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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. v.40 n.42 São Paulo jun. 2007

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

Desejo de ter filhos ou desejo de maternidade ou paternidade?

 

Wishing for children or longing for motherhood or fatherhood?

 

¿Deseo de tener hijos o deseo de maternidad o paternidad?

 

 

Maria Lucia Vieira Violante*

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste artigo é evidenciar a necessidade de se proceder a uma investigação psicanalítica acerca do caráter do desejo que anima tanto um casal heterossexual infértil quanto um casal homossexual &— ambos impedidos biológica e/ou psiquicamente de terem filhos &— a demandar ao poder médico e/ou jurídico a realização de um suposto desejo de filhos.

Palavras-chave: Desejo de ter filhos, Desejo de maternidade ou de paternidade.


ABSTRACT

This article intends to highlight the need for a psychoanalytical study (enquiry) about what motivates sterile heterosexual couples or homosexual ones, both biologically or psychically incapable of bearing children, to call for medical or judicial power to fulfill their wish to have children.

Keywords: Wish to have children, Longing for maternity or paternity.


RESUMEN

El objetivo de este artículo es poner en relieve la necesidad de realizarse una investigación psicoanalítica acerca del carácter del deseo que motiva tanto a una pareja heterosexual estéril como a una pareja homosexual &— ambas impedidas biológica y/o psíquicamente de tener hijos &— para demandar al poder médico o jurídico la realización de un supuesto deseo de tener hijos.

Palabras clave: Deseo de tener hijos, Deseo de maternidad o paternidad.


 

 

Em pleno século XXI, sobretudo no meio psicanalítico feminino, ainda causam mal-entendido as teses freudianas acerca da sexualidade feminina, e, em particular, a que diz respeito à fase da organização genital infantil, ou seja, a fase fálica &— de primazia do falo &—, no decorrer da qual, frente à percepção da diferença anatômica entre os sexos, a menina é tomada pela inveja do pênis e, se tudo correr bem, a superará acedendo ao desejo de ter filhos &— primeiramente com o pai, assim como desejara receber da mãe um bebê, e, mediante a inevitável frustração, postergando a realização desse desejo de ter filhos para com o homem de sua escolha amorosa.

De minha parte, como psicanalista e mãe só posso louvar a genialidade de Freud e lamentar o mal-entendido das colegas, dentre as quais Roudinesco (2003). Ao invés de menosprezar a obra de Piera Aulagnier &— como demonstrou a mim quando esteve no Brasil em meados dos anos 90 &—, ela deveria estudá-la, evitando assim, proferir nonsense como o que figura na entrevista à distância concedida à revista Percurso, em 2006. Nesta, ela afirma que “uma criança só pode existir simbolicamente se puder se separar de seu primeiro objeto pulsional, o objeto dito ‘materno’, e não importa se esse objeto é um homem ou uma mulher” Roudinesco (2006, p. 85, grifos meus).

Ao ler isso, exclamei com os meus botões: “Como não?”. A meu ver, não importaria se ela estivesse se referindo a uma função simbólica &— no caso, a materna &— e não a um “objeto pulsional (...) dito ‘materno’”, uma vez que, como nos ensina Freud, “o primeiro objeto erótico de uma criança é o seio da mãe....” (Freud, 1940/1976, p. 216).

Indiscutivelmente, em todas as culturas, o termo “mãe” designa uma mulher &— a que gerou e deu à luz uma criança ou a que substitui a mãe, em caso de necessidade. Mesmo que o homem &— pai ou substituto &— seja convocado, se for necessário, a dar mamadeira, higienizar, embalar, etc. o bebê, nem por isso ele é chamado de mãe nem de “objeto dito ‘materno’”.

Quer queira quer não, a mulher &— ao se tornar mãe &— tem precedência na relação com o/a filho/a, que começa por ser carnal, experiência esta que o homem não possui.

Graças a sua larga experiência analítica com psicóticos &— e dado que estes, assim como as crianças, não demandam diretamente análise a um analista &—, Piera Aulagnier estendeu sua escuta aos pais de seus pacientes, incluindo-os em suas “teorizações flutuantes” e reservando-lhes um lugar de destaque em sua metapsicologia e psicopatologia. Isso Freud não pôde realizar, uma vez que tratou de neuróticos adultos, daí não ter sentido necessidade de entrar em contato com os pais de seus pacientes. E, mais, sabemos que até sua morte, em 1939, Freud considerava que a psicanálise por ele legada só poderia ser estendida ao atendimento de psicóticos se obtivesse progressos futuros. Aqui residem as inestimáveis contribuições contemporâneas de Aulagnier à obra freudiana, em termos metapsicológicos, psicopatológicos, metodológicos, técnicos e, portanto, éticos1.

