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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.40 no.73 São Paulo Dec. 2007

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

A arte da interpretação à luz da Teoria dos Campos

 

The art of interpretation in the perspective of Multiple Fields Theory

 

El arte de la interpretación desde la óptica de la Teoría de los Campos

 

 

Cláudio J. de Campos Filho*

Membro efetivo da Associação Psiquiátrica do Estado do Rio de Janeiro - RIO 4

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O trabalho apresenta uma discussão sobre a arte da interpretação frente à Teoria dos Campos de Fabio Herrmann. Mostra como a Teoria dos Campos permitiu a convergência de várias teorias para interpretação do fenômeno psíquico, criando, desta forma, uma metateoria que dá sentido às várias formas pelas quais se apresenta o fenômeno psíquico. E através da ruptura de campo busca uma nova organização psíquica, permitindo forma e conteúdo novos para o pensamento.

Palavras-chave: Arte, Interpretação, Teoria dos Campos, Metateoria.


ABSTRACT

This paper discusses the art of interpretation in the perspective of Multiple Fields Theory, as developed by Fabio Herrmann. It points out how the Multiple Fields Theory allows the convergence of many theories for the interpretation of psychic phenomena, thus creating a meta-theory that gives meaning to the various manners of psychic phenomena presentations. And by the rupture of the field, a new psychic organization is sought for, allowing new thought contents and formations.

Keywords: Art, Interpretation, Multiple Fields Theory, Meta-theory.


RESUMEN

El trabajo presenta una discusión entre el arte de la interpretación frente a la Teoría de los Campos de Fabio Herrmann. Muestra como la Teoría de los Campos permitió la convergencia de varias teorías para la interpretación de los fenómenos psíquicos, creando así una metateoría que otorga sentido a las varias formas por las cuales el fenómeno psíquico se presenta. Y, a través de la ruptura de campo, busca una nueva organización psíquica, permitiendo nuevas formas y contenidos para el pensamiento.

Palabras clave: Arte, Interpretación, Teoría de los Campos, Metateoría.


 

 

Fabio Herrmann foi o maior, ou está entre os maiores pensadores da psicanálise no Brasil. Sua obra é já importante, podendo ter sido ainda maior, se a vida não lhe fosse roubada tão cedo. A Fabio minha maior homenagem neste pequeno trabalho sobre sua arte e ciência.

“Deixaremos que a clínica fale por ela mesma, considerando brevemente cada passo do processo terapêutico, da entrevista inicial à cura, para tentarmos sempre elucidar em que consiste nosso método e como o método, não as teorias, determina que se cumpra cada etapa” (Herrmann, 1991, p. 10).

Com tal formulação inicial, Herrmann deixa antever o que será posteriormente a sua Teoria dos Campos, esta, porém solidamente calcada na clínica e na interpretação.

Interpretação para o autor se produz como arte, tendo estilo, e estética de uma obra de arte que se vai construindo a partir de um método científico, de acordo com as propostas da psicanálise, no sentido de investigar e reconstruir a mente humana — em um processo sem fim que atingirá sempre um andaime superior, e assim infinitamente.

O homem em Herrmann é um vir-a-ser se construindo a partir de um método rigoroso que o colocará sempre diante de um novo porvir.

“Tentativas de apoderar-se de um estilo alheio fracassam lamentavelmente, deixando como seqüela apenas algum maneirismo inconseqüente, um jargão, um cacoete, um tique nervoso da interpretação. Como conseqüência nessa matéria, a palavra de ordem é depurar sem pressa” (Herrmann, 1991, p. 13).

Neste momento Herrmann enuncia um caminho que poderá sem dúvida ir do fracasso ao êxito, dependendo do rigor com que o analista aplica sua ciência, dando assim ao método sua primazia.

Afinal que coisa estranha é essa, o método psicanalítico de que tanto se fala na Teoria dos Campos? Parece-me ligeiramente mágico, funciona quase sozinho, usando o analista como instrumento concreto. Não se sabe ao certo se é uma característica da espécie humana, se é uma forma, se é uma forma de conhecimento, se é um processo terapêutico ou de um estudo do psiquismo. Cria as teorias e as técnicas, mas não se deriva de uma delas em particular (Herrmann, 2001, p. 62).

Este é o instante em que Fabio assume que método e interpretação, apesar de estarem interligados, se separam para tomar cada um seu destino específico. Este que será apontado e controlado pela clínica e seu particular interesse. Portanto clinicar agora é cair vertiginosamente na investigação sem destino preciso, e completamente incerto. Onde se encontrará segurança na formulação artística da interpretação. O que parece estranho à vida e à sua continuidade.

“Por conseguinte, minha ‘teoria’ — insisto nas aspas porque não se trata de uma teoria como a de Klein ou a de Hartmann, por exemplo, mas quando muito uma espécie de metateoria…” (Herrmann, 1991, p. 17).

