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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. v.40 n.73 São Paulo dic. 2007

 

DEBATE

 

A arte da interpretação: diálogos com a Teoria dos Campos

 

The art of interpretation: dialogues with Muliple Fields Theory

 

El arte de la interpretación: diálogos con la Teoría de los Campos

 

 

No dia 10 de novembro de 2007 o Corpo Editorial do Jornal de Psicanálise reuniu-se com os colegas Camila Salles Gonçalves, Claudio Rossi, Flávio Ferraz, Luciana Saddi e Tânia Maria José Aiello Vaisberg para um debate sobre o tema: “A arte da interpretação: diálogos com a Teoria dos Campos”.

Para incentivar o debate, o Corpo Editorial selecionou e enviou aos nossos convidados alguns trechos de artigos de Fabio Herrmann sobre sua concepção de interpretação psicanalítica. Assim, a partir destas proposições, gostaríamos de abrir para discussão algumas questões como: O que é interpretação psicanalítica? Como cada um dos debatedores a considera em sua clínica? Como se dá na relação analista-analisando? Qual a relação entre interpretação e teoria? Qual a relação possível entre a interpretação e a clínica extensa? Que conseqüências nós podemos retirar da concepção de interpretação para a formação do analista?

Consideramos importante, a seguir, apresentar os trechos selecionados que serviram de base para o debate.

 

A arte da interpretação

“…a interpretação não prova coisa alguma, ela apenas cria condições para que surja o sentido, sentido este que, para ter validade, deve ser diverso do da própria sentença interpretativa que o analista eventualmente haja formulado. Interpretar é como partejar — espera-se que nasça um bebê e não que nasça um fórceps, que do paciente surja um sentido, não que resulte o instrumento teórico do analista. Esta é a idéia básica da noção de ruptura de campo.”

Fabio Herrmann
A psique e o eu, HePsyché, 1999, p. 15.

“Pois o sentido da interpretação sofreu uma minoração de valor na psicanálise. Interpretar, como o nome diz, é conhecer um sentido possível do discurso. Mas aquele, que já parte da presunção teórica de certo sentido, como pode descobri-lo? Morde a cauda, simplesmente. Também, interpretar não é só observar: é observar o que não está ali, porém poderia chegar a estar, se as condições lhe fossem dadas.”

Fabio Herrmann
“A Psicanálise, a psicanálise e as demais psicoterapias em face do absurdo”, Jornal de Psicanálise, vol. 32, 1999, nos 58/59, p. 123.

“…Bach o ensinou, na Arte da fuga, esse extrato de sabedoria musical que prescinde da indicação de instrumento para execução, nada nos impede de imaginar, porque se destina a todos e a nenhum, incluindo-se aí os então inexistentes e alguns instrumentos alienígenas, outros impossíveis, porventura as harpas celestiais.”

“Isto é a arte da interpretação: mais um dedilhar da alma alheia, do que uma formulação pseudocientífica sobre o discurso do paciente. E que se consegue com isso? Mantemo-nos agarrados às presentações do desejo até que ele nos fale a verdade. Agarrar-se é assim, é tosco, mas é também sutil …”

Fabio Herrmann
Clínica psicanalítica: A arte da interpretação, Ed. Brasiliense, 1991, pp. 89 e 90.

 

Clínica extensa

 

Fabio Herrmann
In A Psicanálise e a clínica extensa, org. Leda Maria Codeço Barone et al., Casa do Psicólogo, 2005.

“Que história é essa de clínica extensa? Uma novidade? Veremos que não. É só a vasta medida em que o método ultrapassa a técnica” (p. 19).

“Em Freud, a Psicanálise ocupava uma área muito maior que a terapia de consultório; depois, dentro do movimento psicanalítico, não se expandiu, encolheu” (p. 20).

“Os mesmos acordos políticos que determinaram os centros do poder psicanalítico convencionaram a extensão permissível da clínica, a moldura (ou setting) e, por tabela, o nível de sua teorização, definindo assim a clínica-padrão e a teoria-padrão” (p. 20).

“Por clínica extensa, não pretendo referir-me tão-só à extensão a outros domínios, como também à recuperação daquilo que constitui nosso patrimônio original, em parte abandonado, com o tempo. Como a atenção analítica é sempre clínica, a psicanálise da cultura e da sociedade, a correlação de mão dupla com a literatura e as artes, a própria integração com o reino das ciências, tudo isto é clínica extensa” (p. 24).

Leda Barone: Em nome do Jornal agradecemos a presença e acolhida de todos e propomos que comecemos nosso debate.

Camila Salles Gonçalves: Agradeço pelo convite e pelo clima que se reinstaura aqui, ou seja, aquele clima de prazer de conversar sobre a obra de Fabio Herrmann, que partilhei por mais de dez anos nas discussões dos sábados em sua casa. As citações de aquecimento fizeram-me retomar os temas que trazem e fiquei sensível ao percurso que essas citações tomam, que vai da técnica à política — a primeira citação fala em criar condições para que surja o sentido e a penúltima fala da questão do poder das instituições psicanalíticas. Lembrei-me de uma coisa que ouvi do Fabio: “Vai-se o gato e fica o pulo”. Ele nos ensinou até o pulo, e isso continua valendo para mim. Estava consultando uma página que muito me agrada no livro Clínica psicanalítica: A arte da interpretação, livro em que Fabio dá exemplos de como trabalha, exemplos de como sentidos são agarrados, abordando os aspectos negativo e positivo. Isto é, temos primeiro uma ausência relativa, a escuta flutuante que todos praticamos, não inserindo coisa alguma no conteúdo da fala do paciente; depois, no aspecto positivo, quero destacar a questão de o analista estar disponível para, pacientemente, agarrar o desejo do paciente. Fabio refere-se aos inúmeros disfarces e metamorfoses de Proteu, utilizados por ele para fugir e não se deixar agarrar por Menelau. Menelau queria que ele lhe revelasse o caminho de volta à casa. E, sempre bem-humorado, Fabio observa que, quando Proteu se transforma em água, se Menelau tivesse fobia à água, não estaria disponível para agarrar Proteu sob essa forma. Neste trecho, ele está nos legando metáforas da arte da interpretação, no sentido dessa disponibilidade para escutarmos os vários disfarces que o desejo adota para se manifestar, sem nos precipitarmos, sem estragarmos esse processo com sentenças interditantes. Por ansiedade, digamos, eu poderia ser levada a me fixar no primeiro disfarce, paralisando o processo do paciente e talvez, o que seria mais desastroso ainda, levando o analisando a se identificar com o seu próprio disfarce. Fabio está nos dando aí grandes “dicas” sobre interpretação, sobre a arte da interpretação, sobre a prática da análise que tem essa receptividade em relação às várias formas do desejo, e sobre aquela paciência que vai permitir o pulo, para agarrar e aí provocar a ruptura de campo. Foi mais ou menos isto que andei pensando, enquanto vinha pra cá.

