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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. v.40 n.73 São Paulo dic. 2007

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

Teoria dos Campos: uma pequena história1

 

Multiple Fields Theory: a brief history

 

A Teoría de los Campos: una pequeña historia

 

 

Fabio Herrmann*

Membro Efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
Professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Trata-se do último escrito de Fabio Herrmann. Mesmo incompleto seu pensamento aí se apresenta por inteiro, na forma peculiar de sempre tomar a Psicanálise pelos seus fundamentos.

Palavras-chave: Fabio Herrmann, Teoria dos Campos, Método psicanalítico, Campo e relação.


ABSTRACT

This paper is Fabio Hermann’s last written work. Although incomplete, the author’s psychoanalytic views appear in full, in the particular way of always considering psychoanalysis by its basis.

Keywords: Fabio Herrmann, Multiple Fields Theory, Psychoanalytic method, Field and relation.


RESUMEN

Se trata del último texto de Fabio Herrmann. A pesar de incompleto, allí su pensamiento se presenta por entero, en la forma peculiar de siempre tomar el psicoanálisis por sus fundamentos.

Palabras clave: Fabio Herrmann, Teoría de los Campos, Método psicoanalítico, Campo y relación.


 

 

1

Criei a Teoria dos Campos no fim dos anos 1960, entre 67 e 68, ao tempo em que terminava o curso de medicina. Naturalmente, ainda não tinha o nome nem eu tinha a noção de estar reinterpretando a Psicanálise, de haver criado o que se chama uma teoria. O que escrevi, na época, foi um ensaio ambicioso intitulado O campo e a relação, que procurava mostrar a falta de solidez das hipóteses psicanalíticas quando isoladas de seu campo de origem, do método interpretativo, e tomadas por fatos psicológicos, antropológicos, psiquiátricos etc. Ou mesmo psicanalíticos, se se entende por Psicanálise um conjunto de conhecimentos independentes da forma pela qual foram obtidos. Minha idéia é que não coletamos fatos, mas interpretamos relações — verdades relativas —, cada qual pertinente ao campo a que pertence e onde foi descoberta: campo da clínica ou do quotidiano, da realidade ou do desejo etc.

Campos são generalizações do conceito de inconsciente. Claro, do inconsciente não psicológico, da constituição do mundo, não da faculdade psíquica. Naquele tempo, por exemplo, estudei o campo da sorte/azar, vale dizer, das regras que fazem as pessoas achar que algo dá sorte, que têm azar e assim por diante. Não me interessava propriamente a origem infantil das crendices, se os pais são ou não os dispensadores da boa sorte, mas apenas as regras de eficiência, a forma lógica da crendice e seu correlato no pensamento científico, culto. Como se vê, mesmo sem o saber com clareza, já estava virando ao avesso a ciência psicanalítica. Os analistas, como vim depois a perceber, procuram negar conscienciosamente fazerem parte da psicologia — Freud mesmo não negava —, mas explicam psicologicamente o mundo, por meio de afetos, faculdades, funções. Com a Teoria dos Campos estava nascendo uma Psicanálise que se situava um pouco além das oposições psicologia/sociologia, história/estrutura, metafísica/metapsicologia. Quando crescida, seu passo adulto não seria fácil acompanhar.

No estado de então, não era difícil compreender, mas talvez sim aceitar sua novidade. Porque os campos a estudar psicanaliticamente não se resumem às grandes patologias, porém nos desafiam também na vida diária: um campo pode ser o do trânsito, por exemplo, como o da guerra, ou o campo da família ou o de uma família, e por aí vamos. A Psicanálise é convidada pela Teoria dos Campos a decifrar o mundo histórico, individual e coletivo, campos sendo tanto as grandes repartições da alma, quanto os fenômenos microscópicos do dia-a-dia..

