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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. v.40 n.42 São Paulo jun. 2007

 

TRABALHOS NÃO-TEMÁTICOS

 

Entre representação e experiência emocional: contribuição para um diálogo

 

Between representation and emotional experience: contribution for a dialogue

 

Entre la representación y la experiencia emocional: contribución para un diálogo?

 

 

Daniel Delouya*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
Instituto Sedes Sapientiae
Universidade São Marcos. Programa de Pós-graduação em Psicologia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

No presente trabalho, servimo-nos de vinhetas clínicas, para traçar os ingredientes relevantes à noção bioniana de experiência emocional dentro dos eixos da representação freudiana e suas origens no trabalho do objeto. Esforço que tenta explicitar por que a experiência emocional é inerente à representação freudiana, revelando as pegadas da primeira nos diferentes estágios de construção da segunda. Um destaque especial foi dado à função reflexiva do objeto. Essa é desencadeada, regressivamente, pela identificação, em suas duas vertentes, de compaixão e condução imitativa (Freud, 1895/1995), que instauram, de forma entrelaçada, o respectivo palco da representação e o seu roteiro e seus personagens. Tentamos tornar aparentes os paralelos entre essa função e suas vertentes e a rêverie de Bion. Esperamos, com isto, poder estimular o diálogo, o mais próximo do trabalho clínico, entre colegas de nossa Sociedade que utilizam diferentes concepções teórico-clínicas.

Palavras-chave: Representação, Experiência emocional, Imagem de movimento, Identificação, Função reflexiva.


ABSTRACT

In this paper, clinical vignettes are used to trace relevant elements of the Bionian’s notion of emotional experience in the architecture of the Freudian’s concept of representation (“Vorstellung”) and its origins in object’s work. An effort which aims at making clear why the emotional experience is inherent to the Freudian “Vorstellung”, revealing the footprints of the first in the different construction’s stages of the second. We distinguished, especially, the reflexive function of the object. This function is triggered regressively by identification (Freud, 1895/1995) in its double vertexes or values, of compassion and imitative conduction which determine, respectively and jointly, the representation’s stage and its script and characters. We tried to make apparent the parallel between this function and its dimensions and that of the Bionian’s reverie. We hope to stimulate the dialogue, as closer as possible to the clinic work, among colleagues of our Society that employ different theoretical and clinical conceptions.

Keywords: Representation, Emotional experience, Movement image, Identification, Reflexive function.


RESUMEN

En el presente trabajo son utilizadas vigentes clínicas para rastrear los elementos relevantes de la noción bioniana de la experiencia emocional en la arquitectura del concepto freudiano de la representación (“Vorstellung”) y de sus orígenes en el trabajo del objeto. Un esfuerzo para explicitar por qué la experiencia emocional es inherente a la representación freudiana, revelando las huellas de la primera en los diferentes estadios da construcción de la segunda. Un destaque especial es puesto sobre la función reflexiva del objeto. Esta es desencadenada regresivamente pela identificación, en sus dos vertientes, de la compasión y de la conducción imitativa (Freud, 1895/1995), que instauran, de forma entrelazada, el respectivo palco de la representación y su itinerario y personajes. Nuestro intento es tornar aparente el paralelo entre esa función y sus vertientes y lo trabajo de la rêverie bioniana. Esperamos con esto despertar el diálogo, lo más próximo de lo trabajo clínico, entre colegas de nuestra asociación con diferentes concepciones clínicas.

Palabras clave: Representación, Experiencia emocional, Imagen del movimiento, Identificación, Función reflexiva.


 

 

Introdução

Este trabalho dá continuidade a um anterior (Delouya, 2005), ambos incitados pelos debates que permeiam o ambiente da nossa Sociedade.

O que nos atraiu para a formação analítica no Instituto e, mais tarde, seguir e juntar-nos ao corpo dos membros da Sociedade (falo em meu nome e de um grande número de parceiros nessa trajetória) é o tradicional foco nesta instituição sobre o trabalho clínico e a técnica psicanalítica, sua condução e emprego, e a atenção sobre o campo transferencial, que permite adentrar o mundo do paciente e facilitar nossa atuação junto a ele. O trabalho íntimo implícito à observação clínica constitui uma característica central de nossa tradição. Não obstante, as coisas não param e não poderiam parar aí: para a descrição de observações e fatos clínicos, e na busca de uma inteligibilidade deles, o colega apresentador lança mão, via de regra, de termos, conceitos, esquemas e arrazoados interiores a certa teoria ou escola psicanalítica, seguindo interpretações e desenvolvimentos de um ou de vários autores pertencentes a elas. O discurso flui, então, em circuito fechado, dificultando a interlocução com outros colegas que se situam em campos teóricos e modos diversos de compreensão. Entretanto, nota-se em grande parte dos ouvintes, não-partidários da escola do apresentador, grande interesse em poder compreender, trocar e dialogar com o que está sendo descrito e articulado a partir do material clínico em certo contexto teórico1. Os impasses gerados não deixam de despertar as paixões (de filiação) em cujas veias circula, como mostrou Freud, o sangue do nosso narcisismo. Não poderia ser diferente, aconteceu e acontece até entre os britânicos. Logo, porém, as ondas das paixões recuam para as margens, ficando ali à espreita, e o terreno volta a ser ocupado pelas tentativas de diálogo e comunicação. Configura-se, então, um esforço de confrontar diferentes hipóteses e conceitos de base postos em marcha em relação a um e mesmo material clínico. Assistimos, há três anos, a esse exercício, durante um ano, em que supervisões clínicas publicadas, realizadas por destacados psicanalistas locais e estrangeiros, foram objetos de debate entre colegas que representavam uma das três tendências principais na Sociedade, batizadas nos eixos das pulsões (freudiana), das relações de objeto (kleiniana) e da experiência emocional (bioniana).

Essa experiência, como outras neste sentido, demonstra algo que sempre intuímos: o material clínico não nos ajuda a decidir em favor de uma teoria ou outra. A sua utilidade é, em grande parte, doméstica, ou seja, ilustra, reforça, aprofunda e amplia os próprios conceitos e hipóteses e, por vezes, permite inferir outros modelos e conceitos para o mesmo contexto teórico. A clínica tem, em suma, um papel heurístico para uma produção dentro da mesma teoria.

