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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. v.40 n.42 São Paulo jun. 2007

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

Trauma familiar e crise1

 

Crises and family trauma

 

Trauma familiar y crisis

 

 

Luiz Meyer*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O autor discute inicialmente as noções de crise e de trauma para, em seguida, apontá-las como inerentes à dinâmica familiar e ao seu ciclo de desenvolvimento. Essas concepções são ilustradas através de um fragmento clínico que descreve o comportamento de uma família, de composição eclética, face a um acidente trágico que levou à morte de um de seus membros: uma criança de três anos. Na discussão o autor aponta que a experiência traumática central é a perda da confiança no objeto protetor e integrador com o qual a família estava até então identificada.

Palavras-chave: Família, Crise, Trauma, Objeto integrador.


ABSTRACT

The paper at its beginning discusses the notion of crises and trauma. It proceeds approaching them as inherent to the functioning of the family dynamic and its developmental cycle. This way of thinking is illustrated by a clinical vignette that describes the behavior of a family (whose members had several different origins) when they had to face a tragic accident that led to the death of one of its members: a three year old child. In the discussion the author indicate as the central traumatic experience the loss of trust in the protective and integrative object with which the family was identified until the occurrence of the accident.

Keywords: Family, Crisis, Trauma, Integrating object.


RESUMEN

El autor discute en primer lugar las nociones de crisis y de trauma y enseguida las apunta como inherentes a la dinámica familiar y a su ciclo de desarrollo. Estas concepciones son ilustradas mediante un fragmento clínico que describe el comportamiento de una família, de composición ecléctica, frente a un accidente trágico que llevó a la muerte a uno de sus miembros: un niño de tres anos. En la discusión el autor señala que la experiencia traumática central es la perdida de confianza en el objeto protector e integrador con el cual la familia estaba hasta ese momento identificada.

Palabras clave: Familia, Crisis, Trauma, Objeto integrador.


 

 

Apresentação

Este trabalho foi escrito para o painel “Trauma e Crise Familiar”, que se realizou durante o 44º Congresso da IPA, no Rio de Janeiro. Ele visava contribuir para o temário central do Congresso, focado na noção de trauma e suas conseqüências. Aqui, a idéia de trauma vem acolada à de crise, sugerindo se não uma relação de causa e efeito ao menos um encadeamento.

A noção de crise cobre um terreno abrangente com vários vieses de entrada: agudização de um conflito, ruptura de equilíbrio, intensificação de uma situação de tensão, momento difícil ou perigoso de um processo, desordem acompanhada de busca de solução.

Se acompanharmos as idéias de Tutté (2004), veremos que a idéia de crise &— uma conjuntura aflitiva &— se aproxima do conceito de “situação traumática”, que ele distingue da noção de trauma: a situação traumática é vista por ele como uma presença constante no devir psíquico, provocadora de dor e sofrimento, criadora de desequilíbrio e instabilidade. Mas é justamente a pressão conjunta dessas ocorrências que força o aparelho psíquico a procurar um sentido para o que lhe está acontecendo, isto é, um sentido para a própria forma que este funcionamento assumiu, o que lhe fornece meios para apreender o processo em curso. Reisner, a concebe como “uma crise de experiência e significado mais do que apenas o resultado de uma imposição do meio ambiente sobre o ego enfraquecido” (2003, p. 381).

A situação traumática implica uma interação oscilante entre o “fora” e o mundo interno do sujeito, e o que vai marcá-la não é tanto o fato desencadeante e sim o modo como este vai ser psiquicamente experimentado, isto é, a interpretação que lhe é dada. O foco de interesse se desvia do evento para seu destino. Assim concebida a situação traumática é estruturante do aparelho psíquico, pois a busca que ela impõe torna-a promotora do desenvolvimento deste aparelho.

Já o trauma propriamente dito surge como o fracasso operacional da situação traumática, isto é, como uma situação traumática que não consegue atualizar-se enquanto experiência e aprendizagem, que perdeu seu potencial de metaforização e historização.