Tânia Aiello: Eu queria falar da minha satisfação de estar aqui hoje. Tenho me disposto a me aproximar cada vez mais da Teoria dos Campos. Existem muitas coisas na vida que declaramos: “São importantes”, mas, mesmo assim, não temos tempo para elas. Estudo a Teoria dos Campos desde minha livre-docência em 1999, e mesmo antes, e sempre com o propósito de estudar mais. Mas eu queria falar um pouquinho da perspectiva pela qual eu me aproximo da Teoria dos Campos, introduzindo-a no debate. Para mim foi um presente ter descoberto a Teoria dos Campos depois de muito tempo de um trabalho que não é realizado no dispositivo clínico-padrão, mas sim como pesquisa sobre aquilo que denominamos imaginários coletivos. Trata-se de uma démarche que se mantém como uma interface com o que é desenvolvido em Paris VII, por duas autoras: Florence Giust-Desprairies e Jacqueline Barus-Michel, que, na minha opinião, precisavam conhecer a obra do Fabio. Eu me aproximei do Fabio para pedir a supervisão de minha livre-docência. Dizia respeito a um trabalho com alunos de psicopatologia, de que fui professora durante trinta anos. Nessa função, no primeiro dia de aula, baseada em uma prática de Walter Trinca, pedia para os alunos fazerem o desenho de uma pessoa louca e depois virar a folha e escrever uma história a respeito da figura desenhada. Para a livre-docência, tinha um material incrível que queria utilizar não como um teste projetivo, mas como uma manifestação, como uma fala dos meus alunos, que tinha tido lugar num determinado momento do seu processo e que queria escutar. Queria escutá-los como um psicanalista pode escutar seus pacientes, pensando cada desenho como uma associação de idéias de um paciente pessoal, de uma pessoalidade coletiva, de um sujeito coletivo, transindividual. Encontrei no Fabio um interlocutor que tinha sensibilidade, abertura e condição teórica, metodológica e epistemológica de me auxiliar de modo rigoroso. Havia procurado outros psicanalistas, que não se animaram com a tarefa, argumentando ser o material apenas projetivo e considerando que a tarefa que eu lhes propunha seria positivista. Assim, tinham se recusado a me ouvir, pois a seu ver a psicanálise não se prestaria a compreender os desenhos-histórias produzidos pelos alunos. Se digo que meu trabalho tem algum valor, acredito que devo ao Fabio, aos encontros nos quais pudemos abordar psicanaliticamente as produções dos alunos, compreendendo-as como associações livres de um sujeito coletivo. Para começar, encontrei nele uma ausência total de preconceito, um espírito curioso que se conjugava com a preocupação de rigor. Então quando eu digo que os franceses precisam conhecer essa obra, é porque apresenta aspectos realmente valiosos. Por exemplo, sou uma leitora de Winnicott, exerço uma clínica winnicottiana, e digo que Winnicott é um autor que será devidamente apreciado se as pessoas puderem pensar sua obra à luz de o quanto ela é fiel ou não ao método. Penso que a idéia do Fabio organiza um campo de conhecimento para além dos muros da própria Sociedade de Psicanálise. A meu ver seu trabalho tem um valor, hoje, que transcende até o campo da psicanálise e entra para o campo das ciências humanas. Paul Bercherie defende que só se pode entender o espírito da psicanálise, o nascimento da psicanálise, no bojo de uma psiquiatria que a antecede, que é uma ciência organizada sobre o que ele chama índice da não-compreensão do observador. Ou seja, a psicanálise constitui-se por cima de tudo que não posso compreender, e aposta numa coisa básica que é a inexistência de limites para a compreensibilidade das condutas humanas. Ou seja, enquanto a psiquiatria entende que algumas condutas são compreensíveis e outras incompreensíveis, Bercherie afirma que a psicanálise instaura um corte, uma ruptura epistemológica, ao mostrar que inexistem limites de compreensibilidade, pois todas as condutas são dotadas de sentido, mesmo quando não é imediatamente visível. Isso não quer dizer que se possa esgotar os sentidos das manifestações humanas, mas que, em princípio, não se pode retirar, excluir, do acontecer humano nenhuma conduta. Segundo Bercherie, a psicanálise rompe radicalmente com a psiquiatria, que vê na loucura um fenômeno apartado do sentido, que acredita que atos humanos possam ser isentos de significação emocional e humana. O Fabio é mais preciso do que Bercherie, porque diz que esta ruptura é operada, mais precisamente, não pela psicanálise, mas pelo método psicanalítico. E isso é fundamental porque no século XXI não podemos estar comprometidos com uma psicanálise que se reduza a uma teoria fisicalista estreita, que teve sentido e que foi heurística em um determinado momento, mas que caducou. As teorias psicanalistas caducam, mas não seu método. Levando a sério o que o Fabio postula, o poder heurístico do método promete que ele dificilmente caduque. Quanto ao tema do debate, a questão da sentença interpretativa, é muito importante. Algumas pessoas estão lendo o Fabio como se a questão fundamental da Teoria dos Campos fosse meramente estilística, consistindo meramente no evitar o enunciado de sentenças interpretativas. Não se trata de uma questão de deixar de enunciar a sentença no estilo kleiniano e adotar um estilo provocativo lacaniano. Não se trata meramente de estilo. Nessa idéia de que não se trata de enunciação de sentença, penso que o Fabio reformula e torna precisa a própria noção de interpretação. Quando ele diz que ao habitar um campo não sei disso, e quando sei já caio fora do campo para habitar outro campo, ele está nos falando de um tipo de saber que é sempre um saber do não-saber. Penso que Fabio sempre aponta para algo revolucionário presente no método da psicanálise e que tem valor para o campo das ciências humanas.

Flávio Ferraz: Quero agradecer o convite para estar aqui com vocês, tendo a honra de participar de um debate de tão alto nível. Ao contrário dos colegas, não conheço com profundidade o trabalho de Fabio Herrmann, mas sempre estive muito atento à sua obra desde o início de minha formação. Por isso vou falar do impacto que me foram causando esses trechos enviados pela equipe do Jornal de Psicanálise. Logo no primeiro trecho, quando Fabio Herrmann afirma que “a interpretação não prova coisa alguma, mas apenas cria condições para que surja o sentido”, e continua dizendo que “interpretar é como partejar e espera-se que nasça um bebê e não que nasça um fórceps”, e ainda “que do paciente surja um sentido”, entendo que isso se situa numa história da psicanálise pós-freudiana que, na verdade, rompe com a noção de interpretação estritamente freudiana. Não só rompe como a subverte. Considerando a grande contribuição de Freud no campo da interpretação dos sonhos, no continuum de uma tradição que vinha dos gregos, quando a interpretação se dava em base de referentes preestabelecidos, a grande ruptura que Freud fez foi tomar o símbolo contido do enunciado do seu paciente como algo que só poderia ser desvendado. Para Freud trata-se de desvendar a partir da associação do paciente — ele individualiza o símbolo, circunscreve o símbolo ao inconsciente individual. Por um lado, essa é a sua grande contribuição; por outro lado, se tomamos Freud dentro de suas contradições, de fato a definição de interpretação é a descoberta do sentido do conteúdo latente que vem embutido na enunciação manifesta. De uma certa forma, isso influencia a tradição psicanalítica subseqüente a ele, impondo ao analista um saber sobre o conteúdo latente, não só um saber extrair algo do paciente, mas um saber que pudesse ser comunicado ao paciente. Isso é muito comum em trechos de Freud em que ele fala do trabalho de persuasão contido na comunicação da interpretação, quando, muitas vezes, diante da resistência do paciente, o analista teria que persuadi-lo da razão contida na sua interpretação. Parece-me que é esse o ponto que, com o passar do tempo, a psicanálise pós-freudiana pôde questionar, dirigindo-se cada vez mais à idéia do não-saber. Mesmo quando se trata do saber de interpretar, o analista ocupar o lugar do não-saber. Esse trecho de Fabio Herrmann situa-se com muita clareza nessa tradição, fazendo uma subversão da palavra “interpretar”, que Freud usava na acepção comum do termo. “Interpretar” vem do latim interpretor, que significa “explicar, traduzir, compreender, avaliar e decidir”. Curiosamente, a definição que Herrmann faz da interpretação é exatamente o oposto daquela definição comum do termo. Assim, conserva-se a palavra “interpretação” por uma questão de tradição, porque me parece que já não se trata mais de interpretar. Deveríamos então ter uma outra palavra para dizer o que se faz na comunicação psicanalítica. Winnicott, por exemplo, recusa a idéia de que ele “interpreta” o paciente, preferindo dizer que ele “fala” alguma coisa para o seu paciente. Temos aí então a demonstração do que foi essa diferenciação que a interpretação ganhou na história da psicanálise. Para Fabio Herrmann trata-se de uma questão muito importante, que ele expõe com toda a clareza. Trata-se, para ele, do mesmo problema que apareceu, de modo distinto, na tradição winnicottiana. Fédida, em um trabalho em que questiona a interpretação como determinação do sentido, afirma que a única possibilidade de se pensar a interpretação seria mesmo o “brincar com” winnicottiano, e não mais um exercício de enunciação de um certo sentido. Também a psicanálise lacaniana parece contribuir para essa explosão da idéia de interpretação, quando trata o inconsciente como uma formação transpessoal; ali, já não há mais aquela acepção de inconsciente como “local” no qual o sentido latente se guarda, mas sim a idéia de que não há um inconsciente tal qual a sua definição original (embora os lacanianos se digam freudianos). O inconsciente só há na relação analítica, não está nem no analista, nem no paciente; surge no espaço intermediário, sem que o saber esteja no analista. Segundo essa modalidade de compreensão, a interpretação não seria uma interpretação, mas a potencialização, pela ação do analista, de um sentido que se cria. É exatamente a radicalização do não-saber do analista que pode potencializar a explosão do sentido. Nasio e outros autores lacanianos, por exemplo, questionam de uma forma muito criativa o problema lógico da interpretação, dizendo que existe a lógica da enunciação e a lógica do enunciado, e o que importa na análise é a lógica da enunciação, porque a lógica do enunciado é a lógica comum, ou a lógica aristotélica que poderia ser traduzida no famoso silogismo lógico: “Todos os homens são mortais, Sócrates é um homem, logo Sócrates é mortal”. A lógica da enunciação só pode ser a explosão de um sentido para todas as outras lógicas e isso tem a ver com o que o analista faz. Ele potencializa a explosão da sentença, e isso parece semelhante ao que Fabio Herrmann pensava: nessa explosão não mais importa a lógica da consciência e da racionalidade, mas sim, essencialmente, a forma de acolhimento que torna possível esse “pensar junto”.

Leda Herrmann: Eu queria agregar ao que o Flávio estava dizendo algo mais da concepção de interpretação do Fabio. Sua idéia é que a interpretação não pode ser identificada com a fala do analista, ela é um processo. Fabio ressalta essa concepção em vários textos em que trata do problema da interpretação psicanalítica. Para ele o processo interpretativo dá-se por meio de toques, está na escuta do analista, ela é o método em ação, a ruptura de campo.

Flávio: É por isso que digo que sua concepção rompe com a tradição freudiana, na qual a interpretação é tomada como o ato da explicação e da decisão, conforme o sentido do termo quando se recorre à sua etimologia.

