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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.40 no.73 São Paulo Dec. 2007

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

A interpretação psicanalítica e a Teoria dos Campos

 

The psychoanalytic interpretation and the Multiple Fields Theory

 

La interpretación psicoanalítica y la Teoría de los Campos

 

 

José Fernando de Santana Barros*

Membro Titular da Sociedade Psicanalítica de Recife
Membro do Centro de Estudos da Teoria dos Campos

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Com este artigo, o autor expõe as principais idéias da Teoria dos Campos sobre a interpretação psicanalítica fazendo um paralelo, um quase-diálogo, com algumas noções clássicas sobre o tema, partindo basicamente do texto de R. Horacio Etchegoyen: Fundamentos da técnica psicanalítica.

Palavras-chave: Interpretação psicanalítica, Método psicanalítico, Inconsciente relativo, Campo, Ruptura de campo, Identidade, Realidade.


ABSTRACT

In the article, the author outlines the main ideas of the Multiple Fields Theory on the issue of psychoanalytic interpretation presenting a parallel, almost a dialogue, among some traditional psychoanalytic ideas on the subject.

Keywords: Psychoanalytic interpretation, Psychoanalytic method, Relative unconscious, Field, Field rupture.


RESUMEN

Con este artículo, el autor expone las principales ideas de la Teoría de los Campos sobre la interpretación psicoanalítica, estableciendo un paralelo, casi un diálogo, con algunas nociones clásicas sobre el tema, a partir, básicamente, del texto de R. Etchegoyen: Fundamentos de la Técnica Psicoanalítica.

Palabras clave: Interpretación psicoanalítica, Inconsciente relativo, Campo, Ruptura de campo, Identidad, Realidad.


 

 

Com este artigo desejo fazer uma correlação entre algumas noções clássicas sobre a interpretação psicanalítica e as idéias da Teoria dos Campos. Assinalarei alguns pontos discutidos por R. Horacio Etchegoyen no seu livro Fundamentos da técnica psicanalítica (1987), uma vez que este autor faz uma revisão bibliográfica sobre o assunto. Entretanto, enfatizarei apenas as questões centrais que nos orientam de modo geral a conceituar e definir a interpretação psicanalítica, sem a pretensão de rever todos os autores estudados por Etchegoyen, e tentarei fazer um paralelo, um quase-diálogo, com as idéias oriundas da Teoria dos Campos, fundamentalmente aquelas desenvolvidas por Fabio Herrmann ao longo de seus escritos.

Na Parte III — “Da interpretação e outros instrumentos” —, dando início ao estudo sobre o tema, diz Etchegoyen que a interpretação é o fundamento da terapia psicanalítica. De imediato, essa afirmação levanta algumas questões: o que é e o que significa interpretar e em que se fundamenta, ela própria, a interpretação? Em outras palavras, poderíamos ainda perguntar, o que autoriza o analista a interpretar seu analisando?

Fabio Herrmann, ao longo de seu trabalho de resgate do método psicanalítico, identifica método com interpretação, com ruptura de campo, ou seja, com o surgimento do que ele chamou homem psicanalítico (Herrmann, 1991a), o ser que surge com a interpretação e que, por efeito dela, fica momentaneamente pendurado num vazio representacional, sem mais certeza absoluta de ser o que pensava e dizia ser. A tecla shift foi acionada em sua auto-representação e algo está mudando. Já foi dito que depois de uma interpretação um sujeito já não é mais o mesmo. Temos ainda outro aspecto curioso com o efeito da interpretação: é que o homem psicanalítico, este ser que surge, quase diria metamorfoseado, é o exato objeto da psicanálise que, estamos vendo, cria-se ao aplicar-se o método psicanalítico. A interpretação, portanto, teria que ser, como diz Etchegoyen, o fundamento da terapia analítica e, creio que poderíamos acrescentar, o fundamento do processo analítico. Mais adiante veremos com o próprio Herrmann o que vêm a ser campo e ruptura de campo.

