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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. v.40 n.42 São Paulo jun. 2007

 

TRABALHOS NÃO-TEMÁTICOS

 

Carta a um jovem psicanalista1

 

Letter to a young psychoanalyst

 

Carta a un joven psicoanalista

 

 

Sonia Curvo de Azambuja*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autora inicia seu trabalho falando da sua inspiração no poeta Rainer Marie Rilke. A partir daí vai situar a questão da paixão de onde somos fisgados e inconscientemente engendramos as nossas vocações. Como o poeta, também se dirige ao jovem analista e ao percurso na formação que, segundo seu entendimento, enraíza-se no Édipo. Aí encontra a construção do próprio aparelho psíquico, no qual o dentro e o fora estão implicados (ego ideal e ideal do ego). Vê uma invariância na questão edípica, que é atravessada historicamente por diferentes culturas, sofre flutuações, mudanças e tropeços, mas permanece como uma pedra de toque fundamental da psicanálise e da formação analítica. Após girar em torno desse eixo, mostra o Édipo não como uma armadura defensiva para nossa subjetividade, mas como um jogo de dados, onde as jogadas se sucedem com as imagos inconscientes, num caminho que nunca se fecha.

Palavras-chave: Paixão, Vocação, Ego ideal/ideal do ego, Édipo, Ética, Clinâmen, Imperativo categórico, Angústia, Solidão, Identidade, Trágico.


ABSTRACT

The author initiates its work speaking of its inspiration in the poet Rainer Marie Rilke. From then on it goes to point out the question of the passion of where we are caught and unconsciously we produce our vocations. As the poet, she also speaks to the young analyst and the passage in the formation that, according to its agreement, is taken root in the Oedipus. Exploring this issue, the author finds the construction of the proper psychic device, in which inside and the rejection is implied (ideal ego and ego ideal). She understands that there is invariance in the oedipal question that is crossed historically by different cultures, that suffer fluctuations, changes and slips, but that remains as a rock of basic touch of the psychoanalysis and the analytical formation. The author finishes its work, after many returns around this axle, saying that this axle, the Oedipus, is not a defensive armor for our subjectivity, but is a game of data, where the plays occur with the unconscious imago, in a way that never is closed.

Keywords: Passion, Vocation, Ideal ego, Ego ideal, Oedipus, Ethics, Clinamen, Imperative categorical, Anguish, Solitude, Identity, Tragic.


RESUMEN

La autora inicia su trabajo hablando de su inspiración en el poeta Rainer Marie Rilke. Con base en esto va a situar la cuestión de la pasión por la cual somos tomados e inconscientemente engendramos nuestras vocaciones. Como el poeta, también se dirige al joven analista y a la trayectoria de la formación que, según su manera de ver, se enraíza en Edipo. Ahí encuentra la construcción del propio aparato psíquico, en el cual lo que está dentro y fuera están implicados (ego ideal e ideal del ego). Hay una invariancia en la cuestión edípica que trasciende históricamente las diferentes culturas, que sufre fluctuaciones, cambios y tropiezos, pero que permanece como piedra de toque fundamental del psicoanálisis y de la formación psicoanalítica. La autora finaliza su trabajo, después de muchas vueltas en torno de ese eje, diciendo que este, Edipo, no es una armadura defensiva para nuestra subjetividad, sino es un juego de dados, donde las jugadas se suceden con las imagos inconscientes, en un camino que nunca se cierra.

Palabras clave: Pasión, Vocación, Ego ideal/ideal del ego, Edipo, Ética, Clinamen, Imperativo categórico, Angustia, Soledad, Identidad, Trágico.


 

 

Quando fui, gentilmente, convidada para dar a Aula Inaugural de 2007, confesso que fui tomada por um tumulto de emoções, como costuma acontecer em ocasiões em que me sinto exposta a falar publicamente.

Gosto da intimidade do meu trabalho, gosto dos seminários de pequenos grupos, nos quais podem fluir diálogos mais próximos dos textos estudados ou do material clínico apresentado.

Contudo, a Miriam Brambilla Altimari falou-me que na discussão com a Diretoria surgiu um foco através do qual eu poderia me movimentar: uma espécie de carta que eu endereçaria ao jovem psicanalista falando da minha experiência de analista.

