SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.40 número72Conteniendo angustias familiares: mediaciones metafóricas en intervenciones diagnósticas grupales con niños y padres¿Deseo de tener hijos o deseo de maternidad o paternidad? índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. v.40 n.42 São Paulo jun. 2007

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

Lolita, uma personagem atual1

 

Lolita, a nowadays character

 

Lolita, personaje actual

 

 

Ruth Rissin*

Membro Efetivo da Associação Psicanalítica do Estado do Rio de Janeiro &— Rio 4

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O ponto de partida do trabalho é a constatação, na clínica, da grande freqüência de casos com triangulação semelhante à da trama de Lolita, de Vladimir Nabokov. Os personagens do romance são analisados e confrontados com os de outras obras, Hipólito, de Eurípedes, e Fedra, de Racine. São estudados dois casos clínicos que apresentam diferentes pontos de vista, vivendo variações da mesma situação. O primeiro, da mãe de uma adolescente, e o segundo, de outra adolescente. O trabalho busca a compreensão desse fenômeno, levando em conta aspectos da contemporaneidade, com o foco especial sobre as transformações das configurações familiares na atualidade.

Palavras-chave: Adolescência, Família contemporânea, Lolita, Fedra, Hipólito.


ABSTRACT

This paper starts from the assumption, in psychoanalytical practice, of the high number of cases with a triangle situation similar to the central plot in Vladimir Nabokov´s Lolita. The characters of this romance are confronted to others characters, Euripedes´s Hippolytus and Racine´s Phedra. Two clinical cases presenting different points of view are studied. The first one, about an adolescent´s mother, and the second about another adolescent, both living the same situation but in theirs own ways. This paper aims to reach the comprehension of this phenomena, considering aspects of contemporary times, focusing specially family changes.

Keywords: Adolescence, Contemporary family, Lolita, Phedre, Hippolytus.


RESUMEN

En el trabajo clínico actual es posible comprobar seguidamente la presencia de relaciones triangulares parejas a los personajes de Lolita, de Vladimir Nabokov. La autora analiza estes personajes comparandolos con los de obras clásicas, Hipólito, de Eurípedes y Fedra, de Racine. Dos casos clínicos con variaciones de la misma situación son descritos. El objectivo es de comprender el fenómeno, considerando los cambios de los roles en la familia actual.

Palabras clave: Adolescencia, Familia contemporánea, Lolita, Fedra, Hipólito.


 

 

Introdução

A idéia deste trabalho surgiu ao atender vários pacientes que apresentam histórias de algum modo semelhantes às de personagens do romance Lolita, de Vladimir Nabokov (1955/2003). Cada um dos casos se coloca em um vértice diferente do triângulo envolvendo mãe, filha/enteada, padrasto, possibilitando focalizar cada uma dessas posições, em que cada um participa de uma maneira singular.

O registro de várias histórias com uma estrutura semelhante demonstra sua atualidade, mesmo nesta pequena amostragem. Na verdade, não precisamos da clínica para constatar que Lolita é, hoje, uma personagem bem familiar, presente em enredos de novelas e personificando um tipo: “uma lolita”. Para designá-la, seu criador cunhou um novo termo &— ninfeta &—, aplicado às atuais modelos e atrizes recém-saídas da puberdade. No entanto, Lolita foi capaz de suscitar uma grande celeuma, a ponto de a publicação do romance ter sido recusada, na época, por todas as editoras inglesas devido a um conteúdo julgado imoral.

Esta, porém, não era a opinião de todos e, mesmo no período em que veio à luz, ou seja, em 1955, pelo menos para Graham Greene, Lolita já era bastante conhecida. Encantado pela personagem, não via razão para a censura do romance, encontrando mais erotização nos filmes de Shirley Temple, para ele “uma provocante mulherzinha apresentada como menininha” (Callado, 1995).

A relação triangular que se estabelece envolvendo mãe, filha e padrasto não é exclusiva da contemporaneidade. Outras obras de arte produzidas na Antiguidade e na literatura clássica já apresentaram esse tema, como é o caso da peça Hipólito, de Eurípedes, reescrita por Racine em Fedra (1677/1964).

A configuração se altera, o objeto amoroso na Antiguidade é o enteado, o sexo das personagens de cada vértice do triângulo é o oposto ao das personagens envolvidas na história de Lolita. Teseu ama e é casado com Fedra, que ama Hipólito, filho de Teseu. Charlotte ama e é casada com Humbert, que ama Lolita, filha de Charlotte. Tanto Hipólito quanto Lolita são jovens, quando conhece Humbert ela tem doze anos enquanto Hipólito é um jovem de idade menos definida.

Sendo este tipo de relação, presente tanto em Fedra quanto em Lolita, uma versão modificada da trama edipiana, vamos abordar neste trabalho inicialmente alguns aspectos presentes nessas obras, Lolita, Hipólito e Fedra, que possam trazer esclarecimentos para os casos em questão.

Para isso, junto à análise de alguns aspectos de personagens ficcionais, abordaremos algumas situações clínicas que podem ser a elas relacionadas. Trataremos com mais detalhes de dois dos casos atendidos.

Também tentaremos analisar como as transformações sociais e especialmente as da família contemporânea podem interferir com os problemas aqui estudados.

 

Sobre deuses e demônios

Os aspectos comuns entre Lolita e as obras clássicas Hipólito e Fedra não se limitam a essa peculiar configuração triangular envolvendo enteada, padrasto e mãe ou seus correspondentes do sexo oposto.

Observa-se ao longo de todos esses textos uma força impulsora que não pode ser evitada pelos personagens, determinando a realização de ações que estão acima da vontade deles.