Entretanto, como disse acima, a interpretação deve ter, por sua vez, um fundamento ou uma base sólida em que se assentar. Acredito que este fundamento é a ambigüidade do discurso, a equivocidade da palavra. Ao falar, o analisando diz o que quer dizer, mas diz muito mais. Outros sentidos estão presentes em seu discurso, sentidos distintos dos consensuais. Outros sentidos que serão “escutados” pela atenção livremente flutuante do analista. Tão importante é este trabalho de “escutar” outros sentidos subjacentes à fala do analisando, que tenho dito ser a atenção livremente flutuante mais importante que a associação livre do analisando. Estes outros sentidos, contidos no discurso, por força de sua ambigüidade, corresponde, como veremos, às fantasias inconscientes. Eles dão conta, na qualidade de representações “outras”, de identidades possíveis do ser que fala. Isto nos remete às noções de realidade e identidade, propostas pela Teoria dos Campos. Realidade e identidade são representações e são conceitos solidários, conforme demonstrou Herrmann. Ao falar de uma realidade através de uma representação, o sujeito está falando de sua identidade. Portanto, as representações que estavam subjacentes ao discurso têm também o sentido de identidades alternativas que estavam desconhecidas ou negadas pelo sujeito do discurso. São, conseqüentemente, suas fantasias inconscientes.

Talvez seja este o momento de falarmos sobre estes inconscientes que, na Teoria dos Campos, chamamos de fantasias ou campos. Na literatura psicanalítica, de modo geral, o termo inconsciente é entendido como uma região mental povoada de impulsos censurados, idéias ou pensamentos não-compatíveis, ou ainda intenções prontas a nos induzir em algum erro, enfim, uma outra linha de pensamentos só que ocultados quase todos pela repressão. A mente, vista assim, poderia quase ter uma espécie de registro eletrencefalográfico, registro duplo de duas atividades paralelas de pensamento. Ora, se uma atividade de pensamento já é por demais complexa, imaginem se pensássemos duplamente, uma linha de pensamento por cima e outra por baixo. A Teoria dos Campos pensa o inconsciente como o avesso da consciência, fazendo parte de sua estrutura, que determina sua forma e conteúdos emocionais. Cada ato psíquico, cada ato de consciência e, portanto, cada relação são determinados por um inconsciente a eles relativo (Herrmann, 2004). Daí Herrmann tê-lo denominado inconsciente relativo ou campo. Campo, regras que se ocultam para ocultar suas determinações da consciência.

Além do estudo de Etchegoyen, encontramos um outro texto interessante, de Irma Brenman Pick (1994), que vem corroborar as noções acima mencionadas. Diz a autora:

As partes mais elevadas da mente não agem de forma independente; o inconsciente não é tão-só uma parte residual ou rudimentar da mente. Ele é o órgão ativo (poderíamos talvez dizer a fonte) no qual processos mentais funcionam. Nenhuma atividade mental pode ocorrer sem a sua operação, embora normalmente decorra muita modificação de atividades primárias antes que determine o pensamento e o comportamento num adulto. Não há impulso ou ímpeto pulsional que não seja vivenciado na forma de uma fantasia inconsciente. Mesmo se um pensamento e um ato conscientes são completamente racionais e apropriados, uma fantasia inconsciente subjaz a eles (Pick, 1994, p. 38).

Comparamos essa passagem com a noção de campo, o qual corresponde às regras inconscientes que determinam uma relação e se mostram na ruptura de campo, ou seja, vêm à tona com a interpretação. E ainda quando Herrmann diz que:

se pretendo ter o direito de interpretar, devo pagar o preço de interpretar sempre, ou pelo menos de não poder alegar, metodologicamente, nenhum outro tipo de captação do objeto, diferente da escuta transferencial. Para a interpretação, o comum e o banal não existem. A interpretação psicanalítica é uma curiosa profissão de fé, jurada ao pé da letra; fé na presença de sentido em qualquer palavra, em qualquer discurso.... E, se tudo é interpretável — por força do Campo em que ocorre a comunicação —, tudo é fantasia, tudo é possibilidade de descoberta de outro significado, pois que assim definimos fantasia (Herrmann, 1991a, pp. 93-94).

De fato, em outro contexto, Herrmann define fantasia como sendo os outros sentidos ocultos ou subjacentes ao discurso.

Esse modo de escuta é, para Herrmann, o ponto de partida para a ruptura de campo, momento interpretativo, por desvelar outro sentido na fala do analisando, outro sentido, portanto, identitário do sujeito. A ruptura de campo, o acontecimento interpretativo, estaria na dependência desse modo de escuta que explora sobretudo a própria ambigüidade do discurso, com leves toques emocionais, com o assinalamento de uma emoção discrepante ou de representações contraditórias (Herrmann, 1991a).