Quando ela falou nessa possibilidade dizendo a palavra carta, caí fascinada por seu convite. Isto porque a palavra carta a um jovem analista imediatamente me remeteu ao Rilke com suas Cartas a um jovem poeta, livro tão amado por mim na juventude.

Entusiasmada com a emoção de recuperar Rilke das minhas evocações e o terror de ocupar minhas férias nesse trabalho, conversei com Miriam.

Falei sobre o livro de Rilke e ela disse que já havia sido escrito um livro por Marialzira Perestrello dirigido ao jovem analista, também pensando em Rilke e Freud.

Alguns dias depois, Miriam enviou-me o livro. Eu o li, sentindo-o próximo e singelo.

O homem é um ser passional. Como um barquinho, ele é tocado por paixões: amor, ódio, medo, ciúme, inveja, ternura, sedução.

As paixões são conhecidas no nosso trabalho nos movimentos transferenciais e para os quais nós criamos um espaço, até certo ponto artificial, no sentido não de falsidade, mas sim de artifício que engendramos ao longo dos anos de nossa formação, quando amalgamamos estudos, supervisões, análise pessoal num constructo próprio, viabilizando as paixões em canais que vão irrigar nossa criatividade.

É um artifício interessante porque contém a nossa própria ética.

A filósofa Olgária Matos coloca uma questão sobre a ligação entre a ética e a etiqueta. Por que a etiqueta? Segundo Olgária, porque até certo ponto em todas as culturas a etiqueta já é um primeiro esboço de ordenamento de certas normas, de certos costumes e procedimentos na convivência entre os humanos. Assim também nas instituições aprendemos a conviver com as etiquetas e a valorizá-las como o nosso decoro, ao mesmo tempo que nos desviamos delas na transcendência da nossa singularidade.

Se não pudermos marcar nossas vidas por cerimônias de passagem, lugares de trânsito, lugares públicos e lugares de intimidade, não podemos ter fôlego para nossas paixões.

Na minha carta ao jovem analista penso que a formação poderia ser a nossa Paidéia, na qual o desejo de conhecimento é ativo e não passivo a uma hierarquia temerosa da curiosidade intelectual. A liberdade dá mais trabalho para que possamos encontrar nossos lugares de inserção, não tem a facilidade da servidão voluntária. Daí talvez possamos nos aproximar da ética, na concepção de Aristóteles, que vê na amizade o mais nobre dos sentimentos. Talvez possamos pensar que o nosso Etos, nossa morada, seja a amizade pela psicanálise e os desafios com que hoje ela se depara.

Fui tomada por minha paixão por Rilke e na forte impressão que me causou, quando jovem, a afirmação que faz ao jovem poeta: você tem que se perguntar se é possível viver sem escrever. É a radicalização do desejo. Penso que nasce daí aquilo que podemos chamar a nossa vocação. Essa vocação é anterior a qualquer experiência, ela nos fisga e aí tecemos nossa identidade.

Esse tecido identitário é também, ao mesmo tempo, aquilo que os epicuristas chamavam de “clinâmen”. O clinâmen é o desvio que o humano faz da natureza. A natureza é nosso destino, com sua lógica própria. Mas o humano se desvia dela, criando uma outra realidade, uma outra lógica, que tem suas raízes na fantasia, no onírico, na ficção, cuja estruturação é viabilizada pela linguagem.

Há muitos anos li uma associação que Graciliano Ramos faz no seu livro Infância. Nas suas reminiscências vê seu avô tecendo um cesto e pensa como esse trabalho era inútil e que também ele se vê fazendo um trabalho inútil, tecendo palavras. É uma passagem muito linda do livro e que me provocou muita emoção. O que me emocionou tanto foi a grandiosidade de Graciliano ao apontar como as atividades mais significativas para o humano não são feitas com finalidade utilitária, nem para desenvolver desempenho performático ou de aptidão aplicada. É como o brincar das crianças que brincam por nada, brincam por elas mesmas. Não é por acaso que Freud vai encontrar nesse brincar do seu neto com o carretel a nervura da criação da vida mental, a nervura do simbólico.

Nós analistas também fazemos os nossos cestos: dia após dia, ano após ano, vemos desfilar a comédia humana na nossa clínica. Nas falas dos nossos pacientes, no seu sofrimento, nas suas intrigas, nas suas angústias, nas suas perversões, nas suas ambigüidades.