No que diz respeito à interlocução entre colegas de diferentes concepções teóricas, vemos duas dificuldades no referido exercício: o primeiro se deve a nossa formação. Como candidatos estudamos e percorremos textos e relatos de experiências clínicas dentro das principais tendências teóricas, formando algumas idéias sobre elas e adquirindo alguns desenhos seus. Os debates mostram que o conteúdo, o sentido, a extensão, a aplicação e as relações entre os conceitos e modelos que utilizamos não são os mesmos que o colega de outra tendência teórico-clínica nos atribui e através dos quais ele se posiciona e se situa em relação a nós. Isto é compreensível uma vez que moramos em cômodos diferentes e a familiaridade que temos com o uso e a transformação de nossos utensílios e mobílias não poderiam ser conhecidos a fundo por aqueles que não habitam junto a nós. Por isso, diriam alguns, existem os espaços e as salas comuns, para conversarmos, trocarmos figurinhas e debatermos uns com os outros. Surge, então, a segunda dificuldade: recorrer aos elementos fundamentais da teoria (pulsões, etc.) nos afasta do objetivo inicial, o de permanecermos o mais próximos das hipóteses com as quais manejamos o material clínico.

Proponho, portanto, um pequeno experimento, colocando em conversa a noção freudiana da representação (Vorstellung) com a da experiência emocional, oriunda de Bion2. Como justificativa inicial, lembro que a representação surge espontânea e imediatamente em Freud desde sua visita a Paris em fim de 1885 e se põe a seu serviço nos primeiros instantes de seu intenso e contínuo trabalho clínico com o sofrimento psíquico, iniciado no começo do ano seguinte, em 18863. A representação é a mola do pensamento de Freud e, no plano clínico, constitui o eixo em torno do qual se articula toda sua trajetória, do começo ao fim. (Desdobramentos que não concernem aos objetivos deste trabalho.) Quanto à noção de experiência emocional, ela, de um lado, se encontra em Bion nos eixos constitutivos da grade e da teoria de pensar e, de outro, se estende às questões clínicas do vínculo e da relação analítica. Ela é freqüentemente utilizada por colegas no sentido estrito, quase literal, da vivência emocional da relação em dado momento da situação analítica. A vantagem em abordá-la em nosso experimento é o fato de ela estar também adotada de forma natural e livre pelos partidários kleinianos e compreendida dentro das relações de objeto da dita situação total da transferência.

 

Representação e experiência emocional

No citado trabalho anterior mostramos como, a partir de uma citação de Freud (1911/1991b) em que este afirma que a representação, Vorstellung (idea em inglês, conforme a tradução de Strachey), é o que “faz a ponte sobre o hiato entre os impulsos e suas realizações” (p. 37), Bion conclui que todos os objetos psicanalíticos compostos de elementos a podem ser representados pelo signo I (idea) e, com a exceção da fileira A (os elementos b), tanto as categorias de uso dos pensamentos como os estágios de sua gênese, ou seja, toda a produção da grade (com exceção da fileira A), encontram-se sob o domínio de I, da representação freudiana (Bion, 1963/1989, p. 4). A convicção de Bion de que toda a produção dentro do trabalho analítico, assim como dentro da vida psíquica, pertence ao regime da representação freudiana nos incentivou a redigir um trabalho em que ampliamos esses aspectos, dando destaque às origens da representação em Freud. Um dos comentários que recolhemos de um dos colegas é que Bion e Freud se situam em planos distintos: Bion no universo dos vínculos e Freud no regime intrapsíquico. Ou seja, não há conversa possível, a despeito das citações do próprio Bion e das ilustrações de seqüências clínicas fornecidas em nosso trabalho: ambas foram ignoradas. A maneira com que o colega nos dispensou, privando-nos de sua companhia, é um dos exemplos das dificuldades no âmbito psicanalítico para as quais fiz referência no início desta exposição. Também ilustra o desconhecimento de um conceito-chave da psicanálise: a representação. Pois o vínculo, uma vez que é conexo à experiência emocional, é interior à representação em Freud, e é nesse sentido, que pretendo caminhar.

A representação é uma cena em que o sujeito toma parte, tendo ele, nenhuma, parcial ou inteira consciência disso; e, via de regra, em relação a um outro, ao corpo do outro, sendo esse distinguido ou não como tal para o sujeito. Uma cena pressupõe um palco sobre o qual se desenrola uma ação, uma experiência (vivência, afetos) realizada em relação a outros corpos, ou seja, são relações com outros personagens. Como exemplo, trago o primeiro sintoma que aparece naquela que propiciou a descoberta da psicanálise: Anna O. Num fim de tarde do verão de 1880, a jovem Bertha Pappenheim, de dezoito anos de idade, encontra-se na companhia do seu adoecido pai, imersa em seu cuidado, quando ouve uma música de baile vindo de uma das casas da redondeza. Neste instante, ela adoece, perde a fala. Quando esta volta, carece de sua língua materna, dando lugar, na mente da paciente de Breuer, às canções de ninar de sua infância nas línguas estrangeiras de sua babá e de sua governanta, francesa e inglesa, respectivamente. Percebe-se como a cena (estar no baile), entranhada na emoção e desejo da adolescente (de mergulhar na balada, junto às colegas, sendo cortejada pelos rapazes, etc.), com sua fonte e sítio corporal (sexual genital, já que dançar relaciona-se à “parte de baixo”), não pode ser admitida na consciência, é traumática, pois está em conflito com sentimentos piedosos em relação ao pai, da obrigação filial de cuidar dele. Ao invés de se confrontar com este conflito emocional, ocorre uma regressão para outra cena, de cunho infantil, oral, do canto de ninar na companhia terna da babá e da governanta. O sintoma instalado é, inicialmente, afonia e, depois, a impossibilidade de se expressar em alemão, mas apenas em inglês e francês4.

Falta, conflito e trauma sexual são eixos principais da representação, aos quais pretendo voltar, porém vale frisar o seguinte: é o afeto, é a vivência que é repudiada no recalque; a representação é desinvestida (Freud) desta vivência, tomando, na histeria, o destino de conversão, isto é, ela passa a alojar as representações conexas, neste caso, de cenas infantis, situadas no campo dos investimentos sexuais infantis junto aos corpos de figuras significativas, formadores dos trajetos da libido. Entretanto, é na cena da terapia - na qual Breuer é destinatário das moções afetivas da paciente &— que surge à maneira regressiva, a série de representações, desencadeando uma espécie de private theatre; processo de “chimney sweeping” que permite resgatar na consciência o “afeto estrangulado” (Breuer) da cena traumática de origem5. A cena da análise serve de apoio, como um resto diurno no qual se engancham, sucessivamente, as cenas inconscientes, instaurando o campo da transferência, que passa ser um derivado particular da cena da representação.