 

2

Havia também uma razão clínica. É que reconhecidamente conseguíamos bons resultados com os pacientes, mas tais resultados estavam longe de serem explicados pelas teorias psicanalíticas. Em primeiro lugar, porque os resultados gerais da prática eram muito parecidos, quaisquer que fossem as razões teóricas apresentadas como argumento — leia-se escolas. Em segundo, porque nossas teorias da eficácia clínica, a da transferência notadamente, pareciam-me fracas e inconclusivas, muito suscetíveis de sugestão ou auto-sugestão. Depois de meter na cabeça um sentido transferencial, geralmente uma transferência afetiva, o analista já não tinha por que ou como pô-la em dúvida, ficava como uma espécie de função intuitiva e oracular.

Daí fui levado a separar com cuidado campo de relação. Relação é tudo o que se representa, que pode ser conhecido, que tem nome e perfil. A relação analítica em especial tem tudo isso, não sendo pois inconsciente. Inconsciente é o campo da relação, o inconsciente relativo (quer dizer, relativo, da relação). O campo psicanalítico sim, a esse temos de chegar, às suas regras ocultas. Manejando com arte a relação analítica — com técnica artística, ou techné &–, parecia-me possível romper a estrutura do campo, do campo emocional específico de cada situação terapêutica. E de cada estrutura psicopatológica, a propósito.

Como se explica que diferentes hipóteses sobre o desenvolvimento e a patologia psíquicos redundem em efeito clínico praticamente igual? Simples, embora chocante. O que faz efeito não é o acerto do sentido último do material do paciente, mas sua escuta descentrada, fora do assunto e da intenção que buscava transmitir. A escuta oblíqua do analista leva-o a desestabilizar o campo em que o paciente o procura prender, ele ouve fragmentariamente, ressalta atos falhos e contradições de lógica emocional — a começar pela paradoxal existência de uma lógica emocional. E, ao errar o assunto, topa com regras do campo, do inconsciente relativo. No futuro, vários termos seriam convocados para exprimir esse fenômeno na Teoria dos Campos: desencontro produtivo, ato falho a dois etc.

 

3

O primeiro alvo conceitual da Teoria dos Campos foi a noção de inconsciente. Isaias Melsohn já atacara a idéia de inconsciente psicológico, repositório de representações, como dizia ele. Considerava — e não sem razão — que Freud havia sido influenciado pela psicologia sensacionista, ao construir a sua. Como de costume, que era costume descobri depois, ninguém se ocupou de responder-lhe, nem para discordar, nem para dar apoio e continuidade à sua crítica, num livro que fosse, num simples artigo. No entanto, bem merecia. Parte das análises de Freud não caem no âmbito psicológico criticado por Melsohn; em especial, aquelas de campos da cultura, de antropologia clínica ou de arqueologia fantástica. É até mais fácil ver nos pequenos textos freudianos, onde ele não parece interessado em dogmatizar a Psicanálise. Na clínica, nos exemplos de psicologia concreta, tão prezados por Pullitzer.

A falta completa de resposta que sofreu Melsohn serviu de estímulo para que eu me pusesse a campo com seu problema, sabendo ao mesmo tempo qual destino estaria reservado aos frutos de meu próprio trabalho. Acima de tudo, porém, o ensaio crítico melsohniano ajudava a demarcar o território a ser explorado teoricamente e certas armadilhas a evitar.

 

4

Hoje, chamamos de Alta Teoria a este território mal explorado que se estende da metapsicologia freudiana até o método psicanalítico. Mais abstrato e geral que a metapsicologia, quando empregado em seu domínio legítimo, menos que a noção de ruptura de campo, ou seja, de método interpretativo, a Alta Teoria compreende todos os parâmetros epistemológicos da Psicanálise, como o tempo da interpretação (que viria ainda a ser conhecido por “), os passos da ruptura interpretativa (notadamente o vórtice), as propriedades da consciência em condição de análise etc.

Naquele tempo, contudo, era ainda pouco claro o terreno em que pisava. Às vezes temia estar criando um saber independente do corpo psicanalítico freudiano, o que jamais foi minha intenção. Outras, estar trabalhando numa espécie de prolegômeno à teoria psicanalítica. Ou ainda, nas questões da técnica, porém elevadas a uma essencialidade desconhecida da noção de técnica psicanalítica. Por isso, creio, a Teoria dos Campos ficou mais com a marca do não — não uma teoria mais, não à tecnologia, não ao dogmatismo —, que pelo que afirma e que não é tão pouco, com certeza.