Luciana Saddi: Eu me sinto muito honrada pelo convite, para estar aqui com vocês. Ao contrário dos três primeiros colegas que falaram, minha formação como analista está completamente ligada à Sociedade de Psicanálise. Comecei meus estudos com analistas da Sociedade e a única análise que fiz também foi realizada com um analista daqui e sempre estive ligada à Sociedade de Psicanálise. Falo isto, para introduzir um pouco da minha história com relação à Teoria dos Campos. Quando me formei em Psicologia — já fazia análise e supervisão — descobri que eu tinha um problema com a idéia de identificação/projeção em Melanie Klein e também com a forma dos kleinianos trabalharem, parecia mecânica. Comentando com o Leo Nosek, na época meu supervisor, ele me sugeriu conversar com o Fabio, que me convidou a assistir suas aulas na PUC. Assisti a primeira, a segunda, na terceira, quando ele falou que o inconsciente não existia, eu pensei que estava no lugar errado, que deveria desistir porque para mim a existência do inconsciente era incontestável. Trabalhava para a ide, e o Fabio publicou muitos artigos nela, lia esses textos, eram muito interessantes, mas não podia aceitar que o inconsciente não existisse. Voltei a fazer os estudos clássicos da Sociedade de Psicanálise: Freud, Melanie Klein, Winnicott, e Bion. Então, eu brinco, sou prata da casa, fiz tudo que todo mundo aqui fazia na década de 90, quando eu terminei minha formação. E depois de um tempo estudando Bion, um dos autores que mais estudei, me senti muito presa. Sempre tive muita liberdade clínica e me sentia muito presa ao conversar com meus colegas sobre o meu trabalho clínico. Comecei a me sentir amarrada porque o que eu fazia não poderia ser feito, pois teria que seguir regras muito estreitas, o que não me agradava. Além do mais, trabalhava com crianças muito perturbadas, algumas aprontavam muito, o setting tinha que ser muito diferente, não conseguia trabalhar com um setting muito estrito. Lentamente fui me introduzindo as idéias do Fabio. (Considero o livro A arte da interpretação tão bom quanto o Brincar e a realidade, de Winnicott, ou o Aprender com a experiência, de Bion, livros que têm uma importância dentro da história da psicanálise, pois provocam um salto na nossa relação com a psicanálise.) Enfim, precisava me sentir livre, mas ao mesmo tempo precisava ter uma posição teórica firme, estabelecendo uma relação com uma teoria organizada. Foi o que encontrei na obra do Fabio e hoje o considero um analista tão importante quanto foram Lacan, Melanie Klein e Bion, porque ele faz uma virada, toma toda psicanálise pelas suas bases, colocando-a em uma ordem de pensamento.

Quero voltar para minha questão técnica. Com a liberdade que fui ganhando, por fazer uma psicanálise orientada pelo método e não por aplicar certas teorias, me aprofundei, cada vez mais, no estudo da Teoria dos Campos e hoje não posso prescindir, em meu trabalho, da questão do método. Era isso que eu estava precisando: firmeza com o método e liberdade cada vez maior com as teorias, inclusive para poder encontrar novas teorias e para dar conta de certos problemas, que as teorias clássicas não me ajudavam a pensar. Além do mais, como sempre gostei de várias teorias e autores, não queria privilegiar nenhum sistema de pensamento. Quando percebi com clareza que os problemas que me afligiam eram técnicos, fui fazer meu mestrado com o Fabio. Tendo o método como base sólida para o trabalho clínico, me coloquei o problema de poder trabalhar com outras técnicas e com mais liberdade, assegurando-me de que permaneceria no campo da psicanálise. Para mim era um desafio pensar como conseguiria trabalhar com outras técnicas, orientada por algumas descobertas que havia feito, e, mesmo assim, permanecer no campo da psicanálise. E foi a teoria sobre o método que me deu essa possibilidade, pois o método é soberano, já as técnicas são contingências, são instrumentos para realização do método.

Camila: Sua tese mostra bem isso.

Tânia: Qual é o tema do seu trabalho?

Luciana: “No campo dos problemas alimentares: uma técnica de tratamento psicanalítica”. Esse é o meu mestrado orientado pelo Fabio e pela Leda Herrmann.

Camila: Eu queria fazer uma observação. O tempo todo eu estava pensando, sem falar, em Melanie Klein, porque para mim ela sempre foi o exemplo do uso da sentença interpretativa. Nunca achei falsas as afirmações de Melanie Klein. Pelo contrário, trabalho com crianças há quase quarenta anos e as crianças sempre me pareceram muito kleinianas. Mas a crueldade que vi na peça de teatro em que Melanie Klein e a filha são personagens parecia-me já estar nas sentenças interpretativas. Seria uma crueldade inconsciente da Melanie Klein. O que pode fazer uma criança com aquele tipo de afirmação? Acho que experiências que tive depois, o encontro com a obra de Winnicott e as conversas com Fabio Herrmann também me ajudaram a firmar uma posição muito pouco firme, muito flutuante, em relação às sentenças interpretativas. Flávio mencionou o falar com as crianças de Winnicott. Creio que esse falar com o analisando está sempre presente nos exemplos do Fabio, naquela paciência de aguardar, deixar que surjam os vários disfarces, representações, até que a interpretação, como lembrou a Tânia, possa ser formulada, mas por ambos os envolvidos. Como lembrou a Luciana, Melanie Klein, grande fundadora da psicanálise, pode ter um talento interpretativo e não ter uma arte da interpretação.

Tânia: Quero fazer uma observação. Luciana falou de base sólida, o que nos remete à questão do fundamento. O fundamento não tem que ser exatamente sólido, ele tem que proporcionar firmeza e equilíbrio, permitindo gestos, atos. Estava me lembrando pela manhã que certa vez, passando com minha filha engenheira pela ponte Eusébio Matoso, a ponte tremeu com o trânsito parado lá e eu comentei com ela que a ponte não tinha uma base sólida. Ela me respondeu que não, que era o contrário, a base sólida não é a que não treme, ela tem que ter movimento. Acho interessante, porque quando nossa base é uma teoria, a teoria é o passado, porque toda teoria está acabada, enquanto o método é movente. Cabe aqui lembrar o que o Fabio fala: “Quem não cria crê.” Na verdade quem não cria vive no passado, no morto, onde é tudo póstumo, ao passo que uma base de natureza metodológica é um fundamento vivo porque permite que as teorias se mantenham em processo de construção contínua. Então nesse sentido eu concordo com a Luciana, pois esta colocação do Fabio não foi feita por nenhum outro autor que eu conheça com tanta clareza. Entendi o sentido expresso pela Luciana, esse sólido que ela menciona, não é o sólido que quebra, não é o sólido do morto, do passado, não, mas o do confiável. Confiamos no rigor do método, ao mesmo tempo que estamos como um viajante de peito aberto, porque não sabemos o que vai acontecer daqui a meio minuto. E isso faz parte tanto do ofício do psicanalista do consultório como do investigador psicanalítico que está fazendo uma pesquisa, por exemplo, num mestrado, ou que está fazendo atendimento em clínica extensa.

Claudio Rossi: A noção de interpretação em Freud aparece de diversas maneiras. Uma das formas que ele usou é a da interpretação do discurso, uma exegese, uma interpretação de texto. Mas existem outras. Ele também usou o conceito no sentido de ser uma decifração de criptografia, decifração de um código secreto, já que a repressão teria, na formação do inconsciente, através dos mecanismos do sonho, a capacidade de gerar um verdadeiro criptograma, quer dizer, um verdadeiro código secreto. Além disso, Freud tem a idéia, apresentada em vários textos, da arqueologia, a idéia “sherlockiana”, que consiste em, através de traços, procurar reconstituir uma cena que de fato teria existido. Então, tanto na idéia da criptografia, quanto na idéia “sherlockiana”, não existe propriamente um ponto de vista, não existem inúmeros sentidos possíveis, o que existe é uma verdade que precisa ser revelada e da qual é possível alguém se aproximar mais ou menos. Acredito que esses múltiplos modelos expressavam uma certa insatisfação de Freud com qualquer um deles e de que estava incomodado por todos. Na prática fazia algo de que nenhum desses modelos dava conta. O que há de comum em todos esses modelos? Em todos estamos diante do particípio, diante de alguma coisa que aconteceu definitivamente. Uma obra escrita é algo que aconteceu definitivamente. O criptograma é algo que aconteceu definitivamente. A psicanálise, porém, trata de algo diferente. A psicanálise trata de algo que é vivo, algo que está em plena produção, em pleno acontecimento, que é a subjetividade do paciente. Por essa razão esses modelos, olhados do ponto de vista da psicanálise, vão se tornando relativos e as interpretações vão se tornando expressões da subjetividade de quem as faz. Assim a exegese torna-se ponto de vista, a decifração vira provocação, a arqueologia se transforma em eficácia simbólica e assim por diante. Quando o analista adota qualquer um desses modelos, na verdade o que ele está fazendo é revelar sua subjetividade, que é posta na mesa, que é posta em confronto com a subjetividade do outro, que jamais ficará a mesma depois de tal confronto. Eu tenho a impressão de que é vendo a relação analítica dessa forma que o Fabio chega à sua concepção de interpretação como expressão de um analista vivo que funciona de determinadas maneiras. Mas não é isso ainda, a interpretação para o Fabio acontece no paciente. Decorre do comportamento do analista, mas acontece no analisando. É muito característico do discurso do Fabio colocar em primeira pessoa o que está ocorrendo no outro. Poder-se-ia dizer, então, que interpretação é a conseqüência do atrito de duas subjetividades na qual o analisando dá um novo significado para suas experiências, alterando suas noções de realidade e identidade.