Neste contexto, lembro os modelos, elucidados, justamente, em relação à transferência, em meio ao processo terapêutico com a histeria (parte IV dos Estudos sobre a histeria), nos quais a alma figura como uma malha de representações, com diferentes estruturas compondo sua espessura6. Nesta malha do doente, o afeto não toma, obrigatoriamente, no recalcamento, o destino da conversão, mas pode ser submetido a uma tentativa reativa de tamponamento coercitivo por idéias e atos compulsivos, como se vê na neurose obsessiva, ou pode alojar, projetivamente, o objeto fóbico, ou se encapsular, como na psicose, numa vivência alucinatória que abole as fronteiras entre a percepção e a representação, numa espécie de recalque para fora (Freud, 1896/1986a), ou ainda pode ser impedido de nascer dentro da representação para se encolher em sua fonte somática, deturpando a estase física, acarretando a doença psicossomática.

Voltando à situação analítica, cada fala do paciente nos insere na malha de suas representações onde é o afeto, e seus destinos na experiência emocional, que se coloca em relevo. Contudo, o afeto só tem sentido no contexto das representações desencadeadas; ele é função da representação. A representação dota a experiência de seu sentido, conteúdo e qualidade. Existe, pois, uma analogia, se não uma identidade, entre função a e representação. Elas agem sobre o mundo da vigília, do conjunto sensorial e pulsional dos respectivos ambiente e corpos em cena, gerando experiência psíquica em cada um dos participantes e na troca que engajam, conforme o modelo inaugural de Freud sobre o movimento criado entre o resto diurno (o “instigador do sonho”) e a série dos pensamentos inconscientes. Daí a convicção de Bion de que I “representa objetos psicanalíticos compostos dos elementos a, os produtos da função a” (Bion, 1963/1989, p. 4). Nota-se, aqui, uma concordância entre Freud, Bion e Lacan de que o psíquico não é uma emergência de baixo para cima, de algo primitivo que surge em forma crua e nua, mas é produto de uma função, uma ordenação, vinda de cima e se impondo aos dados de origem.

Outro aspecto, central à atividade clínica, se relaciona à atenção que prestamos às configurações singulares da referida função em cada paciente. Pois, segundo as acepções de Bion, Lacan e Freud, a respectiva função a, linguagem ou representação é adquirida, montada e construída no sujeito a partir da cultura, do ambiente de origem para o qual advém e ascende o recém-nascido. O que nos permitirá focar, com o auxílio de ilustrações clínicas, alguns elementos da representação e da experiência emocional.

A construção da função psíquica tem como ponto de partida a condição inicial do desamparo do bebê. Desamparo, porque se trata de uma violência, oriunda das urgências vitais e do mundo sensorial (em que se incluem os objetos), mas que é, em parte, amortecida, contida, segundo Freud (1895/1995)7, por uma moção centrípeta da vida anímica, que ele integrará, mais tarde, à feição central da pulsão de morte. A imagem geométrica que fazemos dessa condição, gerada, de um lado, pelas forças, de caráter centrífugo e, de outro, pela moção interior, de natureza centrípeta, é a de um espaço selvagem, de um terreno baldio. “Cair no mundo” nesse momento é encontrar-se num terreno baldio, indiferenciado, sujeito à agonia (Winnicott), dor e terror (Bion) de invasão e abandono absolutos. O adulto experiente (Freud utiliza a palavra Nebenmesche, que significa o outro próximo), sensível ao estado da criança, é despertado pelo grito e o espernear da criança, remetendo o adulto, à maneira regressiva, numa espécie de rêverie, a seu próprio grito de origem, para acolhê-la, colocando-a no colo e atendendo suas necessidades. A intervenção do adulto é incitada, pois, pela identificação e dotada, diz Freud, de um “valor de compaixão”, já que o estado da criança adquire a “função secundária de comunicação”. Se o “desamparo infantil é a fonte de todos os motivos morais”8, pela comunicação e compaixão que desencadeiam no adulto, as últimas nada mais são do que os meios de inclusão, de alojamento do recém-nascido na esfera humana, e o terreno baldio dos inícios deixa de ser inteiramente selvagem para receber os empreiteiros da obra humana. Tal acolhimento, oferecido em função das ameaças que pairam sobre a autoconservação e o narcisismo primário do bebê, instala o palco da representação. Primeira diferenciação que nos parece definir o que os filósofos de orientação fenomenológica e existencialista identificam como a dimensão transubjetiva, do ser-no-mundo (uma contigüidade só, sem separação dos termos). Não obstante, o psicanalista se defronta na clínica com uma grande variabilidade de carências neste palco, instaurado pelo objeto de origem, o que é previsível dada a singularidade psíquica do objeto (o adulto), e seus precursores na cadeia das gerações. Antes de fornecer alguns exemplos sobre esse palco da representação é preciso que eu complete o desenho freudiano, dizendo algo sobre a origem dos personagens e roteiros que se desenrolam nesse palco.

No desamparo do bebê, as urgências vitais e as aflições advindas do organismo e do ambiente sensorial e objetal &— todas causando dor e pavor (porque são desconhecidas para o bebê por falta de meios internos para interpretá-las) - precisam de uma ação específica para satisfazê-las ou aliviá-las. Prover o alimento ou afastar os estímulos internos e externos, causadores de dores, cabem ao adulto, pois nem a satisfação nem os meios de fuga dos estímulos, oriundos do ambiente sensorial e objetal, são disponíveis ao bebê, a despeito da exasperação em descarregá-los pelos movimentos alucinados do choro, braveza e do espernear. Em meio aos serviços específicos prestados pelo adulto, ocorre algo, que Freud identifica na periferia, mas que revela ser fundamental para a geração da vida psíquica; a atenção e o timing na voz, na nomeação, no tocar e nos modos de segurar, em suma a série de movimentos de condução do adulto, provêm o bebê, ao modo reflexivo, de imagens de movimento de si. A descarga expulsiva do desamparo se transforma em tempo, em prazer; o bebê é provido de notícias de si (Freud), de referências rudimentares de seu corpo. O palco se abre para a cena do brincar. Uma vinculação, pois o bebê manifesta uma clara sintonia com a condução viva do adulto, dando mostras de enriquecimento no espectro da “expressão das emoções”9, como evidenciam a expressão facial (serenidade, riso), a coordenação contextualizada dos movimentos corporais, etc., nas quais identifica-se aquilo que é propriamente psíquico. Observa-se aqui um desvio, um deslocamento da estrita dimensão das necessidades do plano da autoconservação para o erótico, instaurando os alicerces do corpo e da sexualidade infantil. A violência pulsional e sensorial transforma-se em parte em libido e, ao invés da tentativa alucinada de expulsão de estímulos, ocorre integração de traços dos objetos e das figuras conexas ao prazer dos próprios movimentos. O bebê começa a adquirir os primeiros meios de pensar10. Laplanche tem certa razão em sustentar, neste desvio, o nascimento da pulsão (Trieb); eu diria que o que nasce é o representante do Trieb. Seja como for, o manejo do adulto é tributário de um valor reflexivo, “imitativo” (Freud 1895/1995), oriundo também, ao modo regressivo e numa espécie de rêverie, da própria experiência de condução de seu adulto de origem.