Em termos metapsicológicos, Aulagnier postula que o desejo de ter filhos é uma transmissão materna &— tanto à filha como ao filho. Mas o acesso destes a tal desejo depende da constituição psíquica de cada um ao final de sua travessia pelo complexo de Édipo tendo assumido (ou não ou mais ou menos) a castração simbólica.

A partir de sua experiência clínica com psicóticos, Aulagnier dedicou-se a investigar e refletir sobre o caráter do desejo que une o casal parental entre si e o de cada um deles em relação a este/a filho/a que se tornou psicótico/a.

Acerca da mãe do esquizofrênico, diz Aulagnier:

Pode existir nessas mulheres o que chamamos um “desejo de maternidade” que é a negação de um “desejo pela criança”: desejo de maternidade pelo qual se exprime o desejo de reviver, em posição invertida, uma relação primária com a mãe, desejo que excluirá dos investimentos maternos tudo o que concerne ao momento de origem da criança (...). A “cena da concepção” (...) é marcada pela rejeição de sua significação essencial: ela não pode ser investida como um ato de criação mas, quando muito, como um ato que repetiria um momento vivido por sua própria mãe num passado longínquo, e em relação ao qual a expectativa seria a de permitir o retorno ao tempo que lhe era próprio (Aulagnier, 1975/1979, pp. 185-186).

Quase dez anos após escrever isso em seu primeiro livro publicado, em 1975, A violência da interpretação, Aulagnier concede uma entrevista a Luis Hornstein, em Buenos Aires, em 1986, quando reitera que, diversamente do desejo de maternidade, o desejo de ter filhos implica uma evolução: “Ter um filho com a mãe, ter um filho do pai até chegar a desejar um filho do homem que lhe possa dá-lo. (...). O ‘desejo de maternidade’ é o desejo de repetir em forma especular sua relação com a mãe” (Hornstein, 1991/1986, p. 367).

Para Aulagnier, tanto quanto a mãe, o pai também pode exercer um poder psicotizante, a exemplo do pai de Schreber, seja usando violência, seja tendo atitudes maternais. Apesar de considerar que a psicose se deve a vários acidentes de percurso, nesta afecção a injunção feita pelo Eu parental &— o do pai e/ou da mãe &— é: “É interdito pensar o interdito”. O que se interdita de maneira privilegiada concerne “à atividade de pensar e, desta maneira, à autonomia do recalcado. O recalcamento serve aos interesses do funcionamento do pensamento de um outro Eu” &— ou seja, o Eu parental (Aulagnier, 1984/1989, pp. 278-280).

Assim é que o acesso ao desejo de ter filhos &— desejo que, por definição, é inconsciente &— não é para quem quiser, mas para quem puder, tudo dependendo da constituição psíquica de cada membro do casal parental &— formado, na nossa cultura, por um homem e uma mulher.

Daí Piera Aulagnier suspeitar, com justa razão, do caráter do desejo que move um casal heterossexual a se submeter para ter um filho a tratamentos caros, dolorosos, longos, incertos e de risco, recorrendo a todos os expedientes proporcionados pelas tecnologias de reprodução assistida. Em “Que desejo, por que filho?”, Aulagnier diz ter experimentado um sentimento de “inquietante estranheza”, ao tomar conhecimento das técnicas de procriação que tornaram possíveis: “a inseminação de uma neta pelo esperma congelado de seu avô, uma mãe que empresta seu útero à filha e ao esperma de seu genro, a inseminação de uma mulher pelo esperma do marido morto há um certo tempo”. Deixa como indagação: “Que conseqüências poderá haver, para o futuro da criança, o caminho escolhido para satisfazer esta demanda?” (Aulagnier, 1989/2004, pp. 11-16) &— demanda feita ao saber médico.

Nesta mesma linha de reflexão, Sophie de Mijolla-Mellor, em “Monta-se uma criança”, para além das condições da procriação assistida e do futuro psíquico da criança assim concebida, coloca “a questão do estatuto dos ‘restos’ (embrião, esperma congelado) à espera de utilização”. Considera que a possibilidade de se “montar uma criança” parece promover riscos quanto ao surgimento dos fantasmas de onipotência e do desejo de auto-engendramento &— riscos maiores do que poderia sofrer qualquer sujeito pelas mesmas produções do inconsciente. Isto porque “a possibilidade de congelar e, portanto, de conservar por um longo tempo aquilo com que se fabrica uma criança introduz uma variável suplementar à do intervalo entre o projeto e a realização, permitindo conceber à distância, até mesmo postumamente” (Mijolla-Mellor, 1989/2004, pp. 17-30).