E o espaço íntimo que estabelecemos com eles é a nossa ética, é a nossa etiqueta, é o nosso contrato social.

A psicanálise, situando-se nesse lugar de trânsito onde os dois territórios &— a subjetividade e a cultura &— se convergem, discute a formação analítica em nossos dias e o analista para o nosso tempo.

São interrogações que se apresentam a nós, como pudemos ler no último número da revista ide. Em debates e artigos são analisadas a tensão e a ambivalência ao se pensarem os efeitos da biotecnologia na experiência cotidiana atual. Como diz o Editorial,

Os textos investigam as possíveis quebras de referenciais nas concepções de corpo, de homem, de mulher, de vida, de morte e suas relações com a clínica e a teoria psicanalítica, bem como o diálogo com a bioética, passando inevitavelmente pela ficção cientifica (Khouri, 2006, p. 5).

Assim, pude imaginar a carta que endereçaria ao jovem analista pensando sobre a turbulência da cultura contemporânea e a subjetividade do homem analítico, que muito freqüentemente caminha no contrapelo do presente, mas que ao mesmo tempo sofre as ressonâncias desse presente.

O que gostaria de tocar seria como ficam os referenciais que temos para pensar a psicanálise nos dias de hoje em relação à própria construção da vida mental e como ela é atravessada pelos acontecimentos, já que o dentro e o fora são concomitantes na construção do aparelho mental.

A formulação desse tema traz, inevitavelmente, a questão daquilo que é uma invariância, uma estrutura na psicanálise, e de como a formação analítica se dá nessa estrutura e sua expansão ou constrangimento num determinado contexto histórico. Logo, há uma invariância que é perene na formação analítica e a contingência a que essa invariância está submetida é datada.

Nestes termos, penso que a invariância, a estrutura, o moinho que opera o núcleo analítico é o complexo de Édipo, que também se faz presente na formação analítica. Este núcleo, esta invariância, é fundante, porque traz a ligação com o campo das pulsões, da intensidade, e essas pulsões são capturadas pela linguagem, enquanto movimento de simbolização, criando a rede das representações.

No meu entendimento, a lógica que melhor articula a questão do Édipo, que é a da ligação entre a natureza e a cultura, está em Freud. Na minha própria clínica utilizo referenciais que o paciente me inspira a partir dos pontos transferenciais de angústia, do sofrimento, do sonho, do desejo, da fantasia, ou seja, das suas questões. Mas quando, como agora, sou levada para um contexto macro da psicanálise, por vezes a uma “psicanálise sem divã”, à psicanálise e à formação em nossos dias &— onde corações e mentes se preocupam com nossa herança cultural &—, é a lógica freudiana que guia meus passos.

O complexo de Édipo é um conceito desenvolvido por Freud ao longo de toda sua obra e é uma das suas mais antigas descobertas, contemporânea a sua auto-análise, conforme vemos na carta de Freud a Fliess, de 1897.

Contudo, todos os bons leitores de Freud se surpreendem com o longo tempo percorrido entre essa descoberta capital e sua entronização na teoria. O Édipo deveria ter sido valorizado desde Três ensaios sobre a sexualidade, publicado em 1905. Lá esse conceito já se encontra pulsando, mas não é nomeado. Trata-se de um eixo que percorre todo o pensamento freudiano, num movimento em espiral, ligando inexoravelmente as várias temáticas desse pensamento. Pensamento este clinicamente constituído, como tão bem aponta Fabio Herrmann no seu trabalho de 1989 e publicado na ide já citada. Neste trabalho, intitulado “Freud e o método psicanalítico”, Fabio apontava o valioso instrumento que temos em mãos no nosso navegar com suas vicissitudes históricas contando com a metodologia freudiana. Por outro lado, e esse é o meu enfoque aqui, contamos com o Édipo como figura que subjaz a todas as molduras.

André Green em seu livro O desligamento admira-se como Freud nunca tenha dedicado ao Édipo um trabalho específico. Um dos raros textos que tratam do assunto diretamente só aborda a questão sob o ângulo de seu desaparecimento &— sua liquidação &— no estado latente.