O que se cria neste momento são os sentidos, os precursores e componentes do que Freud denomina desejo. Se, na dimensão do narcisismo primário e na da autoconservação, a moção centrípeta se vale, ao modo reflexivo, da compaixão do adulto para o resguardo dos contornos e superfície de um terreno em estado de agonia, aqui, a companhia (“valor imitativo”) de condução viva e ativa do adulto lança mão no bebê dessa mesma via de retração para a geração de traços, trilhas, incitados pela via de descarga pulsional, de acordo com as figuras de voz e gestos ofertados pelo ambiente, da mesma forma em que um esforço de contenção se impõe aos movimentos da mão da criança quando tenta desenhar algo no papel. Esses são os traços de memória da experiência. A experiência é tributária de qualidades de sentidos e significações proporcionados por figuras advindas do adulto, acompanhadas, entre descarga e contenção dos estímulos sensoriais e pulsionais, das transitividades estéticas das formas do tempo e do espaço e de prazer, desprazer e dor. Mas a experiência tem um tempo. Importante que ela deixe marcas, mortas, fósseis que ascendem à vida, a cada contingência da realidade, de estados de vigília, e isso em função das demandas da pulsão, articuladas à falta e aos elementos disponíveis no ambiente. As incitações pulsionais e sensoriais seguirão as trilhas já demarcadas, ampliando e ramificando-as pelas contingências da experiência. Nisso consiste o pensar, em que mudanças na vida de vigília (frustração) em relação à orientação dos roteiros anteriores permitem sofisticá-las e ampliá-las, propiciando realização, ação. Trajeto que outrora foi inaugurado pela ação específica prestada pelo ambiente adulto. Assim, novas camadas geológicas da mente abrigam dentro e entre elas novas populações de fósseis, todas responsáveis, ao acordar, pela experiência, pela malha de representações da alma.

Os mal-entendidos sobre a noção freudiana de “aparelho de memória”, esclarecem-se a partir desta descrição: não é um acervo cujas peças intactas são recuperáveis &— nunca se atravessa o mesmo fluxo do rio &—, mas de uma modificação constante em après coup. As trilhas mais antigas são carreadas de maior intensidade pulsional; é a partir delas que ocorre, com a experiência, sua ramificação. O que dota o psiquismo da feição regressiva e passível, devido a esta sobredeterminação, da livre associação. O aparelho é, em suma, um “aparelho de aprendizagem” (Freud, 1895/1995)11, a partir da e pela experiência. Resta a questão quanto à natureza do registro da sustentação, pelo adulto, da vivência primária narcísica, das dores e terrores dos inícios. É um registro de dupla inscrição. A fuga (incitada pela moção centrípeta) dos dolorosos estímulos &— lançando o bebê no terror do desconhecido - encontra, para estes, um alojamento fusional e confusional nos traços do objeto: “o grito do bebê se torna a própria característica da coisa” (Freud, 1895/1995, p. 81), ou seja, ocorre uma identificação projetiva... nada menos do que isso! Grito de comunicação, proporcionando alojamento na compaixão. Já na companhia “imitativa” ocorre uma diferenciação: a tela de compaixão, garantida, torna-se palco de um playground de condução e criação dos movimentos de brincar e suas figurações. Vejamos, pois, um entrelaçamento contínuo e contíguo entre compaixão e imitação, holding e handling, narcisismo e desejo, que constitui a espinha dorsal de toda a obra freudiana. Mas, voltando ao desamparo, a dor, como exaspero pulsional diante do vazio da existência, torna-se semente de outra e conexa série de inscrições dos afetos. As quantidades dessa aflição, não passíveis de drenagem, se ordenam em uma espécie de glândulas de um sistema hormonal psíquico nascente, denominadas “células-chave” (Freud, 1895/1995). Sítio de registros de padrões mnêmicos afetivos que ascendem e modificam-se com a experiência, e que Freud volta a mencionar após vinte anos, como sendo estruturas inconscientes dos afetos. Na nossa metáfora, eles seriam as moléculas solúveis das interfaces aquosas e gasosas das camadas geológicas dos fósseis, todos regendo a alma humana.