Leda H.: Trago uma definição mais recente do Fabio de interpretação, no livro Introdução à Teoria dos Campos, a de que a interpretação é um ato falho a dois.

Flávio: É interessante o que o Claudio está trazendo, porque, nas contradições de Freud, o primeiro modelo que o deixa insatisfeito é o modelo da materialidade do inconsciente. Ele define o aparelho psíquico como um aparelho de memória, sendo o inconsciente uma espécie de “memória esquecida”. As metáforas “detetivescas” da investigação e da descoberta, que Freud persegue no estudo da histeria, sofrem um abalo quando da descoberta da transferência, operando-se aí uma ruptura fundamental com aquele modelo do inconsciente como materialidade, como traços escondidos de memória, exatamente pela descoberta da produção atual do inconsciente na situação analítica propiciado pelo conceito de transferência. É claro que essa é uma concepção que também não deixa de trazer problemas: a corrente kleiniana, por exemplo, vai tomá-la quase que ao pé da letra, praticamente esquecendo o sonho e o discurso, para ater-se predominantemente à transferência. A idéia do inconsciente como traço mnemônico não pode ser sustentada por nenhuma corrente psicanalítica.

Ana Maria Loffredo: As últimas colocações da Camila, do Flávio e do Claudio levaram-me à seguinte questão: se a nomeação da pulsão de morte se articula ao irrepresentável, abalando os fundamentos pela busca do referente — uma das perspectivas que norteavam Freud desde o início de seu trabalho, isto é, o sintoma poderia ser esclarecido ao ser reportado a sua origem e, dessa forma, poderia ser removido —, quais as conseqüências metapsicológicas e desdobramentos clínicos do segundo dualismo pulsional, quanto à concepção de interpretação, no âmbito do pensamento freudiano?

Flávio: A partir da formulação da pulsão de morte como a irrepresentabilidade, surge em Freud o impasse da própria impossibilidade da clínica psicanalítica em certos casos, visto que a clínica psicanalítica confunde-se com a própria interpretação. Diante da postulação de algo como a irrepresentabilidade, morre a clínica psicanalítica. Este foi o legado pessimista que ele deixou em “Análise terminável e interminável”, como enfatiza Donald Meltzer. Mas, por outro lado, veio a se constituir no grande desafio que Freud acabou deixando (inadvertidamente?) para a psicanálise posterior: transformar essa clínica. Por isso minha afirmação de que a interpretação, no sentido estrito do termo, talvez não caiba mais. O termo “interpretar” foi subvertido, e o trabalho analítico, que continua sendo chamado “interpretação”, passa a ser a facilitação para que o sentido possa advir, deixando de ser “descoberto”, para então passar a ser “produzido”. Essa proposição vem gerar uma clínica bastante diferente da clínica da histeria. Aliás, o que ocorre — e trata-se de algo muito importante — é que, uma vez feita essa subversão, já não se pode mais manter intata a clínica da neurose, como se fossem possíveis duas clínicas, aquela do representado e uma outra do irrepresentado, porque as conseqüências da transformação ocorrida atingem todo o paradigma anterior, trazendo alterações substanciais à clínica, seja ela das neuroses ou não. Winnicott, ao dizer que tudo continuava a correr bem com a clínica freudiana das neuroses, mesmo diante de suas postulações transformadoras, parecia fazer mais um gesto político do que afirmar uma verdade. Uma vez proposta uma clínica do psicótico ou do borderline, a clínica do neurótico não poderia ser mais exatamente a mesma...

Alexandre Horta: Vocês estão tocando em situações que me fazem pensar a singularidade da comunicação com o paciente. Quando estou em atendimento, há um diálogo. É surpreendente como minha fala reverbera; às vezes de forma totalmente inusitada. De uma simples conversa em que faço determinadas colocações, o paciente é tocado de maneira tão inesperada, que somente a reação dele me permite, de alguma maneira, dar rumo a uma idéia interpretativa. A conseqüência da nossa intervenção é imprevisível, isto é, não sabemos de que forma nem com qual intensidade o paciente reagirá. E a situação se constrói no imprevisível. Diante de algo que dizemos e que nos parece sem importância, nos surpreendemos com a intensidade da emoção deflagrada — uma eclosão de idéias, de sentimentos antes inimagináveis. No meu contato com o Fabio, em supervisões, ele comunicava isso com muita clareza. É algo que, como analistas, experimentamos e vemos.

Tânia: Estou gostando do seu jeito de falar. O Adoniran Barbosa, em um de seus últimos discos, diz: “Gente, eu não sei nem do que estou falando”. Para mim é uma descrição da conversa em uma sessão de análise, tem um não-saber, porque não sei o que estou falando, mas estou participando de um acontecer. Saio da posição de saber o que vou dizer, para mergulhar na situação de não suspeitar dos efeitos que provoco. Às vezes mais não acerto do que acerto. É aqui que entra a questão do método, e não é a posição de “eu não sei e qualquer coisa pode ser”. Ao contrário, é sustentar-se na posição do não-saber. Aquelas palavrinhas que escuto às vezes de meus alunos quando peço para ler o Fabio: “Deixar que surja, como é simples!”. Mas a prática do “deixar que surja” exige o difícil agüentar não saber no cotidiano da prática. Para isso, usando uma expressão de Winnicott, a obra do Fabio é uma companhia, é um fundamento. O Fabio desconfiou, ainda muito jovem, que ele não podia ser um interpretador, que essa era uma função impossível para o analista. Concordo com o que o Flávio diz, e acrescento que quando entra a pulsão de morte, o irrepresentável, é mais um sintoma do esgotamento dessa proposta, e seguir nesse rumo nos obrigaria a fechar “nossa lojinha”. Sair dessa posição é abrir-se para todo um movimento de ciências humanas. O Fabio fez esse percurso, mas ele não coloca com clareza quais são seus interlocutores, e ele não fala só com a psicanálise, dialoga com filósofos, com a teoria do conhecimento, sem que muitas vezes o leitor o acompanhe. O trabalho, a obra, da Leda Herrmann é muito interessante porque localiza alguns interlocutores importantes. O psicanalista defronta-se com essa posição impossível do interpretador não só na psicanálise clínica, e de não poder continuar o mesmo nesse ofício.

Claudio: Você nos diz que faltam notas de rodapé.

Leda H.: É uma obra difícil.

Tânia: É difícil porque ela não se mostra prontamente na sua profundidade. Fico sabendo pelos alunos. Eles acompanham com dificuldade. Felizmente o livro da Leda está ajudando muito.

Luciana: Para ser um pouco provocadora. Por onde circulo, não vejo hoje nenhuma escola, nenhum analista que negaria qualquer uma dessas formulações que aqui fazemos. Portanto, a princípio, em teoria ou em tese, todos nós temos o mesmo problema, todos nós achamos que psicanálise é criação de sentido. Abordando o problema de uma forma talvez muito ligeira, ninguém mais considera que há inconscientes com conteúdos pré-fabricados, prontos, mesmo que não tenham essa clareza ao se expressar. As idéias vão mais longe, às vezes, do que a clínica que se consegue praticar. Essa é uma prática muito mais difícil, mas ao indagar qualquer bioniano, kleiniano, lacaniano eles vão manter um discurso igual ao nosso, aqui. Aí eu pergunto qual é o pulo do gato que vai diferenciar, na prática da escuta clínica, um analista que está mais orientado pelo método de um outro analista que está mais orientado pelas teorias.

Claudio: Piorando um pouquinho sua provocação eu perguntaria: o que vai diferenciar um atrito de subjetividades a que me referi, ou uma conduta que se chama de interpretação em psicanálise, de uma troca sincera de idéias entre duas pessoas quaisquer conversando normalmente?

Luciana: Não tenho resposta para a provocação do Claudio. Comecei, mas não queria ir tão longe.

Claudio: Nas maneiras “clássicas” de se entender a interpretação, principalmente no modelo arqueológico, existe uma diferença fundamental entre um arqueólogo e um turista. Mas, por exemplo, no modelo da “eficácia simbólica”, pode haver uma diferença muito pequena entre um papa e um xamã. Quando o Fabio questionou de uma forma fundamental as escolas psicanalíticas, procurando pôr em evidência o que seria essência do método, ele foi bem-sucedido, mas diria que ele deu um primeiro passo, agora cabe a nós dar os próximos, isto é, procurar esclarecer qual é a especificidade desse método. O Fabio disse muito mais o que não era, do que o que era. Ou disse o que era de uma forma um pouco genérica. Fica essa questão, qual a diferença entre um charlatão e um bom psicanalista. Qual a diferença entre um xamã e um psicanalista? E assim por diante.

Alice Arruda: E quando você pensa nisso e coloca essa questão, para que direção você vai?