Como se percebe, não tinha então uma idéia muito clara a respeito do lugar teórico onde se davam minhas explorações. Em parte, tentava responder à própria clínica que praticava, a qual não cabia em qualquer dos modelos teóricos que conhecia. Era evidente para mim que os analistas em geral estavam copiando Freud, ao invés de desenvolver criticamente os fundamentos de sua investigação da alma humana. Tudo se passava como se desejássemos deter para sempre a Psicanálise, como se acreditássemos mesmo que o homem tinha os instintos, mecanismos e imagos descritos na metapsicologia, sem cogitar que esta devia simplesmente valer como um experimento metodológico de investigação interpretativa. Seria fácil demais para se poder levar inteiramente a sério esse modelo pulsional… Porém, acabei por me convencer que mesmo esse facilitado, no sentido em que se começa a estudar um instrumento musical com partituras facilitadas, já era considerado bastante difícil pelos analistas, que o queriam ainda mais simplificado, caso das escolas psicanalíticas. Essa desilusão trouxe-me, no entanto, algum ganho, pois permitiu definir meu território de caça, por assim dizer. A teoria que estava desenvolvendo nada mais era que a generalização do conjunto das psicanálises possíveis. A freudiana, as das escolas, as não codificadas, mais aquelas ainda não exploradas, os inconscientes individuais, sociais, culturais entocados no limbo do conhecimento futuro. Numa palavra, a Teoria dos Campos não deixava de fazer parte da Psicanálise, senão que todas as psicanálises legítimas faziam parte da Teoria dos Campos, na medida de sua participação no método psicanalítico. Se tomarmos, por exemplo, um conjunto de formulações teóricas, daquelas que se costuma chamar de metapsicologias, os fundamentos comuns, derivados do método psicanalítico, constituem precisamente o que se estuda na Teoria dos Campos, sob o nome de Alta Teoria.

 

5

A importância da filosofia no nascimento da Teoria dos Campos não deve ser superestimada. Pensa-se em geral que há uma filosofia oculta ou suprimida por detrás de meu pensamento. Não há. A influência da leitura dos filósofos sobre mim foi, acredito, acima de tudo educativa. É óbvio que as tendências da cultura do século XX, do setor cognominado filosofia, como de outros que, não levando o nome costumeiramente, não seriam menos aptos a suportar seu ônus — caso da filosofia do quotidiano, da lingüística, da epistemologia, dos setores mais notáveis da literatura de ficção, dos progressos da fenomenologia e da própria Psicanálise —, nunca estiveram alheias à construção da Teoria dos Campos. Seria falta de boas maneiras culturais ignorar de propósito o crescimento da filosofia de nosso século, sensu lato ou sensu strictu.

Não obstante, se algum problema filosófico influiu abertamente na criação da Teoria dos Campos foi este a firme convicção de ser a realidade sempre representação, não um conjunto misto de coisas e acontecimentos. Não que eu duvide, como o adolescente de outros tempos, da existência do mundo e dos demais, ou que me quisesse perder por voluntarismo ou por negativismo puro no matagal da contestação dos fatos. Porém, a Teoria dos Campos só é compreensível para o leitor, psicanalista ou não, que haja percebido na raiz de si mesmo as contradições embutidas na idéia de representação da realidade. O que é nomeável, percebe-se, comunica-se só pode ser representação. Minha representação da cadeira, como é de hábito dizê-lo, duplica representações; é como se dissesse minha representação daquilo que cadeira representa. O que, se não tem maior importância no dia-a-dia, onde dançam as cadeiras, constitui um equívoco crucial na situação analítica, em que cadeiras não há mais ou além do sentido que veiculam, ficando em suspenso sua materialidade, que já não se presta a termo de comparação. A diferença, a única e monumental diferença entre o idealismo filosófico e a concepção psicanalítica, é que o primeiro põe entre parênteses a matéria para privilegiar a existência do objeto da razão, enquanto nós, psicanalistas, psicanalistas da Teoria dos Campos ao menos, suspendemos a crença no objeto material, descrendo embora de sua existência enquanto objeto racional. Para nós, o solo da percepção e seu paradigma é aquilo mesmo que se manifesta como sonho, fantasia, sintoma, ato falho etc. Nem sequer concebemos como seria um homem curado de seu psiquismo…