Creio que a maioria daqueles que se dedicam ao estudo e à clínica da terapia familiar reconhecem nas formulações que definem a situação traumática uma descrição bastante próxima do que chamamos dinâmica familiar, conotada por uma estrutura que se afirma e se transforma através de crises que vão configurando sua identidade. Valendo-me da teorização que Ogden expõe em seu artigo “The dialectically constituted/descentered subject of psychoanalysis” (1992), eu diria que cada crise descentra a família de sua configuração estável colocando no horizonte o referente que dá sentido ao deslocamento ocorrido. Aliás a idéia de “configuração estável” é inteiramente contraditória com o que estou propondo, pois qualquer situação vivida pela família, desde aquelas ligadas às suas funções básicas, à sua eficácia, precisa operar de modo crítico, isto é, mantendo a possibilidade de crise como intrínseca ao seu funcionamento. Tomemos, por exemplo, a noção de proteção da prole: de um lado a família precisa funcionar limitando a liberdade de ação daqueles que são menos capazes ou desenvolvidos para que não sejam expostos a perigos, para os quais não estão instrumentados. De outro lado é necessário que a família propicie e estimule a exposição destes membros a situações de risco, justamente para que adquiram um ferramental que possam instrumentar, propiciando-lhes autonomia face a seus protetores-provedores. Esta autonomia, na medida em que se desenvolve &— e neste trajeto podemos supor a ocorrência de sucessivas crises &—, trabalha a favor do afastamento destes membros em direção à formação de suas próprias famílias, que agora terão como referente a família de origem, a qual evidentemente possui também uma origem a que se referir, e assim por diante. Percebe-se que o sentido de crise ganha aqui uma dimensão dialética, onde negação e afirmação não se anulam mas estimulam a construção de um terceiro, sempre referido aos elementos iniciais, mas deles descentrado. Ao mesmo tempo a configuração do momento crítico e a maneira como é abordado revelam a estrutura preexistente da família cujo funcionamento necessitou dar aquele preciso sentido e encaminhamento à crise.

Dissemos acima que o trauma propriamente dito emerge como o fracasso operacional da situação traumática, o que implicaria o desmantelamento ou paralisia da estrutura destinada a configurar a crise enquanto tal de modo a possibilitar sua abordagem. Este desmantelamento, é verdade, pode ocorrer &—não há como negar o efeito brutal de certos traumas. Entretanto se partirmos do princípio de que a família interpreta o trauma a partir do interior de sua estrutura, e de que esta interpretação é por sua vez reveladora de seu mundo interior e dos recursos disponíveis, deveremos manter como premissa que a reação ao trauma deve ser concebida como possuindo um caráter defensivo. Tentarei desenvolver isto um pouco mais adiante quando me referir à família aderida ao trauma, e à situação inversa, do trauma aderido à família.

 

Material clínico

Primeira entrevista

Para ilustrar estas idéias vou apresentar material colhido junto a uma família que viveu uma situação dramática e dolorosa: a perda por acidente de uma criança. O material é bastante escasso &— duas entrevistas apenas &—, mas creio que ele pode funcionar como estímulo para pensarmos a questão do trauma e da crise.

Esta família foi vista no Hospital do Servidor Público Municipal (HSPM), que atende funcionários do município e seus dependentes. O hospital possui uma clínica de psiquiatria e psicologia da infância e adolescência e um pronto atendimento onde uma equipe de cinco pessoas atende quaisquer famílias que procurem a clínica. Duas pessoas desta equipe fazem supervisão comigo e uma delas cedeu o material que vou apresentar2.

Comparecem a mãe, Antônia Fausta Travassos, de 34 anos, agente escolar, acompanhada de quatro filhos menores. Logo no início o terapeuta percebe que os filhos têm sobrenomes diferentes e descobre que eles são fruto de três uniões diferentes da mãe.