Em Lolita, essa força se expressa pela recorrência dos termos “diabólico” e “demoníaco”, qualificativo utilizado por Humbert ao se referir às ninfetas e a seus próprios impulsos. Há um embate de caráter quase religioso quando o próprio Humbert busca, em certo momento, uma forma de obter “sucedâneos espirituais que poderiam contribuir, se não para que expurgasse meus desejos degradantes e perigosos, ao menos para que os mantivesse sob dócil controle” (Nabokov, 1955/2003, p. 26).

Em Hipólito e Fedra, tal força se efetiva através de um destino determinado pela vontade e poder dos deuses, mostrando-se estes maiores do que qualquer intenção humana.

Pode-se assimilar esses termos &— “vontade/destino dos deuses”, “diabólico”, “demoníaco” &— à descrição de Freud das características da pulsão de morte. Em Além do princípio do prazer (Freud, 1920/1976a, p. 35) usa a expressão “destino maligno” para marcar situações que se realizam e se repetem a despeito da vontade e do prazer, considerando impressionante a ocorrência de “casos em que o sujeito parece ter uma experiência passiva, sobre a qual não possui influência” (Freud, 1920/1976a, p. 36).

Não é por acaso que tanto em Lolita como em Hipólito e Fedra, quase todos os personagens envolvidos nos respectivos triângulos morrem ao longo da ação ou da narrativa, mostrando o forte conteúdo da pulsão de morte, que mais uma vez se amalgama à pulsão erótica.

 

O tempo paralisado

Há muitas disputas, conflitos e demonstrações de ódio nessas histórias de amor e paixão.

A hostilidade está claramente presente em Humbert e ela se dirige, de forma intensa, principalmente às mulheres, no caso, as adultas, a começar por Charlotte, a quem se refere de forma agressiva &— “odiosa criatura” &— (Nabokov, 1955/2003, p. 57) ou pejorativa. Nenhum outro personagem masculino é descrito com essa maneira crítica e irônica como o faz ao se referir a Charlotte, assim como a outras mulheres adultas. Nem mesmo quando se refere a Clare Quilty, o responsável pela fuga de Lolita que Humbert matará.

É ele mesmo, Humbert, que diz que “a noção de tempo desempenha um papel mágico nessa matéria” (Nabokov, 1955/2003, p. 19) e tanto sua paixão quanto seu desprezo estão a ela vinculados.

Na verdade, a história de “Lolita começou com Annabel” (Nabokov, 1955/2003, p. 15), a namorada de seus treze anos de idade e, a quem conheceu na Riviera Francesa, onde seu pai tinha um hotel, durante umas férias. Alguns meses depois da partida, ela ficou doente e morreu.

Somente após vinte e cinco anos, ao ver Lolita, voltou a se apaixonar. Mas, nesse momento em que a viu pela primeira vez, foi Annabel que ele reencontrou. E, diz ele, todos esses anos “reduziram-se a um ponto latejante, e se desvaneceram” (Nabokov, 1955/2003, p. 41).

Humbert crê, assim, vencer a morte, vencer o tempo.

A personagem de Fedra, também em sua paixão por Hipólito, afirma vê-lo nos traços de Teseu, tanto na obra de Eurípedes como na de Racine, amando, no enteado, a imagem do marido jovem, intocado pelo tempo.

A escolha de Lolita/Annabel também está relacionada a essa necessidade de vencer o tempo. Lolita não é nem criança nem mulher, vive uma transição, é indefinida, ambígua. E Humbert deixa bem claro, sua atração por Lolita depende de um corpo que não pode ser definido como feminino. Por isso, avisa que ela deve tomar cuidado com o que come, a circunferência de sua coxa “não deve passar de quarenta e quatro centímetros e meio” (Nabokov, 1955/2003, pp. 212-213).

Antes de conhecer Lolita, muitos foram os relacionamentos com as ninfetas, denominação criada pelo próprio Humbert : “A essas criaturas singulares proponho dar o nome de ‘ninfetas’” (Nabokov, 1955/2003, p. 18). O corpo de uma delas é descrito como “enxuto e compacto, curiosamente imaturo”, os quadris não são “mais largos que os de um garoto acocorado” (p. 24).

Lamenta, porém, a ação do tempo que transforma uma ninfeta em estudante universitária. Sente repugnância pelas “jovens secretárias desodorizadas” (Nabokov, 1955/2003, p. 34), desejando que as ninfetas “não cresçam nunca” (p. 22). Chega a se perguntar quanto tempo vai durar sua atração por Lolita, calculando quando ela deixará de ser ninfeta.

As ninfetas são a ilusão de uma atemporalidade, da ausência da passagem do tempo, a ilusão da ausência da castração. Ele sabe, mas mesmo assim renega o que sabe e, através da ninfeta, vive um tempo paralisado, tentando evitar a constatação da distinção anatômica dos sexos. O corpo andrógino que caminha “dobrando os belos joelhos de menino” (Nabokov, 1955/2003, p. 122) é a ilusão de vitória no embate da renegação da castração.

Para Humbert, como ele diz, existem dois sexos, mas, destes, nenhum é o seu, pois “ambos são considerados femininos” (Nabokov, 1955/2003, p. 20). Diz ser “perfeitamente apto a possuir Eva”, mas “é por Lilith que anseio” (p. 21). Divide as mulheres em dois tipos : Charlotte, representante de um desses dois sexos, é a mulher castrada, enquanto Lolita incorpora Lilith, a mulher-demônio, fálica, ativa e todo-poderosa. É detentora de todas as capacidades, do poder de sedução. Remanescente do período pré-edipiano (Freud,1923/1976b, p. 183; Brunswick, 1940, p. 299), essa personagem está relacionada à fantasia da mãe fálica, oriunda da infância, quando a criança efetiva um grande trabalho psíquico para suportar a constatação da castração, trabalho que muitas vezes se torna impossível, enclausurando o indivíduo nesse momento e nessa renegação.