Esse atraso na teorização, que adia o reconhecimento de sua importância conceitual no corpus doutrinal da psicanálise e cujo impacto apresenta-se obviamente no tratamento clínico, não deve mascarar o fato de que Freud não pára de pensar no assunto. Contudo, é como um pensador da cultura, fora do campo da clínica, que Freud explora cuidadosamente o significado do Édipo, a respeito do qual está procurando inúmeras determinações. Ele não acredita que o psiquismo esteja limitado ao indivíduo. Ele inscreve a condição humana no centro daquilo que a ultrapassa, tanto na natureza quanto na cultura. A memória da espécie e da história pesa sobre o destino individual, atravessado pela passagem do tempo, cujo inconsciente atemporal traz a marca. Como bem lembra Marcio Giovanneti também neste número da ide, há no Édipo a presença da subjetividade e da cidade, Tebas, tomada pela peste.

Em entrevista à revista Veja, Sebastião Salgado relata como readquiriu uma fazenda, que pertencera ao seu pai, para fazer dela uma reserva ecológica. Ele diz: “Desmata-se o Brasil a troco de nada. A paisagem que toma o lugar da floresta, além de economicamente improdutiva, é muito feia”. Em outro trecho nos conta do seu trabalho itinerante de fotógrafo, registrando no globo terrestre como a miséria e a devastação andam juntas. Onde a miséria é a tragédia, a devastação costuma ser o cenário. “Vi isso no mundo inteiro”, diz Sebastião Salgado… “as populações estão cada vez mais herdando um deserto”.

Há pulsão de vida contida na simbolização das matas do Brasil desse fotógrafo que vive em Paris, ligado a uma cultura cosmopolita e contemporânea, onde, ao mesmo tempo, este vínculo primeiro da identificação com seu pai pulsa e retorna.

Assim, o que nos singulariza, o que nos humaniza, é esta luta contra a barbárie, as pulsões destrutivas que nos habitam, nossa peste. E é na herança do complexo de Édipo que se dissolve, e que reaparece transfigurado, aquilo que fundamenta o nosso contrato social com os nossos pais biológicos ou simbólicos, com o nosso meio, com nossa herança cultural. Freud conceitua essa transformação como sendo nosso superego. O percurso que Freud fez na elaboração deste conceito foi árduo e às vezes de difícil apreensão. Contudo é neste nó que podemos fazer a ponte entre a intimidade e a cultura. Entre o espaço privado e o espaço público. E como nós aqui vamos ocupar na instituição esses lugares. Pois o superego traz duas instâncias importantes, que são: o ideal do ego, no qual a herança cultural nos guia; e o ego ideal, no qual o nosso narcisismo nos inspira, num sopro de vida própria, única e singular. Penso como a formação repousa no nosso desejo de readquirir a fazenda, ideal do ego, desejo que se iniciou com Freud e que nos torna fazendeiros do ar, moedeiros da fantasia no moinho do complexo de Édipo. Assim o ideal do ego tem uma ancoragem para fora e que nos penetra e o ego ideal se enraíza no dentro de nós mesmos e nos impulsiona na nossa originalidade.

Mas retornemos ao texto freudiano para tentar desvelar esta passagem.

No capítulo VII de Psicologia de grupo e a análise do ego (1921/1976), Freud trabalha com o conceito de identificação como a mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa, desempenhando um papel na história primitiva do complexo de Édipo. O pai, neste laço emocional, é ingerido e metabolizado como tal. Freud prossegue aqui na mesma direção abordada no ensaio Totem e tabu (1913/1974), no qual formula um paradigma por meio do qual teria havido no alvorecer dos tempos uma Horda Primitiva, na qual um macho submeteria todos os outros seres da horda &— filhos e fêmeas &— ao seu mundo pulsional. Todos seriam submetidos aos seus desejos e ele estaria acima dos desejos do grupo. As fêmeas seriam sexualmente de posse exclusiva desses desejos e os seus filhos seriam castrados, mortos ou expulsos do bando.

O bando em conjunto teria matado esse macho-pai, devorando-o numa refeição esquartejadora. Deste macho morto nasce o totem. Das mulheres da horda, agora interditadas, nasce o tabu do incesto. Cria-se a comunidade de irmãos, que são homens interditados à sexualidade com suas mães, irmãs e filhas. Assim, a cultura e a sociedade são fundadas na culpa desse parricídio. Esse é o pecado original, conclui Freud (1939/1975) em Moisés e o monoteísmo. Pecado que levamos como marca da espécie. Está instalado o imperativo categórico que nos acompanhará.