Etchegoyen define a interpretação como um instrumento para informar, distinguindo, todavia, a interpretação como informação, de uma informação pura e simples. Isto significa que a interpretação como informação é algo que pertence ao analisando, muito embora este a desconheça. A simples informação diria respeito a algo que o analisando ignora do mundo externo, da realidade, algo que não pertence a seu mundo interno.

Por essa razão, talvez, é que Herrmann diz que a interpretação nasce da boca do analisando; atua o analista como um obstetra que assiste o nascimento do bebê, propiciando de algum modo técnico que a “informação” que pertence ao analisando seja por este último “descoberta”. O próprio Freud já nos dava este conselho em seus escritos técnicos.

Outro ponto a considerar é o exposto por Loewenstein, citado por Etchegoyen. Para aquele autor, a interpretação é uma intervenção especial que produz as mudanças dinâmicas que chamamos de insight. A interpretação dá ao paciente um novo conhecimento de si mesmo.

Com a Teoria dos Campos podemos concordar com o fato de que a interpretação dá ao paciente um novo conhecimento de si mesmo. Contudo, dizê-la ser um insight merece uma pequena consideração. Em que pese ter o termo a conotação de uma compreensão interna, também significa um conhecimento que se completa, que se fecha como uma Gestalt. Muito embora a Teoria dos Campos não explicite esta visão, propõe que a interpretação abra um leque de possibilidades, fazendo com que o analisando abdique provisoriamente de sua identidade acreditada como sólida e única, para readquiri-la ampliada. A interpretação, ao invés de fechar um certo conhecimento, abre sentidos alternativos. Poderíamos mesmo dizer que a melhor interpretação é aquela que faz o analisando continuar ou começar a associar livremente.

Nesta linha de pensamento, Liberman, também citado por Etchegoyen, diz que o analista dá um segundo sentido ao material do analisando. O próprio Etchegoyen tem a opinião de que a interpretação é também uma nova conexão de significado. O analista, diz ele, toma diversos elementos das associações livres do analisando e produz uma síntese que dá um significado diferente à sua experiência.

Na verdade, esse trabalho de produzir uma síntese que dá um significado diferente é conseqüência daquele modo de escuta não-seletiva, que despreza o sentido rotineiro do discurso e leva em conta sua ambigüidade. Ao escutar deste modo, o analista vai criando uma semântica especial — uma semântica psicanalítica, diríamos , que nada tem a ver com a semântica dos dicionários.

Para interpretar, o analista acredita, pois, que o discurso, qualquer discurso, tem algum sentido, ou seja, tudo é interpretável, tudo é possibilidade de descoberta de outro significado, sendo este outro significado aquilo que Herrmann entende por fantasia.

Este último aspecto tem a ver, também, com a generalização da noção de inconsciente, uma generalização proposta pela Teoria dos Campos, quando afirma que cada relação tem o seu campo, ou seja, cada relação ou ato psíquico tem suas próprias regras (inconscientes) determinantes, limitantes. (Herrmann, 2004). Interpretar, portanto, seria fazer, com certa arte, com que estas regras se mostrem, embora saibamos que elas nunca se mostram diretamente mas através de representações, digamos, figurativas. Representações que expressam aquelas regras, que nos vão ajudando a desenhar a lógica emocional do analisando.

Theodor Reik, também presente na revisão de Etchegoyen, em oposição a Reich, que preconizava a sistematização da interpretação (análise das defesas, principalmente as defesas caracterológicas), era de opinião de que a “essência do processo psicanalítico consiste em uma série de ‘shocks’ que o sujeito experimenta ao tomar conhecimento de seus processos inconscientes, e cujo efeito se faz sentir muito depois” (Reik, 1933, citado por Etchegoyen, 1987, p. 221). Para Reik, esse “shock” específico da psicanálise é a surpresa. A surpresa consiste, diz ele — continuando a citação —, no “encontro, em um momento inesperado ou em uma inesperada circunstância, com um fato cuja expectativa se tornou inconsciente”.

O insight mais efetivo, diz Reik, é o que contém esse elemento de surpresa e a metapsicologia da interpretação repousa nesse fato fundamental. A isso acrescenta Etchegoyen que

a interpretação ou a reconstrução do analista não operam somente do ponto de vista topográfico, tornando consciente o inconsciente. Há também um deslocamento energético, como o que Freud estudou no chiste (1905/b), que tem a ver com o econômico e, por fim, com um efeito dinâmico à medida que o insight permite ao analisado apreciar como coincide o que estava reprimido com a realidade material do momento, quando o analista põe em palavras o reprimido (Etchegoyen, 1987, p. 221).