Tal renegação impõe a Humbert uma sexualidade que só pode acontecer nos esconderijos, em “atos furtivos”, (Nabokov, 1955/2003, p. 60). Os relacionamentos que estabelece com as ninfetas são “fugidios e unilaterais” (p. 22). A parceira precisa ser enganada, distraída.

O anseio por Lolita-Lilith é uma submissão da qual não pode escapar, uma submissão aos poderes dessa personagem, aquela que parece deter a posse do falo.

Desta forma, permanece encurralado na infância, como ele próprio diz, em seu “disfarce de adulto” (Nabokov, 1955/2003, p. 41).

Charlotte descobre o diário de Humbert, onde está claro que só se casou com ela para ficar próximo de Lolita. Charlotte sai correndo e sofre um acidente de inquestionável motivação suicida, ação comparável à de Fedra diante do fracasso de sua paixão por Hipólito. Morta Charlotte, Humbert não é capaz de legitimar sua relação com Lolita, empreendendo então uma viagem que é, na verdade, uma grande fuga do lugarejo onde residem.

 

Uma batalha familiar

A relação conflituosa entre Lolita e sua mãe é bem clara. Segundo Humbert, Charlotte é a “mãe detestada” (Nabokov, 1955/2003, p. 51) e, em contrapartida, esta mostra, desde os primeiros contatos, ou uma indiferença ou uma igual animosidade expressa em reclamações incessantes. Quer manter a filha sempre afastada e, mais tarde, após casar-se com Humbert, planeja descartar Lolita de sua vida.

Tanto em Hipólito como em Fedra ocorre um fato que também denuncia sentimentos de hostilidade. Hipólito é acusado injustamente de ter violado Fedra e Teseu, seu pai, acredita de pronto nas falsas acusações: decide vingar-se, sem investigar a verdade, mesmo quando Hipólito e a própria Fedra (em Racine) tentam convencê-lo de sua inocência.

Lolita, por sua vez, não perde nenhuma oportunidade de se interpor quando a mãe e Humbert estão juntos, numa nítida rivalidade, em parte disputando a atenção deste. Em tais momentos, Lolita adota atitudes ostensivamente sedutoras para com ele. Mas o objetivo não seria exatamente conquistá-lo e, sim, vencer sua rival. Tanto assim que, quando a mãe já não está presente, as atitudes sedutoras desaparecem. Assim, podemos questionar a existência, na vinculação de Lolita a Humbert, da inclinação edipiana. Lolita parece, na verdade, utilizar-se de Humbert para atuar seus conflitos com Charlotte, conflitos estes que teriam mais uma feição pré-edipiana.

Um outro aspecto digno de destaque é a aparência atraente e máscula de Humbert, que, como o próprio texto aponta, é capaz de encantar as mulheres e provocar devaneios por se assemelhar a um artista de cinema. Embora não muito atenta a Lolita, a própria Charlotte percebe o quanto essa figura de galã é capaz de atrair a filha. Estamos numa época particular, na qual se consolida e ganha importância a indústria cultural, produzindo ícones que se tornam objetos de sonho e desejo, entre os quais se destacam os artistas de cinema. Humbert, num primeiro momento, acena com a via de realização desse sonho.

Os ícones produzidos pela indústria cultural oferecem um modelo de comportamento a ser copiado e principalmente imaginado. Lolita certamente se utiliza desse modelo. É assim que Humbert descreve um de seus primeiros movimentos de abordagem: “Tive a certeza de que poderia beijar sua garganta e a comissura de seus lábios com total impunidade, de que ela deixaria que o fizesse e até fecharia os olhos, como ensina Hollywood” (Nabokov, 1955/2003, p. 50).

As histórias passadas na tela dão forma e movimento às fantasias edipianas reativadas pela adolescência de Lolita. Desta maneira, ela pode se acreditar vivendo, numa atmosfera de glamour, uma disputa amorosa e até mesmo uma paixão com uma aparência de realidade quando o que existe, de fato, é uma impossibilidade. Essa produção imaginária, no entanto, não será eficaz para sempre. Enquanto Charlotte funciona como aparente competidora, Lolita pode fantasiar esses ícones esplendorosos. Quando Charlotte sai da história já não há sustentação para isso.

 

A separação

Com a morte de Charlotte, o pretenso triângulo edipiano se desfaz. A hostilidade de Lolita se volta agora para Humbert. Tal hostilidade não é permanente, e suas atitudes oscilam da passividade &— que em alguns momentos chegará a uma espécie de apatia &— à rebeldia, com agressões e acusações abertas, cruas, a Humbert.

Diferenciando-se do eixo passividade-rebeldia, há uma outra reação de Lolita, uma espécie de anestesia que surge quando Humbert a presenteia com variados divertissements. Vão eles desde revistas de cinema a multicoloridos sundaes de vários sabores e caldas, passando por vestidos que fazem a festa das adolescentes iniciadas nas delícias do consumo. São tantos e tão freqüentes ao longo dessa parte do romance que se tornam quase mais um personagem. Kehl (2004) considera que esses objetos podem ter eficácia na medida em que oferecem um eixo referencial substitutivo diante da instabilidade provocada pelas mudanças físicas da adolescência, sendo, de certa forma, novos apêndices do corpo que podem fornecer uma certa impressão de continuidade. Este fator é mais um determinante das extensas proporções do comportamento consumista do adolescente atual, que já naquela época despontava em seus primórdios, como bem o percebeu Nabokov.

No caso de Lolita, no entanto, tais objetos parecem ter a função de aliená-la, de dopá-la. Embora exerçam a função de substituir perdas e hiatos identificatórios, acabam por tornar-se preenchimentos que fornecem um prazer imediato, afastando-a da angústia e da consciência de sua situação. Aliás, um dos planos arquitetados por Humbert para abordar sexualmente Lolita foi o de lhe dar soníferos. É mesmo uma espécie de sedação que ocorre quando, de revoltada, ela vai se tornando dócil e apática diante das bugigangas que recebe. É significativa a atitude de Humbert quando ele finalmente revela a Lolita a morte de sua mãe e compra para ela uma série infindável de presentes.