. Marion, de 15 anos, e Pamela, de 14 anos, são filhas da primeira união;

. Robert, de 10 anos, é produto da segunda união;

. Richard, de 7 anos, Antônio Henrique, de 3 anos, e Beto, de 1 ano e 7 meses, são frutos da relação atual. Antônio Henrique, o Kico, morrera dois meses antes.

O grupo é atendido numa sala própria para grupos de crianças (e adolescentes), com móveis pequenos. Ao redor de uma mesa, em banquinhos de madeira, dispõem-se, unidos, humildes, bonitos. Não tanto a mãe: de aspecto um pouco pesado, mais exigente que humilde, nada tímida; e, embora ao redor também, está bem mais afastada da mesa, mais até que o terapeuta, como se dissesse que o encontro é entre os filhos e o doutor. As crianças se revezam em apoiar a cabeça na parede (atrás) e na mesa.

É a mãe quem fala: vêm porque “Pamela anda muito revoltada com os irmãos”.

“É? Como será isso?”, pergunta o terapeuta.

Bom, sempre foi um pouco revoltada, mas está muito mais desde o acidente com o Kico, ocorrido há dois meses. Acidente: com álcool, com fogo que o matara, cinqüenta e três dias depois.

Mais tarde, ao rever sua notas o terapeuta se dá conta então de que a criança não morrerá havia dois meses, como entendera, mas sim, cinqüenta e três dias após o acidente. O atendimento é que estava ocorrendo dois meses após este acidente, portanto uma semana após a morte do menino.

O terapeuta lhes diz que parecem que estão todos com a cabeça pesada, procurando apoio, e os convida a falarem sobre o que acontecera.

Então falam &— e já não só a mãe; os pequenos, e as duas garotas, que até então davam somente risinhos e uns guinchos, ajuntam-se agora na montagem do quadro, terrível, do acidente do Kico.

Mas é a mãe que relata mais continuadamente.

Um colega dos garotos, Dani, rapazinho de 16 anos, tinha brigado com a namorada; ficara dois dias na rua, mas fora depois para a casa deles, abrigado num quarto dos fundos. Para isso, esvaziam o quarto, cheio de madeiras. A mãe propõe que coloquem fogo nelas (amontoadas no pátio); Robert diz que “não, por causa do cheiro”, mas a sugestão da mãe prevalece. Derramam álcool sobre elas, e Robert deixa cair um pouco no chão, formando um rastro. Cuidam que Kico se afaste, e colocam-no num cercado, com um cadeado, não trancado. Mas o menino subiu numa moto, que estava ao lado, retirou o cadeado e se aproximou, sem que os familiares percebessem. Ateiam fogo à madeira.

O álcool... o recipiente explode, o fogo voa. Vêem Kico, que grita, já queimando. Robert puxa-lhe a roupa para apagar o fogo, Richard grita, assustado e machucado com faíscas, Dani tenta tirar o short do pequeno. A mãe estava até aí dentro da casa. Richard corre para o chuveiro com o irmão e grita para a mãe que “o Kico queimou o pezinho”...

A correria se alarga, agora em busca de socorro em hospital. Aquele a que recorrem primeiro não tem UTI; a mãe apela à administração municipal e consegue vaga no HSPM. Demora a ambulância-UTI; ligam para o Resgate; chega a ambulância. O HSPM não tem enfermaria para queimados; conseguem vaga em outro hospital, mas este não tem UTI; ligações telefônicas do HSPM fazem surgir vaga no Hospital do Tatuapé. Uma vez lá, são informados de que “se agüentar uma semana, sobreviverá”.

