necessidades de contato emocional, para que se sinta menos aflito, menos dividido em pedacinhos, como às vezes faz com os papéis que ansiosamente pica e espalha.

Assim, no Grupo de Pais e de Crianças se comenta que foi possível perceber a fragilidade e tristeza de Bernardo e a necessidade de atenção que ele sente. Enfatizamos a importância de um olhar mais atento para ele e sugerimos o seguimento em Grupo Terapêutico e Grupo de Pais em nosso setor. É também sugerido que Bernardo tenha um acompanhamento mais individualizado na escola em reforço escolar para possibilitar melhor desenvolvimento em suas atividades.

Diana (10 anos) conta não saber o motivo pelo qual vem ao grupo. Durante o momento de apresentação e de aproximação com os recursos lúdicos, permanece calada, com uma postura contida, apoiada na parede, expressão facial bastante séria. Quando fala demonstra timidez no tom de voz baixo e economia de expressão, apesar de parecer brava em suas manifestações assertivas e breves.

Ao se referir à filha no Grupo de Pais, sua mãe ansiosamente começa a falar sobre os “problemas de auto-imagem” de Diana, dizendo que ela se acha feia por usar óculos desde os sete anos de idade e ser estrábica. Atualmente é uma criança bem desenvolvida, mostra-se preocupada com sua aparência, está acima do peso esperado para sua idade e quer fazer regime alimentar. Por vezes é autoritária com as amigas e com a irmã. Diz que Diana coloca-se muitas vezes no lugar da mãe e faz tudo para satisfazer o pai, que é colaborador e também exigente com as filhas.

Na discussão posterior entre os profissionais, intriga-nos o contraste entre a maneira enfática com que a mãe descreve a menina e a retração da criança. Conversamos sobre a dificuldade de discriminar o que seriam ansiedades da mãe em relação à filha (ou até a aspectos que vão além da filha, como feminilidade, subjetivação e representação corporal, além de aspectos da relação do casal) das ansiedades da própria criança.

Ao longo do processo do grupo, a mãe de Diana parece se sentir mais descontraída, expressando-se com mais clareza e parecendo se sentir contida no grupo para contar de sua experiência com a criança. Entretanto ainda se mostra agitada ao se referir à ansiedade e descontrole alimentar da filha (“Ela continua ansiosa para tudo!”). Mostra-se preocupada com a aparência de Diana, comentando sobre a chantagem que a menina faz para conseguir o que quer dos familiares e as dificuldades da família em negar alimentos à criança.

Diana, no Grupo de Crianças, fica a maior parte do tempo bem calada. Mesmo no primeiro momento, em que há uma outra garota, Celine, ambas ficam como espectadoras das brincadeiras dos meninos, muito pouco ativas física ou verbalmente, só se aproximando de algum material da caixa lúdica quando esta lhes é oferecida como uma bandeja. (Celine vem às duas primeiras sessões e sua mãe vem sozinha na terceira sessão, pois a filha tem um passeio na escola.)

Diana observa a brincadeira dos meninos, olha para a caixa lúdica e diz não gostar de nada. Só gosta de brincar com jogos. Mostra-se ambivalente na apreciação do quebra-cabeça e hesitantemente aceita participar. Utilizando seus recursos cognitivos e objetivos, é ágil na montagem das peças e participa também da arrumação dos materiais, porém demonstra muita dificuldade com os aspectos de expressão afetiva. Demonstra passividade e um certo ressentimento quando sua produção é utilizada numa criação coletiva, da qual não consegue participar com tanto vigor e diversão.

Diana coloca-se de maneira bastante sincera no último encontro, dizendo que tinha achado estranho vir ao grupo. Utilizando o exemplo do quebra-cabeça como ilustração, conversamos sobre sua agilidade e recursos para participação, e ao mesmo tempo sua desistência e desinvestimento quanto à sua produção. Parece que ela não confia nas coisas boas e legais que ela tem e que apareceram no grupo. Parece triste e solitária, não podendo desfrutar de seu crescimento com mais confiança e mais valorização de si própria.

No Jogo do Presente Imaginário, Bernardo comenta que daria um sapato para Diana. Exploramos como seria este sapato, e Bernardo comenta que seria um sapato rosa e azul. Comentamos sobre as cores, pensando que são cores geralmente relacionadas a bebês meninas e bebês meninos. Lembramos que conversamos sobre como a mãe de Diana tem tido dificuldades para lidar com as mudanças da Diana-menina que está crescendo. A mãe de Diana também demonstrou necessidade de ser ajudada para conseguir valorizar a si e à filha como mulheres. Diana às vezes se coloca de maneira enrijecida, durona, crítica, afastando-se de suas manifestações emocionais e de sua vulnerabilidade. Poderiam os sapatos azuis e rosa servir como metáfora de uma necessidade de equilíbrio entre seus aspectos psíquicos de assertividade e sensibilidade?