Com o passar dos tempos surge a figura isolada do herói, que urde esta história como sendo um feito individual. Assim nasce o poeta, diz ainda Freud em Psicologia de grupo e análise do ego: nas lendas e nos mitos cantados na Grécia arcaica são os heróis individualmente que realizam, numa saga própria, essa epopéia. Na verdade, diz Freud, este passo em direção à cultura jamais poderia ser um feito isolado.

Impossível não perceber, em cada um desses textos culturais de Freud, em cada canto da edificação teórica, o cruzamento, o tecido, a trama entre o concreto e o espiritual. As pulsões, enraizadas no corpo, encarnadas através de intensidades que na pulsão de vida ligam, aquecem, transformam, ampliam. Ou, ao contrário, na pulsão de morte apagam, esfriam, rompem e desunem, por vezes dando lugar a outros possíveis no seu desligamento, portanto também favorecendo transformações, assim como destroçando, por vezes, como potência destrutiva qualquer possibilidade, no seu matiz de pura malignidade.

Neste ninho, nesta morada que é nosso corpo ou o corpo do grupo, o corpo do mundo, pousa o leve cristal do sonho, da linguagem, que representa nossas aspirações e que nos liga às nossas reminiscências, remetendo-nos à nossa destinação.

Como nos lembra André Green, pode-se observar nessa visão freudiana do complexo de Édipo a marca do seu tempo: um certo profetismo romântico que reconstrói o passado. Ele vem de uma cultura híbrida: judia de nascimento, expressando-se em língua alemã e grega por escolha.

É sobre este pano de fundo que nasce o conceito de complexo de Édipo em Freud. “Nesse instante a cultura implica o reconhecimento do patriarcado; os valores paternos são civilizadores, os valores maternos, contra a civilização e para a família.” No Mal-estar na civilização, Freud diz que a cultura, que nasceu da necessidade de amor e proteção da mulher, sofre no decorrer do seu desenvolvimento e progresso a obstrução deletéria da mulher, com o conservadorismo da sua necessidade de amor.

“O superego coletivo é masculino, assim como a essência da libido. O princípio ativo revela uma crença na perfectibilidade do homem, graças à sublimação política, social, artística e científica.”

Entretanto, desde então, muita coisa mudou. Os filósofos da Escola de Frankfurt focalizam de forma fecunda este ponto e mostram como a depressão econômica de 1920-1930, a Primeira Guerra Mundial e o abandono da vida camponesa pelas grandes massas criaram um fenômeno cultural de grande repercussão na vida da instituição familiar: a ausência do pai. A criança, não tendo mais a figura do pai forte e bem-articulado, fica muito sujeita à figura do Führer, do líder do Estado. Pensamos no retorno do pai narcísico e sanguinário da Horda Primitiva: a criança não tem a experiência de intimidade com um pai que na sua ternura articula a criança à cultura, pelo discurso simbólico, que é a sua função.

Podemos nos interrogar acerca do lugar do Édipo na família contemporânea, quando o pai e a mãe sofrem uma espécie de desterritorializacão. Também hoje, o pai com o seu poder de cortar o bebê do seu mundo imaginário &— no qual vive necessariamente com sua mãe, nos primeiros tempos de vida &— e de inscrevê-lo na cadeia simbólica da cultura - é menos visível.

É evidente que esta imago paterna, com essa função, existe. Houve uma relação entre um homem e uma mulher. É desta relação que nasce a criança. A própria mãe traz este homem consigo. Ela própria passou por um Édipo, que a marca. Contudo percebemos a família nuclear mais vulnerável às turbulências das mudanças sociais. O pai hoje, freqüentemente, é um homem desempregado. A mulher, por certas características da economia globalizada, encontra mais possibilidade de trabalho, contudo já não é tão cativante enquanto ser que engravida.

Massimo Canevacci, antropólogo italiano, em sua abordagem sobre a cultura contemporânea, nos conta como no Shopping Rinascenti, na Itália, encontra-se uma estatueta, ícone da fertilidade na África, transformada num pente. A força simbólica da gestação sofre uma ultrapassagem pela força do signo pente, o que nos remete ao mundo do fetichismo, da sociedade pós-industrial, da sociedade de consumo.