Claudio: Fico exatamente na minha pergunta, bem angustiado, aliás.

Luciana: O Fabio, no artigo “A Psicanálise, a psicanálise e as demais psicoterapias em face do absurdo”, vai falar da ruptura de campo como sendo o que opera todas as psicoterapias, das mais charlatanescas, se é que hoje se pode falar nisso, usar esse nome, até as que achamos melhores, as psicanalíticas. Porque ele estava interessado em saber o que era comum, e o comum é a ruptura de campo. Mas, por exemplo, no IV Encontro da Teoria dos Campos, em 2005, o tema foi ruptura de campo, mas quem participou sentiu como é difícil saber o que é uma ruptura de campo. Surgiram várias definições e a Camila, que estava presente, disse que nada daquilo era ruptura de campo.

Claudio: Eu me lembrei de uma história do Tobie Natan, discípulo do Devereux. Ele cita o trabalho de um xamã africano trabalhando em Paris com um paciente também africano, que os psiquiatras da França não conseguiam dar conta. Então esse xamã senta-se ao lado do paciente que está dormindo para poder saber como são os sonhos do paciente enquanto ele dorme. A idéia é que só se pode saber dos sonhos do paciente enquanto ele estiver dormindo, acordado ele estaria contando outra coisa. O xamã, ao entrar em contato com o sonho do paciente que está dormindo, faz uma série de procedimentos e o paciente acorda curado. Vejam que história!

Ana: A partir da provocação do Claudio e da minha experiência acadêmica de transmissão da psicanálise, entendo que não podemos perder de vista a obviedade de que, na posição de psicanalistas, estamos descolados do senso comum, pois nosso trabalho também se apóia no plano da construção conceitual. Uma forma de sistematização interessante é a proposta do Renato Mezan para se caracterizar uma escola psicanalítica: uma laranja com quatro gomos que se reportariam a uma arquitetura da psique e a formulações teóricas relativas ao desenvolvimento, à psicopatologia e à técnica. Creio que a questão poderia ser assim formulada: que posição deve ocupar a teoria? Esse aspecto sempre foi crucial, para mim, em relação à proposta do Fabio, cuja ênfase no método como o coração do trabalho, pelo menos como a entendo, não deixa de lado sua fundamental potencialidade para a criação e checagem contínua de teorias, nos vários níveis de sua produção e abrangência. Às vezes, fico com a impressão que ficamos tão encantados com a operação do método, que a apropriação das ficções teóricas subjacentes, mesmo que provisórias, perde em importância. Mas é do próprio método essa vitalidade para criar teorias, o Fabio fala disso o tempo todo, e é na possibilidade de teorização que construímos instrumentos de trabalho e nos diferenciamos do senso comum, construindo objetos teóricos. Portanto, é fundamental refletir sobre como se formulam teorias por meio do método. O risco é perdermos de vista o interesse pela investigação sobre o que fundamenta o próprio método, e, nesse caso, estaríamos no registro de uma teoria do método.

Claudio: Acho que você tem toda razão quando se trata da construção do conhecimento psicanalítico, mas eu estava respondendo à provocação da Luciana, pois se sempre, em qualquer psicoterapia, para que ela funcione, o que vale é a ruptura de campo, então, nesse exemplo do xamã, que eu dei, teríamos que perguntar onde ela aconteceu. Em que momento? Foi ao dizer ao paciente que iria observar seu sonho? Foi durante o sono? Foi quando o paciente acordou? Considero ser esse o tipo de trabalho que o Fabio nos deixou como tarefa, ou seja, identificar em cada situação, até mesmo numa conversa de bar que possa ter um efeito analítico, onde aconteceu a ruptura de campo. Talvez assim tenhamos um ganho teórico.

Ana: É que o próprio conceito de campo se articula a uma rede conceitual e a concepção de ruptura de campo faz parte dela. Esta é a questão: o quanto o enfoque no método, que é absolutamente procedente, pode deixar na obscuridade a teoria, sendo que a própria concepção de campo é uma construção teórica que entende o fenômeno como pertinente a uma totalidade regida por leis próprias enquanto conjunto. Nesse caso, segundo um dos enfoques possíveis, o fenômeno poderia ser entendido, por exemplo, como fruto de um jogo de forças.

Luciana: Sem dúvida nenhuma, mas não é uma teoria ontológica, como são muitas das teorias psicanalíticas que temos, ou suas aplicações. E, embora o Fabio não quisesse fazer uma teoria ontológica na série de livros dos Andaimes, de certa forma nasceu, à revelia, uma espécie de teoria ontológica, por exemplo, no capítulo sobre a mentira, sobre a superação do cerco das coisas1.

Tânia: Mas não é uma teoria escolástica.

Leda H.: Nem é uma teoria sobre o sujeito.

Ana: O que quero apontar é a presença de uma teorização subjacente ao próprio método.

Tânia: E isso faz muita diferença.

Luciana: Ela não nasceu assim, mas pode ser usada como uma teoria sobre o sujeito. Quando o Bion fala em função e fator, não fez uma teoria sobre o sujeito naquele momento, mas depois se torna uma teoria sobre o sujeito pelo uso que dela fazemos. Isso para poder dizer que às vezes necessitamos de prototeorias sobre o sujeito, prototeorias ontológicas, e uma teoria metodológica que sustente uma prática clínica e uma clínica extensa. Agora, vou me autoprovocar. Tomemos o Green no texto em que se pergunta se a sexualidade tem algo a ver com a psicanálise2, em que ele afirma que os analistas, principalmente os kleinianos, esqueceram que é o Édipo o núcleo da personalidade do sujeito, e não a relação com o seio. Ele tem uma teoria ontológica. Pergunto-me qual a relação da Teoria dos Campos com esse tipo de formulação e não tenho resposta.

Tânia: Quando leio um livro tem algo vivo, que sou eu lendo o livro, e de outro lado tem o texto que, num certo sentido, sempre é póstumo. O que está vivo é a leitura como ato humano. Para mim, a leitura da Teoria dos Campos põe em relevo esse sentido póstumo da teoria acabada e isso nos permite cuidar da relação que fazemos com as coisas póstumas. Quando meus alunos lêem o Fabio, alguns reagem ao termo “ruptura” por sugerir algo violento, e eu tento mostrar como existe nessa idéia um fator de conquista possível de liberdade. Uma teoria não-escolástica, sobre o método, libera. Concordo com o Claudio quando diz que o caminho não está todo trilhado, até para que não tornemos a Teoria dos Campos algo póstumo. Depende de nós mantê-la viva. Ela nos proporciona uma relação diferenciada com as teorias. E ressalto, mais uma vez, que não é escolástica, e por mais que exista um grupo constituído em torno de uma leitura. Se o Fabio for lido com rigor, não se pode constituir uma escola, por definição. A leitura rigorosa repudia a constituição de escola.

Flávio: É exatamente nesse ponto que encontro a oposição entre o lacanismo e a Teoria dos Campos, uma teoria do método na qual não há necessariamente esse “recheio” que é uma teoria do sujeito, pois esta, se fixada, necessariamente vem a caducar. Arrisco dizer, inclusive, que isso vem gerando uma certo mal-estar, ou mesmo uma crise na escola lacaniana.

Claudio: As falas de Tânia e do Flávio me fizeram pensar que o morto que o analista procura cremar é a teoria do sujeito que o paciente construiu. A “escola” do próprio paciente com todas as teorias consagradas que ele montou sobre si próprio e sobre o mundo. Fazendo isso, o analista obriga o analisando a voltar a ter um contato mais fresco com o real.

Leda B.: A surpreender-se com a vida, não acha?

Claudio: Sim e a produzir novas possibilidades. Essa coisa do escolástico sugeriu-me que qualquer teoria ontológica, principalmente quando é feita pelo paciente, deve ser rigorosamente desconstruída.

Leda H.: Considerando o rumo de nossa conversa e a frase do Fabio do artigo “Psicanálise em São Paulo”, de 1985, que a Tânia lembrou: “Quem não cria crê”, que anos depois ele complementa com “…mas quem cria desconfia”, quero afirmar que essa é a posição da produção da teoria na Teoria dos Campos. Não é que não se deva produzir teorias, mas deve-se produzir teorias que estão sempre correndo o risco de serem destituídas, desconstruídas, mudadas etc., para isso que elas são criadas e elas são muito importantes. Fabio insiste na necessidade de se construírem constantemente, ao longo do trabalho clínico com pacientes de consultório ou não, prototeorias que podem evoluir para teorias. Para Fabio teorias não são para serem jogadas no lixo, mas o que ele manda jogar no lixo é essa atitude de apego à teoria. Ele afirma que todo analista tem que ter a condição de criar teorias, mesmo que crie uma teoria que já existe, mas sempre nesta posição de que ele não está partindo de uma teoria. Para Fabio o que tem que prevalecer é a anterioridade lógica do método, a teoria vem sempre depois e vem nessa esteira do risco de ser perdida. A conseqüência para o psicanalista é a de estar sempre numa posição de desafio e de insegurança, pois é muito mais fácil ter uma teoria que lhe explique como é o seu paciente.