Hoje, ainda que a legislação de certos países &— o que não é o caso do Brasil nem da França &— permita a adoção de crianças por casais homossexuais, o fato é que nem a ordem cultural nem as leis biológicas mudaram por causa disso. No que diz respeito à psicanálise, por um lado, não há dados clínicos nem a respeito da qualidade do desejo que leva um casal homossexual a querer ter filhos nem acerca das conseqüências psíquicas na criança do fato de ter “pais” homossexuais (dois homens ou duas mulheres). Por outro, há que nascer um outro gênio para superar a psicanálise legada por Freud! Inútil é dar opiniões desprovidas de fundamento quer na clínica, quer na teoria psicanalíticas, justificadas por um pretenso combate ao preconceito social, como o fazem Roudinesco (2003), na França, e Claudine Santos, no Brasil.

Esta última defendeu tese de doutorado em psicologia, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, em 2004, intitulada “A parentalidade em famílias homossexuais com filhos: um estudo fenomenológico da vivência de gays e lésbicas”.

Como o título revela, trata-se de um estudo fenomenológico, sendo portanto completamente alheio à psicanálise e sem qualquer fundamento neste saber.

Sem dúvida, são de interesse para a psicanálise &— que é a um só tempo uma teoria sobre o psiquismo, um método de investigação do inconsciente e uma técnica terapêutica &— pesquisas que, de um lado, desvendem o caráter do desejo que anima um casal homossexual para ter filhos &— adotivos, que é a preferência dos gays, ou por reprodução assistida, que é a preferência das lésbicas2; e que, de outro, verifiquem as conseqüências psíquicas na constituição da criança cujos “pais” (dois homens ou duas mulheres) são homossexuais que vivem juntos.

Na citada entrevista concedida à Percurso por Roudinesco, ela profere um outro nonsense, ao dizer que “se Lacan não tivesse existido, a obra de Freud não ocuparia o lugar que hoje ocupa no mundo intelectual da maioria dos grandes países” (Roudinesco, 2006, p. 86).

Paradoxalmente, em Jacques Lacan: Esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento, ela considera o lacanismo uma “forma francesa do freudismo” (Roudinesco, 1994, p. 257). Relata que Lacan defendeu sua tese de doutorado em psiquiatria, Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade, em 1932 &— ano em que Freud escrevia, entre outros trabalhos, as Novas conferências introdutórias sobre psicanálise. E, tendo-a enviado ao Mestre, Lacan deste obteve uma resposta lacônica, em janeiro de 1933: “Obrigado pelo envio de vossa tese” (p. 73).

Este parece ter sido o único contato entre Freud e Lacan. Note-se que Freud elaborou sua obra de 1892 a 1938, ou seja, durante quarenta e seis anos, portanto, durante a maior parte de sua vida, tendo ele falecido em 1939, aos oitenta e três anos de idade. Sabemos que a primeira comunicação psicanalítica de Lacan sobre o estádio do espelho data de 1936, conforme ele revela no Congresso de 1949, em Zurique (Lacan, 1949/1998). Isso posto, podemos concluir que o certo é que, se Freud não houvesse existido, simplesmente não haveria psicanálise e não se sabe o que seria de Lacan!

Como Green nos faz lembrar,

Se cada um dentre nós respira e está vivo, isto é a conseqüência, feliz ou infelizmente, de uma cena primitiva, ou seja, em outros termos, para ser mais explícito, de uma relação sexual, feliz ou infeliz, entre dois pais, sexualmente diferentes, quer isso nos agrade ou não (Green, 1995/2003, p. 29).

Pergunto: Green é retrógrado? Está ultrapassado?

Com certeza, não!

De acordo com Piera Aulagnier, não é possível analisar a função do Eu “... sem considerar o campo sociocultural no qual vive o sujeito” (Aulagnier, 1975/1979, p. 22).

Para a autora, no funcionamento psíquico, é transcultural o fato de a criança desconhecer, na sua primeira relação com a mãe, a irredutibilidade dos seguintes elementos:

&— O corpo do homem possui um órgão que a mulher não possui.

&— Este objeto é, para ela, objeto de prazer e necessário à procriação.