Há algum tempo foi publicada uma matéria em The Economist, na qual se sugeria que os homens deveriam ser preparados para as carreiras de ensino. As profissões ligadas à educação e ensino poderiam vir a rearticular a figura paterna de maneira fecunda, influenciando as novas gerações. Hoje são as marcas, as grifes, as tribos que promovem essa influência. A mídia pode determinar, por vezes com um autoritarismo insidioso, a identidade, os modos e os costumes que devem ser seguidos, ameaçando com a idéia de exclusão dos grupos de referência os que assim não fizerem.

Os regimes liberais, embora menos detestáveis que as ditaduras, diz André Green, na sua abordagem sobre o Édipo, existem muitas vezes apenas sob o aspecto macroscópico e, de certa forma, o liberalismo representa principalmente a liberdade de dominar. A ciência, apesar das suas conquistas, parece só conseguir resolver problemas materiais &— e a um preço muito alto! Freqüentemente acaba ficando sob a dependência das utilizações militares do saber. A natureza é saqueada, devastada, ameaçando o futuro da espécie humana. O patriarcado perdeu muito do seu prestígio. Os direitos ligados à função paterna são reduzidos, em proveito de uma distribuição diferente entre os sexos no que se refere à autoridade dos pais. A mulher luta com dificuldade e lentidão, num combate cujo final não apresenta a menor dúvida, para o total reconhecimento dos seus direitos. Quanto ao superego coletivo, sua essência masculina tornou-se responsável pelos crimes mais hediondos que a História jamais conheceu.

Refletindo sobre esse fragmento tão contundentemente verdadeiro de Green sobre o Édipo, pautado numa visão masculina em sua base, penso em quais ganhos e quais perdas estamos tendo, quando esta estrutura em seu eixo se dissolve. Freud ainda poderia ser inspirador na leitura que podemos ter da cultura contemporânea. Ou essa inspiração tão-somente existe para uma cultura vitoriana de papéis masculino-feminino bem marcados?

Por um lado, o pensamento freudiano tem um horizonte clássico. Contudo, há nele também uma tensão, uma fratura, típicas do pensamento moderno.

O homem nesta perspectiva é um ser dividido, é um ser múltiplo. Isso porque o momento do pensamento humano &— que é focalizado por Freud na sua elaboração do Édipo enquanto complexo &— é o momento da tragédia grega, como gênero literário e como reflexão cultural.

No inventário da busca freudiana tenho me pautado inúmeras vezes pelo helenista Jean-Pierre Vernant. Esta é uma referência básica se quisermos ter a inteligibilidade da gênese da noção de conflito no trágico. Onde se situa o Édipo e onde se situa a própria psicanálise.

Vernant (1977), no seu livro Mito e tragédia na Grécia antiga, desenvolve o mito como o pensamento ainda no estágio de sonho. Os problemas são delegados aos deuses, nos seus emaranhados, nas suas dores. No pensamento trágico nós humanos carregamos nosso destino, que já vem de longa data, como uma marca nas gerações que nos antecederam e nas gerações que virão. O conflito é nosso, é transgeracional.

O pensamento filosófico, que reflete tanto sobre o mito como sobre a tragédia, é de certa forma um apaziguamento do trágico, do conflito. Sabemos o quanto a luta de Freud foi sempre para manter a noção de conflito como geratriz do próprio pensar. O que está em foco é a ambigüidade das palavras com seus duplos sentidos, o ato falho, o negativo, o esquecimento, os quais expressam este ser dividido que é o humano. No seu limite, é o conflito entre Tânatos e Eros que expressa &— em uma visão panorâmica &— esse combate.

Nesse sentido, todo pensamento freudiano é construído na dissolução, no múltiplo, ou seja, na possibilidade de corte, de castração como inscrição no simbólico. Esse pensamento inscreve-se na “tradução moderna da proposição trágica”, conforme referida por Mauro Meiches:

O homem estaria condenado a lidar com o sentimento de mal-estar próprio de quem já sabe que terá, para viver sob qualquer forma de organização humana, de adquirir o conhecimento que possibilite a convivência com outro homem: isto implica regras e proibições para aquilo que todos sabem ser do próprio do homem (Meiches, 2000).