De Eduardo, Diana ganha um óculos e um amigo. Expandimos na conversa a possibilidade de Eduardo estar sugerindo que Diana possa ter um novo jeito de olhar para as coisas, um novo olhar para si mesma, já que Diana se queixa muito de se achar feia justamente por usar óculos. O grupo parece ter observado que Diana pode estar se sentindo sozinha, isolando-se das outras crianças, e que talvez por isto mereça um amigo.

Como recomendação terapêutica, conversamos nos grupos sobre a importância de um acompanhamento terapêutico individual para Diana, como um espaço de elaboração destes conflitos. Fazemos também um encaminhamento à nutricionista na própria UNIFESP.

Eduardo, 9 anos, é trazido ao grupo inicialmente por sua avó, que diz que “gostaria de mostrar para os pais dele que a criação que eles estão dando está errada, porque eles castigam muito o menino”. Relata que Eduardo é inteligente na escola, mas a professora é “muito pouco tolerante” e ele termina as tarefas e fica procurando outra atividade. A avó refere-se à criança como o “reizinho”, e diz que ele está ficando revoltado porque a professora quer expulsá-lo da escola, apesar de ele ser tão inteligente. A avó quer provar para a escola que o neto não tem problemas e que lá ele está sendo maltratado. Diz que a mãe de Eduardo, apesar de ser pedagoga, não queria trazê-lo à psicóloga, pois acha que é coisa de pessoa doente e está envergonhada de saber que o menino está freqüentando o Setor de Saúde Mental. Isso deixa a avó muito angustiada, pois acha que ele recebe muitos castigos. Ela se refere aos pais de Eduardo como muito rígidos, e está muito preocupada com isso.

Assim como sua avó, Eduardo também acha que o problema é que ele “quer saber muito as coisas”. Tanto Eduardo quanto a avó parecem evitar reflexões sobre o que será que pode estar relacionado ao risco de uma possível expulsão da escola.

No segundo encontro do Grupo de Pais, a avó relata que o menino só fala sobre a consulta da semana anterior. A circulação da fala propiciada pelos grupos parece ter atingido também os pais da criança, que puderam conversar com a avó sobre a vinda do garoto, inicialmente não se mostrando contrários, mas ainda não se interessando por vir, e posteriormente fazendo-se presentes, no último encontro, através da mãe de Eduardo. Neste momento, a avó permaneceu fora da sala acompanhando a irmã do menino (como retaguarda parental e suporte, e não substituindo ou denegrindo o casal de pais).

Desde o primeiro encontro com o grupo de crianças, Eduardo, que parece um pré-adolescente, por sua compleição física, postura e desprendimento verbal, demonstra muita iniciativa, explora os materiais e interage facilmente com as outras crianças. Coloca-se de maneira adequada, interessada e amadurecida, enfatizando com orgulho sua facilidade de compreensão na escola. Quando, entretanto, cria uma arma ligando algumas pecinhas de plástico para montar, sua atitude confiante transforma-se em hesitação e insegurança, parecendo se surpreender com a revelação de seus possíveis aspectos reativos e demonstrando cautela e persecutoriedade em relação ao nosso olhar. Parece que não pode sustentar o que está sendo produzido, demonstrando dificuldade de assumir aspectos que considere ameaçadores ou destrutivos ao meio. Parece sempre vigilante e preocupado com nossas observações (“O que vocês vão falar para minha avó?”). Nos desenhos, parece precisar corresponder ao que esperam dele, ficando sempre muito atento à sua produção, e criando estórias que incluem clichês do que seria adequado fazer para impressionar adultos.

É uma criança com bons recursos, que talvez se diferencie ali no grupo, mais por alguns elementos ligados a uma condição socioeconômica e estimulação cultural um pouco mais privilegiada, do que por uma inteligência superior, como muitas vezes parecem sugerir seus cuidadores. Eduardo parece muitas vezes responder a esta fantasia e projeção da avó de que ele talvez seja superdotado.