&— Todo infans descobre que o primeiro objeto investido pela totalidade de sua libido não responde da mesma forma, que a mãe deseja outra coisa que ele não pode dar, que seu prazer sexual tem outro suporte.

&— A mãe respeita, teme ou venera o discurso de um outro ou dos outros. Seu desejo (do infans) e sua demanda não são suficientes para que ele obtenha a resposta que espera. Daí decorre sua busca (e aqui continuamos no universal) para tentar saber quem ela deseja, ou quem lhe dita a lei. Em nossa cultura, esta busca fá-lo se deparar com o pai e seu desejo.

Ao encontrar o desejo do pai, a criança encontra também o último fator que permite que o espaço extrapsique se organize de maneira a tornar possível o funcionamento do Eu ou, inversamente, a obstaculizá-lo (Aulagnier, 1975/1979, p. 136).

Mas, antes de analisarmos a função do pai e o lugar que seu desejo ocupa na constituição psíquica do sujeito, detenhamo-nos na função materna, uma vez que, no registro temporal, há efetivamente uma primazia da relação entre a criança e a mãe.

Segundo Aulagnier (1975/1979), o termo “mãe” designa uma mulher cuja sexualidade infantil deve estar bem recalcada; deve portar um sentimento de amor pela criança e estar de acordo com o essencial atribuído pela cultura à função materna, além de ter ao seu lado um pai da criança a quem ela dedica sentimentos positivos.

Na citada entrevista a Hornstein, em 1986, Aulagnier reitera que

(...) a experiência da gravidez induz na mãe uma forma de investimento neste ser que ela porta em seu interior, que não possui a mesma qualidade daquele que o pai experimenta durante sua espera pelo filho. Este é um privilégio “natural”, cuja marca, positiva ou negativa, o homem sempre portará (Aulagnier, 1986/1991, p. 139).

Segundo Aulagnier, antes de o Eu advir, no estádio do espelho de que fala Lacan (entre os seis e os dezoito meses de vida), o modo originário do funcionamento psíquico representa o encontro inaugural boca-seio e o prazer ou desprazer vivido como tendo sido auto-engendrado, o que o torna o “existente psíquico” que antecipa e prenuncia o objeto mãe. Assim é que “uma experiência de nosso corpo ocupa o lugar que depois a mãe ocupará: ao Eu antecipado lhe faz par uma ‘mãe antecipada’ por uma experiência do corpo” (Aulagnier, 1986/1991, p. 141). A autora adverte que “outorgar à mãe (...) um lugar predominante não implica esquecer aquele que o pai ocupa” (p. 139).

Porém, no campo do saber psicanalítico, conforme Aulagnier constata, é surpreendente o lugar ambíguo atribuído ao pai e ao seu desejo pelo/a filho/a e pela mãe da criança.

Referente da lei, detentor das chaves que dão acesso ao simbólico, doador do nome: o nome do pai terá, já em Freud (mesmo que o termo não seja empregado), e sobretudo em Lacan, um lugar central. Sua forclusão designará a causa do destino psicótico, sua ausência, ou melhor, seu não reconhecimento pelo discurso materno, serão considerados como responsáveis pela antinomia entre o sujeito do enunciado e o sujeito desejante (Aulagnier, 1975/1979, p. 136).

A autora acrescenta que, paralelamente ao papel atribuído ao nome do pai,

(...) constatamos a pequena importância dada à análise de seu desejo, cuja ação parece se reduzir à resposta que a ele dá à mãe, através de seu reconhecimento ou de sua recusa. No melhor dos casos, além da mãe do esquizofrênico, insistir-se-á na análise do casal parental e de sua relação; no que se refere à ação do desejo do pai sobre a criança, deparamo-nos com um estranho silêncio (Aulagnier, 1975/1979, p. 137).

E completa que, a menos que partilhemos a ilusão infantil sobre a onipotência da mãe, esquecemos que

(...) a exclusão do pai implica, de sua parte, um querer excluir-se, que o eventual desejo de castração da mãe a seu respeito é tanto mais operante, quanto ela encontra no parceiro um desejo de desempenhar este papel de vítima. A isto acrescenta-se o que nos mostra a clínica: a importância da problemática do pai, de sua violência, de sua atitude maternal e, mais geralmente, do agir e do discurso pelos quais se manifesta, na cena do real, seu desejo pela criança (Aulagnier, 1975/1979, p. 137).