E o que é próprio do homem? A luta entre a sua natureza selvagem, ligada às suas pulsões e desejos, e o imperativo categórico dado pela civilização, pela cultura, pela vida nas cidades, ou seja, fundamentalmente, pela universalidade de cada comportamento ético. “O trágico estaria ligado a esse trabalho de conhecimento que passa inexoravelmente pela dor... O que exatamente dói? Numa resposta sucinta, diríamos que é a nova situação do homem” (Meiches, 2000). Nessa nova situação, o homem deixa de ser o herói mítico da epopéia e se torna problema.

Sob esse mesmo enfoque, entendo que nós analistas de hoje temos que deixar “de mimo”, de imaginar que a realidade contemporânea, plena de transformações, conflito e dor, vai ficar encantada com nossos belos olhos. Este é um tema que nos toca de perto: como processar, no nosso tempo e nas nossas idéias, a demanda pela psicanálise? Se por medo desse passo momentoso para o real tornarmos os Institutos de formação de analistas tão-somente um lugar de regras e de normas a serviço da permanência ou, ainda, na mesma direção, se ficar estabelecida a crença de que com isso não perderemos o próprio, a identidade, certamente deixaremos de ser parâmetro norteador para essas perguntas e inquietações dos nossos dias. Deixaremos de ser analistas para os nossos tempos.

Nesse sentido tenho procurado, na interface com outras áreas do conhecimento, tomar pulso para me orientar nessa tarefa rumo ao real.

Existe uma crença na idéia da modernidade, modernidade essa que nos traria finalmente a utopia, que igualaria todo gênero humano. Trata-se, contudo, de uma unidade paradoxal, de uma unidade na separação, que nos projeta num abismo de desagregação e renovação perpétuas, de conflito e de contradição, de angústia e de ambigüidade. O mundo moderno não trouxe ao homem mais horas de lazer e sim o trabalho escravo infantil e o jogo especulativo contra a moeda dos mais frágeis.

Ser moderno faz parte de uma crença na sociedade pós-industrial, na sociedade de consumo, que promete aventura, poder, alegria, crescimento, transformação de nós mesmos e do mundo. Ao mesmo tempo, e paradoxalmente, ameaça destruir tudo que temos, que conhecemos e que somos. O homem na modernidade pode encontrar, a preços de mercado, uma indústria de entretenimento e de lazer, que procura cobrir qualquer vazio, saturar qualquer lacuna que o remeta à sua singularidade e, portanto, à sua solidão.

Nessa situação, podemos pensar naqueles que ficam à margem: doentes, velhos, empobrecidos, desorientados. Há para eles também o oferecimento das religiões evangélicas. Os jogos do computador, as conversas telefônicas eróticas, as leituras de astrologia. Questiono-me sempre se não está aí um dos espaços para nossa psicanálise nos dias de hoje.

Vem-me sempre à memória uma vez em Nova York, numa loja de departamentos: quando a loja se fechou, uma mulher começou a chorar copiosamente e a implorar para os seguranças que não fechassem a loja, porque ela não queria ficar sozinha. Ela, nesse momento, deixaria de ser moderna. Sem estar em igualdade de situação, estaria só em sua louca singularidade. É nesse momento que os fantasmas aparecem. Quem nos povoa ao voltarmos para uma casa das grandes cidades, onde muitos vivem em famílias unicelulares?

Há um desvão, uma fissura que a rede simbólica da sociedade pós-industrial não cobre, e aí pode despontar o que é do homem: a angústia, o desamparo. Guimarães Rosa narra o medo no silêncio, entre as árvores, no sertão. Há ambigüidade no escuro do sertão. Nele somos invadidos por mil terrores. Guimarães Rosa nomeia nossos terrores por mil nomes que querem dizer demônio. O homem moderno das grandes cidades continua com medo... O medo é o nosso próprio. Dependemos do outro para ser.

Neste sentido, somos alertados por Cintia Buschinelli (2006), no seu texto “Quem é você” para a fecunda ide, lembrando uma criança que fora gerada por reprodução assistida. Ela procura sua origem na busca do pai que teria doado o espermatozóide que a gerou.

Por associação de idéias podemos pensar nos replicantes do filme Blade Runner que também buscam sua origem.

O mundo tecnológico não pode deletar a necessidade da identificação na busca da identidade. É só o resgate da origem, do arqueológico, que se constitui no nosso tempo de vida, o atual e o porvir.