A viagem que empreendem após a morte de Charlotte representa para Humbert uma fuga e, paradoxalmente, um aprisionamento, pois ele se encontra prisioneiro de lugar nenhum. No entanto, para Lolita, torna-se uma oportunidade de expansão de seu universo através do contato com outras pessoas, contato que se mostra ameaçador para Humbert. Por esta via vai ocorrer um progressivo processo de separação.

Este processo toma a feição da própria separação que ocorre na adolescência, que se dá de forma intermitente, com avanços e recuos (Aberastury, 1976, p. 34). Em diversos momentos, como nota Humbert, quando Lolita experimenta um contato com outras pessoas ou o aprimoramento de uma de suas habilidades (atuação teatral, tênis), ela se desinteressa pelo que está fazendo e desiste, retornando ao enclausuramento da relação com ele.

Na verdade, apesar de toda a revolta, para Lolita não é fácil se desligar de Humbert, sendo necessárias várias tentativas para que a separação se realize. Demonstra, assim, uma necessidade de preservar pontes, assim como um apego a essa relação e um temor ao desligamento desse pai-amante aprisionador.

 

Casos clínicos

Caso 1: Sônia

Sônia tinha trinta e três anos quando iniciou o tratamento. Tem dois filhos de duas uniões diferentes, uma com catorze e o outro com quase um ano por ocasião do início do atendimento.

Engravidou aos dezoito anos, casou-se e separou-se pouco tempo depois do nascimento de Elisa. Voltou a morar com a mãe, uma irmã e um irmão, ambos solteiros, com dois irmãos bem mais velhos do que Sônia (ela é temporã). Os dois irmãos são solteiros até hoje. Sônia e a filha moraram com todos eles até um ano atrás.

Tanto Sônia como os dois irmãos dedicaram-se à educação de Elisa, tomando decisões e diluindo a função e a autoridade parental. O pai de Elisa não tinha um grande contato com ela mas havia certa continuidade.

Sônia muitas vezes se colocava no papel de amiga da filha, fato que persistiu até a ocasião do tratamento.

Há cerca de três anos começou um relacionamento com um outro homem, Roberto. Ficaram muito apaixonados, não brigavam e faziam planos para o futuro. Compraram um terreno e começaram a construir uma casa pretendendo formar uma nova família. Mas, muito antes que a casa ficasse pronta, Sônia engravidou. Decidiram viver juntos, o que só aconteceu próximo ao nascimento do filho. O casal, Elisa e, logo em seguida, o novo neném foram morar num apartamento pequeno, provisório.

Sônia, algum tempo depois do parto, começou a desconfiar que o companheiro tinha algum relacionamento com sua primeira filha, Elisa.

Observava os olhares que trocavam, via-o roçar o braço no seio da filha, na sala apertada do apartamento. Notou que Roberto havia mudado seu gosto musical, conhecia novos cantores, preferidos por jovens, interessou-se por coisas e atividades que até então desconhecia, começou a usar o mesmo perfume que Elisa usava. Sônia passou a vigiar o comportamento de Roberto e da filha. Desconfiava de tudo. Houve entre eles muitas brigas e discussões. Roberto sempre negou que houvesse qualquer coisa entre ele e Elisa. Porém Sônia conta que, quando decidiu mandar a filha morar na casa do pai, Roberto mostrou claramente seu desagrado. Mesmo com a discordância do companheiro, Sônia fincou pé e Elisa saiu de sua casa. Mas as desconfianças e o sofrimento continuaram. Sônia resolveu então procurar tratamento.

Sofria terrivelmente. Persistiam as desconfianças, brigas, reconciliações que traziam um certo alívio para em seguida surgirem novas situações de desconfiança, atritos. Diversas vezes Roberto falou em se separar mas não concretizava a ameaça. Sônia sentia-se por vezes angustiada por ter afastado a filha da própria casa. Questionava sua capacidade de cuidar dela, de ser mãe, uma vez que nunca havia cuidado de Elisa sem a participação de seus irmãos.

Apesar de tudo isso, de algum remorso com relação a ter mandado a filha sair de casa, e de continuar desconfiada, Sônia estava convicta de que o afastamento havia sido a melhor medida, considerando sua decisão uma tentativa de preservar o relacionamento com o companheiro.

A desconfiança de Sônia levava-a a constantes investigações, que a colocavam numa posição peculiar. A pretensão de descobrir o que o companheiro e a filha faziam vinha de uma impossibilidade de aceitar que nunca poderia controlar nenhum dos dois. O desejo de saber, no entanto, fazia-a inverter a cena primária de tal forma que, em vez de estar no lugar de observada, de personagem da fantasia da filha, era ela própria que se punha a observar uma cena primária ao avesso, colocando-se na posição de excluída da pretensa relação entre a filha e o companheiro, revivendo assim seus próprios fantasmas arcaicos.

A partir daí surgiu o material relacionado à mãe, à sua dificuldade de separação, que a impedia de ocupar completamente o lugar de mulher junto ao companheiro.

Caso 2: Ana Maria

Ana Maria tinha quinze anos quando iniciou o tratamento. Alta para sua idade, é uma moça muito bonita.

Ana Maria tem um irmão onze anos mais velho do que ela.

Os pais eram separados desde que ela tinha três anos; o pai morrera havia quatro anos, subitamente, de infarto do miocárdio, quando Ana Maria estava com onze anos.