Esta metateoria é o instrumento com que Herrmann subverte as antigas teorias psicanalíticas e liberta a interpretação para o caminho da arte. Interpretar já não é mais obedecer a regras rígidas “sobre o que” determina “o porquê”. E, sobretudo, produzir com estilo e arte uma possibilidade de pensar para além do conflito e da doença. Desta maneira Fabio ultrapassa obstáculos para produzir uma psicanálise que possa reconstruir o ser em toda a sua capacidade de porvir, e não somente de estar.

Isto é, faço tudo um pouco literal demais, tão materialmente expresso, tão coisa feita que se articulasse uma vaga inquietação no analisando: como virou coisa um momento de emoção vivida?... Ou posso repetir vagamente como se fora uma nuvem de sentido sombreando a sessão presente, para deter-me de golpe num ponto nodal e desenvolvê-lo à minúcia, assim como quem foca um microscópio.... O importante é que nada disso tenha sido arbitrário. São variações tonais, contrapontos, harmonias, sempre determinadas pela forma e contexto… (Herrmann, 1991, p. 90).

É desta forma que Fabio vai se aproximando da idéia de arte da interpretação, usando o método como pano de fundo que conduz uma técnica à reconstrução do sujeito, refazendo o tecido mental, num bordado minucioso e infinito, tal qual uma rendeira que nunca chega ao fim de sua tarefa, pois nunca haverá uma renda final e perfeita.

“A idéia essencial que lhe desejo transmitir é, singelamente, que se não devem confundir interpretação psicanalítica e fala do analista” (Herrmann, 1991, p. 91).

Aqui acontece a separação definitiva entre arte de interpretar e falar. A fala pretende explicar, a interpretação pretende reter o enigma, e reconstituí-lo de forma diferente e interrogativa. Ocasionando um pensar diverso, simbólico e genuinamente próprio sobre si mesmo. O paciente já então pode se ver como outro, mais ou menos semelhante estruturalmente, mas interrogando-se de forma tão diversa, que já não consegue encontrar-se, nem no mesmo lugar, nem no mesmo conflito. Tal deslocamento coloca em função um ato de conhecimento de si mesmo tão profundamente diverso, que leva o paciente a se interrogar sobre sua própria pessoa. Isso porque ele já não se reconhece na história que contou para o analista. Este é um momento precioso dentro do processo psicanalítico, no qual inicia um reconhecimento novo e mais próximo do que seria naquele momento sua identidade.

Sexualidade e agressividade formam um par inseparável dentro da teoria psicanalítica; nascem juntas, como uma espécie de excesso emocional para lá da mera realização dos atos de sobrevivência fisiológica, e presidem a abertura para o social; consideram-se opostas libido e agressão — Eros e Tânatos — que é como dizer princípios de vida e morte —, mas dão uma a outra sentido e se intrincam indissoluvelmente em condições concretas de vida (Herrmann, 1991, pp. 110-111).

É o momento crucial onde a interpretação dá ao método outro sentido, mostrando que a interpretação de dois caminhos diversos acontece em busca da mais profunda versão e completamente diferente da anterior perspectiva do fenômeno psíquico.

Uma cena sexual pode em verdade apoiar-se completamente na sensação de vitória ou de poder sobre o outro. Ou, ao revés, pode-se reproduzir uma cena de vitória no emprego ou nos esportes, um devaneio de riqueza ou de viagem, como estribilho daquela canção de ninar que o adulto dedica a si mesmo, e justamente através de tais estórias encontrar prazer erótico, pois seus esquemas são análogos à fórmula pessoal de prazer sexual. O sexo humano não é natural, como se vê, domesticou-se, arma-se em subterfúgios (Herrmann, 1991, p. 111).

O intrincado caminho da mente que o psicanalista terá que fazer é uma tessitura que, com a mesma qualidade do anterior, reconstitua a mente do paciente, dando a cada fator uma nova conseqüência e um novo sentido, que ao surpreendê-lo permita um pensar diverso que não o faça repetir a trama neurótica.

A trama neurótica do paciente se sustenta justamente na deformação de caminhos da mente, repetindo-se na tentativa de subtrair a capacidade de pensar sobre si mesmo, abandonando a racionalidade e se entregando à concretização de objetivos enganosos para alcançar o restabelecimento da situação neurótica.

O problema da verdade é delicado. Parece confundir-se com a realidade, mas já vimos como a realidade mente.... Verdade é o que afirma uma ciência ou qualquer outro sistema de pensamento, mesmo que outra o negue e que partes diferentes ou diferentes momentos da mesma ciência entrem em flagrante contradição, pois nem sempre a verdade é líquida e certa, quase nunca o é (Herrmann, 2001, p. 106-107).