Do lado da criança, no processo de constituição de sua psique, Aulagnier postula uma série de transformações sofridas pelo enunciado pelo qual se pode traduzir a finalidade presente na figuração do primário (modo inconsciente do funcionamento psíquico): “ser o objeto do desejo da mãe...”. Focalizando-se apenas a problemática feminina, tem-se:

&— ser objeto do desejo da mãe

&— ter um filho com a mãe

&— tomar o objeto do desejo da mãe

&— ser o objeto do desejo do pai

&— ter um filho do pai

&— dar um filho a um pai &— (e a partir do momento no qual a mulher torna-se mãe)

&— desejar que seu próprio filho se torne pai (ou mãe), que seja realizado por ele um mesmo “desejo de ter filho”.

&— Três termos de parentesco circulam: criança, pai, mãe.

&— Quatro verbos são representados por dois pares: ser-tomar; ter-dar (Aulagnier, 1975/1979, p. 115).

Segundo a autora,

A análise sintáxica destas formulações mostra a persistência do mesmo objeto direto para os verbos ter e ser: a criança. O que muda é o objeto indireto. Esta modificação é provocada pela conformidade que a sintaxe deve manter com a ordem de parentesco de uma cultura dada. Quanto ao sujeito que deseja (...) trata-se, evidentemente, do mesmo... A realização deste desejo é postergada a um tempo futuro: deseja-se, para aquele que acaba de nascer, que ele tenha um filho (Aulagnier, 1975/1979, p. 115).

Assim é que tanto a menina quanto o menino herdam um desejo de ter filhos, que lhes é transmitido pelo “desejo materno: ‘que eles se tornem também pai ou mãe’”. Isso significa que a realização de um desejo de ter filhos por parte da menina e do menino encontra sua origem num voto enunciado pelo discurso materno. Portanto, na verdade,

(...) o desejo de ter filho do pai é intimamente ligado aos votos relacionados à esfera materna e à era de seu poder. A antecipação característica de seu discurso, quando se trata de um filho, vai transmitir-lhe um desejo identificatório &— tornar-se pai &— que se refere a uma função que ela não possui e que ela só pode referir à função de seu próprio pai. Neste sentido, seu discurso fala de uma função que passa de pai a pai (Aulagnier, 1975/1979, p. 137).

Aulagnier atribui a Lacan a noção de que a mãe é o primeiro representante do Outro, enquanto o pai é o primeiro representante dos outros (do discurso do meio). Admite que situa este casal em nossa cultura, mas que

Podemos perfeitamente imaginar um sistema, no qual este representante não é o pai. Mas qualquer que ele seja (o tio, um antepassado, o sacerdote, uma classe ou uma casta, e também a classe das Mães), seu papel não deixa de ser necessário. O discurso materno deverá, portanto, encontrar este ponto de referência e em seguida ser a voz que enuncia ao infans a existência desta referência. A função materna precisa se apoiar sobre um modelo, sendo este modelo o que é invocado para a criança como razão, lei, fundamento de seu agir. O suporte que, segundo as diferentes culturas, sustenta o papel de representante do discurso dos outros não é indiferente para o destino psíquico do sujeito, como não é indiferente a maior ou menor valorização do modelo pelo grupo. Eis por que existem culturas ou momentos de uma cultura que poderão agravar ou reduzir o risco psicótico (Aulagnier, 1975/1979, p. 138).

Desde A violência da interpretação (1975), Aulagnier concebe o corpo como parte integrante do funcionamento psíquico. Em “Nascimento de um corpo, origem de uma história” (1986), o corpo relacional vem ocupar um lugar privilegiado em suas reflexões metapsicológicas e psicopatológicas. Apesar do lugar prevalente que a mãe possui junto ao filho, a autora reconhece que, desde o começo da vida,

(...) o pai exerce também uma ação modificadora sobre o meio psíquico ambiente do recém-nascido, mas, na quase totalidade dos casos, uma pessoa &— e quase sempre a mãe &— desempenha um papel nutridor privilegiado, ao oferecer o seio ou a mamadeira, aportando ao bebê &— por desejo ou por dever &— uma satisfação vital. Essa pessoa que tem o poder de responder às necessidades e, ao fazê-lo, o de ser a fonte das primeiras experiências de prazer como de sofrimento, vem desempenhar este papel de modificador da realidade somatopsíquica, pela qual se prenuncia a presença de um mundo habitado. Por isso, a mãe também é aquela pela qual o primeiro “signo” da presença de um pai ou de sua ausência abrirá brecha na psique do bebê: sua escolha destes “signos” dependerá de sua relação com este pai. Num tempo ulterior, mas sem dúvida muito próximo, a criança poderá recusá-los para forjar os seus próprios, instaurando com o pai uma relação de acordo ou em desacordo com a que a precedia (Aulagnier, 1986/1991, p. 139).