Explicitando o modelo com ilustrações clínicas

Há um ano e meio em tratamento comigo, L. chega, por vezes, a me impressionar pela intensidade e o largo escopo de suas atividades quotidianas: dirige 2 escritórios de consultoria (voltada ao setor público e outro ao privado), 2 empregos, 2 pós-graduações em andamento, stricto sensu e lato sensu. Na vida privada, ela mantém, paralelamente, 2 longos relacionamentos, um strictu sensu (com o marido) e um outro nem tanto, mas estável, além de cuidar, de muito perto, de suas três filhas adolescentes. L. conta, obviamente, com assistentes, mas nada escapa a seu controle e direção, já que também insiste em deixar um tempo para a diversão junto às respectivas turmas de colegas e amigas. Ela consegue fazer tudo isso, não sei como, com presteza e habilidade, mas sem confiança em poder manter ou levar a cabo estes projetos, sobretudo os relacionamentos. No final do dia, muito tarde, ela “cai morta”, depois de arrastar consigo, no banheiro e na banheira, os textos que ela tem de ler para seus estudos. Na face pública dos nossos encontros ela introduz uma intimidade que, de um lado, me acena para um agradável e fácil convívio, mas que, ao mesmo tempo, se mistura com certo incômodo em mim, de origem nem sempre identificável. Neste quadro fico, depois de certo tempo, atento a sua guarda sobre a manutenção de uma sintonia comigo, acompanhada de uma vigilância, semelhante àquela a que assistimos no jogo com crianças pequenas no qual elas nos alertam para efetuar a tempo as nossas contrapartidas (“agora é a sua vez”). Tudo isso se dá em um fundo de silêncio, sobre o qual transcorre sua fala contínua, sempre numa atmosfera agradável e carinhosa. Minha atenção para sua demanda de sintonia facilita-me a reserva e o pensar. Ao interpretar um fragmento de um episódio ou sonho, ela acaba se deslocando deste plano de sintonia, caindo em si, e assistimos aí, para a sua aflição e terror, à regressão para estados bastante primitivos: sentindo que sua voz e respiração ecoam-lhe do próprio ventre, ou, ao levantar do divã, apalpando, assustada, o rosto, pedindo, aproximando seu rosto ao meu, para que eu veja “como ele está... e a maquiagem”, como se perdesse, por uns instantes, a noção das referências auto-reflexivas de sua face. Estados ocorrendo logo após descobrir, por meio de sonhos e lembranças da infância, o convívio com uma mãe depressiva, desleixada consigo, permissiva com todos e admirando, submissa, um marido pouco atencioso e distante, além de duro, ríspido, e intrusivo em suas intervenções com a mulher e as filhas. Após essas sessões, ela sente pena de mim, por ter-me carregado tanto com algo, o que não corresponde a minhas vivências. Nos sonhos, L. interrompe cuidados e lazer próprios, para salvar uma velha que naufraga num agitado mar ou para atender outras solicitações da mãe. Em outros, ela está sozinha em suas incursões, mas mantém, pelo telefone e outros aparelhos, um canal aberto constante, para atender eventuais necessidades desta mãe.

Num recente e rotineiro exame das mamas, L. fica sabendo da presença de caroços nos seios, precipitando-a em um desespero. Preocupado, aguardo os resultados da biópsias, que constataram, felizmente, tumores benignos, mas que precisavam ser removidos em vista de seu acelerado crescimento. Após a operação, ela teve de restringir seus movimentos e atividades. Não podendo dirigir, e em função de outras contingências, ela se ausenta, durante 22 dias, das sessões e outras atividades. Quando volta, ela me conta que esteve deprimida e desesperada. “Jogada sozinha no sofá” no meio da sala, se sentiu desconectada, não conseguindo estudar, ler ou deliberar sobre os assuntos relativos às suas diferentes empreitadas. Instalou-se um vazio. Pensou, desesperada, que nunca mais poderia voltar a se engajar em tudo que “era a minha vida”; achou que ia morrer, ela queria morrer! Era difícil encontrar o caminho do sofá até a cama, por conta das tonturas, e não sabia como conseguia, por vezes, se arrumar e sair de casa: “era impossível, impensável”. Este estado passou depois de folhear um livro popular de pediatria. Começou a ler, descobrindo, para sua surpresa, ter recuperado a concentração, e estava, novamente, em contato com as coisas... “O que aconteceu?”, pergunta... e acrescenta: “Não estou entendendo nada”. Depois de um silêncio, falo em tom distraído... “Vai ver que é coisa pediátrica”... Ela ri e me pede: “Fale mais”... Falei....

L. encontrou, em face das carências na presença materna de sua infância, uma forma de suplantá-las através de um engajamento numa atividade acelerada e versificada, o que não a liberou, e não poderia liberá-la, da prisão depressiva da mãe. Na adolescência, ficava indignada com a passividade da mãe diante do pai e revoltada com este rude e “primitivo” pai. Saiu cedo para trabalhar e estudar para se tornar uma mulher livre, independente, diferente da mãe e, desde então, “caía morta” no final do dia. Ela nunca encontrou esse solo. As coisas continuaram incertas e pouco confiáveis: L. nunca sabe o que escolher e o que deixar de lado, pois não há certeza do que poderia ter continuidade, por isso mantém tudo como está. Uma deturpação feminina, cuja raiz está no carente playground formado na infância junto à mãe, deixando soltas, sem solo seguro, as aquisições de imagens de movimento de si. Evidencia-se, aqui, um entrelaçamento entre as funções reflexivas de compaixão e de condução imitativa do objeto. O número 2 é significativo: a tela de compaixão proporcionada pela mãe, quando debilitada em sua textura, prende a criança, justamente na feição especular que deixa de amadurecer, acarretando a não liberação da criança, da menina. Refiro-me ao fato em que tanto Freud como Lacan, Winnicott e Bion insistiram, sobre um ingrediente essencial para o desempenho de funções de compaixão e condução imitativa; eles devem ser impregnados de uma noção interna sobre o terceiro: a mãe deve ser “mensageira da castração” (Freud); barrada pela castração (Lacan); apontar para alguém no seu exterior, fora de seu recinto (Winnicott); amar o pai ou a criança, em função da noção do terceiro, como um ser separado dela mesma (Bion). O “arquiteto” das funções de objeto é a matriz edípica. Bion disse, explicitamente, que o desempenho da rêverie tem como condição a mãe enxergar a criança como um ser separado ou, o que é equivalente, amar o pai. Em outras palavras, ela não o enxergar como um ser separado significa que o adulto tem dificuldades de enxergar o mundo ou a cultura como tais, ou seja, como palco para o viver humano. Criam-se, então, empecilhos no equipar e no encaminhar do bebê para o mundo. O bebê torna-se destinatário das carências do adulto que o enrosca numa das vigas especulares da autoconservação do próprio adulto12.

Um esclarecimento: a violência do desamparo do início da vida dota o objeto &— inversa, narcísica e alucinatoriamente (modo de satisfação da pulsão) &— de plenos poderes. O bebê sente “estar nas mãos do outro”. Daí a exasperação, fusional e confusional, com o objeto. O bebê se precipita na direção deste, identificando-se com ele. Face cruel da idealidade, precursora do eu-ideal, instaurando um campo transitivo entre os pares de impotência e onipotência, humilhação e orgulho, esfacelamento e júbilo, sabotagem e triunfo, fuga e ataque, etc. Tormenta pendular junto à figura de espelho que Lacan descreve como “o todo materno, obsceno, tutelar e totalitário”. Características notáveis das patológicas configurações psicóticas e fronteiriças. As funções do objeto, tais como delineadas acima, mitigam esses pólos, transformando essa matéria-prima em tecido psíquico para a diferenciação e a inserção do bebê no meio humano. Não obstante, em alguns casos, falhas do objeto, em vários graus, deixam resquícios não elaborados da exasperação inicial, acarretando certa adesão especular no plano autoconservativo. L. apresenta, no meu julgamento, uma configuração histérica, porém denuncia “leves” falhas do objeto de origem, ao se deparar com aquilo do qual fugia: o vazio de desenlace que L. tentava tampar com atividade acelerada, mas que regredia, na análise, para pontos de fixação na fusão mítica uterina (falando pelo ventre) ou para o horror diante da quebra do espelho (perdendo referências do próprio rosto).

