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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. v.40 n.42 São Paulo jun. 2007

 

CRÔNICA CIENTÍFICA

 

O menino e a cidade

 

The boy and the city

 

El niño y la ciudad

 

 

Carlos Roberto Alves de Paiva*

Associação Psicanalítica do Estado do Rio de Janeiro Rio 4

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Escolhemos o caso de um menino, sua família e a comunidade ao redor deles para apontarmos como sobre os jovens de nossa comunidade, especialmente os mais desprovidos na organização social, recaem as conseqüências de um processo de mudanças da ordem familiar. Partindo da falência do modelo patriarcal de organização familiar e social, ainda não alcançamos um modelo mais adequado que contemple as mudanças de costumes, econômicas, etc., dos últimos dois séculos de civilização ocidental.

Palavras-chave: Família, Infância, Organização familiar.


ABSTRACT

We have chosen to study the case of a boy, his family and his surrounding community to highlight how the impact of a broken family structure is lived and perceived by the youth of our community, specially by those who are impoverished and economically challenged on the social ladder. Starting from the failure of the patriarchal model of family and social organization, which has been in vogue for the past two centuries of western civilization, the following study observes that a more adequate model, embracing the new changes of social and economic behavior, is still to be found.

Keywords: Family, Childhood, Family organization.


RESUMEN

Elegimos el caso de un niño, su familia y la comunidad en torno de ellos, para señalar como los jóvenes de nuestra comunidad, especialmente los más desprovistos socialmente, sufren las consecuencias de un proceso de mudanzas de orden familiar. Partiendo de la quiebra del modelo patriarcal de organización social y familiar, todavía no alcanzamos un modelo más adecuado que contemple las mudanzas de costumbres, económicas, etc. de los últimos dos siglos de civilización occidental.

Palabras clave: Familia, Infancia, Organización familiar.


 

 

O Menino foi levado ao posto médico pelo Conselho Tutelar de um município pobre da Baixada Fluminense, e o conselheiro que entra na sala solicita a intervenção dos técnicos do CAPS para resolver aquela situação.

Estava trazendo um Menino que de tão violento necessitara de sete homens para dominá-lo durante um ataque de fúria desmedida, que havia quebrado tudo que encontrava pela frente. Os vizinhos do local onde morava estavam assustados e solicitaram a intervenção do Conselho Tutelar. Trazia-o para que o médico psiquiatra fizesse algo para detê-lo.

A mãe, que acompanhava o conselheiro, é chamada à presença do médico, e ao chegar chama a atenção por ser de compleição física frágil, grávida nos meses finais da gestação. Muito assustada conta ao médico que não sabia o que estava acontecendo ao seu filho, e desesperada já havia apelado a todo mundo, mas nada havia dado certo. Que o Menino não podia ser repreendido quando cometia alguma travessura; mesmo quando errava e ela intervinha, o Menino transformava-se, raivoso quebrava o que estava próximo, atirava o que estivesse a seu alcance &— e pouco a pouco passou a reagir de uma maneira que terminaria se transformando em sua linguagem preferencial: quebrava o vidro da janela de sua casa ou mesmo da casa dos vizinhos. “Já não tenho qualquer vidro em minhas janelas”, “Não posso contrariá-lo que ele reage com muita raiva”. E descrevia os acessos de raiva do filho, a demonstrar como aquilo, pouco a pouco, transformara-se e ganhara uma dimensão que estava para além de suas forças.

Era evidente, na sua maneira de narrar, que aquela mulher não conseguia mais controlar sua própria vida e a vida de seu filho.

A situação doméstica extravasara para além dos limites da casa, quando as janelas dos vizinhos começaram a ser atingidas, e os gritos da mãe deram a medida de que algo ali havia saído do controle.