Seguindo ainda o pensamento de Reik: a interpretação psicanalítica tem muito a ver com a técnica do chiste, onde a partir de um conteúdo manifesto há uma regressão estrutural ao processo primário, que trata o material através de mecanismos de condensação e deslocamento, para que emerja novamente, mas de forma distinta. Esse processo supõe uma economia energética que produz uma descarga libidinosa. Ocorre o mesmo com a técnica psicanalítica, que é uma tentativa de recolher o material do paciente, deixar que se internalize em nós e que logo apareça em nós novamente como uma interpretação, acrescenta Etchegoyen, que, comunicada ao analisando, lhe dará uma nova visão de si mesmo que o surpreenderá.

Nesse sentido a interpretação, poderíamos dizer, tem a estrutura de um chiste e, por aproximação, fica compreensível quando Herrmann afirma ser a interpretação um ato falho a dois (Herrmann, 2004). De fato, Reik diz ainda que também o analista é surpreendido. É através da surpresa que ele opera em sua consciência o processo de elaboração que ocorreu em seu inconsciente.

Ilustrando estes dois aspectos — a interpretação estruturada como um chiste e como um ato falho a dois —, poderia lembrar aqui o fato de que em seminários clínicos, quando se compreende algo de súbito, esta compreensão, em geral, provoca risos. Isso acontece também muitas vezes com o próprio analisando quando surpreendido com algo que compreende de súbito. Quanto ao ato falho a dois, basta lembrar o próprio exemplo de Herrmann, quando a analisanda, talvez decepcionada com uma intervenção do analista que apenas repetira algo que ela mesma dissera, decide “questionar” a intervenção com uma expressão inglesa: “So”? (“E daí?”, parecia perguntar ela). O analista responde: “Sim, você é”. Ela, surpresa, pergunta: “Sou o quê?”. “Mulher, você não disse?”, respondeu o analista (Herrmann, 2004). O “ato falho a dois” fez com que, de fato, ela se desse conta de algo até então por ela ignorado. É o que aparece na seqüência associativa da analisanda, que passa a falar de suas dificuldades, inclusive as dificuldades relacionadas à sua vida sexual, associações que, aparentemente, só puderam surgir após o ato falho a dois.

Para a Teoria dos Campos, a interpretação não consiste na fala do analista ao enunciar um sentido verdadeiro para a comunicação do analisando (Herrmann, 1991b), não consiste muito menos em uma explicação de seu funcionamento mental. A interpretação é algo que se confunde com o método psicanalítico, com a ruptura de campo. Poder-se-ia dizer que a interpretação psicanalítica é algo natural que ocorre em virtude do modo de escuta do analista, um processo cumulativo-temporal que se dá quando o analisando se percebe diferente daquilo que ele acreditava ser. Nesse sentido, a interpretação determina um efeito que funciona como uma renúncia provisória a uma determinada identidade para a aceitação de uma outra mais ampliada. Entendemos que é isso que ocorre em graus diversos, em qualquer interpretação psicanalítica, de qualquer orientação teórica ou técnica.

 

Referências

Etchegoyen, R. H. (1987). Fundamentos da técnica psicanalítica. Porto Alegre: Artes Médicas.        [ Links ]

Herrmann, F. (1991a). Andaimes do real: O método da Psicanálise. São Paulo: Brasiliense.        [ Links ]

Herrmann, F.(1991b). Clínica psicanalítica: A arte da interpretação. São Paulo: Brasiliense.        [ Links ]

Herrmann, F. (2004) O que é teoria dos campos. Revista Brasileira de Psicanálise, 38(1), 15-38.        [ Links ]

Pick, I. B. (1994). A emergência de relações de objeto iniciais no setting psicanalítico. In R. Anderson (Org.), Conferências clínicas sobre Klein e Bion (pp. 37-47). Rio de Janeiro: Imago.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
José Fernando de Santana Barros
R. Jornalista Paulo Bittencourt, 155/102 — Derby
52010-260 Recife, PE
Fones: (81) 3222-2850 / (81) 9975-7879
E-mail: jfernandosantana@uol.com.br

Recebido em: 10/11/2007
Aceito em: 11/12/2007

 

 

* Membro Titular da Sociedade Psicanalítica do Recife e Membro do Centro de Estudos da Teoria dos Campos.

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