&— C., outra paciente, está em análise comigo há alguns anos, após interromper uma outra e longa (de quinze anos). Pessoa vivaz e amigável, com alegria saltitante, quase adolescente, e revelando um cuidado vaidoso de seu corpo e de seu modo de vestir, à maneira kitsch. Festiva e prestativa, entrega-se às atividades familiares e coletivas com entusiasmo, providenciando o que for necessário; adora o convívio em turma e a realização de tarefas do grupo. Na análise, igualmente, revela ser uma “menina prendada”, segue meus passos, mostrando-me que entendeu e que “fez, direitinho, a lição de casa”. No entanto, nas situações em que o teste de alteridade se impõe, ela se desnorteia, fica atônita, sentindo estar à beira de uma solidão insuportável. Quando suas necessidades estão em jogo, precisando, para tanto, confrontar-se com os outros, tenta se virar sozinha, indo às últimas conseqüências, porque teme ficar sozinha, imaginando poder sofrer o corte da relação com a irmã, perder o amor do filho, a aliança do ex-marido (no que tange à vida do filho adolescente, pois, caso contrário, imagina ela, ele é capaz, como retaliação, de tirar o filho dela) e a permanência do marido atual junto a ela, e assim por diante. Nessas situações, a solidão se abate sobre ela em forma de pavores hipocondríacos focados em certos órgãos. Na análise, uma palavra ou interpretação destoante imanta a sala num silêncio mortal. Perdida e desnorteada, ela nada entende, como se eu a lançasse numa escuridão da noite ou num local inerme. Sua mãe, depressiva e desapontada com a vida conjugal (admitia nunca ter amado o esposo), adocicava sua amargura pela entrega às futilidades, ao mesmo tempo em que se embevecia (pedia relatos minuciosos), desde a puberdade da filha, da vida desta em turma e em namoros. O pai, de seu lado, por sentir atração pela filha adolescente, a punia com uma desmesurada repreensão e autoritarismo (esse comparecia na cena dos sonhos logo após meus “cortes”). Traços pueris marcam a sexualidade de C. Nos relacionamentos amorosos dentro dos quais mergulhava deslumbrada, ao seu modo habitual, descobria atônita, muito tarde, os vícios bastante desviantes de seus parceiros. O que não a removia da vontade de ajudá-los, contando com suas companhias, até que um fim se impunha, sempre pelo parceiro. Muito pequena, C. se arrumava cedo, antes de a mãe acordar, seguindo as instruções desta quanto à performance de clichês femininos no vestir e na manutenção de seu material escolar.

O material fala por si. O modo de presteza de C. revela um esforço concreto constante de obter confirmação especular de sua existência e importância para os outros, abafando o confronto com sua alteridade. O vislumbre da possibilidade de se diferenciar da mãe mergulhava-a numa agonia impensável, transportando-a para a persecutoriedade hipocondríaca. O que denuncia, pelo corpo, falhas no entrelaçar das funções do objeto, da imitativa na da compaixão.

&— G., um jovem rapaz, está, há um tempo, em análise comigo. Ele apresenta todos os indícios para suspeitarmos de uma clássica configuração da neurose obsessiva. Ambicioso e prendado, pretende se engajar, bastante desempenhado, em uma carreira universitária numa instituição pública. Ele segue meus passos, tentando, até quanto dá, confirmar minhas observações, e, quando “flagro” seus “erros” e “falhas”, ele emite repetidos risos embaraçados. G. fica atento aos dados de minha “carreira”; tenta, desviando, achar as palavras em francês, minha língua materna, e me pergunta sobre outras. Tudo flui nas ternas correntes de uma homossexualidade afetiva, só em parte sublimada, conhecida e clássica para esta configuração. Idílica paisagem que se rompe em sonhos. Neles, ele acaba sendo rechaçado por mim, e até expulso do lugar, revelando um temor de ser demitido de seu posto na minha empresa, que ele considera rica e abastada. Surgem, sempre, problemas em seus relacionamentos de trabalho e namoro. Ele “faz tudo certo”, com dedicação e competência, mas, para seu espanto, em dado momento, há um desentendimento com seus pares (namorada, chefe e colegas), que passam a considerá-lo imaturo, pretensioso, arrogante, “fominha” e avaro. Nessas situações, perde o chão, entra numa tormenta da qual se defende, de tamanha injustiça dos outros. Perseguido, revida com ofensas, em pensamentos e em vida, relegando os outros à pura mediocridade e à incompetência, para assim aliviar as suas próprias dúvidas e dívidas. À medida que essas experiências se acumulam, e no contexto relevante para seu sustento e relação amorosa - as críticas dos alunos ou a dúvida da namorada quanto à viabilidade do namoro &—, ele entra, antes de qualquer conversa, numa turbulência, acompanhada de distúrbios somáticos. Apavorado, teme sofrer abalos sérios na sua saúde. Quando esses acalmam, surgem planos para encontrar um solo assegurado, lugar “definitivo” numa cidade pequena para não se haver mais com essas bombas lançadas em sua direção.

Escolhi, propositadamente, esses casos para colocar em relevo a função reflexiva do objeto, em suas duas vertentes, na instauração do universo da representação. Mostrei, assim espero, como falhas “amenas” no trabalho de rêverie do objeto deixam o sujeito preso no eixo da autoconservação (da demanda especular que lhe é própria), do estado do desamparo infantil, comprometendo vários estágios de seu crescimento e diferenciação psíquica. Foram os sensíveis trabalhos clínicos de Fédida (1993, 1995) que me despertaram para esse aspecto das configurações clínicas. Eu poderia apresentar outros casos com francos traços narcísicos em psicopatologias de melancolia, de esquizoidia e psicose. Neles, o sofrimento com as figuras violentas e horrendas do desamparo, evidenciado, principalmente, pela demanda que exercem sobre o analista, flagra, de forma patente, os graves fracassos das funções reflexivas do objeto, acarretando sérias fissuras no estabelecimento da representação, da experiência subjetiva. Bion tem insistido na importância da continência na análise de psicóticos em função da fragilidade do continente e, sobretudo, da violência do conteúdo (b e várias combinatórias de telas b com a incipientes, ba), presumindo uma extrema precariedade, se não a inexistência da rêverie no trabalho do adulto. O que está em con cordância com a idéia dos distúrbios na mais primitiva vertente da função do adulto, a da compaixão. O olhar que lançamos sobre as configurações neuróticas permite, a meu ver, pôr mais o acento sobre o entrelaçamento das diferentes vertentes dessa continência e sua natureza reflexiva.