A mãe, Vera, tem um namorado, Paulo, há muitos anos. Vivem em cidades diferentes. Paulo teve problemas com os próprios filhos e rompeu o relacionamento com eles. Quando começou o namoro com Vera, dizia que Ana Maria seria a substituta de sua filha. Sempre procurava agradá-la. Chegou a batizar um sítio que comprou com o nome da enteada. O início do tratamento está relacionado a uma briga entre Ana Maria e Paulo após uma viagem para o sítio dele. Ela levou alguns amigos para a casa do padrasto e, quando se preparavam para voltar, ocorreu um grande desentendimento. Mãe e filha iniciaram uma discussão relacionada com os amigos, Paulo interferiu e Ana Maria respondeu que ele não era seu pai para dizer o que ela devia fazer. Pararam de falar um com o outro e Paulo ficou completamente transtornado. Seu humor modificou-se, chorava facilmente, mostrava-se desanimado. Ficaram sem se falar durante mais de um ano.

É muito comum Ana Maria ir a festas onde bebe muito e cheira lança-perfume. Muitas das vezes, passa mal na rua e vai dormir na casa de amigas para que a mãe não veja. Ou faz isso quando ela está viajando. É difícil a mãe tomar conhecimento do que houve.

Sempre foi muito cortejada por garotos na escola. Foi para uma nova escola e tenta não “ficar” com nenhum menino de lá para não ter fama de “piranha” como tinha na anterior. Mas nem sempre consegue evitar. Não sabe muito o que fazer diante do fato de ser muito requisitada, experimentando o desamparo do encontro com o sexo. É apaixonada por um garoto de sua turma, porém, dele, não consegue se aproximar de maneira natural, como o faz com muitos outros.

Não tinha com quem dividir seus temores e a análise tornou-se um lugar onde pela primeira vez podia falar sobre essas questões, não sendo a mãe capaz de ouvi-la nem de fornecer um acolhimento.

Freqüenta bailes funk em uma favela, onde bebe por vezes excessivamente, usa maconha e cheira lança-perfume. Entra acompanhada por rapazes que têm certa posição importante na hierarquia do tráfico. Diz que fica muito bem quando faz isso porque se sente forte, assim “ninguém mexe”. Fora dos bailes, às vezes se encontra com um deles e vão para a praia, onde ficam fumando maconha até de madrugada.

Segundo observações obtidas da própria paciente e de entrevistas com a mãe, as atitudes desta oscilam, indo de um alheamento, em que não toma contato com as dificuldades de Ana Maria, a picos de preocupação com cobrança e punições exageradas que geralmente não consegue sustentar.

O alheamento abrange uma mistura de negação e um pedido de ajuda de um terceiro firme, para ela própria, a mãe. Às vezes viaja para a cidade onde Paulo mora e obriga a filha a ficar na casa dos avós, que impõem uma disciplina cerrada. Quando isso se efetiva, ambas ficam mais tranqüilas. Outras vezes busca ajuda de Paulo. Não vem, de fato, recebendo dele a resposta desejada, porém, não se dá conta disso.

Ana Maria, por sua vez, pede um referencial firme. Reclama que a mãe a estimula a experimentar maconha dizendo que deve conhecer. Sente-se mal por ver o irmão fumando maconha em casa e por sua mãe não impedi-lo. Um fato significativo se deu quando mãe não lhe permitiu sair à noite e Ana Maria, mesmo dizendo que ficou um pouco zangada, acabou reconhecendo que gostou porque, assim, alguns colegas da escola ficaram sabendo que a mãe tomava conta dela, que não era “jogada”.

Essa atitude, no entanto, não é muito freqüente, sendo a tônica a mãe não conseguir realizar a função parental que permita proporcionar uma referência firme para Ana Maria. Segundo relato da analista de Vera, em certo período, justamente quando Ana Maria estava tendo vários episódios de uso de lança-perfume e de episódios de vômitos, a mãe ficava dormindo e não conseguia levantar-se da cama durante muitas tardes, sentindo-se completamente impotente, novamente sem se dar conta do que ocorria.

Quando o pai era vivo, o relacionamento entre eles era distante. A família às vezes mostra compaixão por Ana Maria pelo fato de não ter pai, mas ela pouco se refere a ele atualmente.

De certa maneira, Vera quer que Paulo seja um substituto do pai. Ficou muito contente com o fato de ter um namorado que quisesse ocupar o lugar de pai da filha órfã. No entanto, já antes do desentendimento que os afastou, havia atitudes que não eram condizentes com esse lugar, como por exemplo, colocar uma placa no seu sítio com a inscrição “Sítio Ana Maria” em lugar de homenagear Vera. Além disso, sempre que algum garoto se interessava por Ana Maria, Paulo tinha atitudes ciumentas. Também é flagrante a diferença de como trata a enteada e Vera. Esta é sempre criticada, o que provoca em Ana Maria um grande incômodo.

Certamente foi este o motivo da briga com ele, sendo esta uma forma de tomar certa distância protetora contra a tentação de aceitar a relação incestuosa proposta pelo padrasto, que encerraria um sem-número de moções pulsionais. Vera não percebeu nada disso e lutou muito para que o namorado e a filha voltassem a se falar.

Apesar de a ligação de Ana Maria com funqueiros e com conhecidos ligados ao tráfico da favela implicar tanto uma exposição a riscos quanto um desafio, devemos levar em consideração o que ela diz: “Quando estou com eles me sinto forte, sei que ninguém vai mexer comigo”. Assim, paradoxalmente, esse grupo tem uma função de proteção, mesmo com um custo muito caro, sendo uma tentativa de preencher o lugar deixado vago pela ausência da proteção parental e pela confusão de papéis familiares.

O irmão mais velho às vezes chegou a ocupar, em parte, uma função importante. Conversavam como uma considerável freqüência, contava fatos vividos com o pai, compondo uma imagem paterna um pouco mais completa e verdadeira, uma vez que tiveram um contato maior. Opinava com relação a seus amigos, ajudando-a a ponderar a respeito de certas atitudes, sem o risco de invadir a individualidade da irmã, como muitas vezes ocorre quando este tipo de atitude se passa entre filha e mãe. Porém, não foi suficiente e deixou um novo vácuo quando foi trabalhar no exterior.