Descrevem que no hospital o menino é atendido em serviços variados, localizados em andares diferentes. Sempre que volta de um deles Kico parece “agitado”, conforme o olhar da mãe. Quando ela mostra isso ao médico, este, que aplicava morfina, troca-a por Fenergan. Mais adiante percebe que se formam coleções de sangue no flanco do menino; a mãe pergunta sobre isso, inquieta. Tinham cortado vasos na limpeza, deram pontos nas costas... Ela diz à equipe: “Se ele morresse agora, vocês iam falar que foi por causa da queimadura!”. Ela apela; outro médico coloca um curativo, estanca o sangue. E diz à mãe que “o outro médico é preguiçoso”.

Nessa altura, decorridos cinqüenta dias, ouvem falar em “enxerto”. Um médico alerta que “não estão fazendo nada”... Escutam de uma enfermeira: “... quarenta e cinco mil jogados fora!”... “Que será isso? Meu filho, cobaia de algum experimento?!”, inquieta-se mais a mãe.

Ela escuta dizer que seu comportamento está criando confusão entre as equipes do nono e do quinto andares. Um médico comenta que “o médico preguiçoso fez cagada”. O menino volta ao quinto andar.

Em seqüência, no dia 17, Kico perde sangue (o que, segundo a mãe, seria a causa de sua morte); no dia 18 leva pontos sem receber transfusão e no dia 19, branco, sofre três paradas cardíacas de madrugada morrendo então cinqüenta e três dias após o acidente.

“Então, doutor”, ela diz ao terapeuta, “ele morreu por falta de sangue, pelo que eles (não) fizeram lá no hospital com ele!”. Agora, a família espera um laudo do Instituto Médico-Legal. Pensava processar o hospital, assessorados gratuitamente pela Dra. Vitória do Programa do Ratinho, a quem chegaram através de um advogado do bairro da Liberdade. “O que vocês ganharem, fica para vocês... É só ver se houve negligência”, diz-lhes o atencioso departamento, que desinteressadamente só sugere colocar uma faixa na casa da família, informando ao público que estão a defendê-la.

Houve também uma ida ao Centro Espírita Paz e Amor, mas, não possuindo a quantia solicitada, lá não retornaram.

O terapeuta, impactado pelo relato, e sentindo ainda ressoar em seus ouvidos os substantivos abstratos Paz, Amor, Liberdade, Vitória, diz ao grupo que talvez a revolta não esteja só em Pamela mas espelhada e carregada por toda a família. Propõe um novo encontro onde todos poderiam trazer esta revolta, ou outra coisa qualquer, “do pensamento”, ou objetos como um brinquedo, um papel desenhado, escrito, rabiscado, algum sonho que alguém teve, etc.

Acham engraçado isso, e aceitam.

No pequeno burburinho da saída, o terapeuta escuta duas frases: “A culpa é sua, Marion”, e: “A Pamela fica culpando a gente”.

Segunda entrevista

Ocorre uma semana após a primeira. Trazem desenhos: uma baleia nadando com uma baleinha num mar de pingos de água; uma criança regando uma flor; e uma foto de Kico.

A mãe, desta vez, integra a roda. Começam se provocando. Pamela pisa no pé de Marion, Robert chama Pamela para brigar e esta o xinga: “Você é a cara do Chucky, o boneco assassino” Pamela chora, limpa o nariz com papel higiênico que tira do bolso e se queixa: “Ele é sempre o santo, em tudo”.

Mencionam, na seqüência, Pepita, o ursinho. Como estava rasgado a mãe o jogou fora. O mesmo acontece com a boneca Pescocinho &— cujo pescoço estava rasgado, e foi para o lixo. Falam também de outra boneca, queimada pelas irmãs: no fogo ela piscou. Bem, era de plástico. É, mas era igualzinho a piscar. A boneca queimada parecia estar viva; concordam. Lembram também do palhaço Maçarico, de cabelo assim para cima, igual a um maçarico.

O terapeuta assinala que Pepita, a boneca Pescocinho, a boneca que queimou e Maçarico parecem quatro irmãos, poderiam ser uma família, “como esta de vocês”, todos machucados. Ouvem-se risinhos e surge então um retrato do Kico. Robert novamente provoca Pamela, que se queixa, chora, limpa-se com o papel higiênico.