Volto à problemática com que iniciamos este trabalho. Procurei mostrar que a experiência emocional é inerente à representação (é função da última), da mesma forma que em Bion ela é fruto da operação da função a, e, segundo ele, tudo que tem a ver com a é algo de I, da representação. Essa, em sua natureza e características, é produto do trabalho do objeto. Na apresentação dos casos, detive-me sobre “o jeito de ser” do paciente, que é sempre um “jeito de ser com os outros”, determinante das experiências emocionais (em função da cadeia de representações) dentro da análise, na análise e com o analista, assim como no mundo e com os outros13. Sobre o “jeito de ser” Freud tem explicitado, como mostrei acima, que os registros mnêmicos, que ascendem à vida da representação, “são os nossos verdadeiros traços de caráter” (Freud, 1900/1998).

Uma nota sobre a experiência emocional em Bion

Seja em sonho, seja na vigília, afirma Bion, “as percepções da experiência emocional, em ambos os casos, devem ser submetidas ao trabalho da função alfa, antes de serem utilizadas pelos pensamentos do sonho” (Bion 1962/1991, p. 6). A função alfa opera, continua ele, sobre os dados sensoriais captados pelos nossos sentidos. Se a função alfa for bem sucedida, produzem-se elementos alfa. A característica destes é de serem passíveis ao armazenamento e disponíveis ao uso dos pensamentos do sonho. A semelhança com Freud é patente: esses elementos se tornam adequados para o registro em memória e para os requisitos (“suited to storage and the requirements”) dos pensamentos do sonho (representações inconscientes). Qualquer distúrbio dessa função, tornando-a, portanto, inoperativa, faz com que os dados sensoriais e as experiências emocionais, conscientes para o paciente, permaneçam inalterados (ou seja, interpreto eu, não disponíveis à mobilidade na cena das representações). “Vou chamá-los de elementos beta.” Ao contrário dos elementos alfa, os beta não são sentidos como sendo fenômenos. Kant é citado aqui (qualidades primárias e secundárias), mas entendo por fenômenos qualidades psíquicas subjetivas, da representação. Os elementos beta são sentidos como coisas em si, ou seja, como em Kant, eles não são passíveis de conhecimento subjetivo, mas têm a opacidade da matéria-prima (sensorial) dos objetos dos sentidos. As emoções são, igualmente, objetos dos sentidos. Os elementos beta são disponíveis apenas para o uso da identificação projetiva e para a evacuação, além de propiciar o acting out. É um modo de pensar em que palavras e idéias são manipulados para se tornar substitutos daquilo que é sentido como coisas em si.

Fiz essa longa citação, com pequenas alterações e omitindo pequenos trechos (por isso tirei, em grande parte, as aspas), além de acrescentar algumas analogias com Freud, como prelúdio para aquilo que Bion introduz como phenomena. A interpretação que forneci acima é reforçada pelo exemplo trazido por Bion no final do citado capítulo, sobre o uso dos elementos beta: “Um homem pode vir a matar seus pais e, assim, ficar livre para amar, porque presume que, com isso, o casal parental anti-sexual [proibidor] fora evacuado” (Bion, 1962/1991, p. 7). Um ato que intenta (aqui Bion cita Freud) “livrar a psique dos acúmulos dos estímulos”. Fica claro que a função alfa opera não só sobre dados sensoriais, mas os últimos são vinculados às incitações pulsionais, como no modelo freudiano inaugural acerca do arco-reflexo. Um elemento beta é um elemento “indigesto” e, portanto, se empilha no sujeito com outros b14. Este exemplo aponta com clareza que esses elementos sensoriais, por não serem transformados em notícias de si, imagens de movimentos próprios, propriedades subjetivas, confundem, especularmente, os obstáculos impostos à satisfação pulsional com a realidade do seu ambiente infantil (“o casal anti-sexual”). Estendemo-nos sobre esse nascimento da representação em Freud &— paralelo ao phenomena em Bion &—, pelo trabalho do objeto que, em Bion, pode ser encontrado no fascinante capítulo doze, sobre a rêverie, de seu citado livro. Entretanto, uma propriedade pode ser resgatada, reencontrada e reconhecida como própria, “minha”, obtendo direitos plenos de usufruto consciente, só depois de haver certa diferenciação no plano da alteridade. No quinto capítulo do terceiro ensaio dos Três ensaios sobre a sexualidade (1905/1977), intitulado “Reencontrar o objeto”, Freud descreve um momento em que o bebê percebe que o seio para o qual se endereçava até então pertence a um corpo separado. Nesse momento, afirma o autor, a pulsão se torna auto-erótica. Eis o primeiro vislumbre (depressivo, diria Klein) da alteridade, da separação dos corpos. Nesse momento, as incitações pulsionais e, portanto, suas trilhas outrora precipitadas de imagens de movimentos passam a ser auto-eróticas, ou seja, a reconhecer a sua morada própria no corpo. A alteridade surge, então, sobre um fundo de fusão originária em que o objeto figura como se esculpido sobre um rochedo infinito, ou como uma figura em uma superfície aquosa infinita, permitindo, contudo, a alteridade. Freud acrescenta: este é apenas o início do processo de um amadurecimento que só pode chegar ao termo, caso seja bem-sucedido, ao longo do caminho, no final da puberdade e início da adolescência, após passar pelos estágios de: (1) cuidados e sedução materna, (2) sexualidade perversa polimorfa, (3) o trajeto libidinal (da oralidade até a fálica), (4) a configuração edípica incestuosa e sua dissolução no complexo de castração, (5) a latência, caldeirão da socialização, (6) a sustentação do segundo pulso da sexualidade para encarar, com a adolescência, os testes finais da alteridade madura.

Interessante que o estado alucinatório descrito no exemplo de Bion tem, em seu conteúdo, o teor das fantasias originárias (em Klein, a exclusão do casal e dos bens do qual goza), via de regra dentro da matriz edípica. Alteridade em Bion significa poder enxergar o outro como tal, ou seja, passar do estado alucinatório (alucinose) para o plano da comunicação entre sujeitos (são esses indícios “diagnósticos” que guiam e orientam o trabalho dos bionianos), o que corresponde ao desenho acima, fornecido por Freud.