 

O processo da adolescência e o confronto com os pais

No processo da adolescência há um movimento em direção ao desligamento, à exogamia, levando à entrada em um mundo mais amplo, como pode ser observado com a própria Lolita, que, apesar de suas vacilações, após algumas tentativas acaba rompendo a redoma da ligação com Humbert e foge. Porém, essa separação não se dá de forma harmônica, sendo feita de embates, desafios, ensaios e erros.

Freud destaca, na adolescência, as transformações físicas e o amadurecimento sexual levando à busca do objeto sexual genital em meio a uma reativação e intensificação do Édipo (Freud, 1905/1976c, p. 232).

O adolescente passa por uma série de perdas: do referencial corporal antes conhecido levando a um estranhamento do novo corpo, mudanças “que emergem em transformações inesperadas” (Urribarri, 2004, p. 36), com referenciais identificatórios instáveis; perda relativa da proteção familiar, à medida que ensaia novos papéis e se lança no mundo. Às vezes teme as novas situações com que se defronta, mas já não pode lançar mão dos pais da infância como apoio. Culpa-os pelo distanciamento e por não o reconhecerem. O maior juízo crítico faz com que antigas contas devam ser ajustadas, resultando numa relação conflituosa com os pais e, no caso das meninas, uma especial hostilidade em relação à mãe.

O conflito e o desafio são muitas vezes intensos. Como afirma Sônia Alberti, os adolescentes conhecem os pontos fracos de seus pais e, nesse processo de separação, “se armam desse conhecimento para afastarem [-se deles], criticá-los (...) com o único fim de enfraquecê-los” (Alberti, 2004, p. 11).

Isso leva a um confronto difícil de suportar e os pais podem desistir dos filhos, afastando-se prematuramente deles. É o que parece ocorrer com Lolita, na relação com sua mãe. Charlotte parece ter desistido da filha, que não perde uma oportunidade de se contrapor aos planos da mãe, numa atitude desafiadora para a qual lança mão da rivalidade feminina, talvez uma via de acesso para a própria mãe.

Embora em uma situação diferente, também Vera mostra em vários momentos o mesmo tipo de desistência, quando fica alheia e nega as dificuldades e necessidades de Ana Maria e, principalmente, o assédio de Paulo à filha, que, neste caso, provoca um constrangimento. O relacionamento entre Paulo e a enteada foi retomado, por insistência da mãe, persistindo, em Ana Maria, o mal-estar.

A tarefa dos pais é tão difícil quanto a do próprio adolescente. E isso se torna especialmente difícil quando o pai não está presente, não tendo a mãe o auxílio deste terceiro cuja função primordial é impor a lei. Esta ausência é marcante tanto nos casos aqui relatados como nas obras ficcionais citadas. Toda a ação envolvendo a tragédia de Fedra, Hipólito e Teseu se passa na ausência deste.

Oferecer-se como suporte de hostilidade e da ambivalência do filho adolescente é muitas vezes um grande desafio a ser vencido. A busca de um terceiro substituto é muitas vezes tentada mas nem sempre é viável. Tanto Vera quanto Sônia, assim como a própria Charlotte, buscam, mas fracassam. Vera acaba incentivando o contato de Ana Maria com Paulo e, com uma insistência a todo custo, nega a atitude deste com relação à filha.

No caso de Sônia, a dificuldade de cumprir a função materna se apresenta de maneira diferente, quando tenta ser amiga da filha, mesmo no período mais agudo do conflito. Ia para o quarto com Elisa e deitava-se na cama junto com a filha. Ficavam conversando sobre banalidades, de uma forma que pareciam duas adolescentes. Tentava trocar de lugar e, assim, oferecer algo em troca do que não estava conseguindo dar como mãe, por sua impossibilidade de ocupar completamente o lugar de mulher.

A adolescente precisa de papéis firmes que a ajudem a encarar as questões que o encontro com o sexo (Alberti, 2004, p. 8) e as novas identidades apresentam para ela. Um dos aspectos difíceis é o que Danielle Brun denomina o encontro da mulher na mãe (Brun, 1989, p. 21). Corolário do Édipo feminino, esse encontro recebe, na atualidade, um complicador, pois, em decorrência das novas configurações da família contemporânea, muitas vezes a mãe da adolescente deve enfrentar suas próprias questões afetivas de maneira muito mais aguda do que ocorria na sociedade tradicional, tendo, ao mesmo tempo, que acompanhar as ansiedades da filha diante de sua sexualidade.

Este fato fica bastante claro no caso de Ana Maria e sua mãe, que, diante de suas próprias questões, não tem disponibilidade para perceber e auxiliar a vencer os impasses e as angústias vividas pela filha, a ponto de esta precisar buscar a proteção de “pessoas poderosas” da favela.

Quanto à relação entre Sônia e a filha, a forma como se deu o encontro da mulher na mãe, numa situação de confusão de papéis, foi um fator propiciador de atuações, sendo a competição surgida entre as duas apenas em parte de origem edipiana.

Uma hipótese plausível é que na possível atitude sedutora de Elisa houvesse, na verdade, uma tentativa de provocar a mãe para chamá-la para si, da mesma maneira que este movimento estaria presente na história de Lolita em relação a Charlotte.

Isto fica de certa maneira confirmado por uma discussão que as duas travaram, significativamente fora do quarto da filha, quando Elisa se queixou do fato de a mãe escolher ficar com o padrasto e não com ela. Este parece ser o aspecto mais importante desse enredo, as questões que, de fato, precisavam ser conversadas entre as duas: por que a mãe havia feito essa escolha, qual sua importância para a mãe e até onde podia, como filha, contar com ela, apesar da escolha feita pela mãe.