A verdadeira extensão da filosofia no âmago da Teoria dos Campos, por conseguinte, não é a de um quadro de referência, subsídio, pano de fundo, sustentáculo, premissa cultural etc. Sua participação consiste em que, pelo ângulo da Teoria dos Campos, a sessão psicanalítica é concebida como um experimento filosófico. Particularmente, dada minha plena convicção em que a realidade não é fato material — privilegiando seu sentido de representação como a única acepção não contraditória —, a psicanálise é concebida como experimento filosófico acerca da realidade humana. Já o real, este é irrepresentável enquanto tal.

Talvez um exemplo de certos desvios característicos sirva a esclarecer melhor esse ponto. O psicanalista geralmente entende que, no fundo dos pretextos filosóficos e sociológicos, as verdadeiras razões que movem as pessoas vêm da infância, os cuidados ou falta de cuidados maternos, por exemplo. Não está mal, desde que se esteja pensando na profissão de fé na sociologia ou em qualquer das ideologias intelectuais. A declaração de que tudo é em essência social, nesse caso, não passa de racionalização, as memórias de como alguém descobriu a verdade ideológica confundem-se com as populares lembranças encobridoras. Contudo, o plano de causação social do fenômeno dito individual não é uma fantasia em absoluto — nem racionalização, nem lembrança encobridora, mas pura realidade, ou seja, uma forma válida e robusta de representação, inequivocamente eficaz na geração das coisas humanas. Não o ter percebido, atribuindo em conseqüência primazia indevida à história infantil sobre a dimensão cultural, foi o pecado original da psicanálise, desde Freud. Por outro lado, o pecado original da sociologia foi o de ter considerado a história individual como epifenômeno da história social. Dizer que na origem o que conta é o social ou o individual, as determinações da cultura ou as fantasias primitivas, que a verdade reside numa das duas opções, é perfeitamente gratuito e equivocado por inteiro. Onde, portanto, está a verdade, na visão sociológica ou na psicológica? A verdade está sempre na descoberta e não vai mais longe que o momento da descoberta e o impulso que dá à investigação futura. Havendo duas ou mais opções, é essencial não optar por qualquer uma delas, mas usar cada qual como antídoto da fé nas outras, entender que a psicanálise é uma antropologia, por exemplo. O choque das posições contrastantes conduz à ruptura de campo teórica, assim postula a Teoria dos Campos.

Fabio Herrmann
São Paulo, 14 de abril a
29 de maio de 2006

 

Adendo

Esta pequena história da Teoria dos Campos é o último escrito de Fabio. Como escrito foi interrompido a pouco mais de um mês de sua morte, portanto pode ser considerado incompleto. Como resumo histórico de seu próprio pensamento está inteiro e completo, na forma peculiar que lhe é característica, um pensamento psicanalítico que sempre se apresenta inteiro em qualquer comunicação de Fabio, seja oral, seja escrita. Tomando-o como escrito incompleto, um desafio é posto para quem, entrando em contato com a Teoria dos Campos, venha a se contaminar pelo vício de pensar a Psicanálise por inteiro.

Leda Herrmann
Setembro de 2006

 

 

Endereço para correspondência
Leda Herrmann
R. Agrário de Souza, 106
01445-010 São Paulo, SP
Fone: (11) 3088-6784
E-mail: herrmannfl@globo.com

Recebido em: 20/08/2007
Aceito em: 18/09/2007

 

 

1 Texto apresentado no XXVI Congresso Latino-Americano de Psicanálise da FEPAL, Lima, outubro de 2006, e publicado em ABP Notícias, ano XI, nos 32-33, março e junho de 2007.
* Fabio Herrmann (1942-2006). Foi criador do CETEC (Centro de Estudos da Teoria dos Campos, Membro Efetivo da SBPSP e professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUCSP.

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