Naquele momento a comunidade começou a intervir, inicialmente dando sugestões, mas, com o passar do tempo e a continuidade do comportamento agressivo do Menino, as sugestões logo se transformaram numa cobrança veemente de que a mãe tomasse providências drásticas para conter aquele Menino furioso.

Numa certa ocasião “vários homens” foram arregimentados pela comunidade para conter aquele Menino que não cedia às argumentações. Um pai-de-santo de um terreiro próximo foi chamado e diagnosticou que o Menino estava possuído por espíritos malignos, e imediatamente passou a açoitá-lo com uma espada-de-são-jorge a fim de expulsar os espíritos.

Mas a raiva do Menino não dava sinais de arrefecer, e, pior, ele voltava a reagir com forças redobradas.

O Conselho Tutelar do município é chamado pela primeira vez a intervir na situação, e o Menino é encaminhado para um internato, onde passará uma temporada, recebendo a visita da família apenas algumas vezes no mês.

No internato o regime disciplinar se caracterizava pela rigidez e intolerância, e castigos físicos faziam parte da pedagogia preconizada.

Mas não demorou muito, e a diretora do internato convocou a mãe e devolveu-lhe o Menino, cansada de ver seus métodos falharem, principalmente depois de uma briga física do Menino com um coleguinha de internato.

E o Menino volta para casa.

Os vizinhos, quando percebem o Menino vindo pelas ruas da comunidade, voltando para casa com sua mãe, iniciam imediatamente uma mobilização, e um grupo de moradores procura a mãe e a pressiona para que tome uma medida definitiva, temendo que mais uma vez os vidros de suas janelas fossem quebrados pelas pedradas do Menino em fúria.

Dias depois, a mãe resolve procurar a ajuda dos médicos e leva o Menino ao psiquiatra de um posto de saúde da comunidade. Durante a consulta e após ouvir o relato desesperado da mãe, que descontrolada não sabia mais o que fazer com seu filho, o doutor chega ao seu diagnóstico da situação: que o Menino sim estava errado, e repreende-o na frente da mãe, mostrando-lhe todo o sofrimento que ele infligia a ela. O Menino responde com uma careta enfezada e abandona o consultório para o constrangimento de sua mãe. Mas impávido o doutor prescreve alguns remédios que, garante ele, irão acalmar o Menino.

Com muita oposição do Menino, a mãe começa a administrar as medicações prescritas pelo doutor psiquiatra, mas acaba por interrompê-la dias depois, ao perceber que o Menino estava cambaleante, grogue, caindo ao solo diversas vezes. E ela, dando um passo atrás, conclui: “Assim também já é demais!”.

Mas, tão logo diminui o efeito de sedação dos remédios do doutor psiquiatra, voltam as pedradas, que desta vez vão atingir a autoridade tão presente nestas comunidades, o traficante da boca de fumo.

O traficante havia dado “uns cascudos naquele moleque” ao desaprovar sua conduta na rua próxima à boca de fumo. Como de outras vezes o Menino respondeu de sua maneira, atirando umas pedras de volta.

O traficante então, também respondendo de maneira usual, avisou a mãe que, se ela não parasse o Menino, iria matá-lo.

Desesperada e não sabendo mais a quem apelar, mais uma vez se dirigiu ao Conselho Tutelar, que desta feita resolveu procurar o local aonde iam os problemas mais difíceis, quando outras soluções haviam falhado, ao qual comunidade sempre recorria: o conhecido CAPS (Centro de Atenção Psicossocial).

Assim, o médico e o psicólogo que atendiam naquele dia vêem entrar na sala a mãe: uma mulher pobre, magra, negra, com uma grande barriga a demonstrar os meses finais de sua última gravidez. Mãe de três crianças que aguardavam do lado de fora da casa do Centro. Ela conta aos técnicos que cada uma das crianças tem um pai diferente, filhos de relacionamentos seus que pouco duraram. Que atualmente vive com um homem, pai do filho que carrega na barriga, e que ele tem muita dificuldade em arranjar emprego. E revela que esta dificuldade não era devido a uma situação do mercado de trabalho, mas à personalidade indolente do parceiro.