Flávio: Impossível não intervir. Na frase “Quem cria desconfia” — e não sei se há aí uma malícia na enunciação — temos a um só tempo o passado do verbo crer e o presente do verbo criar. É exatamente essa conjugação de ambos os verbos — o que cria (do verbo crer), no passado, e o que cria (do verbo criar), no presente, que sustentou toda a explicação que você nos deu: chegamos, assim, à sentença: “(Eu) cria, não creio mais”.

Leda H.: É essa a posição que Fabio dá para a produção da teoria em psicanálise.

Iliana Warchavchik: Religião ou boa psicanálise?

Camila: Para colocar uma certa ordem na minha suposta cabeça, pensando no que ouvi de vocês, desde o que o Fabio chamou de dedilhar a alma do paciente, a atitude positiva do analista — a presença do analista, o modo de escutar, as interjeições, indagações, que permitem que algo surja de uma ausência estereotipada —, até interpretações da sociedade contemporânea, da psique do real, ou quando surge uma psique social, cheguei à indagação sobre o que nós temos no trabalho do Fabio. Nós temos o método, o método na situação clínica, que vai dedilhando, aguardando etc., até que aquele embrulho pronto que o paciente traz sobre si mesmo se rompa. É uma violência? É uma violência, sim, contra todos os disfarces com os quais o analisando se identificou, diria eu, perdendo sua liberdade. E, como penso que diria o velho Freud — que acho que Fabio Herrmann jamais jogou fora —, o homem é um ser violento. Desde este dedilhar a alma, até as investigações sobre a psique do real, nós temos o método em ação. Na clínica, vocês já deram excelentes exemplos de como pode ocorrer a ruptura de campo, ou de como nós podemos aguardar a ruptura de campo. Outro dia, eu estava conversando com uma jovem colega estudiosa da Teoria dos Campos, Fernanda Sofio, e nós nos perguntávamos como era isso, como era o uso do método em relação à psique do real. Isto porque o Fabio não queria estabelecer afirmações definitivas, mas ao mesmo tempo, em Psicanálise do quotidiano, ele constrói teorias sobre o mundo contemporâneo. É aqui que recorro à idéia de campo, como um auxílio para me expressar. Fiquei muito apegada à palavra “prospecção”, que Fabio usava para expor a ação psicanalítica de investigação da realidade, o cotidiano, aquilo em que vivemos, sendo a realidade uma superfície e o real o que gera essa superfície. Essa ação psicanalítica faz prospecções, uma série de furos na superfície. Ninguém vai furando ao léu — a Petrobras, por algum motivo, foi investigar em Santos. O que fez? Através de prospecções, delimitou um campo. Penso que, em psicanálise, a delimitação do campo pode vir de uma teoria bioniana, kleiniana, de alguma coisa que impôs uma desconfiança. Aquele que estou sendo, o observador, observa através de crenças, criações, preconceitos, alta informação. Alguma coisa que delimita um campo é o operante. A idéia de nomear o campo facilita o trabalho do analista. Não entro no mérito de ser adequado ou não o termo escolhido pelo Fabio. Mas como é que, do dedilhar a alma ou a psique real, é possível chegar a algo como o regime do atentado3? Uma idéia sobre o campo do ato no mundo contemporâneo teve muitos frutos, que a Luciana explorou muito bem em sua dissertação. Creio que, então, não há uma teoria sobre a sociedade ser assim ou assado, que, se aplicada, permite-me chegar à conclusão a respeito de determinado fenômeno. Mas aconteceu o atentado contra o papa em 1981, existem atentados que cometo contra mim mesma, se eu sou uma obesa compulsiva, e a pergunta que me parece importante é: o que faz o método psicanalítico aí? Ocorre um atentado. Então tenho uma primeira delimitação. É o método que me deixa à espreita. Vou dedilhando daqui e dali, vou perfurando e algo aparece. A meu ver, tudo se passa como se o regime do atentado se manifestasse a partir de um dedilhar e de um perfurar. Então não é uma teoria sobre o mundo, mas é um jeito psicanalítico de investigar o mundo que se apresenta à psicanálise. O Fabio escreve com todas as letras: a psicanálise investiga a psique, as outras ciências sociais investigam outros aspectos da realidade. Deste método, que dá pequenos toques, que faz pequenos furos, surge algo. É como se o campo do atentado permitisse que surgisse o que depois vai ser nomeado regime do atentado. Aí, sim, é possível pensar nesse regime do atentado com todo o arsenal psicanalítico. Mônica Amaral, em trabalho apresentado em um dos Encontros da Teoria dos Campos, aproximou a idéia de regime do atentado de outras teorias psicanalíticas. Por exemplo, é muito compatível com as análises do Fabio uma análise do narcisismo que não está totalmente descolada de Freud e de uma certa materialidade. “Introdução ao narcisismo” é de uma época em que também o ego é considerado como um reservatório, esta e outras idéias que são dispensáveis do ponto de vista da Teoria dos Campos, metáforas que sugerem um inconsciente existente como uma substância, depositada em algum lugar. Tentando ser clara neste meu atrevimento, acho que há percursos que não são escolásticos, no sentido de impor procedimentos para não nos afastarmos da Teoria dos Campos. Mas há indicações. Por exemplo, é possível pesquisar se há delimitação. Na clínica também, algo vai surgir, como o exemplo que o Fabio dá de um paciente que está tendo um caso e começa a se sentir perseguido pelo marido da mulher com a qual tem o caso. Então vai surgindo um campo entre analista e analisando. O analisando vai trazendo vários disfarces e pode aparecer algo como o que Freud, de imediato, identificaria como a relação entre paranóia e homossexualidade.

Tânia: Não sei se entendi bem, mas penso que é importante distinguir, na obra de Fabio, dois tipos de textos. Um primeiro tipo de texto corresponde ao desenvolvimento de sua idéia fundamental — ele disse muitas vezes que só tinha tido uma única idéia, que é esta da anterioridade lógica do método em relação à formulação de teorias. O segundo tipo de texto corresponde à elaboração do que poderíamos chamar de teorias locais, que ele faz a partir do uso do método psicanalítico. O regime do atentado é um exemplo deste segundo tipo de texto, que expõe a produção de uma nova teoria a partir do uso correto do método. Deste modo, podemos considerar o regime do atentado como um exemplo do método em ação, como uma demonstração do uso do método que o Fabio oferece ao seu leitor. Penso que o modo como nos relacionamos com estes dois tipos de textos do Fabio merece atenção. Da minha parte, posso dizer, como pesquisadora interessada na Teoria dos Campos por razões metodológicas, que me sinto perfeitamente à vontade para criticar esta teoria do regime do atentado como criticaria qualquer teoria psicanalítica produzida a partir do uso do método, pois as teorias podem ser construídas e desconstruídas. Por outro lado, algo bem diverso se passa, na minha relação com os escritos do Fabio, que são a carne da Teoria dos Campos, que são um discurso crítico e metodológico e não o uso desta mesma Teoria dos Campos para produzir teorias locais. Quando compreendo e aceito as bases da Teoria dos Campos para assumir uma postura diferenciada como pesquisadora, não abro mão da reflexão e da crítica que dão origem à Teoria dos Campos porque são elas que me permitem evitar uma posição intelectual que não passa de um velar os mortos. Então, ao mesmo tempo que aceito a Teoria dos Campos, como proposta metodológica e epistemológica que pode embasar com rigor a minha pesquisa clínica, permito-me usar, não usar, criticar, completar e até mesmo desconstruir as teorias locais do Fabio sobre todo e qualquer tema. Acho interessantíssimo o texto sobre o regime do atentado porque é como se o Fabio fizesse uma demonstração em câmara lenta do uso do método. Esse procedimento tem um valor muito grande para entendermos esse método em ação. Voltando ao que a Luciana falou há pouco, sobre estarmos de acordo na forma de entendermos a interpretação hoje. Acho que nós corremos sérios riscos no mundo atual, pois, se existem discursos politicamente corretos, existem, também, discursos epistemologicamente corretos. Aparentemente estamos concordando, mas na hora do “vamos ver” não quer dizer que a prática seja sempre coerente com o discurso que critica invariavelmente a interpretação de sentido etimológico. Entretanto, se formos honestos, não deixaremos de reconhecer, em nós mesmos e nos colegas que supervisionamos, que este tipo de interpretação segue sendo muito praticado.

Claudio: Acho que você provocou uma ruptura de campo! Nem tudo o que o Fabio escreveu é Teoria dos Campos. Ele escreveu muitas coisas que não são Teoria dos Campos.

Leda H.: Porém, a partir da Teoria dos Campos.

Claudio e Tânia: É, a partir, mas já é outra coisa.

Camila: Mas ele disse, também, que nem tudo que acontece numa sessão de psicanálise é puramente psicanalítico. A Tânia falou na ponte sólida. No sentido etimológico, o método é bem isso, é uma ponte que tem a solidez requisitada pela Luciana, e por vários de nós, que leva a campos. Rompidos esses campos, surgem prototeorias como a fascinante teoria do regime do atentado. E por que é fascinante? Porque se torna um modo de leitura do que está ocorrendo no nosso cotidiano. Mas nem o Fabio a apresentou como “a teoria da sociedade contemporânea”, nem nós devemos cair na tentação de achar que ela é a verdade. Apenas, tem muito de verdade.