Voltam a falar do acidente. Pamela não se encontrava em casa, estava na casa de um tio. Ela acrescenta: “Minha mãe fala que se eu estivesse não tinha acontecido”.

A mãe diz que Pamela é uma menina mais responsável que Marion; quando leva Beto à creche sempre o agasalha. Robert acrescenta que Pamela levava Kico e Beto à creche e que ele com Marion iam buscá-lo.

O terapeuta faz uma tentativa cautelosa de ilustrar o jogo de projeções, principalmente em direção a Pamela.

Começa apontando o cuidado que uns têm com os outros. E a sensação muito ruim de não terem cuidado, ou não terem tido o cuidado suficiente com o Kico. Cada um, todos, se sentindo assim, culpados, como se fossem um Chucky, o boneco assassino. Mas isso é tão ruim, que cada um procura imediatamente pensar que “Chucky” é o outro irmão.

Como parecem suportar sua fala, ele continua: “E o Kico? Ele veio (a foto); parece que ele acompanha vocês, que ele está (meio) vivo, acusando cada um: ‘Foi sua culpa!’. Como a boneca-queimada-que-piscou, ele, queimando, parece olhar para vocês com um ‘olho bravo’ (isto é, olhar acusador). Vocês sentem que ele está meio morto, meio vivo; e estão assustados”.

Algum silêncio, risinhos.

A mãe contesta: “No começo, tava um jogando pro outro mesmo! Mas, agora, não. A gente sabe que não teve cuidado foi no hospital. Demos sangue, arranjamos doadores...”. “Parei de trabalhar e estudar.”

O terapeuta pensa que poderia intervir dizendo que procuram resolver a persecutoriedade unindo-se em bloco e acusando alguém, algo, fora: “o hospital”. Mas sente-se duplamente impedido: de um lado acha que seria prematuro fazê-lo já, bombardeando a trincheira onde a família se colocou; e de outro acha que dificilmente haveria receptáculo para projeções mais adequado que hospitais, não só os públicos. Não fala; então procura continuar escutando.

Mãe: “...dia 17 nós íamos trocar [de lugar, no hospital], o pai saiu e eu ia ficar com Kico. Aí, perguntei pro meu marido a respeito do sangue: ‘E os pontos?... o sangue...!’ Ele falou que não tinham dado pontos em tudo. E ainda disse: ‘O vampiro que fez isso amanhã arruma’. Eu ia pra lá, mas estava muito cansada. Então o pai ficou no meu lugar. A Marion depois me ligou: ‘Ele está intubado’”.

O terapeuta pergunta quem mais chegou a ver Kico no hospital.

Mãe: “Ninguém. A Pamela ficava em casa brincando, imaginando ele. O Robert não sai sozinho. Eu dizia pra eles que ele estava bem, brincando”. E retoma a história do dia 17: “O pai pegou uma gripe forte, tava com um febrão. Foi pra casa, caiu na cama e dormiu. A Marion falou que o Kico estava intubado, eu pensei em ir pra lá, mas não fui. Depois que dormiu, o pai falou dele, como ele estava. Aí nós fomos pro hospital. A Marion falou que não tinham posto mais sangue nele. Teve parada cardíaca. Aí eu não tinha entrada livre mais, lá, não deixavam mais. Os médicos falaram: ‘Teve três paradas cardíacas’. Às seis horas da manhã o rosto dele tava quentinho. Vivo ainda! Aí eu acusei meu marido: a bolsa de sangue tava pingando! Eu teria falado! Ele fala mole”.

O terapeuta começa a falar. Diz que a mãe aqui hoje está “mais dentro”, que estivera fora da casa, fora do hospital no dia &— semelhante a Pamela &—, que também se sente culpada...