 

O trunfo da juventude

Vários autores já abordaram a questão da adolescência como uma moratória (Calligaris, 2000; Aberastury, 1976; Kehl, 2004) que coloca no limbo indivíduos já saídos da infância, com habilidades físicas que os capacitam para diversas funções mas não suficientes para permitir sua inserção no mundo adulto. Juntando-se a esse quadro as perdas sofridas, os estranhamentos a serem enfrentados, a reativação e intensificação de impulsos sexuais edipianos o resultado será crise, revolta, afastamento.

Um novo aspecto, no entanto, veio se misturar a esse quadro, iniciado com a produção de produtos específicos para essa faixa etária por ocasião do desenvolvimento do mercado de consumo. A esse consumo aliou-se uma idéia de liberdade.

Os jovens do pós-guerra, que nos anos 50 já começaram a representar o anseio de autonomia e contestação, revelaram-se um poderoso exército de consumidores. Uma vez libertados “os freios morais e religiosos que regulavam a relação do corpo com os prazeres” (Kehl, 2004, p. 3) tornaram-se eles o público-alvo do consumo de uma infinidade de produtos: refrigerantes, discos, cosméticos, vestuário, com a emblemática calça Lee, carros etc. criando uma cultura hedonista.

O próximo passo foi a transformação daqueles seres antes meio infantis e desajeitados em modelo de beleza e sensualidade para todas as outras faixas etárias, além de objeto de desejo idealizado.

A adolescência se transforma em um ideal social, encarnando o “maior sonho de nossa cultura, o sonho de liberdade” (Calligaris, 2000, p. 57). Sua apresentação e seu comportamento tornam-se modelos que se espalham para outras faixas etárias, passando os adolescentes a ditar a moda. Há um paradoxo: aqueles que devem esperar para se inserir no mundo adulto são agora figuras idealizadas e invejadas. Todos querem ser jovens e, como diz Kehl (2004), o Brasil atualmente é um país onde só há jovens e idosos.

O trunfo que a juventude representa nessa complicada rede de relações põe em ação alguns componentes representantes das moções pulsionais tais como competição feminina, reativações edipianas e o chamado pseudo-incesto (cujas barreiras são inevitavelmente menos firmes). Torna-se mais um fator a desequilibrar essa delicada balança, provocando a ilusão de potência, poder de ataque, por sua vez gerador de remorso e maior hostilidade.

A adolescência como objeto de desejo vai ao encontro de um anseio de vitalidade permanente, da negação da passagem do tempo e da angústia de castração como vimos no personagem de Humbert, em Lolita.

Embora esse ideal acene com a expectativa de uma disponibilidade infinita para a fruição do prazer, ele leva a uma impossibilidade e ao desamparo.

A idéia de liberdade permanente traz em seu bojo o imediatismo da satisfação, o descompromisso e o caráter descartável das relações, levando a experiências repetitivas e sem muitas chances de continuidade.

 

As pessoas fora do lugar

Elisabeth Roudinesco descreve em A família em desordem o progressivo declínio da imagem paterna na sociedade ocidental. Este declínio começou com o enfraquecimento da imagem de Deus (2003, p. 32), se intensificou com a revolução provocada pelos novos papéis femininos, as mulheres não mais se restringindo ao cenário privado da casa e invadindo o domínio público. A autora destaca a seguir que as novas aquisições tecnocientíficas possibilitam à mulher decidir se vai ter ou não filhos, independentemente da vontade do parceiro; possibilitam escolher como e quando, além de prescindir até mesmo da presença do homem ou da relação sexual para a procriação. Em lugar da sacrossanta autoridade paterna deparamo-nos com o “poder das mães”, expressão cunhada por Roudinesco.

Uma vez podendo decidir o que fazer de suas vidas, as mulheres, assim como os homens, passam a conceber o casamento como algo menos duradouro. O número de divórcios aumenta, o casamento tem uma duração menor, são muito mais freqüentes as relações experimentais, uniões se sucedem gerando meios-irmãos, meias-irmãs, padrastos e madrastas quebrando alicerces antes aparentemente estáveis e transformando a feição da família.

Completa-se o quadro com o reconhecimento social das famílias “homoparentais” &— pais homossexuais que criam filhos adotados ou gerados através de doador &— trazendo mais um abalo que atinge o próprio conceito de família.

Quais serão as conseqüências dessas transformações familiares e de que forma essas mudanças contribuem para uma presumível maior freqüência de histórias semelhantes às de Ana Maria, Lolita, Sônia?

Referindo-se à atual configuração, estruturada em bases aparentemente menos sólidas que as da família nuclear tradicional, tanto Kehl (2003, pp. 9-10) quanto Roudinesco (2003, p. 189) apontam para a idealização da família tradicional, não fosse nela que por tanto tempo foram produzidos a histeria, os abusos, os ódios familiares.

Parece que a família vai persistir, dizem as autoras, de forma diferente, segundo Kehl (2003), agora “tentacular, menos endogâmica [mas] mais arejada” (p. 8). No entanto, não se podem negar as dificuldades decorrentes das novas situações. Roudinesco fala de uma necessidade, expressa pelos homossexuais, “de provar sua aptidão para criar seus filhos” (p. 195). Diz ainda que, querendo convencer que esses filhos não se tornarão homossexuais arriscam-se a dar “uma imagem desastrosa” de si mesmos. Sua conclusão é que esses pais são diferentes dos outros pais e talvez os filhos carreguem um traço singular de um destino mais difícil, mas não tão diferente do que carregam outras crianças.

As muitas mudanças tornaram a família uma instituição menos sólida, mais precária, delas decorrendo muitas vezes sofrimento e desamparo; mas, segundo Kehl, se existir alguém que exerça a função paterna e “alguém que se encarregue amorosamente dos cuidados maternos, a família estruturará edipicamente o sujeito” (2003, p. 12).