Enquanto brincamos de Presente Imaginário, Eduardo manipula seu anel. Demonstra-se muito ativo na proposição de presentes aos outros membros, cuidando do grupo e parecendo querer garantir a satisfação de todos. Depois pergunta veementemente: “E eu?”. Todos rimos sintonicamente e comentamos como Eduardo parece gostar de cuidar e de agradar aos outros, mas também gosta que cuidem dele e percebam suas necessidades. Diana timidamente, olhando para as mãos de Eduardo, que brinca com seu anel, diz que lhe daria um anel (talvez se conectando a algo já presente ali, ainda sem poder arriscar um presente imaginário novo). Exploramos juntos: que anel seria este? Anel de enfeite? Anel para mostrar a ligação com as pessoas? Anel que os mais velhos usam quando se juntam e pensam em formar uma família? Bernardo comenta que daria uma corrente de colocar no pescoço. Pensamos na apresentação de Eduardo junto ao grupo, criança sempre bem-cuidada e arrumada, muito estimulada pelos familiares, principalmente avó e mãe, que estiveram presentes no Grupo de Pais. Comentamos que se espera muito dele, que se mostre sempre inteligente, e que aqui no grupo ele também parecia ter que impressionar, mostrando-se sempre adequado, esperto, correto, bom garoto, “o noivo esperado”, às vezes “pai da casa, pai do grupo”. Entretanto, comentamos, essas expectativas às vezes podem pesar, podem nos amarrar (a corrente pode enfeitar ou pode prender). Precisamos de um espaço para mostrar nossos outros lados mais necessitados (“E eu, não vou ganhar presente?”) e menos adaptados, como o que Eduardo tem mostrado com suas dificuldades de comportamento na escola.

Conversamos também no Grupo de Pais sobre as expectativas que os adultos têm de Eduardo, de sua inteligência e o peso que isso pode representar para ele, que fica impossibilitado de errar. A mãe diz que supervalorizar a inteligência de Eduardo é “coisa da avó” e que os pais não o tratam assim. A questão das expectativas parentais em detrimento de um olhar que respeite as necessidades, ritmo e subjetividades de cada criança é também expandida na conversa com todos os presentes.

Comentamos sobre o processo que acompanhamos no grupo, de os pais se aproximarem mais do cuidado direto das necessidades de Eduardo e recomendamos que isto prossiga com a realização de uma sessão com os pais de Eduardo (com dois membros participantes deste trabalho com os grupos) para a discussão da disponibilidade para um trabalho terapêutico familiar, visando um fortalecimento do núcleo casal e filhos.

Tanto no Grupo de Crianças, quanto no Grupo de Pais, apontamos, a partir do exemplo de Eduardo, que às vezes parece haver algumas questões conflituosas entre os adultos, e que a criança parece se sentir no meio deste fogo cruzado de críticas entre as pessoas que cuidam dele. Amplificamos a questão para situações ou dificuldades que às vezes os adultos vivem e que de alguma maneira refletem na maneira como se preocupam ou entendem as manifestações das crianças.

Ao final, conversarmos com o Grupo de Crianças sobre como foi para eles vir aqui. Diana, que vinha se mostrando atenta, tensa e séria, reconhece ter sido estranho vir ao grupo, mas pela primeira vez, após a troca de presentes imaginários, se integra aos outros para a brincadeira que surge a seguir, sentando-se ao chão de forma ineditamente descontraída, e podendo se divertir.

Assim, espontaneamente neste momento final, as crianças se agrupam para o jogo de varetas como atividade conjunta. Cada um é bastante verdadeiro quanto a seus movimentos (se mexem algo, logo abrem espaço para o outro) e bastante observador do seu próprio movimento e do movimento dos outros. (Habilidade bastante presente em nosso repertório de convívio durante os encontros.) Mesmo crianças que se sentiam pouco à vontade para interagir parecem ter percebido benefícios e atrativos no vínculo, demonstrando que a continuidade de tratamento, conforme o caso, individual ou grupal, será bem-vinda.

 

Conclusão

Demonstramos aqui como o dispositivo clínico de Triagem e Diagnóstico Grupal Infantil pode ser útil para a promoção da saúde mental em nossas instituições de atendimento, na medida em que se oferece como possibilidade de acolhimento às angústias familiares, e para a possibilidade de enriquecer a formação de profissionais da área. Tais recursos são viabilizados pelo exercício de integração da participação dos cuidadores e das crianças em grupos, que reverte em intervenções significativas durante o processo de recepção e diagnóstico dos casos. Acreditamos que o potencial interventivo da atividade também seja amplificado pela possibilidade de expandir a capacidade de representação das crianças e pais acerca de suas dificuldades e impasses vivenciados em suas relações. Procuramos ilustrar como alguns instrumentos de mediação metafórica, utilizados com as crianças, podem facilitar a criação deste campo de representações e facilitar a comunicação no contexto grupal.

Voltando à idéia das metáforas como ponte, transportes significativos ocorreram no processo destes grupos: do discurso parental à manifestação da criança, do vivenciado internamente para o formulado na comunicação ao grupo, da reatividade das atuações “picotadoras” de Bernardo e veladamente “assaltantes” do exemplar Eduardo e do vivido somaticamente na dor do corpo em sofrimento (as dores de cabeça de Bernardo e os desconfortos de Diana), através do rapto da própria metáfora (Montagna, 2006), para a sua reaparição como sentido simbólico na emergência das brincadeiras e dos presentes imaginários.