 

Comentário final

No trabalho analítico, estamos “encarregados” de prosseguir com o trabalho do objeto e, de alguma forma, repará-lo. Acolhimento e compaixão, de um lado, e, de outro, condução e acompanhamento são os eixos de nossa função. Acolher, compreender, mas, também, acompanhar de perto &— acentuar uma palavra, dar-lhe outro nome, outra figura ou perguntar, iluminar uma percepção fugidia, apontar para outra direção e, enfim, interpretar, são as formas de “brincar”, de condução nas quais promovemos o pensar, a sofisticação das imagens de movimento, da representação, ampliando e ramificando os precipitados das trilhas mnêmicas para disponibilizá-las ao mundo representativo do pensar. Ambas as vertentes, como mostramos, geram-se pela identificação, no mundo psíquico do analista, ao modo reflexivo-regressivo, de acordo com o jogo estabelecido entre restos diurnos e pensamentos inconscientes. No plano da experiência, da vivência emocional, a identificação é a mola vincular dos afetos, como insiste Green em várias oportunidades em que tratou do tema dos afetos em seus liames com a linguagem. Algo pode se transformar no mundo do paciente só a partir dessas ações reflexivas, da identificação, no mundo interno do analista15. Concebo o vínculo justamente nisso, no a partir de (aqui estou com Freud, Lacan e Bion), da percepção do paciente dessa identificação no analista, em que se oferecem a ele, como na origem, um solo para pisar e subsídios para efetuar seus passos, suas apostas. Pois a realidade é sempre questão de uma “crença” (Freud, 1895/1995), de um “ato de fé” (Bion, 1970/1988), uma aposta, sustentada e encorajada, pela ação reflexiva da identificação no objeto, para ampliar as trilhas do pensamento em face à falta, à frustração, ao desconhecido, por detrás das quais ecoam os pavores da solidão essencial (Winnicott) com a qual nos defrontamos ao nascer, “ao cair no mundo”. A identificação, e seus desdobramentos, não é diferente do estar at-one-ment (Bion), de estar uno com o paciente, mas isto se faz para propiciar um atonement, um reparo dos atos, dos movimentos anteriores gerados no vínculo de origem entre objeto e bebê.

Insisto em recuperar a noção do vínculo em Freud e Bion como um a partir da identificação para livrá-lo das figuras psicologizantes que o descrevem como intersubjetividade em que os sangues se misturam, à semelhança da união entre células em que se abre um canal protoplasmático, pela fusão das membranas em certo ponto comum, ou à semelhança da fusão de nuvens de elétrons na ligação química. O vínculo é muito mais a conseqüência de uma relação estrutural, geométrica, cuja dinâmica é ditada pela matriz edípica que impregna a identificação como mola do trabalho do objeto.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Daniel Delouya
R. Capote Valente, 439/104 &— Pinheiros
05409-010 São Paulo, SP
Fone: (11) 3063-0018
E-mail: delouya@terra.com.br

Recebido em: 14/04/07
Aceito em: 24/04/07

 

* Membro Associado da SBPSP e do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e Professor Doutor do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade São Marcos.
1 Existe, porém, uma variante deste quadro. Refiro-me às discussões, como por exemplo nos seminários sobre o relatório de supervisão de um colega. Aqui a expressão livre sobre os movimentos do trabalho clínico se mostra em grande parte livre de enunciações teóricas, o que permite um diálogo, via de regra amistoso e proveitoso para o trabalho clínico. Entretanto, essa prática tem pouca influência sobre a tradição que acaba se realizando em círculos fechados, como descrevi acima, de “agrupamentos de pensamentos únicos” (Leopoldo Nosek em reunião na SBPSP).
2 O trabalho de Bion tem sido batizado em torno do pensamento. No entanto, tanto em Freud como em Bion as respectivas representação e experiência emocional vinculam-se ao pensamento.
3 Os estudiosos notam que o emprego do termo por Freud não se deve apenas à presença deste termo no corpo das descrições da histeria pela escola de Paris, mas que a última ressuscitou em Freud os tratados da representação nas aulas de filosofia de Franz Brentano a que ele havia assistido nos primeiros anos (entre 1873 e 1875) da faculdade de medicina. Não obstante, a noção psicanalítica da representação foi inteiramente reconfigurada a partir da sua experiência clínica.
4 O caso Anna.O encontra-se no livro conjunto, de Breuer e Freud (1895/1974).
5 Os termos em inglês foram cunhados pela própria paciente, Bertha Pappenheim.
6 Veja também, do mesmo ano, o “Manuscrito G (melancolia)” e o Projeto de uma psicologia.
7 Ver a descrição da segunda função no capítulo I do Projeto de uma psicologia.
8 Citações do primeiro parágrafo do capítulo XI da 1ª parte do Projeto de uma psicologia (Freud, 1895/1995).
9 Frase adotada de Darwin e que se refere aos gestos expressivos herdados do bebê (choro ou o sorriso “automático” do bebê, esboçado fora do contexto comunicativo), através dos quais identificamos a herança do pai, da mãe, do irmão, etc. daquele bebê.
Gestos-moldes a serem preenchidos com um largo espectro de expressões pela viva vinculação com o meio humano.
10 Para este aspecto, remeto o leitor ao meu trabalho citado acima.
11 Veja também os modelos “em fase sólida”, na carta a Fliess (6/12/1896) e (1925/1991d) no “Bloco mágico”.
12 Quando o paciente percebe essa emboscada, abre-se uma brecha para se soltar e inverter a direção, solicitando o adulto, o analista... é onde L. teme me carregar, cansar.
13 Com a diferença de que, na análise, a esperança implícita é de uma reforma do trabalho de objeto, de atendimento de carências básicas.
14 Como se nota, o Autor usa a e alfa, b e beta, formas mantidas. (N. do E.)
15 Em função das citações precedentes do Bion, refiro-me obviamente às emoções e os afetos que passaram pelo crivo da representação, submetidos à operação da função alfa. As emoções e afetos pertencentes aos elementos beta (pavores sem nome e seus derivados, de um lado, mas também, de júbilo e triunfo, etc.) são oriundos, em minhas referências, de elementos do estado de desamparo, da violência especular dos inícios que não foram elaborados junto ao objeto.

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