Que ele no inicio tentara se aproximar do Menino, mas que logo desistira.

Que ela estava passando por grandes dificuldades financeiras, já que não vinha conseguindo ir ao seu trabalho como doméstica na casa de uma família, devido ao comportamento daquele filho.

Chorando solicita que os técnicos a ajudem.

Foi solicitado, então, que entrasse o Menino. Assombro na sala. Os técnicos se entreolham, e custam a entender toda a história que tinham acabado de ouvir. Pois de pé, à sua frente, se apresenta um pequeno menino de sete (outra vez o número) anos de idade. Negro, pobre, e franzino como a mãe, e um olhar próprio a qualquer criança pequena.

Recusou-se inicialmente a estabelecer qualquer conversação com os técnicos. Tentou armar uma cara de enfezado, quando eles insistiram um pouco mais em fazê-lo falar, mas sem conseguir que acreditassem muito nela. Pouco a pouco, os técnicos perceberam que uma maneira de fazê-lo participar da conversa seria utilizar a presença da mãe na sala e falar para ela o que queriam que ele ouvisse.

A este encontro se sucederam outros, poucos, e os outros dois filhos foram convocados a participar.

As crianças brincavam no quintal ao redor da casa-sede do CAPS, a família aproveitava os horários de refeição e alimentavam-se juntos com os outros freqüentadores, mas o Menino não participava ativamente das consultas, que eram centradas na mãe.

Com o acolhimento dado à família, e o envolvimento decidido daquela mãe, o foco da questão pôde ser retirado de cima do Menino. A família em pouco tempo pôde se reconstituir a partir daquela mãe e daquele Menino.

E aquele Menino pôde enfim, voltar a ser de novo apenas um menino.

Este caso clínico nos faz pensar, dentre tantas possibilidades de analisá-lo, como muitas famílias atualmente, principalmente em estratos sociais mais pobres, se organizam em torno das mulheres. Não que a simples presença delas por si só seja a garantia de que esta organização se fará. Pois comumente encontramos um padrão de comportamento das mulheres em relação a seus parceiros e filhos homens, incentivando-os e educando-os a serem socialmente irresponsáveis.

A figura masculina irresponsável é comumente tolerada pelas mulheres, que acabam por serem abandonadas por eles quando os deveres domésticos com a criação dos filhos e a manutenção da casa aparecem após o gozo da relação amorosa dos parceiros. Ou terminam com estas mesmas mulheres velando o cadáver do filho assassinado brutalmente nas ruas da cidade, ou no sofrimento das visitas periódicas à penitenciária após um delito de seu filho ou de seu companheiro.

No nosso caso clínico, atualizou-se através do comportamento rebelde do filho desta família, que assumiu inconscientemente, para esta mãe e para sua comunidade, o protesto pela representação tão frágil &— e tão contemporânea &— do papel paterno disponível alí.

Sete homens não valiam por um que fosse verdadeiramente competente. A caricatura, a prepotência, ou mesmo o autoritarismo, representados nas identidades masculinas do caso, não satisfizeram as necessidades, familiar e social, por uma identidade paterna adequada.

Vivemos, hoje, a tragédia da destruição das crianças pobres, condenadas à marginalidade e à morte precoce, ao colocarmos em seus ombros a responsabilidade social de formar pais mais responsáveis.

Rio de Janeiro, 31 de maio de 2005.

 

 

Endereço para correspondência
Carlos Roberto Alves de Paiva
R. Jardim Botânico, 700/221 &— Jardim Botânico
22461-000 Rio de Janeiro, RJ
Fones: (21) 2294-9441 / (21) 9961-4162

Recebido em: 04/06/07
Aceito em: 14/06/07

 

* Psicanalista colaborador da APERJ Rio 4.

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