O Édipo em sua invariância clama imaginariamente pela imago materna, numa união ilusória, que só a imago paterna pode cortar e remeter para o simbólico. Poder simbolizar é ser o sujeito do seu desejo. Ao contrário, ser atravessado por uma torrente de signos que nos alienam de nós mesmos pode ser o demoníaco, o terror de mil nomes, o pânico.

Entendo que a invariância edípica, colocada como eixo desse trabalho, não é uma armadura defensiva, mas é um jogo de dados, onde as jogadas se sucedem com as imagos inconscientes. Como certa vez escrevi num outro trabalho, “Laio ou a fertilidade impossível, esse jogo de imagos é estruturante do nosso psiquismo. É, novamente, “coisa do humano”.

Nesse trabalho tomava Laio, no complexo de Édipo, como aquele elemento por meio do qual insistimos em nossa hegemonia narcísica e pretendemos nos tornar impermeáveis ao novo, ao enigmático. Se pudermos, ao contrário, desobstruir os canais da fantasia para essas imagos inconscientes, não importa qual o universo de objetos externos, eles serão nossa poética. Lembro Caetano Veloso quando canta: “A Praça Castro Alves é do povo, como o céu é do avião”. Ele não diz que o céu é da estrela, é da lua, ele vive hoje e novas metáforas o acompanham. O novo poeta vem no ombro do antigo poeta Castro Alves e recria o antigo poeta.

É diante desse mundo novo que o psicanalista se encontra. Ele é o seu desafio. É nele que se aninha o Édipo.

No caminho de volta às origens o Édipo se encontra com a esfinge. Cabe ao analista como ao poeta ser caminhante poderoso na estrada de volta, junto ao seu paciente. A esfinge é a natureza e o enigma do nosso surgimento: o que significa que é a cena primária. O Édipo é ali concebido? Não, ele deve ser autoconcebido, pois como diz Kierkegaard: “Aquele que se dispõe a trabalhar dá à luz a seu próprio pai”, ou seus pais, dizemos nós. Esta é a travessia por vezes trágica do ser humano, por vezes venturosa.

O desespero humano em Kierkegaard é aquilo que na psicanálise traduzimos como angústia ou dor psíquica.

Aqui podemos voltar ao tema do clinâmen apontado no início destas minhas considerações. O clinâmen, que é um conceito epicurista de Lucrécio, surge quando a força da pólis democrática das cidades gregas se esvaiu submetida ao império macedônico de Felipe e depois de Alexandre. E o homem, que nunca cessa de se buscar, volta-se para si mesmo, desvia-se para seu mundo interior. Assim o clinâmen é uma observação do cosmo concebido como corpos celestes que seguem um determinismo, mas também são sujeitos a desvios, germinando novas destinações.

Trazendo essa visão cósmica atomista para o seu mundo subjetivo, os epicuristas criam a idéia dos desvios do mundo do império, na possibilidade de autonomia. Aí se fortalecem as reflexões éticas (98-55 a.C.).

A concepção de Kierkegaard fazendo um salto no tempo, século XIX, diz respeito a uma busca da essência do cristianismo, quando o homem se desvia do império da igreja católica, e se vê responsável pela interpretação dos textos bíblicos. O homem está só diante de Deus, não há intermediários.

Acredito que nós, na nossa marcha para nos tornar analistas, por vezes encontramos parcerias, diálogo, aquilo que há pouco chamei de nossa Paidéia. Então, caminhamos juntos. Contudo, às vezes nos vemos diante das adversidades institucionais, ou mesmo diante de adversidades de um determinado momento histórico, e é necessário que tenhamos que lidar com nossa solidão, encontrando sendas próprias. É nessa alternância que se encontra, no meu entendimento, a nervura da formação analítica. É aí que nos tornamos analistas.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Sonia Curvo de Azambuja
R. João Moura, 647/22 &— Pinheiros
05412-911 São Paulo, SP
Fone: (11) 3064-7451
E-mail: scazambuja@terra.com.br

Recebido em: 30/03/07
Aceito em: 24/04/07

 

 

* Membro Efetivo e Analista Didata da SBPSP.
1 Texto da Aula Inaugural do Instituto de Psicanálise “Durval Marcondes” realizada no dia 12 de fevereiro de 2007.

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