A mãe interrompe: “O médico tentou pôr cateto (sic), tentou três vezes. Entrei na sala e falei pra ele: ‘O senhor é médico, mas não sabe tudo, não!’”.

O terapeuta entende a mensagem. E vai por outra linha.

Fala então dos desenhos, basicamente, aqueles que aludem à baleia, como uma baleia-mãe chorando, de um mar agitado, do choro coletivo e do Kico regando a flor, que é antítese do olhar acusador.

........

Apesar da insistência do terapeuta, que contatou a família várias vezes, ao longo de um ano, eles não mais voltaram. O terapeuta marcava a consulta, eles se dispunham a comparecer, mas não vinham. Davam várias explicações, diziam da disposição de comparecer, mas não o faziam. No último contato recebeu a informação de que não mais moravam naquela casa. Restou-lhe a pergunta se não havia pecado por excesso &— tocado em algum ponto ainda não maduro para ser abordado.

 

Discussão

Creio que podemos reconhecer no material apresentado uma ampla série de comportamentos e reações comumente descritas na literatura, e que se fazem presentes em situações de perda e do luto que dela decorrem (Meyer, 2002). Não vou me deter nelas. Pretendo apenas apontar como este material se alinha com muitos dos aspectos sublinhados na apresentação, particularmente, o quanto a situação traumática implica uma crise de experiência e significado e sobretudo o quanto ela se organiza através da interpretação, que vai dar significado às circunstâncias e ao elemento desencadeante do trauma.

As informações que temos sobre a família são escassas. Mesmo assim me arrisco a considerá-la um grupo flexível. Numa linguagem de cunho kleiniano isto corresponderia à capacidade de manter em movimento a oscilação PS<->D, tanto no relacionamento entre os membros que a compõem, quanto em sua relação com o mundo externo.

Penso isto a partir de dois elementos: a história conjugal da mãe e o motivo que teria levado ao acidente. Se os filhos têm sobrenomes diferentes, indicando a sucessão de pais, já a mãe permanece como invariante, o todo compondo um conjunto que parece funcionar harmoniosamente. Dito de outra forma: a perda e substituição de cada pai-cônjuge parece não ter provocado nem uma depressão desorganizadora, nem uma negação maníaca, nem uma cristalização persecutória. Pelo contrário, o que parece ter ocorrido foram sucessivas integrações das relações amorosas e da prole resultante. Tais integrações foram possibilitadas pelo funcionamento da família e ao mesmo tempo constituíram a família. Isto é claramente assinalado no trecho em que se descreve como os filhos maiores, ligados à primeira filiação, cuidam dos menores, que provêm das outras. Esta capacidade de integração também está presente na iniciativa que deu origem ao acidente: este parte, como estamos lembrados, do acolhimento de Dani, cujo sofrimento e desamparo comoveram a família, que decide então dar-lhe guarida, abrir-lhe um espaço no seu interior.

Essa percepção, se correta, delineia o perfil de uma família que se foi estruturando através de uma firme identificação com um objeto continente e reparador, que é por todos partilhado e que determina sua dinâmica. A família vinha confiando neste objeto, com o qual se relaciona e do qual depende, e ao mesmo tempo era, ela mesma, este objeto funcionando segundo o seu padrão junto a seus dependentes.

Entretanto, no momento presente, em contraste com a relação que vigia antes do trauma, o foco narrativo que a família escolhe para as duas sessões com o terapeuta revela o sentimento de ter sido traída por este objeto.

O ato falho do terapeuta, que só mais tarde, ao rever suas notas, se dá conta de que a morte da criança ocorrera havia apenas uma semana e não dois meses, é o indício de que nos servimos para apontar como este objeto está agora sendo representado. Penso que o ato falho ocorreu porque a vivência traumática que a família estava comunicando não se centrava particularmente no acidente &— a explosão do vasilhame de álcool e o ferimento de Kico &— nem mesmo na perda da criança, mas na agonia vivida pela família, isto é, nos quase dois meses que eles passaram acompanhando Kico no hospital. Desde a dificuldade inicial para se obter a internação até o desenlace final, a estada de Kico no hospital é relatada como uma via crucis. É constante a ênfase no descaso e na negligência com que a criança fora tratada, surgindo mesmo a suspeita de que ela fora usada como cobaia para experiências médicas.