No encontro com o pai, inicialmente, o que se oferece ao olhar e à libido do bebê é “... este ‘Outro-sem-seio’ que pode ser fonte de um prazer e, mais geralmente, fonte de afeto. O que marca seu traço específico e diferencial, por oposição ao encontro com a mãe, é que o encontro paterno não se faz no registro da necessidade....” (Aulagnier, 1975/1979, p. 139).

Se, de um lado, a criança começa a reconhecer o representante da função paterna naquele que o discurso materno lhe designa como tal, de outro, o reconhece no discurso efetivo pronunciado pela voz paterna. Aulagnier faz-nos lembrar que

(...) o acesso da criança à categoria do conceito mostra a utilidade de um elo intermediário que lhe ofereça uma primeira encarnação do símbolo, a partir do qual ela poderá, secundariamente, separar o conceito do que foi o seu primeiro suporte na cena do real (Aulagnier, 1975/1979, p. 139).

Como se vê, nesta primeira fase da vida, é do lado da mãe que o bebê procura e encontra as razões da existência do pai &— é a ele que a mãe se referirá para demonstrar a legalidade de seus modelos. Posteriormente, “é este ‘outro espaço’ desejado pela mãe, o que representa o pai na cena e é este desejo que lhe confere seu poder”. Isso, muito embora num segundo momento, “... é porque o pai deseja a mãe e se apresenta como o agente do gozo e de sua legitimidade, que ele ocupa o lugar daquele que tem o direito de decretar o que o filho pode oferecer à mãe como prazer e o que lhe é interditado propor” (Aulagnier, 1975/1979, p. 140). Por isso, o pai se apresenta à criança &— menino e menina &— como objeto a odiar, assim como objeto a seduzir. No que diz respeito à função paterna, Aulagnier considera que ela é demarcada por três referentes: a interpretação que a mãe se deu acerca da função de seu próprio pai; a função que a criança atribui a seu pai e a função que a mãe lhe atribui; o que a mãe deseja transmitir ou interditar a respeito desta função (p. 137). A esses três referentes acrescento um quarto, para ser coerente com o que a própria autora postula: a função que o próprio pai da criança se atribui e a que ele exerce &— conforme sua constituição psíquica e, em acordo (ou em desacordo) com a definição dada à função paterna pelo meio sociocultural.

Para finalizar, no Brasil, só são colocadas em adoção crianças extremamente pobres &— sendo sempre passíveis de serem devolvidas ao poder público, quando os pais adotivos assim o quiserem. Tais crianças constituem a única “mercadoria” que pode ser devolvida, ao gosto do freguês!

Quanto às tecnologias de reprodução assistida, Dr. Luis Bahamondes e Dr. João Luiz Pinto e Silva, do Departamento de Tocoginecologia da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP, no artigo “Resultados perinatais de crianças nascidas por fertilização assistida”, revelam que, ainda que não conclusivas, pesquisas realizadas em vários países estão detectando riscos diversos para a saúde destas crianças, dentre os quais o retinoblastoma (câncer dos olhos)3.

Estamos vivendo o efeito estufa causado pelo aquecimento global do planeta Terra, o que deve nos ensinar que a mãe-natureza dá o troco, quando o homem dela abusa &— pior ainda, quando abusa da limitada condição humana!

Portanto, considero ser aconselhável que: as pessoas que, sem poder ter filhos, pensam que querem tê-los, submetam-se a uma análise; os psicanalistas interessados investiguem essa problemática, lutando contra o preconceito social, como cidadãos, nas esferas políticas apropriadas.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Maria Lucia V. Violante
R. Girassol, 1540/32 &— V. Madalena
05433-002 São Paulo, SP
Fone: (11) 3815-2461
E-mail: mlviolante@terra.com.br

Recebido em: 25/02/07
Aceito em: 29/03/07

 

* Professora Titular do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP.
1 A esse respeito, q. v. Violante, M. L. V. (2001).
2 Conforme relata Carlos Haag (2007), autor da reportagem “Um é pouco. Dois é bom”, sobre a referida tese de Claudine Santos.
3 Conforme cópia do artigo submetido a publicação, em 3/3/2003, no periódico Reprodução e Climatério.

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