O que, de fato, traz conseqüências graves, segundo esta autora, é a dificuldade em sustentar a posição de autoridade responsável diante das crianças, impedindo que os adultos legitimem suas funções no âmbito das estruturas familiares. Com efeito, cabe aos adultos assumir o risco e a responsabilidade de educar as crianças. Decorrente de uma nostalgia da família tradicional, da culpa por não terem sido capazes de proporcionar este modelo de família para os filhos, ou então pelo recusa em se desapegar de uma adolescência extemporânea, esta tem sido uma das dificuldades de pais, mães, madrastas, padrastos na atualidade: tomar para si o papel de educadores impondo as restrições necessárias a um processo educativo.

Kehl conclui que a família que se representa como desestruturada, vale dizer, “que não consegue confiar na estrutura criada a partir de suas necessidades e deslocamentos afetivos” (2003, p. 15), é omissa em relação à educação dos filhos, colocando, assim, as crianças em estado de abandono, à mercê de seus próprios impulsos, “não por falta de amor, mas por falta de responsabilidade” (p. 16), o que ocorre quando o responsável não sustenta sua diferença diante delas.

É o que acontece com Charlotte, Sônia e Vera, que, embora tentem, mais ou menos vezes segundo o caso, não conseguem tomar uma posição parental. Charlotte nega o passar do tempo e desiste de Lolita por não poder viver a competição em sua posição desvalorizada. Vera não se dá conta do pedido de ajuda que lhe faz Ana Maria diante do assédio de Paulo. Sônia, por sua vez, não consegue se colocar no lugar de mãe por não acreditar nessa sua capacidade e oferece em troca o de amiga que não é capaz de fornecer suporte para os conflitos de Elisa, criando um desamparo que provavelmente terá sido atuado.

Um outro caso tratado, ainda não citado, é o de Clara, de vinte anos, filha de Marina. O pai, casado com outra mulher, mantém certa presença junto à filha e, principalmente, referenda as atitudes da mãe para com Clara. Marina também se casou novamente, com Henrique. Quando a mãe de João, o filho caçula de Henrique, morreu, o menino foi morar com o pai, Marina e Clara. Esta gostava do menino mas muitas vezes se sentia enciumada. Uma vez houve uma briga motivada pelo estrago que o menino fizera em uma roupa de Clara. Ela começou a gritar com ele, Henrique interveio. Houve uma briga acirrada e Clara exaltadamente disse que não queria que os dois morassem mais em sua casa. Marina resistiu e fincou pé. Disse que apoiaria Clara se esta decidisse morar em outro lugar mas Henrique e João iriam continuar com ela. Preservou assim tanto seu lugar de mãe como o de mulher. Este fato ocorreu há mais de um ano. Há alguns meses, Clara me disse que tem achado diferente o jeito como Henrique vem olhando para ela, com um “olho comprido”. Estranhou, mas deixou o assunto de lado.

 

Referências

Aberastury, A. (1976). Adolescencia. Buenos Aires: Kagierman.        [ Links ]

Alberti, S. (2004). O adolescente e o outro. Rio de Janeiro: Zahar.        [ Links ]

Brun, D. (1989). Figurações do feminino. São Paulo: Escuta.        [ Links ]

Brunswick, R. M. (1940). The preoedipal phase of the libido development. The Psychoanalytic Quaterly, v. 9, 293-319.        [ Links ]

Callado, A. (1995, 25 de novembro). Lolita já é uma senhora de 40 anos. Folha de S. Paulo, São Paulo.        [ Links ]

Calligaris, C. (2000). A adolescência. São Paulo: Publifolha.        [ Links ]

Eurípedes (428 a.C.). Hipólito. Texto recuperado em 26 jun. 2007: http://www.escolanacionaldeteatro.com.br/texto20.htm.         [ Links ]

Freud, S. (1976a). Além do princípio do prazer. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 18, pp. 17-85). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1920.)        [ Links ]

Freud, S. (1976b). A organização genital infantil: Uma interpolação na teoria da sexualidade. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 19, pp. 177-184). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1923.)        [ Links ]

Freud, S. (1976c). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 7, pp. 123-252). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1905.)        [ Links ]

Kehl, M. R. (2003). Em defesa da família tentacular. Texto recuperado em 26 jun. 2007: http://www.mariaritakehl.psc.br/PDF/emdefesadafamiliatentacular.pdf.        [ Links ]

Kehl, M. R. (2004). A juventude como sintoma da cultura. In. R. Novaes & P. Vanucci, Juventude e sociedade. São Paulo: Fundação Perseu Abramo.        [ Links ]

Nabokov, W. (2003) Lolita. Rio de Janeiro: O Globo. (Trabalho original publicado em 1955.)        [ Links ]

Racine (1964). Phèdre. Paris: Larousse. (Trabalho original publicado em 1677.)        [ Links ]

Roudinesco, E. (2003). A família em desordem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.        [ Links ]

Urribarri, R. (2004). Sobre o processo adolescente. In. R. R. Graña & A. B. S. Piva (Orgs.), A atualidade da psicanálise de adolescentes (pp. 35-50). São Paulo: Casa do Psicólogo.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Ruth Rissin
Av. N.S. de Copacabana, 794/705 &— Copacabana
22050-001 Rio de Janeiro, RJ
Fone: (21) 2547-2998
E-mail: rissin@netfiy.com.br

Recebido em: 25/05/07
Aceito em: 14/06/07

 

 

* Membro Efetivo da APERJ &— Rio 4. Mestre em Teoria Literária &— UFRJ.
1 Este artigo é o desenvolvimento de um trabalho apresentado em mesa-redonda no I Encontro de Psicanálise de Criança e Adolescente do Rio de Janeiro &— 7 a 9 de setembro de 2006. Nos casos clínicos apresentados, tanto os nomes como os dados circunstanciais foram modificados.

Creative Commons License