Consideramos de bastante importância as alternâncias de presenças dos pais/cuidadores e convocações de membros importantes das famílias, além do envolvimento de outros membros em conversas de desdobramento em casa, favorecidas pelo Grupo de Triagem e Diagnóstico para todas as famílias atendidas.

Supomos que se favoreça a instalação de alguma ordem nesta des-ordem familiar, conferindo ao casal de pais e à possibilidade de interlocução entre as funções materna e paterna uma importância estruturante na subjetivação da criança. Em consonância com o que aponta Roudinesco (2002) quando aborda questões relacionadas às profundas transformações da família na contemporaneidade (por exemplo, a passagem da soberania paterna para a materna, com o poder ilimitado e onipotente do materno e a abolição das diferenças sexuais), vemos como ainda se manifesta uma busca aos referenciais estruturais da família, ainda reivindicada como valor seguro para a constituição do sujeito e favorecimento do surgimento de uma nova ordem simbólica. Parece que, mesmo em suas novas configurações e frente aos desafios da contemporaneidade, a família, através de suas principais tarefas parentais de gerar amor, manter a esperança e conter a angústia depressiva, promovendo a possibilidade de pensar (Meltzer & Harris, 1986), resiste ao teste dos tempos. Como coloca Roudinesco (2002), e como fica ilustrado em nossos grupos aqui relatados:

Todos os pais têm o desejo de que seus filhos sejam ao mesmo tempo idênticos a eles e diferentes. (Roudinesco, p. 195).

(...) Do fundo de seu desespero, ela (a família) parece em condições de se tornar um lugar de resistência à tribalização orgânica da sociedade globalizada. E provavelmente alcançará isso &— sob a condição todavia de que saiba manter, como princípio fundador, o equilíbrio entre o um e o múltiplo de que todo sujeito precisa para construir sua identidade. (Roudinesco, 2002, p. 199).

Trabalhamos aqui também com a integração de aspectos subjetivos individuais e processuais grupais, com a diferenciação entre as expectativas parentais e manifestações próprias da criança e com a possibilidade de uma vivência grupal em que (considerando-se as singularidades e o coletivo) se favoreça o aprender a partir da experiência. Junto às famílias, nos grupos de pacientes, e no grupo de trabalho profissional, acreditamos que nosso empenho caminha nesta mesma direção.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Universidade Federal de São Paulo &— UNIFESP/Escola Paulista de Medicina
Setor de Saúde Mental da Disciplina Pediatria Geral e
Comunitária do Departamento de Pediatria
R. Botucatu, 598 &— V. Mariana
04023-062 São Paulo, SP
Fone: (11) 5549-6124 Fax: (11) 5576-4255
E-mail: mamendesa@hotmail.com, silvenske@terra.com.br

Recebido em: 30/05/07
Aceito em: 14/06/07

 

 

* Psicóloga com Mestrado pela Tavistock Clinic, Candidata do Instituto da SBPSP, participante do Setor de Saúde Mental do Depto. de Pediatria da UNIFESP.
** Psicólogas, participantes do Setor de Saúde Mental do Depto. de Pediatria da UNIFESP.
*** Psiquiatra, Psicanalista, Membro Associado da SBPSP, Coordenadora do Setor de Saúde Mental do Depto. de Pediatria da UNIFESP até 2006 e Supervisora do trabalho com grupos.
**** Psiquiatra, Supervisor do trabalho com Grupos no Setor de Saúde Mental do Depto. de Pediatria da UNIFESP.
1A versão inicial deste trabalho, intitulada “Mediações metafóricas em Grupos de Triagem e Diagnóstico Infantil”, foi apresentada no XVII Congresso da Federação Latina de Psicanálise de Grupo (FLAPAG), VI Congresso do Núcleo de Estudos em Saúde Mental e Psicanálise das Configurações Vinculares (NESME), VIII Jornada da Sociedade de Psicoterapias Grupais do Estado de São Paulo (SPAGESP), “Saúde, Cultura e Diversidade”, em 2007, Santos, SP.
Agradecemos às Psicólogas Especializandas Karen Thomsen, Mariana Aikawa, Paula Albano, Roberta Alencar e Taíssa Schubert, que realizaram conosco o Grupo de Triagem e Diagnóstico citado aqui na Ilustração Clínica, por sua participação, registro e discussão do material, estímulo à reflexão e ao desenvolvimento de nossas idéias.

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