Percebe-se que a família sente-se à deriva, impotente, e que nas entrevistas o impacto do acidente vai cedendo lugar à descrição do atendimento hospitalar e do comportamento dos médicos. O grupo familiar toma contato com uma vulnerabilidade e uma fragilidade que até então pareciam contornáveis. Se o drama que eles reportam é o da perda do objeto, da criança, o drama maior, aquele que configura o trauma, é a perda de confiança no objeto, isto é, o sentimento da ausência de um objeto que os ampare na perda. Não é a mãe ou o pai que não estão presentes no momento da morte de Kico &— é este objeto, que se tornara “preguiçoso” e descuidado. A ausência do objeto se presentifica na fala da família através das contínuas referências à “falta de sangue”: o sentimento de todos é de estarem exangues, vampirizados.

Não é por acaso pois que o terapeuta, na iminência de dar uma interpretação clássica sobre o movimento projetivo da família lançando a culpa sobre o hospital, sente-se impedido de fazê-lo, reconhecendo no hospital um receptáculo adequado para tais projeções.

Por sua vez a pergunta final que o terapeuta fez a si mesmo, indagando-se se não havia pecado por excesso &— além de seu esforço para retomar contato com a família &—, indica que ele se encontra identificado com este objeto negligente, que deixou a família ao desamparo.

Na apresentação falamos do trauma enquanto crise de experiência e significado e enquanto movimento defensivo. Dissemos que este movimento pode se configurar sob a forma do trauma aderido ao objeto ou então, do objeto aderido ao trauma. A primeira organização, o trauma aderido à família, corresponde à descrição clássica do efeito traumático, desorganizador, aquele evocado por Freud face aos sonhos repetitivos pós-traumáticos. O evento invasivo encontra-se aderido ao sujeito e é a sua lembrança e evocação que são trabalhadas defensivamente num registro econômico.

Já a adesão do sujeito ao trauma, a procura constante da lembrança traumática, visa, através da evocação do acontecimento, encobrir defensivamente o significado do trauma, isto é, o abandono do objeto, vivido como o fator traumático primordial. Nesta família encontramos as duas formas defensivas em operação.

 

Referências

Meyer, L. (2002). Família: Dinâmica e terapia &— Uma abordagem psicanalítica (2ª ed). São Paulo: Casa do Psicólogo.        [ Links ]

Ogden, T. (1992). The dialectically constituted/descentered subject of psychoanalysis. Int. J. Psychoanal., 73, 517-526, 613-626.        [ Links ]

Reisner, S. (2003). Trauma: The seductive hypothesis. J. Am. Psychoanal. Ass., 51, (2), 381.        [ Links ]

Tutté, C. J. (2004). The concept of psychical trauma: A bridge in interdisciplinary space. Int. J. Psychoanal., 86, 897-921.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Luiz Meyer
R. Santa Cristina, 217 &— Jd. América
01443-020 São Paulo, SP
Fone: (11) 3062-6298
E-mail: luimeyer@uol.com.br

Recebido em: 25/05/07
Aceito em: 05/06/07

 

 

* Membro Efetivo da SBPSP.
1 Este trabalho foi escrito para o painel “Trauma e Crise Familiar”, que se realizou durante o 44º Congresso da IPA, no Rio de Janeiro. Nos casos clínicos apresentados, tanto os nomes como os dados circunstanciais foram modificados.
2 Este material, trazido para supervisão, foi generosamente cedido por José A. Pedro Ferreira, terapeuta deste hospital.

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