Verdade e interpretação dentro da Teoria dos Campos são correlatas, pois a interpretação que o psicanalista fornecerá ao seu paciente será tão-somente a reconstrução de uma verdade, que o permitirá libertar-se da culpa e de suas conseqüências danosas para sua vida e sua liberdade.

O método da psicanálise, ao proporcionar outra versão dos acontecimentos tidos como causadores do adoecer psíquico, proporciona uma nova possibilidade crítica até então desconhecida pelo indivíduo-paciente. Este, ao procurar pensar através desta nova versão, alcança outras conclusões sobre si mesmo e desta maneira transforma a sua realidade interna e como conseqüência também a externa.

O Campo psicanalítico revelou-se até aqui esquivamente.... Por fim, restou uma espécie de negativo do conceito de Campo Psicanalítico, que pudemos assim formular: o Campo Psicanalítico define-se por uma extravagância, trata-se de um campo constituído pela propriedade fundamental, definitória, de que todos os campos das relações nele vigentes valem por sua possível ruptura (Herrmann, 1979, p. 68).

A ruptura do campo psicanalítico se dá positivamente pela interpretação, construindo novas possibilidades de organização psíquica dentro das relações do campo.

No interior desta possibilidade a mente humana se reconstrói a cada momento em que uma interpretação psicanalítica se realiza e provoca uma modificação estrutural no campo a que ela se destina.

Ao criar a Teoria dos Campos, Fabio Herrmann tentou harmonizar uma busca antiga dentro da psicanálise. Harmonizar as diversas teorias psicanalíticas, através de um campo onde as tendências e os diversos sentidos que compõem o que chamamos de realidade se estruturassem numa forma que permitisse a intervenção proporcionada pela psicanálise e sua técnica de interpretar cada fenômeno e delicadamente estruturar o campo de forma a permitir o saber de si e para si.

Contudo o exposto evitou assim as contradições, que as neuroses (como denominadas por Freud) dêem a sensação de outras possibilidades como se tivessem respostas para a realidade do existir. Elas desarmonizam o campo psicanalítico, estabelecendo em seu lugar o “falso” no lugar do que poderia se chamar de “verdadeiro” ou “verdade”.

Resta colocar onde fica o sofrimento humano. Este, fazendo parte do existir, se coloca na natureza como tudo mais que nela vive.

Separar-se do natural e existir como humano compõe um sofrimento que é parte do ser diferente de tudo que existe e adquirir a possibilidade de pensar.

Pensar é tentar se harmonizar como outro ser, este fora do natural, pois através do seu pensar constrói uma nova forma de existência, e uma nova forma de coexistir com o natural, fora dele, e dentro de uma diferente convivência entre o real e outro imaginário, fruto da capacidade adquirida de inventar.

Novos campos se estruturam e diversas alternativas de viver e sofrer cria e recria o ser humano. Neste caminho a humanidade terá que lidar consigo mesma não mais contando com os favores da natureza. Os deuses a abandonaram definitivamente.

O problema é, pois, saber como o indivíduo poderia ultrapassar sua forma e seu laço sintático com um mundo para atingir a universal comunicação dos acontecimentos, isto é, a afirmação de uma síntese disjuntiva para além não somente das contradições lógicas, mas mesmo das incompatibilidades alógicas. Seria preciso que o indivíduo se apreendesse a si mesmo como acontecimento. E que o acontecimento que se efetua nele fosse por ele apreendido da mesma forma como outro indivíduo nele enxertado (Deleuze, 1969, pp. 183-184).

Aí se encontra o sentido que ultrapassando a vida fornece sua lógica. Criar e recriar o humano é o destino que aguarda todo ser humano, que pretenda a existência ao lado da natureza.

Porém não se poderá ignorar a dor que sempre restará como rastro das lutas internas com os próprios princípios da natureza. Fato muito bem lembrado no ditado bíblico “Tu és pó e ao pó tornarás”

 

Referências

Deleuze, G. (1969). A lógica do sentido (4ª ed.). São Paulo: Editora Perspectiva.        [ Links ]

Herrmann, F. (1979). Andaimes do real: Uma revisão crítica do método da Psicanálise (1ª ed.). São Paulo: EPU.        [ Links ]

Herrmann, F. (1991). Clínica psicanalítica: A arte da interpretação. São Paulo: Editora Brasiliense.        [ Links ]

Herrmann, F. (2001). Introdução à Teoria dos Campos. São Paulo: Editora Casa do Psicólogo.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Cláudio J. de Campos Filho
R. Jardim Botânico, 295/ 3º andar — Jardim Botânico
22470-050 Rio de Janeiro, RJ
Fone: (21) 2537-5471
E-mail: claudiocamposfilho@gmail.com

Recebido em: 23/11/2007
Aceito em: 11/12/2007

 

 

* Psiquiatra. Psicanalista. Membro efetivo da APERJ-RIO 4.

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