Leda B.: Ana, você queria colocar mais uma questão?

Ana: Quero voltar ao nosso roteiro de trechos selecionados do Fabio, que vão da técnica à política, especificamente ao penúltimo deles — “Os mesmos acordos políticos que determinaram os centros do poder psicanalítico convencionaram a extensão permissível da clínica, a moldura (ou setting) e, por tabela, o nível de sua teorização, definindo assim a clínica-padrão e a teoria-padrão” —, para indagar se discutimos suficientemente as questões que ele apresenta.

Leda H.: Você está chamando para a discussão o problema da clínica extensa.

Ana: Sim, se abordamos os temas que envolvem a transmissão da psicanálise e as instituições psicanalíticas.

Alice: Eu diria até como uma questão interna, vivida no momento, nas discussões de nosso congresso interno — a questão da formação e da análise do analista, que de alguma forma tem relação com a clínica extensa.

Ana: As questões relativas à formação do analista e à transmissão da psicanálise se remetem a pontos de tensão.

Alice: Exatamente, é bem o ponto de tensão, esses temas trazem a questão do poder, e das mudanças aí envolvidas.

Luciana: Considero um calcanhar-de-aquiles para a nossa Sociedade, a questão da clínica extensa, talvez pela tradição que temos com a clínica-padrão. Os colegas que acompanham o pensamento do Fabio sobre o método, têm mais condição de trabalhar com clínica extensa. Os que estão mais afastados desse pensamento, dentro da Sociedade de Psicanálise, têm um preconceito com relação a esse tipo de trabalho, como se fosse uma clínica menor, de segunda linha, uma clínica para quem não tem clínica-padrão.

Camila: O Instituto não se abre para pesquisas de instituições, por exemplo?

Claudio: Eu acho que a questão é mais de pertinência, é mais de âmbito. Não me parece que o problema se coloque com relação a uma clínica menor. A questão parece-me muito mais radical, que é de não se considerar cabível usar o instrumental psicanalítico para analisar a sociedade, porque a teoria daí resultante iria ser uma teoria sociológica, antropológica, não seria, portanto, psicanálise.

Luciana: Mas você concorda com essa idéia?

Claudio: Não. Freud construiu boa parte da psicanálise fazendo coisas desse tipo. Sua obra não se tornou sociológica ou antropológica por causa disso. Sua abordagem foi inteiramente original e influenciou, por isso, profundamente as outras ciências humanas.

Leda H.: Sim, ele era um psicanalista, mas pensava a sociedade e não só a clínica de consultório.

Claudio: Sim e pensava a sociedade usando o método psicanalítico.

Leda H.: Acho que não entendi sua colocação anterior de que se debruçar sobre o social significa fazer teoria sociológica.

Claudio: Mas essa crítica não é a minha. Estava referindo-me ao que a Luciana disse sobre haver um preconceito na Sociedade de Psicanálise que consideraria que aqueles que se dedicam à clínica extensa o fazem por não terem clínica ou que aquela seria uma clínica menor. Não é uma questão de clínica menor ou maior, o que eu tenho visto é que existe uma crítica conceitual, epistemológica, de considerar que a psicanálise não se presta para esse tipo de tarefa. Essa é a tese e acho que essa tese não está de acordo com o que o Freud pensava e fazia.

Leda H.: Mas aí nós estamos dentro do regime do preconceito. Não é?

Claudio: Sim, foi o que a Luciana colocou.

Camila: Estava me lembrando da jovem Fernanda Sofio, a quem me referi, que foi orientanda do Fabio, e depois da Leda, e que fez uma tese sobre UTI, usando o método segundo a Teoria dos Campos. É um exemplo de clínica extensa por excelência.

Tânia: Quero compartilhar com vocês uma questão que me intriga: por que a Sociedade de Psicanálise não oferece programas de pós-graduação? Depois de minha aposentadoria da USP, fui para a PUC de Campinas e lá estou tendo oportunidades de ocupar um cargo de coordenação geral da pós-graduação. Nessa posição estou em contato não só com pós-graduação em psicologia, mas pós-graduação em todas as áreas e com as políticas de pós-graduação vigentes em nosso país. Penso que quando estudamos o processo de avaliação dos programas, nas diferentes áreas, compreendemos que instituições isoladas de pesquisa podem consolidar condições mais propícias para a sustentação de atividades de pós-graduação do que as próprias universidades, que precisam dar conta também do ensino de graduação. Por outro lado, fiquei muito impressionada quando li, no prefácio do livro do René Major, dedicado ao Primeiro Encontro dos Estados Gerais, em Paris, uma colocação relativa ao seu reconhecimento acerca da importância, para o desenvolvimento da psicanálise brasileira, das teses e dissertações produzidas nas universidades, nos programas de pós-graduação. Aqui temos a Luciana, o Fabio, que foi orientador da PUC, a Leda com seu doutorado, a Ana, docente da USP, e eu, olhando de fora a Sociedade de Psicanálise. Permito-me, como visita, colocar uma questão para até gente que é prata da casa. Por que a Sociedade de Psicanálise não se volta para ter a sua própria pós-graduação, que poderia ser uma porta de entrada para o trabalho de clínica extensa? É interessante observar que a pós-graduação no Brasil não está vinculada, do ponto de vista legal, exclusivamente às universidades.

Claudio: Eu não sabia disso.

Tânia: Pois é, ninguém sabe... Então eu fico pensando que uma Sociedade de Psicanálise, que tem em seus quadros tanta gente preparada, com muitos membros que se qualificaram academicamente por meio da defesa de teses e dissertações que abordaram a clínica extensa, poderia cogitar sobre a proposição de uma pós-graduação. Vocês me desculpem se, como visita, faço essa sugestão. Mas é interessante pensar nela, porque do jeito que hoje se faz a pesquisa, do jeito que hoje existem financiamentos, a pesquisa com clínica extensa pode ser beneficiada. Uma instituição como esta aqui pode preparar-se para a apresentação de uma proposta que integraria naturalmente o desenvolvimento da pesquisa na clínica extensa. Aqui pode ser importante lembrar que o próprio Fabio foi uma pessoa importante no cenário da pós-graduação brasileira, na PUC de São Paulo.

Flávio: Não quero botar água fria na fervura, mas temo que, se a Sociedade for verificar as condições na CAPES, correrá o risco de desistir da idéia... Há inúmeras exigências em relação ao número de professores, ao regime de contratação, à razão professor-aluno, etc.

Tânia: Mas é atribuição da instituição distribuir essas horas, isso pode ser equacionado. Acho que os efeitos de revitalização do campo psicanalítico seriam muito interessantes. Há diferentes formas de implantação desses programas de pós-graduação e as exigências da CAPES, que visam garantir o objetivo de qualificação da pesquisa e da pós-graduação, não são um bicho de sete cabeças e sim requisitos, que geram efeitos desejáveis, cujo cumprimento é perfeitamente viável.

Luciana: A implantação de um programa desses na Sociedade de Psicanálise exigiria de nós um pensamento grupal e um projeto para o futuro, onde a pesquisa e o conhecimento produzido pelo método psicanalítico ocupariam um lugar de destaque. Somos sólidos em muita coisa, mas, em muitas, ainda não somos. Quem de nós, de fato, poderia se dedicar a tal projeto? Haveria verbas? Não podemos criar um programa desses sem muita reflexão, apenas para capitalizar simpatizantes, perderíamos nosso prestígio. A Comissão de Pesquisa, de cuja coordenação participo, por exemplo, não tem condição, hoje, de ajudar quem está fazendo pesquisa da mesma maneira que um orientador na universidade tem. Acho que teríamos que desenvolver um pensamento grupal que considerasse essa uma tarefa realmente importante. Todo o conhecimento produzido a partir da psicanálise merece um tratamento especial, mas acho que não temos estrutura física e psicológica — se me permitem a brincadeira — no momento. Como já disse, eu mesma fui para a universidade, porque não conseguia destrinchar um determinado tipo de problema, que me interessava muito, com nenhum analista daqui. Fui para a universidade meio a contragosto, por insistência da Leda Barone, mas entendi que havia problemas que só a universidade me ajudaria a pensar. Em geral, são problemas ligados à clínica extensa ou a articulações teóricas que exigem ousadia e muito estudo.

Flávio: Mas nada impede que isso seja feito na instituição, sem ser necessariamente dentro de um programa de mestrado ou uma pós-graduação stricto sensu.

Tânia: Nada impede. No entanto quero ressaltar que a pós-graduação brasileira, apesar de suas falhas, é uma das únicas iniciativas que deram certo neste país. Ela segue se desenvolvendo e pode não ficar a cargo apenas das universidades, que enfrentam muitos outros problemas. Penso que certas instituições, que são produtoras do saber, poderiam contribuir para o desenvolvimento da pesquisa científica e da pós-graduação. Estou acompanhando a formulação de propostas de abertura de programas e acho que há espaço para iniciativas sérias e adequadamente amadurecidas. Isso sem esquecer que a pesquisa na clínica extensa descortina possibilidades de maior envolvimento institucional com problemáticas sociais que permitiriam um reposicionamento institucional absolutamente coerente com o uso do método, tal como indica a Teoria dos Campos. Ou seja, quando falo em programa de pós-graduação estou falando num caminho que permitiria uma maior participação, um maior envolvimento institucional com a sociedade, uma revisão dos alcances da psicanálise, uma eventual superação de posições conservadoras que se mantêm apartadas do acontecer social.

Leda B.: Esta sugestão de Tânia vai em direção a uma preocupação recente de algumas sociedades psicanalíticas ligadas à IPA. Venho recebendo mensagens destas instituições nas quais consideraram um erro histórico o afastamento da IPA da universidade, e por isso propondo reatar este contato.

Tânia: Vocês têm quadros. E temos que pensar que é pós-graduação fora da universidade. Temos os exemplos de como os institutos isolados de pesquisa resolveram o problema.

Leda B.: Gostaria de retomar a discussão do nosso tema “A arte da interpretação”.

Claudio: Talvez a principal mensagem, a principal característica da arte da interpretação na Teoria dos Campos do Fabio, é que a interpretação, muito menos voltada para a produção de sentido ou para a descoberta de um sentido oculto, estaria dirigida à desconstrução do sentido, daí a idéia de ruptura. Quer dizer, é muito grave que alguém tenha uma teoria rígida, seja a respeito de si próprio, seja a respeito da clínica extensa, seja sobre a realidade, da grande realidade. Nada seria mais perigoso do que isso. Nesse sentido, basicamente, a função do analista seria lembrar o sujeito de que a sua interpretação ou a teoria que ele construiu sobre o mundo e sobre si mesmo é frágil, é apenas uma tentativa precária de organização. Talvez por trás daquilo que discutimos esteja a noção de que a tarefa do analista é muito mais de levare do que de porre, como já dizia Freud.

Camila: Trazer o benefício da dúvida.

Claudio: Isso. É romper não a crença, mas romper o delírio, é romper uma rigidez de abordagem.

Leda H.: Acrescentaria mais uma coisa, para mim fundamental no pensamento do Fabio. Acho que você tem toda razão quando coloca como a marca da arte da interpretação a ruptura. Mas romper o quê e para quê? Para que outras possibilidades de sentidos possam aparecer, outras possibilidades que estavam impedidas de aparecer.

Luciana: Também quero acrescentar algo, serei winnicottiana. Na medida em que rupturas acontecem e novos sentidos surgem, pode haver a falsa impressão de que o sentimento de existência do paciente diminuirá, mas, ao contrário, aumenta. Essa é uma proposição barroca, está contida no conceito de ruptura de campo. Em vez de abalar o sentimento básico de existência, ligado à questão da crença, ela o torna cada vez mais potente e facilita que o paciente suporte o trânsito, a angústia até que novas representações apareçam. A ruptura de campo não significa uma ação violenta por parte do analista, porém, muitas mudanças geradas por uma interpretação, pelo processo analítico, são violentas em si, mesmo que conduzidas com muita suavidade. Para mim essa é a beleza da teoria da ruptura de campo, porque só romper e cair no vazio é insustentável para um analista clínico, não queremos provocar a “psicose”. Provocamos, mas de uma forma produtiva, é assim em todas as análises.

Tânia: Vindo para cá estava me lembrando de uma situação de não-ruptura de campo, na hora e depois. Foi quando eu tive a minha filha num tempo em que não se fazia ultra-som, não existia esse recurso. Lembro que eu estava na sala de pré-parto e por muitas vezes entrava uma quantidade de enfermeiras, de obstetrizes com estetoscópios em punho e me perguntavam: “Você é a moça do bebê sentado?”. Eu respondia sempre a mesma coisa: “Não, comigo está tudo bem”. Até que chega o meu médico e me diz: “Tânia, eu preciso lhe dizer uma coisa, vamos fazer uma cesárea porque o bebê está sentado e com você está tudo bem”. Respondi-lhe: “Claro”, e entrei festiva para o parto, tive uma ótima cesárea, firmemente ancorada na minha convicção de que comigo estava tudo bem. Só vinte e quatro horas depois eu me dei conta do meu malabarismo, pois sendo uma pessoa medrosa, paranóica, com vinte mulheres falando que eu era a moça do bebê sentado, não me passara pela cabeça que algo preocupante pudesse estar acontecendo, algo cujo conhecimento poderia, em tese, romper o campo do “comigo está tudo bem”. É interessante a ruptura do campo, porque há momentos na vida em que o campo não se rompe e não era para romper, porque ali, por exemplo, no meio das contrações era melhor manter o campo do “comigo está tudo bem”. Lembrando o artigo do Fabio “O escudo de Aquiles”4, a descrição das apresentações dos oponentes no campo de batalha — eu também estava numa batalha, eu estava numa guerra e não era, de fato, interessante vivenciar os efeitos de uma ruptura de campo. Vinte e quatro horas depois caiu a ficha, aí eu deixei de habitar o campo do “comigo está tudo bem”, mas a neném já tinha nascido, o problema era outro, era uma outra coisa. Já estava num outro campo, que, naquele momento, eu não podia perceber. Concordo com a Luciana porque as pessoas não entendem que a ruptura de campo não compromete o sentimento de ser, pois não precisa ser invasiva, a saída de um campo e entrada em outro campo — porque nunca estamos em nenhum campo, não afeta necessariamente a continuidade do ser. As pessoas me questionam como freqüento esses dois autores: Fabio Herrmann e Winnicott, e eu penso que são perspectivas que podem dialogar entre si.

Flávio: Achei ótima a conclusão do Claudio para o nosso debate. Acrescentaria uma pequena provocação com relação à questão: pode ser uma ilusão do analista a sua possibilidade de trabalhar, de fato, pela via de levare; isso desemboca na velha história da metáfora do analista como “tela branca”. É bom aceitar que a posição do analista sempre bordejará a via de porre, e não se equilibrando na tentativa de equilíbrio sobre a via de levare. Isso é apenas o “resíduo” (a meu ver, desejável) da presença de pessoas vivas na relação objetal que se constituiu, num caso particular, como “relação analítica”.

Claudio: Às vezes as meninas, sentadas ou não, nascem mesmo.

Flávio: Tenho um outro exemplo clínico, que foi relatado há muito tempo por Isaias Melsohn, de uma paciente que chegou para entrevista com uma série de queixas somáticas de enxaqueca, enjôo, etc. e, depois de descrevê-las, paralisa-se e diz: “Mas, além disso, eu mesma não estou muito bem”.

Alexandre: A idéia da ruptura de campo é a idéia de aumento da continência; da possibilidade de se ter uma convicção e dessa convicção ser posta em dúvida ou ser questionada, podendo outra coisa ser acrescentada, por uma ruptura. Lembro-me de uma situação, que não sei se tem a ver com ruptura, num contexto fora da clínica. Meu avô paterno foi tropeiro e fazia transporte de gado. Certa vez, ele estava em uma estalagem, chegou um amigo com uma égua muito cansada e meu avô aconselhou o amigo a soltar o animal, que arfava. E o amigo respondeu: “É, vou soltar a égua e montar em você”. E meu avô contava que a partir desse momento passou a considerar com mais cuidado o que falava para os outros. Concluindo, a ruptura de campo é o aumento de continência e de possibilidades: ela é estruturante.

Camila: Quanto à minha participação no debate, não sentia necessidade de dizer mais coisa alguma, mas o exemplo do Alexandre me fez lembrar a questão de que não tratamos hoje, que é a da transferência. A continuação da própria citação de Fabio, que fiz, trata da transferência. Mas o tema seria muito amplo. Temos um gancho para uma próxima oportunidade.

Leda B.: Alguém gostaria de falar mais alguma coisa, Leda?

Leda H.: Acho que tivemos um debate muito produtivo. Entramos e saímos do tema da arte da interpretação, mas ele estava sempre sendo abordado. Mesmo quando a Camila descreveu a construção que o Fabio faz sobre ser o regime do atentado o regime da sociedade contemporânea, o tema estava aí circunscrito, pois é uma interpretação, o Fabio estava usando nessa construção teórica a arte da interpretação. Penso que foi um debate que não perdeu o rumo, o que considero muito importante, porque o mais freqüente nessas ocasiões de debates é perder-se o rumo.

Leda B.: Quero agradecer, em nome do Jornal, a rica colaboração de todos. Muito obrigada.

 

 

1 Herrmann, F. (2001). Acerca da mentira e do erro necessário. In Andaimes do real: Psicanálise do quotidiano (3ª ed.), (pp. 43-66). São Paulo: Casa do Psicólogo.
2 Green, A. (1995). “Has sexuality anything to do with psychoanalysis?” International Journal of Psychoanalysis, 76(5), 871-883.
3 Herrmann, F. (2001). O ato. In Andaimes do real: Psicanálise do quotidiano (3ª ed.), (195-214). São Paulo: Casa do Psicólogo.
4 Herrmann, F. (2001). O escudo de Aquiles: sobre a função defensiva da representação. In O divã a passeio: À procura da Psicanálise onde não parece estar (2ª ed.), (pp. 179-220). São Paulo: Casa do Psicólogo.

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